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sábado, 7 de dezembro de 2013

O Evangelho segundo Mandela

O Evangelho segundo Mandela
Não podemos nos esquecer que países como Israel, EUA e Inglaterra apoiaram durante décadas o regime do apartheid. Se dependesse deles, Mandela teria morrido na prisão, a África do Sul ficaria afundada no caos e o mundo não teria a oportunidade de fabricar a lenda do novo Messias
por Alain Gresh
Um herói do nosso tempo”, afirmava o Courrier Internacional de junho de 2010. “Ele mudou a história”, valoriza ainda mais a revista Le Nouvel Observateur de maio de 2010. Acompanhadas de fotos de Nelson Mandela sorridente, essas duas capas são o testemunho de uma adoração quase unânime, a qual o filme Invictus, do diretor Clint Eastwood, levou à apoteose. Com a Copa do Mundo de futebol, se intensifica o culto ao profeta visionário que rejeitou a violência e guiou seu povo em direção a uma terra prometida onde vivem, em harmonia, negros, mestiços e brancos. O presídio de Robben Island, onde ele ficou encarcerado por 18 anos, passou a ser lugar de visitação obrigatória para turistas estrangeiros, e lembra um passado um pouco nebuloso, do tempo em que oapartheid desonra e suscita condenação universal, em primeiro lugar, a dos democratas ocidentais.
Cristo foi morto na cruz há aproximadamente dois mil anos. Muitos pesquisadores se perguntam sobre a correspondência entre o Jesus dos Evangelhos e o Jesus histórico. O que conhecemos da vida terrestre do “filho de Deus”? De quais documentos dispomos para definir sua pregação? Os testemunhos resgatados no Novo Testamento são realmente confiáveis?
Diante de tantas questões, podemos presumir que é mais fácil definir o “Mandela histórico”, já que temos um Evangelho escrito por seu próprio punho1, além de várias testemunhas diretas. A lenda Mandela pareceria, então, um tanto quanto distante da realidade, como essa do Jesus dos Evangelhos, uma vez que seria intolerável admitir que o novo messias tivesse sido um “terrorista”, “aliado dos comunistas” e da União Soviética (aquela do “gulag”), um revolucionário determinado.
O Congresso Nacional Africano (CNA), aliado estratégico do partido comunista sul-africano, se lançou na luta armada, em 1960, depois do massacre em Sharpville, que deixou dezenas de mortos entre os negros que protestavam contra o sistema de pass(espécie de passaportes internos do país). Mandela, até então adepto da luta legal, acabou persuadido: jamais a minoria branca renunciaria pacificamente ao seu poder, às suas prerrogativas. Tendo, num primeiro momento, privilegiado as sabotagens, o CNA utilizou também, de maneira limitada, a arma do “terrorismo”, não hesitando em colocar algumas bombas em cafés.
Preso em 1962 e condenado, Mandela rejeitou, a partir de 1985, várias ofertas de libertação em troca da sua renúncia à violência. “Sempre é o opressor, e não o oprimido, quem determina a forma da luta. Se o opressor utiliza a violência, o oprimido não tem outra escolha do que responder com violência”, escreve ele em suas Memórias. E somente a violência, apoiada por mobilizações populares crescentes e sustentada por um sistema internacional de sanções cada vez mais coercitivas, pôde, com o passar do tempo, demonstrar a ineficiência do sistema repressivo e levar o poder branco ao arrependimento moral. Com o princípio “um homem, uma voz”, Mandela e o CNA souberam então mostrar flexibilidade na implementação da “sociedade arco-íris” e nas garantias concedidas à minoria branca.
A estratégia do CNA se beneficiou do apoio material e moral da União Soviética e da “facção socialista”. Vários dos seus dirigentes foram formados e treinados em Moscou e Hanói. O combate se estendeu por toda a África Austral, onde o exército sul-africano tentou estabelecer sua hegemonia. A intervenção das tropas cubanas em Angola, em 1975, e as vitórias que alcançaram, especialmente em Cuito-Cuanavale, em janeiro de 1988, contribuíram para desestabilizar a máquina de guerra do poder branco. A batalha de Cuito-Cuanavale constituiu, segundo Mandela, “um momento decisivo na libertação do nosso continente e do meu povo2”. Anos depois, em 1994, Fidel Castro foi um dos convidados de honra na posse de Mandela na presidência.
No choque entre a maioria da população e o poder branco, os Estados Unidos, o Reino Unido, Israel e a França (esta última até 1981) combateram do “lado errado”, o lado dos defensores do apartheid, em nome da luta contra o perigo comunista. Chester Croker, principal homem da política de “compromisso construtivo” do presidente Ronald Reagan na África Austral, escreveu à época: “Por sua natureza e história, a África do Sul faz parte da experiência ocidental e é parte integrante da economia ocidental”. Washington, que tinha apoiado Pretória em Angola, em 1975, não hesitou em contornar o embargo sobre as armas e colaborar estreitamente com os serviços de informação sul-africanos, rejeitando qualquer medida coercitiva contra o poder branco. Esperando uma evolução gradual, a maioria negra teve que adotar uma postura moderada.
Em 22 de junho de 1988, 18 meses antes da libertação de Mandela e da legalização do CNA, o subsecretário do Departamento de Estado americano, John C. Whitehead, ainda explicou para a comissão do Senado: “Nós devemos reconhecer que a transição para uma democracia não racial na África do Sul tomará inevitavelmente mais tempo do que gostaríamos”. Ele pretendia que as sanções não tivessem nenhum “efeito desmoralizador sobre as elites brancas” e que penalizassem, em primeiro lugar, a população negra.
No último ano do seu mandato, Ronald Reagan tentou uma última vez – e sem sucesso – impedir o Congresso americano de punir o regime do apartheid. Foi na época em que ele celebrava “os combatentes da liberdade” afegãos e nicaraguenses e denunciava o terrorismo do CNA e da Organização para a Libertação da Palestina (OLP).

Terroristas?

O Reino Unido não ficou de fora; o governo de Margaret Thatcher recusou qualquer encontro com o CNA até a libertação de Mandela, em fevereiro de 1990. Na reunião internacional do Commonwealth em Vancouver, Canadá, em outubro de 1987, ela se opôs à adoção de sanções. Interrogada sobre as ameaças do CNA em prejudicar os interesses britânicos na África do Sul, respondeu: “Isso mostra o quão banal é esse grupo terrorista [CNA]”. Nesse período, a associação de estudantes conservadores filiados ao seu partido, distribuiu panfletos proclamando: “Enforquem Nelson Mandela e todos os terroristas do CNA! São carniceiros”.
Agora, em 2010, o novo primeiro-ministro conservador, David Cameron, decidiu enfim se desculpar por esse comportamento. Mas, rapidamente, a imprensa britânica refrescou sua memória, lembrando que ele mesmo foi à África do Sul, em 1989, a convite de um lobbyantissanções.
Já Israel permaneceu até ao fim como aliado indefectível do regime racista de Pretória, fornecendo-lhe armas e ajudando em seu programa militar nuclear e de mísseis. Em abril de 1975, o atual presidente israelense, Shimon Peres, então ministro da Defesa, assinou um acordo de segurança entre os dois países. Um ano mais tarde, o primeiro-ministro sul-africano, Balthazar J. Vorster, antigo simpatizante nazista, foi recebido com todas as honras em Israel. Os responsáveis pelos dois serviços de informação se reuniam anualmente e coordenavam a luta contra “o terrorismo” do CNA e da OLP.
E a França? Bem, aquela do general De Gaulle e de seus sucessores de direito teceu relações tranquilas com Pretória. Numa entrevista publicada no Nouvel Observateur, Jacques Chirac se glorificava do seu antigo apoio a Mandela. Ele tem, assim como muitos políticos da direita, memória curta. Primeiro-ministro em 1974 e 1976, Chirac sancionou, em junho de 1976, o contrato com a Framatome para a construção da primeira central nuclear na África do Sul. Nessa ocasião, o editorial do Le Monde observou: “A França está em curiosa companhia entre o pequeno pelotão de parceiros julgados ‘de confiança’ por Pretória”. “Viva a França. A África do Sul se torna uma potência atômica”, dizia na ocasião o jornal sul-africano Sunday Times. Se, claramente sob pressão dos países africanos, Paris decidiu, em 1975, não vender mais armas diretamente à África do Sul, a França honrou por muitos anos ainda os contratos em andamento, enquanto seus blindados Panhard e helicópteros Alouette e Puma eram construídos localmente com a devida autorização.
Apesar do discurso oficial de condenação ao apartheid, Paris manteve, até 1981, várias formas de cooperação com o regime racista. Alexandre Marenches, o homem que dirigiu o serviço de documentação exterior e de contraespionagem (SDECE) entre 1970 e 1981, resume a filosofia da direita francesa: “O apartheid é, certamente, um sistema que devemos lastimar, mas é preciso fazê-lo evoluir calmamente”3. Se o CNA tivesse escutado seus conselhos de “moderação” (ou aqueles do presidente Reagan), Mandela teria sido morto na prisão, a África do Sul teria se afundado no caos e o mundo não teria a oportunidade de fabricar a lenda do novo messias.
Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).

