O Evangelho segundo Mandela |
Não podemos nos esquecer que países como Israel, EUA e Inglaterra apoiaram durante décadas o regime do apartheid. Se dependesse deles, Mandela teria morrido na prisão, a África do Sul ficaria afundada no caos e o mundo não teria a oportunidade de fabricar a lenda do novo Messias
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por Alain Gresh |
Um herói do nosso tempo”, afirmava o Courrier Internacional de junho de 2010. “Ele mudou a história”, valoriza ainda mais a revista Le Nouvel Observateur de maio de 2010. Acompanhadas de fotos de Nelson Mandela sorridente, essas duas capas são o testemunho de uma adoração quase unânime, a qual o filme Invictus, do diretor Clint Eastwood, levou à apoteose. Com a Copa do Mundo de futebol, se intensifica o culto ao profeta visionário que rejeitou a violência e guiou seu povo em direção a uma terra prometida onde vivem, em harmonia, negros, mestiços e brancos. O presídio de Robben Island, onde ele ficou encarcerado por 18 anos, passou a ser lugar de visitação obrigatória para turistas estrangeiros, e lembra um passado um pouco nebuloso, do tempo em que oapartheid desonra e suscita condenação universal, em primeiro lugar, a dos democratas ocidentais.
Cristo foi morto na cruz há aproximadamente dois mil anos. Muitos pesquisadores se perguntam sobre a correspondência entre o Jesus dos Evangelhos e o Jesus histórico. O que conhecemos da vida terrestre do “filho de Deus”? De quais documentos dispomos para definir sua pregação? Os testemunhos resgatados no Novo Testamento são realmente confiáveis?
Diante de tantas questões, podemos presumir que é mais fácil definir o “Mandela histórico”, já que temos um Evangelho escrito por seu próprio punho1, além de várias testemunhas diretas. A lenda Mandela pareceria, então, um tanto quanto distante da realidade, como essa do Jesus dos Evangelhos, uma vez que seria intolerável admitir que o novo messias tivesse sido um “terrorista”, “aliado dos comunistas” e da União Soviética (aquela do “gulag”), um revolucionário determinado.
O Congresso Nacional Africano (CNA), aliado estratégico do partido comunista sul-africano, se lançou na luta armada, em 1960, depois do massacre em Sharpville, que deixou dezenas de mortos entre os negros que protestavam contra o sistema de pass(espécie de passaportes internos do país). Mandela, até então adepto da luta legal, acabou persuadido: jamais a minoria branca renunciaria pacificamente ao seu poder, às suas prerrogativas. Tendo, num primeiro momento, privilegiado as sabotagens, o CNA utilizou também, de maneira limitada, a arma do “terrorismo”, não hesitando em colocar algumas bombas em cafés.
Preso em 1962 e condenado, Mandela rejeitou, a partir de 1985, várias ofertas de libertação em troca da sua renúncia à violência. “Sempre é o opressor, e não o oprimido, quem determina a forma da luta. Se o opressor utiliza a violência, o oprimido não tem outra escolha do que responder com violência”, escreve ele em suas Memórias. E somente a violência, apoiada por mobilizações populares crescentes e sustentada por um sistema internacional de sanções cada vez mais coercitivas, pôde, com o passar do tempo, demonstrar a ineficiência do sistema repressivo e levar o poder branco ao arrependimento moral. Com o princípio “um homem, uma voz”, Mandela e o CNA souberam então mostrar flexibilidade na implementação da “sociedade arco-íris” e nas garantias concedidas à minoria branca.
A estratégia do CNA se beneficiou do apoio material e moral da União Soviética e da “facção socialista”. Vários dos seus dirigentes foram formados e treinados em Moscou e Hanói. O combate se estendeu por toda a África Austral, onde o exército sul-africano tentou estabelecer sua hegemonia. A intervenção das tropas cubanas em Angola, em 1975, e as vitórias que alcançaram, especialmente em Cuito-Cuanavale, em janeiro de 1988, contribuíram para desestabilizar a máquina de guerra do poder branco. A batalha de Cuito-Cuanavale constituiu, segundo Mandela, “um momento decisivo na libertação do nosso continente e do meu povo2”. Anos depois, em 1994, Fidel Castro foi um dos convidados de honra na posse de Mandela na presidência.