Ilustração: Daniel Kondo


“1Long walk to freedom, Little Brown, Estados Unidos, 1995.
2 Ronnie Kasrils, “Turning point at Cuito Cuanavale”, 23 de março de 2008, www.iol.co.za/.
3 Christine Ockrent, Alexandre de Marenches, Dans le secret des princes (Dentro do segredo dos príncipes), Stock, Paris, 1986.

sexta-feira, 5 de abril de 2013

Filme Egipcio....


Cairo 678 - Mohamed Diab (2010)

 
Egito | Mohamed Diab | 2010 | Drama
Língua: Árabe | Legendas: Português | IMDB
  100 min | 1.37 Gb

 Cairo 678 (2010)
Em “CAIRO 678” o diretor egípcio Mohamed Diab aborda a difícil realidade das mulheres de seu país que enfrentam a violência em uma batalha constante por respeito dentro do espaço público.
Para isso, ele resolveu contar a história de Fayza, Seba e Nelly. Três mulheres egípcias com vidas completamente diferentes se unem para combater o machismo que impera no Egito contemporâneo e que está em todos os lugares: nas ruas da cidade do Cairo, no trabalho e dentro de suas próprias casas. Determinadas, elas se unem e iniciam uma série de ataques contra os homens que ousam molestá-las. Quem são essas misteriosas mulheres que tem a coragem de enfrentar uma sociedade baseada na superioridade masculina?
 
Crítica 
Heitor Augusto 
 
Cairo 678 cai naquela categoria de filmes que uma pessoa consciente do estado das coisas fica feliz pela existência, mas quem tem apreço pelo cinema não consegue deixar de notar como o resultado é falho. Um melodrama político sobre uma causa nobre, mas com tintas tão deslocadas que chegam a anular a força do discurso.

É a típica produção que o crítico de cinema torce para que o público não tome o texto como juízo final, desistindo de conhecer o filme por causa da avaliação crítica. Mesmo assim, quem escreve não pode (nem deve) divorciar-se da obrigação de apontar falhas, cegando-se por causa da nobreza do tema. É urgente um filme que discute o machismo e toma uma posição feminista para tal, o que não anula, porém, a necessidade de problematizar o sentimentalismo no qual o filme obriga suas personagens a mergulharem.

Torço para que os que lerem este texto vão antes ao cinema, assistam a Cairo 678 e, então, venham dialogar com o que aqui está dito. 
 
CRÉDITOS: CINE-AFRICA
 
Texto completo aqui:  http://www.revistainterludio.com.br/?p=2694
 
 
Por favor, semeie! Semear é muito importante para que outras pessoas tenham acesso ao filme.

Agradecimentos a Na Moral do MKO

domingo, 3 de março de 2013

O neoimperialismo na África

Do redecastorphoto
África e AFRICOM: “Neoimperialismo e a arrogância da ignorância”
Franklin C. Spinney*, Counterpunch
Africa and AFRICOM: “Neo-Imperialism and the Arrogance of Ignorance”
Traduzido pelo pessoal da Vila Vudu
Muitos norte-americanos não veem o quão profundamente os EUA estão-se envolvendo militarmente no turbilhão de conflitos que varrem a África Saariana e Subsaariana. O caos está mapeado a seguir:

Embora relatos recentes tendam a concentrar-se na tentativa dos franceses para expulsar para fora do Mali a Al Qaeda no Maghreb Islâmico [Al Qaeda in Islamic Maghreb (AQIM) – esforço que pode já se estar convertendo em complexa guerra de guerrilhas, a operação francesa não passa de versão, em pleno século 21, de disputa, à maneira do século 19, pelos recursos da África. É política que, do ponto de vista dos EUA, relaciona-se, bem provavelmente, ao “pivô em direção à China”, dado o crescimento do mercado e a presença chinesa na África no campo da ajuda humanitária. Juntos, a disputa feroz e o “pivô” bastarão para desencadear no Pentágono um movimento de sequestro, no curto prazo, de todos os conflitos, com a correspondente cascata de dinheiro antevista no longo prazo.
Ano passado, Craig Whitlock do Washington Post ofereceu um mosaico do envolvimento dos EUA na África e publicou uma série de excelentes reportagens. O mapa a seguir apresentado:


é uma espécie de resumo das matérias de Whitlock (e outros), com informes para serem distribuídos às populações muçulmanas na África Central. Considerem-se as distâncias envolvidas nesse enxame de bases (os pontos vermelhos): só a distância entre as bases distribuídas no eixo noroeste-sudoeste no continente africano é maior que a distância entre New York e Los Angeles. Considerem-se as diferenças étnicas e tribais entre Burkina Faso e Quênia, para nem falar das diferenças internas, dentro desses países. E lembrem que praticamente todo o norte da África, do Marrocos ao Egito, é mais de 90% muçulmano.
Por mais que a correlação entre populações muçulmanas e as atividades de intervenção norte-americana nesse mosaico de diferenças culturais sugira um leque de diferentes mensagens para diferentes públicos, só uma generalização é absolutamente garantida, dada a história recente das intervenções norte-americanas: a presença continuada e o envolvimento crescente do Comando dos EUA na África, AFRICOM, só fará inflamar cada vez mais o relacionamento dos EUA com o Islã militante e, talvez, também com número imensamente maior de islamistas moderados.
Mas consideremos outras possibilidades, para que a loucura se generalize. Por exemplo: considerado o resultado da recente aventura líbia, os islamistas de mentalidade conspiracionista do norte da África (e – porque não? –, também muitos moderados), com queda para ler tendências no formato das nuvens, bem poderão interpretar a corrente de bases do AFRICOM na África Subsaariana como os tijolos iniciais de um covil gigante, que lá estará para acomodar uma nova geração de neocolonialistas europeus, que atacarão do norte, obedecendo à doutrina do presidente Obama que manda “liderar pela retaguarda”. Claro, dadas as distâncias envolvidas e a porosidade que aquelas distâncias implicam, tais divagações de mentes paranóicas não passam de tolices, de um ponto de vista militar.
Mas, se se considera a trilha de mentiras assassinas que os EUA deixaram no Iraque; de incompetência, no Afeganistão; e de arrogante indiferença à sorte dos palestinos, que os EUA comprovaram, ao construir processos de paz que só facilitaram o crescimento de colônias israelenses ilegais, num roubo continuado de terras, por Israel, que se arrasta já por 40 anos, esse tipo de caracterização será moída no moinho da propaganda, como reles fulminações de mentes paranoicas. E, lembre: você é paranoico, mas, nem por isso, os EUA deixarão de sair, armados até os dentes, para acabar com você.
Outro sentido da natureza metastática do envolvimento dos EUA na África pode ser inferido da carregada, terrorista-cêntrica, embora cuidadosamente construída verborragia das “respostas preparadas” que o general de exército David M. Rodriguez entregou à Comissão dos Serviços Armados do Senado, como material de apoio ao que disse, dia 12/2/2013, ao ser confirmado como novo comandante do Comando dos EUA na África, AFRICOM. Convido os leitores a, pelo menos, passar os olhos naquele documento revelador.
As “ameaças” terroristas na África Subsaariana, evidentemente tão tentadoras para os neoimperialistas do AFRICOM, não existem isoladamente. Todas são intimamente conectadas à insatisfação étnico/tribal na África – tema ao qual Rodriguez alude, mas que absolutamente não analisa; nem o general nem seus “sabatinadores” senatoriais, naquele jogo cuidadosamente coreografado de perguntas e respostas.
Muitas dessas tensões, por exemplo, são, em parte, legado das fronteiras artificiais criadas pelos intervencionistas europeus no século 19. Aqueles intervencionistas deliberadamente traçaram fronteiras para misturar grupos étnicos, tribais e religiosos; assim contavam facilitar as políticas coloniais de “dividir para governar”. Os colonialistas do século 19 seguidamente exacerbaram deliberadamente as animosidades locais, impondo grupos minoritários em posições política e economicamente vantajosas, o que fazia crescer as ondas de descontentamento e revide. Stálin, aliás, usou a mesma estratégia nos anos 1920s e 1930s para controlar as repúblicas soviéticas muçulmanas, na região antes conhecida como Turquestão, na Ásia Central. Na URSS, o posicionamento dessas fronteiras artificiais entre aqueles novos “-stões” era amplamente conhecido como “pílulas de veneno” de Stálin.
A crise dos reféns na usina de gás no leste da Argélia, em janeiro passado, ilustra algumas dessas complexidades de profundas raízes culturais que sempre há nesses conflitos. Akbar Ahmed escreveu sobre isso, em mais um de uma série de ensaios fascinantes publicados por Al-jazeera. Essa série de matérias – que considero muito importantes – baseiam-se nas pesquisas para seu novo livro, no prelo, The Thistle and the Drone: How America’s War on Terror Became a War on Tribal Islam [O cacto/cardo e o drone: como a Guerra ao Terror, dos EUA, converteu-se em guerra contra o Islã tribal], a ser publicado em março, nos EUA, pela Brookings Institution Press.
O embaixador Akbar Ahmed é ex-alto comissário do Paquistão no Reino Unido, e ocupa agora a cátedra, apropriadamente batizada Cátedra Ibn Khaldun de Estudos Islâmicos da American University em Washington, D.C.. Considerado um dos pais da moderna historiografia e das ciências sociais, Ibn Khaldum é um dos especialistas mais influentes, no campo da historiografia, na natureza espontânea do tribalismo e de seu papel na construção da coesão social. O núcleo duro do trabalho do professor Ahmed acompanha essa inspiração. Visa a explicar porque a insatisfação espalha-se tão amplamente em todo o antigo mundo colonial, e como, parcialmente, tem raízes numa complexa história da opressão de grupos étnicos e em rivalidades tribais, em toda aquela região. Assim se criou uma teia de tensões entre os fracos governos centrais dos países ex-colônias e os grupos e tribos minoritários que os cercam.
Ahmed diz que essas tensões foram exacerbadas pela resposta militar que os EUA deram ao 11/9. Explica por que as intervenções militares pelos EUA e outras potências europeias ex-coloniais só farão crescer a tensão que já existe entre os governos centrais daqueles países e os grupos oprimidos.
Dentre outras coisa, Ahmed, talvez inadvertidamente, constrói uma crítica devastadora ao fracasso dos EUA, que não souberam respeitar os critérios de qualquer grande estratégia sensível, na reação ao 11/9. Ao confundir um crime horrendo, com ato de guerra, e declarar guerra global ao terror, sem final previsto; e ao conduzir aquela guerra nos termos de uma grande estratégica classicamente falhada, que assumia que “quem não está conosco está contra nós”, os EUA não apenas criaram inimigos que se multiplicam mais depressa do que seria possível matá-los; também, ao fazê-lo, os EUA, sem avaliar qualquer consequência, exacerbaram conflitos locais altamente voláteis, incrivelmente complexos, de raízes locais profundíssimas; assim, os EUA contribuíram para desestabilizar porções gigantescas da Ásia e da África.
Sem avaliar consequências? É dizer pouco. Considere, leitor, o seguinte: muitos leitores, aqui, já ouviram falar de AQIM e, provavelmente, também dos tuaregues. Mas quantos algum dia ouviram falar dos berberes cabila e de sua história na Argélia? (Eu, nunca.) Pois, como ensina o professor Ahmed, os berberes cabila são os fundadores da AQIM – fundação que tem raízes profundas nos seus padecimentos históricos. Assim sendo, a AQIM é mais do que simples “desdobramento” da al-Qaeda.
Nada disso aparece nas respostas do general Rodriguez, apesar de fazer repetidas referências à AQIM e à Argélia. Tampouco se aprenderão essas coisas daqueles senadores, ou de suas perguntas.
Pode-se confirmar pessoalmente, em casa.
Faça uma pesquisa de palavras no pacote de perguntas e respostas do general Rodriguez: ninguém jamais encontrará ali nem vestígios da complexa história que Ahmed explica em seu ensaio para Aljazeera,“The Kabyle Berbers, AQIM, and the search for peace in Algeria” [Os berberes cabila, AQIM e a busca de paz na Argélia]. (Tente, por exemplo, encontrar as palavras AQIM, Kabyle, Berber, history, Tuareg, tribe, tribal conflict, culture, etc. ou use a própria imaginação).
Além de perceber o muito que não se discutiu, observe também como o contexto centrado em ameaças que cerca todas as palavras sempre salta à vista. Compare a esterilidade de tudo que Rodriguez diz e a riqueza da análise de Ahmed. E tire suas próprias conclusões. E lembre: “AQIM” é apenas um dos verbetes, no portfólio de ameaças com que o AFRICOM trabalha. E o quanto nós não sabemos, sobre os outros verbetes?
Como Robert Asprey mostrou em seu clássico War in the Shadows [Guerra nas sombras], em que estuda 2000 anos da história das guerras de guerrilha, o erro mais frequente, sempre cometido por quem pretenda intervir, vindo de fora, numa guerra de guerrilha, é sucumbir à tentação de deixar que a “arrogância da ignorância” modele seus esforços militares e políticos.
Apesar de a arrogância da ignorância já afirmada e reafirmada no Vietnã, no Afeganistão, no Iraque e na Líbia... já começa a parecer que a conclusão intemporal de Asprey será mais uma vez reafirmada na África.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Zumbi Vive!


Mario Maestri no CORREIO DA CIDADANIA   


Em 20 de novembro de 1695, Nzumbi dos Palmares caía lutando em mata perdida do sul da capitania de Pernambuco. Seu esconderijo fora revelado por lugar-tenente preso e barbaramente torturado. Mutilaram seu corpo. Enfiaram seu sexo na boca. Expuseram a cabeça do palmarino na ponta de uma lança em Recife. Os trabalhadores escravizados e todos os oprimidos deviam saber a sorte dos que se levantavam contra os senhores das riquezas e do poder.
***
Em 1654, com a expulsão dos holandeses do Nordeste, os lusitanos lançaram expedições para repovoar os engenhos com os cativos fugidos ou nascidos nos quilombos da capitania. Para defenderem-se, as aldeias quilombolas confederaram-se sob a chefia política do Ngola e militar do Nzumbi. A dificuldade dos portugueses de pronunciar o encontro consonantal abastardou os étimos angolanos nzumbi em zumbi, nganga nzumba, em ganga zumba. A confederação teria uns seis mil habitantes, população significativa para a época.
 
Em novembro de 1578, em Recife, Nganga Nzumba rompeu a unidade quilombola e aceitou a anistia oferecida apenas aos nascidos nos quilombos, em troca do abandono dos Palmares e da vil entrega dos cativos ali refugiados ou que se refugiassem nas suas novas aldeias.
 
Acreditando nos escravizadores, Ganga Zumba deu as costas aos irmãos de opressão e aceitou as miseráveis facilidades para alguns poucos. Abandonou as alturas dos Palmares pelos baixios de Cucuá, a 32 quilômetros de Serinhaém. Foi seduzido por lugar ao sol no mundo dos opressores, pelas migalhas das mesas dos algozes.
 