No choque entre a maioria da população e o poder branco, os Estados Unidos, o Reino Unido, Israel e a França (esta última até 1981) combateram do “lado errado”, o lado dos defensores do apartheid, em nome da luta contra o perigo comunista. Chester Croker, principal homem da política de “compromisso construtivo” do presidente Ronald Reagan na África Austral, escreveu à época: “Por sua natureza e história, a África do Sul faz parte da experiência ocidental e é parte integrante da economia ocidental”. Washington, que tinha apoiado Pretória em Angola, em 1975, não hesitou em contornar o embargo sobre as armas e colaborar estreitamente com os serviços de informação sul-africanos, rejeitando qualquer medida coercitiva contra o poder branco. Esperando uma evolução gradual, a maioria negra teve que adotar uma postura moderada.
Em 22 de junho de 1988, 18 meses antes da libertação de Mandela e da legalização do CNA, o subsecretário do Departamento de Estado americano, John C. Whitehead, ainda explicou para a comissão do Senado: “Nós devemos reconhecer que a transição para uma democracia não racial na África do Sul tomará inevitavelmente mais tempo do que gostaríamos”. Ele pretendia que as sanções não tivessem nenhum “efeito desmoralizador sobre as elites brancas” e que penalizassem, em primeiro lugar, a população negra.
No último ano do seu mandato, Ronald Reagan tentou uma última vez – e sem sucesso – impedir o Congresso americano de punir o regime do apartheid. Foi na época em que ele celebrava “os combatentes da liberdade” afegãos e nicaraguenses e denunciava o terrorismo do CNA e da Organização para a Libertação da Palestina (OLP).
Terroristas?
O Reino Unido não ficou de fora; o governo de Margaret Thatcher recusou qualquer encontro com o CNA até a libertação de Mandela, em fevereiro de 1990. Na reunião internacional do Commonwealth em Vancouver, Canadá, em outubro de 1987, ela se opôs à adoção de sanções. Interrogada sobre as ameaças do CNA em prejudicar os interesses britânicos na África do Sul, respondeu: “Isso mostra o quão banal é esse grupo terrorista [CNA]”. Nesse período, a associação de estudantes conservadores filiados ao seu partido, distribuiu panfletos proclamando: “Enforquem Nelson Mandela e todos os terroristas do CNA! São carniceiros”.
Agora, em 2010, o novo primeiro-ministro conservador, David Cameron, decidiu enfim se desculpar por esse comportamento. Mas, rapidamente, a imprensa britânica refrescou sua memória, lembrando que ele mesmo foi à África do Sul, em 1989, a convite de um lobbyantissanções.
Já Israel permaneceu até ao fim como aliado indefectível do regime racista de Pretória, fornecendo-lhe armas e ajudando em seu programa militar nuclear e de mísseis. Em abril de 1975, o atual presidente israelense, Shimon Peres, então ministro da Defesa, assinou um acordo de segurança entre os dois países. Um ano mais tarde, o primeiro-ministro sul-africano, Balthazar J. Vorster, antigo simpatizante nazista, foi recebido com todas as honras em Israel. Os responsáveis pelos dois serviços de informação se reuniam anualmente e coordenavam a luta contra “o terrorismo” do CNA e da OLP.
E a França? Bem, aquela do general De Gaulle e de seus sucessores de direito teceu relações tranquilas com Pretória. Numa entrevista publicada no Nouvel Observateur, Jacques Chirac se glorificava do seu antigo apoio a Mandela. Ele tem, assim como muitos políticos da direita, memória curta. Primeiro-ministro em 1974 e 1976, Chirac sancionou, em junho de 1976, o contrato com a Framatome para a construção da primeira central nuclear na África do Sul. Nessa ocasião, o editorial do Le Monde observou: “A França está em curiosa companhia entre o pequeno pelotão de parceiros julgados ‘de confiança’ por Pretória”. “Viva a França. A África do Sul se torna uma potência atômica”, dizia na ocasião o jornal sul-africano Sunday Times. Se, claramente sob pressão dos países africanos, Paris decidiu, em 1975, não vender mais armas diretamente à África do Sul, a França honrou por muitos anos ainda os contratos em andamento, enquanto seus blindados Panhard e helicópteros Alouette e Puma eram construídos localmente com a devida autorização.