Então, Nzumbi assumiu o comando político-militar da confederação.
 
Para ele, não havia cotas para a liberdade ou privilegiados no seio da opressão! Exigia e lutava altaneiro pelo direito para todos!
 
Não temos certeza sobre o nome próprio do último nzumbi que chefiou a confederação após a defecção de Nganga Nzumba. Documentos e a tradição oral registram-no como Nzumbi Sweca.
***
Nos derradeiros ataques aos Palmares, as armas de fogo e a capacidade dos escravistas de deslocar e abastecer rapidamente os soldados registravam o maior nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais do escravismo, apoiadas na superexploração dos trabalhadores feitorizados. As tropas luso-brasileiras eram a ponta de lança nas matas palmarinas da divisão mundial do trabalho de então.
 
Não havia possibilidade de coexistência pacífica entre escravidão e liberdade. Palmares era república de produtores livres, nascida no seio de despótica sociedade escravista, que surge hoje nas obras da historiografia apologética como um quase paraíso perdido, onde a paz, a transigência e a negociação habitavam as senzalas. Palmares era exemplo e atração permanentes aos oprimidos que corroíam o câncer da escravidão.
 
Como já lembraram, nos anos 1950, o historiador marxista-revolucionário francês Benjamin Pérret e o piauiense comunista Clóvis Moura, a confederação dos Palmares venceria apenas se espraiasse a rebelião aos escravizados dos engenhos, roças e aglomeração do Nordeste, o que era então materialmente impossível.
 
Palmares não foi, porém, luta utópica e inconsequente. Por longas décadas, pela força das armas e a velocidade dos pés, assegurou para milhares de homens e mulheres a materialização do sonho de viver em liberdade de seu próprio trabalho. Indígenas, homens livres pobres, refugiados políticos eram aceitos nos Palmares. Eram braços para o trabalho e para a resistência.
 
A proposta da retomada da escravidão colonial em Palmares, com Zumbi com um “séquito de escravos para uso próprio”, é lixo historiográfico sem qualquer base documental, impugnado pela própria necessidade de consenso dos palmarinos contra os escravizadores. Trata-se de esforço ideológico de sicofantas historiográficos para naturalizar a opressão do homem pelo homem, propondo-a como própria a todas e quaisquer situações históricas.
 
Palmares garantiu que milhares de homens e mulheres nascessem, vivessem e morressem livres. Ao contrário, em poucos anos, os seguidores de Ganga Zumba foram reprimidos, reescravizados ou retornaram fugidos aos Palmares, encerrando-se rápida e tristemente a traição que dividiu e fragilizou a resistência quilombola.
 
A paliçada do quilombo do Macaco foi a derradeira tentativa de resistência estática palmarina, quando a resistência esmorecia. Ela foi devassada em fevereiro de 1694, por poderoso exército, formado por brancos, mamelucos, nativos e negros, entre eles, o célebre Terço dos Enriques, formado por soldados e oficiais africanos e afro-descendentes. Não havia e não há consenso racial e étnico entre oprimidos e opressores.
 
O último reduto palmarino, defendido por fossos, trincheiras e paliçada, encontrava-se nos cimos de uma altaneira serra.
***
A serra da Barriga e regiões próximas, na Zona da Mata alagoana, com densa vegetação, são paragens de beleza única. Quem se aproxima da serra, chegado do litoral, maravilha-se com o espetáculo natural.
 
O maciço montanhoso rompe abruptamente, diante dos olhos, no horizonte, como fortaleza natural expugnável, dominando as terras baixas, cobertas pelo mar verde dos canaviais flutuando ao lufar do vento.
 
Se apurarmos o ouvido, escutaremos os atabaques chamando às armas, anunciando a chegada dos negreiros malditos. Sentiremos a reverberação dos tam-tans lançados do fundo da história, lembrando às multidões que labutam, hoje, longuíssimas horas ao dia, não raro até a morte por exaustão, por alguns punhados de reais, nos verdes canaviais dessas terras que já foram livres, que a luta continua, apesar da já longínqua morte do general negro de homens livres.
 
Mario Maestri é professor do programa de pós-graduação em História da UPF.
E-mail: maestri(0)via-rs.net
 

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Raça, pra que te quero?

Discussão sobre cotas trouxe petistas e tucanos brandindo barbaridades científicas

O Senado aprovou, na terça-feira 7, um projeto de lei que prevê a destinação de 50% das vagas em universidades e escolas técnicas federais para quem cursou o ensino médio integralmente em escolas públicas. Universidades e escolas técnicas terão de levar em conta critérios "raciais".
Veja bem: os vocábulos "critérios raciais" foram verberados pelos quatro maiores jornais brasileiros. Em sua primeira página, O Estado de S. Paulo chegou a surdir, como se a inverossimilhança fosse tolerável, frase do tucano Aloysio Nunes Ferreira, para quem "sou contra essa diferenciação pro raça e não tenho medo dessas movimentos. O branco pobre não é filho de senhor de escravos".
Essa bobagem de atribuir valor ao vocábulo "raça" não é nova. Os jornais que se dizem tão moderninhos o vocábulo "raça" como se este fosse cientificamente tolerável. Só para lembrar, em 1998, em sua coluna à página A2 da Folha de S.Paulo, o ex-presidente José Sarney chegou a escrever que cientistas brasileiros já haviam encontrado o DNA que validava "uma raça tipicamente brasileira". Nessa mediania de desinformação, ainda existe por aí uma revista da comunidade negra, vulgo afrodescendente, intitulada Raça.
O vocábulo "raça" deveria ter sido banido do dicionário desde o começo da década de 50: que foi quando Watson e Crick, ao conjecturarem sobre a dupla hélice do DNA, notaram que tais hélices eram compostas por decágonos – figuras de dez lados que, sabe-se em geometria, são as que mais concentram a energia. E que se você comparar o índice de crescimento desses decágonos seja num judeu, alemão, russo, esquimó ou argentino, ou branco, ou negro, ou circassiano, ou pardavasco, verá que as medidas são iguais. Ou seja, desde o começo da década de 50 os cientistas sabem que não existe conceito científico de raça. Somos todos rigorosamente iguais apesar das flamantes mentiras que volta e meia os racistas tendem a vender por aí.
Qualquer beletrista de Engenharia, Artes Plásticas ou Ciências sabe que toda vida viva cresce na mesma proporção: é o chamado número áureo ou golden mean, representado por raiz de 5 mais 1 sobre 2. Toda vida viva cresce nessa proporção. Com as hélices do DNA não é diferente.
Quem emprega, portanto, o vocábulo "raça", cujo uso fez o valor racista do termo quase invisível de tão habitual são os egressos de um antigo determinismo biológico segundo o qual poderíamos nós, humanos, sermos diferentes em essência – se esquecendo de que geneticamente somos todos substantivos apesar das variações culturais, e de classe, adjetivas.
Foi a partir de 1846 que Gustav Klemm publicou os dez volumes do seu "História cultural e geral da humanidade", pelo qual estabeleceu os conceitos básicos de que éramos divididos em raças, e isso bastou para que o conde de Gobineau inventasse a cascata de que no norte da Índia havia vivido uma raça superior chamada Arya (cuja tradução quer dizer homem honrado). E que essa raça superior teria passado o seu bastão evolutivo de pureza para os vikings e teutogermânicos. O nazismo e o racismo costuraram suas bandeiras a partir desses retalhos.
Seja petistas ou tucanos, todos falaram em raça desde essa terça-feira. Todos se curvaram ante o determinismo biológico e se esqueceram, ou simplesmente nunca souberam, o que é mais provável, que os maiores especialistas do mundo em pedras preciosas foram roubados da África pelos portugueses, escravizados – e já no Brasil passaram a ensinar aos cutrucos de Lisboa a arte alquímica da extração e transformação de gemas.
O determinismo biológico continua vigindo no nosso país que se pretende tão moderninho, e mesmo entre as esquerdas nessa questão das cotas foi deixado de lado a tão louvada vulgara marxista de exploradores e explorados em prol da ideia de que uns são mais apequenados que outros porque pertencem a uma outra raça.
O pensador marxista alemão Ernst Bloch (1885-1977) gostava de apontar o que chamava de "a contemporaneidade do não-coetâneo (em alemão, "Gleichzeitigkeit der Ungleichzeitigkeit"). Ou seja: você vive no século 21, mas pode estar dividindo o seu espaço, lado a lado, com quem ainda mantenha valores medievais. Ou simplesmente com quem ache que a ida do homem à lua não passa de uma montagem de video. O que ainda existem "raças". É a esta categoria que pertencem os tucanos e petistas que empregaram o vocábulo "raça" para discutir a questão da quota. São todos, noto, nacionalistas do século 17.

sábado, 2 de junho de 2012

Apesar de legalizada, poligamia é foco de controvérsia na África do Sul

Gleyma Lima e Polyanna Rocha no OPERAMUNDI

Recentemente o presidente do país, Jacob Zuma, se casou pela quarta vez. Há até um bairro habitado por polígamos


O tema da poligamia é frequentemente alvo de debates na África do Sul, ainda mais após o atual presidente Jacob Zuma se casar pela quarta vez. A prática é legalizada no país desde 1990, porém, apenas 10% da população é adepta da prática, segundo dados oficiais. A justificativa para a falta de adesão é que a poligamia é cara: pela lei, todas as mulheres devem ter os mesmos direitos econômicos.

Gleyma Lima/Opera Mundi

Na Cidade do Cabo, na África do Sul, o bairro de Bo Kaap reúne muitas famílias de polígamos

Segundo os jornais locais, Zuma, que completou 70 anos em abril, casou com Gloria Ngema Bongekile durante uma cerimônia tradicional em sua casa rural. As quatro esposas são tratadas oficialmente como primeiras-damas e são presenças confirmadas nos compromissos oficiais do presidente. Zuma se considera pai de mais de 20 crianças.

A educadora Yusrah Salaam, de 39 anos, afirma que não vê problemas no sistema poligâmico. Ela é a segunda esposa do marido. “Hoje, cada uma vive na sua casa, não convivemos e também não somos amigas, apenas nos respeitamos. Eu não vejo problemas, pois divido as obrigações com outra pessoa como cozinhar, lavar e passar já que ele não fica todos os dias em casa”. Ela conta que já é casada há três anos e a primeira esposa esta casada há dez. Ela tem dois filhos e a primeira esposa, nenhum.

Gleyma Lima/Opera Mundi
O jardineiro Sedick Slamang, de 45 anos, diz que tem sorte por ter duas esposas. Mas, “alerta” que o homem deve ter renda, pois o custo de vida é alto para manter várias famílias. “Tenho apenas uma esposa, porém, gostaria de ter outra. É muito bonito ver uma família grande e com duas boas mulheres. Apesar da vontade, não tenho condições financeiras”, explica.

Em um casamento polígamo, o homem deve passar a mesma quantidade de dias com cada esposa. Caso tenha duas, fica 15 dias do mês com a primeira e os outros com a segunda. As duas mulheres devem ser tratadas de forma igual. Se o marido resolver comprar um carro para a primeira mulher, todas as outras têm direito a um veículo do mesmo valor. A mesada para o pagamento das despesas da casa também. As esposas igualmente devem receber a mesma quantidade de presentes e os filhos irão estudar em escolas semelhantes e receber a mesma atenção do pai.

Na maioria dos casos, por questões logísticas, as esposas vivem em casas próximas, pois o marido consegue se revezar entre suas obrigações. Um bairro na Cidade do Cabo chamado Bo Kaap possui casas idênticas e habitado por homens poligâmicos com duas esposas ou mais.

Segundo a pesquisadora e defensora do tema Rayda Jacobs, a poligamia é considerada atraente por jovens mulheres em busca de estabilidade. “Como querem concluir a universidade, ter marido, família etc, a poligamia é uma saída”, explica.  Ela defende que é uma prática necessária, pois a população feminina é superior à masculina no mundo.

Rayda acredita que a poligamia, em vários casos, é também um ato de caridade, na visão do sul-africano.  “Muitos homens acabam se casando com mulheres acima dos 30 anos, solteiras ou viúvas. Muitos herdam a esposa do pai ou do irmão falecidos”. Segundo a pesquisadora, a justificativa é que a mulher não se preocupará com as necessidades sexuais, sociais, psicológicas e econômicas, pois o responsável será o atual marido”, diz.

Onde acontece

Poligamia é um casamento que engloba dois ou mais parceiros e não há vínculo matrimonial entre as mulheres. Na África do Sul, a poligamia é um direito consagrado na Constituição e o sul-africano pode ser casado com até quatro mulheres. Nesse caso, todas as esposas receberam seu sobrenome e terão os mesmos direitos perante a lei.

A prática acontece principalmente na África Ocidental e Oriental. No Sudão, é incentivado pelo presidente, devido à supremacia populacional feminina. Outros países, como  Líbia e Marrocos, requerem a permissão por escrito da primeira esposa.

Na Nígeria, Mohammed Bello Abubakar é conhecido por ter 82 esposas e 170 filhos. Já no Quênia, Akuku Danger foi além e se casou com 100 mulheres.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Derradeira falante de Kusunda, no Nepal, tem 75 anos e um património 'que não serve para nada'

240512 nepalNepal - Diário Liberdade - A história do idioma kusunda lembra a do galego-português da Galiza. Numa situação mais extrema, também o povo que o falava foi levado a pensar que "não servia para nada".

No Nepal registam-se dezenas de línguas e etnias ainda vivas, entre os quais o idioma Kusunda vai viver tanto tempo como a sua derradeira falante, Gyani Maiya Sen. Trata-se de uma aldeã de 75 anos que possui nela todo o património milenar do seu povo, depois de que progressivamente os seus e as suas compatriotas abandonassem o idioma próprio. 
Há outras pessoas que sabem algumas palavras ou expressões, mas nenhuma que o fale fluentemente, como sim faz Gyani Maiya Sen, que mantém a prática lingüística apesar de não ter com quem falar em língua kusunda, que para além de nom ter mais falantes constitui um idioma isolado, sem parentesco conhecido com as restantes línguas do Nepal.
Gyani Maiya Sen pertence a um povo das florestas nepalesas, historicamente desprezado pelas etnias maioritárias, o que  levou as pessoas a abandonarem progressivamente o idioma próprio, que "não servia para nada", e a aprenderem o idioma do poder, o nepalês, por sua vez pertencente à família indo-ariana e falado, além de por 17 dos 29 milhões de habitantes do Nepal, em regiões do Butão, da Índia e de Mianmar (antiga Birmânia).

Dezenas de línguas e grupos étnicos dentro das fronteiras nepalesas

No Nepal, coexistem mais de cem grupos étnicos que falam dezenas de idiomas, a maioria pertencente às famílias linguísticas sino-tibetana, indo-europeia, austro-asiática e dravidiana.
Mas o kusunda parece estar fora dessas categorias, sendo uma língua isolada, tal como o idioma basco e o coreano, para só referirmos um exemplo europeu e um outro também asiático. 
'É uma língua estranha, mas gosto de aprendê-la. Tem alguns sons guturais, como os que se encontram no árabe e no turco', descreve o professor Gautam Bhojraj, estudioso nepalês da língua kusunda, só descoberta por ocidentais em 1995, por um antropólogo austríaco, mas desde esse momento bastante estudada e catalogada.
Para Gautam, o problema é que a última falante de kusunda tinha começado a esquecer a sintaxe e a morfologia, e também não tinha os contextos necessários para pôr sua língua em prática. 'Se perguntarmos a alguém como se diz uma palavra específica em sua língua, ela talvez não consiga responder, mas a palavra certamente aparecerá quando precisa ser usada no contexto apropriado'.
Os contextos de Gyani Maiya eram os que lhe proporcionava sua mãe até sua morte, já faz 25 anos: ambas usavam o kusunda apenas quando precisavam dizer algo sem que as demais pessoas presentes entendessem. O último estertor 'natural' do kusunda, portanto, funcionou como uma espécie de código secreto.
Com Agências, Wikipédia e Chuza!