Apesar do discurso oficial de condenação ao apartheid, Paris manteve, até 1981, várias formas de cooperação com o regime racista. Alexandre Marenches, o homem que dirigiu o serviço de documentação exterior e de contraespionagem (SDECE) entre 1970 e 1981, resume a filosofia da direita francesa: “O apartheid é, certamente, um sistema que devemos lastimar, mas é preciso fazê-lo evoluir calmamente”3. Se o CNA tivesse escutado seus conselhos de “moderação” (ou aqueles do presidente Reagan), Mandela teria sido morto na prisão, a África do Sul teria se afundado no caos e o mundo não teria a oportunidade de fabricar a lenda do novo messias.
Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).
Ilustração: Daniel Kondo
“1Long walk to freedom, Little Brown, Estados Unidos, 1995.
2 Ronnie Kasrils, “Turning point at Cuito Cuanavale”, 23 de março de 2008, www.iol.co.za/.
3 Christine Ockrent, Alexandre de Marenches, Dans le secret des princes (Dentro do segredo dos príncipes), Stock, Paris, 1986.
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No Nepal registam-se dezenas de línguas e etnias ainda vivas, entre
os quais o idioma Kusunda vai viver tanto tempo como a sua derradeira
falante, Gyani Maiya Sen. Trata-se de uma aldeã de 75 anos que possui
nela todo o património milenar do seu povo, depois de que
progressivamente os seus e as suas compatriotas abandonassem o idioma
próprio.
Há outras pessoas que sabem algumas palavras ou expressões, mas
nenhuma que o fale fluentemente, como sim faz Gyani Maiya Sen, que
mantém a prática lingüística apesar de não ter com quem falar em língua
kusunda, que para além de nom ter mais falantes constitui um idioma
isolado, sem parentesco conhecido com as restantes línguas do Nepal.
Gyani Maiya Sen pertence a um povo das florestas nepalesas,
historicamente desprezado pelas etnias maioritárias, o que levou as
pessoas a abandonarem progressivamente o idioma próprio, que "não servia
para nada", e a aprenderem o idioma do poder, o nepalês, por sua vez
pertencente à família indo-ariana e falado, além de por 17 dos 29
milhões de habitantes do Nepal, em regiões do Butão, da Índia e de
Mianmar (antiga Birmânia).
Dezenas de línguas e grupos étnicos dentro das fronteiras nepalesas
No Nepal, coexistem mais de cem grupos étnicos que falam dezenas de
idiomas, a maioria pertencente às famílias linguísticas sino-tibetana,
indo-europeia, austro-asiática e dravidiana.
Mas o kusunda parece estar fora dessas categorias, sendo uma língua
isolada, tal como o idioma basco e o coreano, para só referirmos um
exemplo europeu e um outro também asiático.
'É uma língua estranha, mas gosto de aprendê-la. Tem alguns sons
guturais, como os que se encontram no árabe e no turco', descreve o
professor Gautam Bhojraj, estudioso nepalês da língua kusunda, só
descoberta por ocidentais em 1995, por um antropólogo austríaco, mas
desde esse momento bastante estudada e catalogada.
Para Gautam, o problema é que a última falante de kusunda tinha
começado a esquecer a sintaxe e a morfologia, e também não tinha os
contextos necessários para pôr sua língua em prática. 'Se perguntarmos a
alguém como se diz uma palavra específica em sua língua, ela talvez não
consiga responder, mas a palavra certamente aparecerá quando precisa
ser usada no contexto apropriado'.
Os contextos de Gyani Maiya eram os que lhe proporcionava sua mãe até
sua morte, já faz 25 anos: ambas usavam o kusunda apenas quando
precisavam dizer algo sem que as demais pessoas presentes entendessem. O
último estertor 'natural' do kusunda, portanto, funcionou como uma
espécie de código secreto.
Com Agências, Wikipédia e Chuza!