sábado, 28 de abril de 2012

Moçambique em versos



Escritores africanos de expressão portuguesa
Os escritores moçambicanos Craveirinha e Knopfli; entre eles, o angolano Pepetela

Editora da UFMG lança coleção com os principais poetas de Moçambique; os três primeiros volumes trazem José Craveirinha, Rui Knopfli e Luís Carlos Patraquim

Por Henrique Marques-Samyn ((*)
via PORTAL VERMELHO


Os três autores são alguns dos nomes mais representativos da poesia moçambicana de expressão portuguesa, que conta ainda com nomes como Rui de Noronha (1909-1943), considerado precursor; Noémia de Sousa (1926-2003) e Eduardo White (1963), entre outros. Dirigida por Ana Mafalda Leite, a coleção Poetas de Moçambique pretende apresentar ao público brasileiro a moderna poesia moçambicana

Em tempos de guerra, a poesia, mais que possível, é necessária. Que tematize o próprio conflito não é algo essencial; fundamental é que trate do assunto fulcral da literatura de todos os tempos: a experiência humana, assim resgatando os sentidos solapados pela força das armas.

A Catulo não interessava a guerra civil, mas aquela que cinde o homem enamorado; embora na obra de Dante haja referências aos conflitos que dividiam Florença, associá-la unicamente a isso encerraria um imperdoável reducionismo; e, se Camões figurou a si mesmo portando a espada em uma das mãos e, na outra, a pena, o que esta registrava podiam ser tanto feitos bélicos (como em tantas passagens d’Os Lusíadas, porventura espelhados em suas próprias vivências) quanto o lirismo amoroso dos sonetos.

Em 25 de setembro de 1964, tinha início (nos registros oficiais, ao menos) a Guerra da Independência de Moçambique — mesmo ano em que José Craveirinha publicava Xigubo, seu primeiro poemário; não obstante, já na década de 1950 a resistência se havia organizado em grupos orientados por ideais nacionalistas — decênio em cujo ano derradeiro estreava literariamente Rui Knopfli, com O país dos outros. Se muito insinuam já os títulos das obras (Xigubo é uma dança tradicional que veio a representar a resistência colonial moçambicana), os poemas que delas constam não frustram essas expectativas.

Knopfli e Craveirinha nasceram literariamente como cronistas poéticos de uma nação apenas sonhada, cuja construção suas trajetórias líricas acompanharam, indagando insistentemente sobre sua identidade. Dessa tarefa participaria também Luís Carlos Patraquim, cujo poemário de estréia, Monção (1980), renovaria esteticamente a literatura moçambicana sem recusar a dimensão política da palavra poética.

A esses três autores são dedicados os primeiros volumes da coleção Poetas de Moçambique, série publicada pela editora UFMG e dirigida por Ana Mafalda Leite, professora na Universidade de Lisboa que viveu a infância e parte da juventude em Moçambique, chegando a iniciar estudos universitários em Maputo. Ana Mafalda conhece de perto as literaturas africanas: lecionou em diversos países do continente (Cabo Verde e Senegal, entre outros, inclusive Moçambique); é autora de estudos fundamentais sobre o assunto — A poética de José Craveirinha (1990), Modalização épica nas literaturas africanas (1996) e Oralidades & escritas nas literaturas africanas (1998) são alguns dos títulos que constam de sua produção bibliográfica, recentemente complementada com Literaturas africanas e formulações pós-coloniais (2003).

Valioso adendo para essa trajetória é o fato de Ana Mafalda ser também escritora, autora de uma obra poética que não se esquiva à tarefa de reelaborar as vivências moçambicanas; trata-se, portanto, de alguém que conhece a literatura em suas múltiplas dimensões como poucos apta a eleger os nomes certos para colaborar nessa empreitada editorial. Com efeito, os responsáveis pelos volumes que abrem a coleção elaboraram obras de valor impecável.

José Craveirinha

À própria Ana Mafalda Leite coube a organização do volume dedicado a José Craveirinha. Nascido em 1922, falecido em 2003, Craveirinha publicou cinco livros em vida; sua obra é constituída também por volumes póstumos, poemas dispersos e por um numeroso espólio que permanece inédito. O já mencionado Xigubo (1964), obra com a qual estreou o poeta e que abre a compilação, é adequadamente qualificado como uma “rapsódia anticolonialista” por Emílio Maciel, autor da biobibliografia inclusa no volume.

“Xibugo estremece terra do mato
e negros fundem-se ao sopro da xipalapala
e negrinhos de peitos nus na sua cadência levantam os braços para o lume da irmã Lua

e dançam as danças do tempo da guerra
das velhas tribos na margem do rio”,

 
escreve o poeta, na lírica imagem sintetizando o ímpeto que percorre toda a obra: a síntese de uma pluralidade de vozes e identidades que se reconhecem como pertencentes a uma nação por haver.


“Vim de qualquer parte

de uma nação que ainda não existe”,

afirmam os primeiros versos de Poema do futuro cidadão. Poesia panfletária, diriam alguns; a poesia possível, diriam outros, estes mais cientes da missão a que se dedicava, na hora de urgência, um poeta que, nas últimas obras, construiria textos de impecável lirismo.

As modulações da obra de Craveirinha talvez possam ser qualificadas como as múltiplas vozes de um homem que jamais se fechou ao mundo. O discurso dilatado de Xigubo representa a primeira irrupção de uma fala há muito silenciada — e que não expressa a vontade de um, mas a de muitos homens, ainda soantes em Karingana ua Karingana (1974). Depois do grito, o silêncio: a contenção lírica do poeta que cantou o futuro, mas que percebe um presente feito de perdas. A maior delas: Maria, a esposa falecida em 1979, cujo nome intitula o pungente livro em que lemos um poema como Memória dos dois

“Ambos

juntos na mesma memória.

Eu

o Zé que não te esquece.

Tu

a Maria sempre lembrada”.


 
O tom afirmativo dos primeiros livros cede espaço a uma poética de indagações, enquanto variações da escrita de um poeta que permanece fiel a si mesmo.

 
“Cada homem é sofisma

Bem engendrado”,


 
afirma um dos Poemas eróticos (2004), derradeiras páginas de uma obra que jamais recusou cantar o homem em sua grandeza e em sua miséria, em seu amor e em seus vícios — e que, por isso mesmo, acolhe em si as contradições da condição humana.


Rui Knopfli

Rui Knopfli, dez anos mais jovem que Craveirinha, morreu mais cedo, em 1997. Deixou oito livros, todos representados na coletânea organizada por Eugénio Lisboa, que nela incluiu um posfácio assinado por Roberto Said.

Juízos apressados não tardaram a ver em Knopfli uma espécie de antípoda de Craveirinha. Filho da burguesia, descendente de suíços e portugueses, estreava com um livro em cujo título — O país dos outros (1959) — não seria difícil sentir uma provocação, agudizada pelos poemas que o compunham: onde os cânticos de guerra, os discursos inflamados, a convocação aos heróis? Em vez disso, Knopfli apresentava uma poesia de tom reflexivo, composta com impecável rigor formal, que dialogava explicitamente com a tradição literária ocidental. Injustas, no entanto, as acusações de que o poeta voltava as costas para Moçambique; a par dos diálogos com Fernando Pessoa e Manuel Bandeira, Rui Knopfli publicava poemas de teor francamente político. Leia-se A melhor das distracções, que encena a fala de um grão-senhor

“marajá, bey, khan,

um nababo qualquer desses com poderes

de Vida e Morte”


 
que, sem pudor, afirma:


“Afastei enfadado

as inomináveis iguarias que me foram servidas

e nem sequer me dignei

olhar as dezasseis virgens sortidas,

fruto do último saque.

Onde me diverti a valer,

foi com as línguas que mandei cortar”.

 

Leia-se Casamento de conveniência, em que assoma a crítica
aos costumes:

“Meus pais não querem que ame

a quem amo.

Pretendem que me case contigo,

Juventina.

[...]

Dão-me um automóvel e uma casa

pra que case contigo,

Juventina.

Tens um nome que te quadra à figura,

rapariga,

e trazes intacto o selo necessário.

[...]

Aceitarás com submissão

que te mande à merda de quando em vez

e não farás muitas ondas.

Sei que não pedes mais,

É pegar ou largar,

Juventina!”.

 

Visitando a tradição literária, porque sempre falou de si, Rui Knopfli sempre falou de Moçambique, embora nele tantas vezes a nação não se reconhecesse. Ressalte-se que, da obra de estréia ao derradeiro O monhé das cobras (1997), seus livros mantêm uma elevadíssima qualidade estética; não há altos e baixos, mas irrupções que se podem igualar às grandes obras da poesia de todos os tempos — como o magistral O deserto, de Mangas verdes com sal (1969), poema que sintetiza, com singular força lírica, os perenes questionamentos existenciais humanos.

Luís Carlos Patraquim

A obra fundacional de Craveirinha e Knopfli tem prosseguimento com a poética renovadora de Luís Carlos Patraquim (nascido em 1953), cuja obra foi antologiada para a coleção por Carmen Lucia Tindó Secco. Como Craveirinha, Patraquim se debruça sobre a terra e as tradições moçambicanas; como Knopfli, engendra um diálogo franco com múltiplas vozes da literatura ocidental. Não obstante, sua obra não se reduz à assimilação dos que o precederam: Patraquim não se esquiva à tarefa primordial do poeta, que é desvelar para o lirismo novas sendas. No posfácio ao volume, observa Cíntia Machado de Campos Almeida tratar-se de uma poesia construída em torno de uma tríade temática: “a memória, o erotismo e a reflexão metapoética”; percebe-se, assim, como a trajetória inaugurada por Monção (1980) já dispensa o dever de poetizar a terra, em vez disso assumindo como pressuposto uma força lírica que é reelaborada pela subjetividade poética para a construção de uma dicção nova.

Notável em sua escrita é, particularmente, a relação com o espaço, ora enquanto referencial geográfico que expande os limites do exercício poético — ressalte-se, a esse respeito, o sentido fundacional de Noções de geografia, espécie de escorço cartográfico do lirismo:

“a sul

implanto uma cartografia sem limites

traço e compasso

depois da madrugada

de ti

um rosto iridescente

alastra o voo claro

das mãos

ao sul

descobrimos

vozes abertas

sem oclusão

e mastigamos água”

 

ora enquanto âmbito imagético que enseja a eclosão mesma da poesia; vejam-se as Quatro meditações na margem ao longo do Zambeze, do recente Pneuma (2009), em cuja segunda parte lemos:

“Senhora, eu não vi os três jacarés

imóveis na margem,

A luz, espelho da carne branca

E a boca metafísica,

Sua canoa vogando o desenho do som

E a elipse das asas;

Vi o rio que rilhava e seus dentes,

O canavial do Tempo,

nodoso e debruçado sobre o impulso líquido

Como o primeiro timbre evolando a cor,

O Sangue do início e a bolsa rompida

Para a convulsão do mundo”.


 
Não se limitando a falar sobre Moçambique, Patraquim cede a voz à terra: “concebe as paisagens como exímias contadoras de (suas próprias) histórias”, observa Cíntia Almeida. E, esse modo, contribui para a construção de uma tradição poética que, conquanto jovem, já se revela inegavelmente pujante.

(*) Henrique Marques-Samyn é escritor e pesquisador da UERJ

Os livros

José Craveirinha, Antologia poética. Org.: Ana Mafalda Leite, Editora UFMG

Rui Knopfli, Antologia poética. Org.: Eugénio Lisboa, Editora UFMG

Luís Carlos Patraquim, Antologia poética, Org.: Carmen Lucia Tindó Secco, Editora UFMG


Fonte: Rascunho, o jornal de literatura do Brasil, fevereiro de 2012

terça-feira, 17 de abril de 2012

A crise do Mali e o “Curdistão” Bérbere

170412 mnlaMali - Blog do Tsavkko - [Raphael Tsavkko] Artigo publicado no jornal Brasil de Fato 476 (12-18 de abril), ainda nas bancas! - Um conflito pouco conhecido, porém sangrento, que remonta a formação das fronteiras (artificiais) pós-coloniais do norte da África recentemente teve mais um capítulo escrito.

A população Bérbere (subdivididos em grupos como Amazighs, Tamasheqs ou Tuaregues, dentre outros) luta há décadas contra os governos da Argélia, Mali, Burkina Fasso e Níger pela independência do povo que pode ser considerado o paralelo africano aos Curdos, que há décadas lutam, enquanto maior nação sem pátria do mundo, por um Estado, o Curdistão.
Pela África

Os Bérberes habitam a região do norte da África há séculos e constantemente foram subjugados pelos dominadores árabes, por impérios regionais, como o Songhai, e posteriormente pelos europeus, sem jamais terem o direito a um Estado – ou mesmo a vários Estados, dado que os diferentes grupos berberes não reivindicam uma unidade entre todas as tribos. A ideia de um "Berberistão"é ainda mais embrionária que a de um Curdistão unido.

Espalhados pelo território de diversos países, os berberes tem notável força local na Argélia, onde lutam há décadas pelo Estado de Cabília, na costa do país, e no Mali, onde acabaram de fundar o Estado de Azawad que, não se sabe, pode ser apenas efêmero.
Na Líbia, os berberes encontravam relativa autonomia e engrossavam as fileiras do exército de Muammar Khadafi e daí vem parte do "problema" enfrentado hoje pelo governo do Mali, ou melhor, por líderes que buscam assegurar o governo do país.

Tomando o poder

Um grupo de rebeldes Tuaregues (ou Tamasheqs, como preferem ser chamados localmente) tomou de assalto as três grandes cidades de Kidal, Gao e Timbuktu – capitais regionais – do norte do Mali em meio à completa fragilidade do governo central, comandando provisoriamente por uma junta militar que havia dias antes (em 21 de março) deposto o presidente do país, Amadou Toumani Touré.
Munidos de armamento vindo do exército líbio, os cerca de 3 mil rebeldes do MNLA (Movimento Nacional de Libertação do Azawad) conseguiram facilmente dominar as tropas oficiais que, em sua maioria, fugiram ao primeiro sinal de problema. Uma parte considerável dos Tuaregues do norte do Mali e da Líbia servia no exército de Muammar Khadafi, deposto e morto por rebeldes apoiados pelos EUA e França há alguns meses dentro da onda que ficou conhecida como Primavera Árabe.
Após a derrota de Khadafi, retornaram com força total ao Mali.
Em poucos dias toda resistência oficial foi superada e o MNLA reivindica total controle da região , chegando a declarar finalmente sua independência. Em algumas cidades divide o poder com grupos rebeldes de caráter islâmico, como o Ansar Dine e aparentemente terão mais problemas em combater estes grupos do que o exército central propriamente dito, ao menos por ora.

MNLA: Laicos e progressistas

Os Tuaregues do Mali são laicos e relativamente progressistas e nem de longe "rebeldes islâmicos", como a mídia ocidental costuma pintar todo grupo rebelde em desacordo com os interesses dos EUA e Europa pelo mundo. Se por um lado contaram com o incômodo apoio do Ansar Dine e mesmo de operativos da Al Qaeda do Maghreb, por outro tem historicamente agido contra tais grupos ou ao menos coexistido de forma tensa, mas sem aderir a seus ideais.
O MNLA em si é recente, sua fundação data apenas de outubro de 2011 e nasce da união de diversos grupos antes opositores ou ao menos antagonistas localmente que viram na sua união uma forma de ampliar seu poder de fogo e presença regional. O sucesso, como se vê, foi amplo.
É difícil imaginar, porém, que o grupo alcançasse tal sucesso sem que o Mali tivesse entrado em convulsão após o recente golpe de Estado, mas sua força não é desprezível, muito menos seu poder de negociação atual.
Esta é a quarta grande rebelião no país, tendo a primeira durado de 1962 até 1964 e a situação se mantido em tensão até 1990, durante a segunda rebelião (que foi até 1995), e 2007-09 durante a terceira rebelião. Conflitos com o governo central do Mali não são, então, incomuns, mas esta é a primeira vez em que os Tuaregues saem vitoriosos.

Crise regional

O bloco regional do oeste da África (Ecowas) já interviu no conflito afirmando, com um tom bastante elevado, que poderia até mesmo enfiar forças regionais para combater as forças rebeldes. O temor da organização é que Bérberes de outros países resolvam seguir seus irmãos e se rebelar, ou mesmo que conflitos estagnados, como a questão de Cabília na Argélia ou mesmo o conflito do Saara Ocidental possam novamente estourar.
O Marrocos, a Mauritânia, a Argélia, Burkina Fasso e o Níger tem muito o que temer, assim como países mais distantes que alimentam conflitos separatistas regionais, pois seus grupos guerrilheiros podem resolver seguir a onda de protestos e revoluções que se espalha por toda a região. A Líbia encontra-se em processo de esfacelamento em meio à total anarquia depois da intervenção desastrosa dos EUA e aliados, ao passo que há imensa instabilidade no Egito pós-Revolução e o Sudão do Sul ainda é uma cicatriz aberta no continente.
Não seria de surpreender que os conflitos em Casamance (Senegal) ou mesmo os diversos conflitos regionais na Nigéria pudessem crescer em intensidade, o que abalaria a segurança regional, criando uma onda de refugiados, de crimes contra a humanidade e miséria.
A África é uma verdadeira colcha de retalhos étnicos espalhados por fronteiras traçadas sem a mais remota preocupação com a necessidade de seus habitantes. Fronteiras artificiais traçadas pelos Europeus para garantir seu controle sobre as terras e que acabaram por se tornar a base dos Estados atuais, colocando muitas vezes povos historicamente inimigos juntos, separando famílias e tribos e causando injustiças históricas.

Projeções

Não se sabe por quanto tempo durará a confusão criada pelo golpe contra o governo malinês de Amadou Toumani Touréi, mas a certeza é que a crise da independência de Azawad acelerou o processo de entendimento interno e arrefeceu os ânimos dos golpistas e que, enfim, os Tuaregues terão um grande poder de negociação assim que a situação se acalmar.
Por um lado é possível que o exército do Mali, uma vez o governo reconstituído, seja enviado para realizar o trabalho sujo de forma mais ou menos silenciosa (contando com o silêncio midiático), o que pode ter consequências desastrosas a longo prazo, por outro, caso negociações sejam abertas, os rebeldes terão pouca força para manter sua independência – dificilmente ganhariam reconhecimento por parte de outro Estado na região, temerosos de destino semelhante, e seu poder de fogo é limitado, mesmo com o "reforço" vindo da Líbia esfacelada – mas podem garantir uma ampla autonomia regional com termos ditados por eles.
Há ainda um outro fator que pode complicar a questão, que é o das minorias Songhai e Fulanis (dentre outras) na região agora fronteiriça entre Mali e Azawad.
Tais populações não tem qualquer ligação com o governo bérbere recém-formado e podem se inclinar a apoiar o governo malinês assim que este tiver forças para requerer a ajuda destes grupos, especialmente na região de Mopti, que foi dividida ao meio pelos rebeldes e onde se encontra parte considerável de membros dessas etnias.
Boa parte da região desértica no extremo-norte de Azawad é de maioria Árabe, ainda que a população dessa região seja pequena, é um outro fator complicador. A região reivindicada pelo MNLA é muito maior do que a áreao em que efetivamente os tuaregues são maioria ou possuem minorias consideráveis, especialmente na região dividida de Mopti e nas cercanias de Timbuktu.
Sabendo negociar, os Tuaregues podem conseguir um acordo que os colocará sob o controle de boa parte de suas riquezas naturais e lhes garantirá um autogoverno com relativa independência de Bamako (capital malinesa), ainda que dentro de um mesmo Estado, mas será preciso balancear alianças e descontentamentos.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Enquanto isso, os Tuaregues...




Em parte o que está acontecendo no Mali é uma consequência da guerra da Líbia. Os tuaregues eram, em grande parte, aliados de Kadafi. Depois da queda do líder líbio, muitos decidiram deixar a Líbia, temendo represálias por parte do novo governo ou de outros segmentos da população. E levaram consigo suas armas.


Quem não se lembra dos tuaregues? Os da minha geração lembram. Eles estavam no filme Beau Geste (1939), direção de William Wyler, com Gary Cooper, Ray Milland, Susan Hayward, Robert Preston e grande elenco. Neste filme, que, na verdade, foi filmado não no Saara, mas nas dunas do sul da Califórnia, os tuaregues, cavalgando loucamente como índios norte-americanos (os da tribo de Hollywood), tentavam tomar o forte de Zinderneuf, sem resultado. Gary Cooper, Ray Milland e os demais resistiam bravamente até o último homem, mas sem entregar o forte. Só Ray Milland sobrava, para voltar melancólica, mas gloriosamente, para casar com Susan Hayward, que ficara o tempo todo à sua espera, tocando piano no salão de Brandon Abbas, na Inglaterra.

Pois agora os tuaregues saíram a fazer estrepolias novamente, mas não nas telas de cinema, nem no sul da Califórnia, mas no Saara mesmo. Nem cavalgam loucamente, mas agem com método e determinação. Já dominam dois terços do território da República do Mali, onde recentemente houve um golpe de estado na capital, Bamako.

Uma revolta de soldados no quartel de Kati, a 10 km. do palácio presidencial, evoluiu em derrubada do governo. O capitão Amadou Sanogo assumiu a liderança da revolta e o controle do governo. O presidente constitucional, Amadou Toumani Touré, está na clandestinidade. Os países vizinhos, do Oeste Africano, exigem que o novo governo – que parece não saber muito bem o que fazer – devolva o poder aos civis. O capitão subitamente promovido a presidente até o momento só fez ganhar tempo: prometeu eleições, mas não mencionou prazo. Diz querer de volta a constituição de 1992 – o que é uma contradição, pois por ela o presidente legal e legítimo é o deposto.

O golpe parece ser decorrência da atuação dos tuaregues, reunidos sob um Movimento Nacional de Libertação do Azawad – nome da região habitada por suas tribos. Essa região transborda o Mali, se espraiando pela Argélia, Líbia, Mauritânia, Líbia, onde vivem os quase 6 milhões de tuaregues que reivindicam um país para si. Ainda não está claro se eles pretendem proclamar a independência do território que já dominam, dois terços do Mali, ao norte, ou se pretendem avançar para a capital e derrubar o(s) governo(s).

O Mali é um dos países mais pobres da África. Seu exército, de 7 mil homens, também é pobre, e essa parece ser uma das razões da revolta. Em parte o que está acontecendo no Mali é uma consequência da guerra da Líbia. Os tuaregues eram, em grande parte, aliados de Muammar Kadafi. Depois da queda e assassinato do líder líbio, muitos decidiram deixar a Líbia, temendo represálias por parte do novo governo ou parte de outros segmentos da população. Levaram consigo suas armas. Acostumados a viver e a lutar no deserto, onde já protagonizaram várias revoltas, passaram a superar o exército em poder de fogo, mobilidade e capacidade militar.

Desde então ocuparam as principais cidades da região: Gao, Kidal e a legendária Timbuktu, a 700 km. da capital.

Por ora as potências ocidentais – a França, em particular, que se envolveu na guerra civil da vizinha Costa do Marfim, derrubando o governo e pondo um de seu agrado na capital, e vive delicado momento eleitoral – não sabem ainda o que fazer. Certamente não vão apoiar os tuaregues; ao mesmo tempo, não podem apoiar do governo “revolucionário” do capitão revoltado; também não se sabe ainda sua avaliação do governo deposto, tido como fraco para liderar suas próprias tropas e enfrentar o inimigo tuaregue ao norte.

De momento, a situação é a de um beco com muitas entradas e nenhuma saída. Uma situação nada incomum nesta África cuja reocupação pelas potências internacionais está em andamento, tanto na prática quanto nos mapas de planejamento.

Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.