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sábado, 14 de dezembro de 2013

John Holloway: “Nossa força depende da capacidade de dizermos não”

Para autor de Fissurar o capitalismo, é preciso construir outras formas de se viver cotidianamente
Por Adriana Delorenzo
Holloway: “Ser anticapitalista é a coisa mais comum do mundo. Todos sabemos que o capitalismo é um desastre, o problema é que não sabemos como sair daqui, como criar um mundo digno” (Reprodução)
Romper com o mundo como ele é e criar um diferente. Esse é o objetivo de muitos militantes e ativistas. Mas como fazer para construir uma realidade em que não haja Gaza nem Guantánamo nem poucos bilionários e 1 bilhão de pessoas morrendo de fome? O cientista político irlandês, radicado no México, John Holloway traz esse desafio em seu novo livroFissurar o capitalismo (Editora Publisher Brasil). São 33 teses que explicam como criar rupturas no sistema para não continuar a reproduzi-lo. Do idoso que cultiva hortas verticais em sua sacada como forma de revolta contra o concreto e a poluição que o cerca. Do funcionário público que usa seu tempo livre para ajudar doentes com aids. Da professora que dedica sua vida contra a globalização capitalista. São diversos exemplos trazidos pelo autor, de pessoas comuns que recusam a lógica do dinheiro para dar forma a suas vidas. No entanto, após a rejeição, é preciso tentar fazer algo diferente. É aí que surge o problema. “As fissuras são sempre perguntas, não respostas.”
Professor da Universidade Autonôma de Puebla, o trabalho de Holloway tem influência do zapatismo, movimento que há quase 20 anos vem tentando construir esse outro fazer. No México, essas fissuras têm sido criadas, sem que se espere por uma revolução futura. Como trazido em seu primeiro livro traduzido no Brasil, Mudar o mundo sem tomar o poder, Holloway acredita que pensar em revolução hoje é multiplicar essas fissuras. “Uma revolução centrada no Estado é um processo altamente autoantagonista, uma fissura que se expande e se engessa ao mesmo tempo”, diz o autor na obra recém-lançada. Nesta entrevista à Fórum, Holloway fala sobre os novos movimentos que vêm tomando as ruas em diversos países do mundo, inclusive no Brasil.
Leia também:
Ótima hora para Fissurar o capitalismo
Fórum – Em seu novo livro, traduzido no Brasil como Fissurar o capitalismo, o senhor propõe que, por meio da recusa do capitalismo, sejam criadas fissuras dentro do próprio sistema. Poderia dar exemplos de atividades que criam essas “rupturas” no capitalismo?
John Holloway – Os distúrbios das últimas semanas [junho e julho] no Rio de Janeiro, São Paulo, Istambul, Estocolmo, Sofia, Atenas, começaram por razões diferentes, mas acho que, em todas as ruas do mundo, todos estão dizendo o mesmo canto: “O capitalismo é um fracasso, um fracasso, um fracasso!” Ser anticapitalista é a coisa mais comum do mundo. Todos sabemos que o capitalismo é um desastre, que está destruindo a humanidade. O problema é que não sabemos como sair daqui, como criar um mundo digno. Os velhos modelos de revolução não servem, temos de pensar em novas maneiras de conseguir uma mudança revolucionária.
Não é uma questão de inventar um programa, mas de observar como as pessoas já estão rejeitando o capitalismo e tratando de construir outras formas de viver, formas mais sensatas de se relacionar. Há tentativas de uma beleza espetacular, como a dos zapatistas em Chiapas, que há 20 anos estão dizendo: “Nós não vamos aceitar a agressão capitalista, aqui vamos construir outra forma de viver, outra maneira de nos organizarmos.”
Podemos pensar também nas muitas lutas atuais contra mineradoras na América Latina, onde as pessoas estão dizendo claramente: “Nós não vamos aceitar a lógica do capital, vamos defender uma vida baseada em outros princípios, vamos defender a comunidade e a nossa relação com a terra”. Ou mesmo podemos pensar em um grupo de estudantes que concordam em não querer dedicar suas vidas a serem explorados por uma empresa e vão caminhar no sentido contrário, se dedicando a fazer outra coisa, criando um centro social, uma horta comunitária ou qualquer outra coisa.
Podemos pensar nesses diferentes exemplos como rachaduras ou fissuras, como rupturas na estrutura de dominação. Quando nos concentramos nisso, percebemos que o mundo está cheio de fissuras, cheio de revoltas. Todas são contraditórias, todas têm seus problemas, mas a única maneira que eu penso a revolução, hoje, é em termos de criação, expansão, multiplicação e confluência dessas fissuras, desses espaços ou momentos em que dizemos: “Nós não aceitamos a lógica do capital, vamos criar outra coisa”.
Fórum – Em seu primeiro livro publicado no Brasil, Mudar o mundo sem tomar o poder, o senhor critica o estadocentrismo de parte da esquerda. Como é possível provocar mudanças sem tomar o poder do Estado?
Holloway – A maneira mais óbvia para alcançar a mudança é por meio do Estado, e, sim, houve mudanças nos atuais governos de esquerda na América Latina. O problema é que o Estado é uma forma específica de organização que surgiu com o capitalismo e que tem tido a função, nos últimos séculos, de promover a acumulação do capital. O Estado, por seus hábitos e detalhes de seu funcionamento, exclui as pessoas, limitando a sua participação, no caso das democracias, no ato simbólico de votar a cada quatro ou seis anos.
Então, se queremos realizar mudanças dentro do capitalismo, o Estado é uma forma adequada, nada mais.  Sabemos muito bem que o capitalismo é uma dinâmica suicida para a humanidade. Se quisermos ir além do capitalismo, não tem sentido escolher uma forma de organização especificamente capitalista, que exclui sistematicamente as pessoas. É por isso que os movimentos de revolta se organizam de forma diferente, de forma includente, pelas assembleias, conselhos, comunas, formas de organização baseadas na tentativa de articular as opiniões e desejos de todos. A única maneira de romper com o capitalismo é por meio dessas formas anticapitalistas.
Fórum – Do livro Mudar o mundo sem tomar o poder para Fissurar o Capitalismo, o que mudou? Houve algum processo ou movimento que o influenciou?
Holloway – Não houve nenhum movimento específico. Creio que depois de 2001/2002, na Argentina surge uma questão. E agora? Para onde vamos? Como manter o ritmo?
E se tornou mais evidente que não é suficiente gritar nas ruas e derrubar governos. Se depois das manifestações do fim de semana temos que voltar a vender nossa força de trabalho na segunda-feira – ou tentar vendê-la –, não haverá mudado muito.
A nossa força depende da capacidade de dizermos “não”, não só para os políticos, mas também para os capitalistas, que eles vão para o inferno.
Para isso, precisamos desenvolver uma vida que não dependa deles. Parece irreal, talvez, mas é o que as pessoas estão fazendo por todos os lados, por opção ou necessidade. Nas fissuras.
Fórum – Recentemente, vêm ocorrendo muitos protestos no Brasil que questionaram as tarifas dos transportes públicos e os gastos públicos na construção dos estádios para a Copa do Mundo, enquanto as cidades têm vários problemas. O senhor fala em seu livro das fissuras espaciais nas cidades. Por que as cidades seriam um campo fértil para essas fissuras?
Holloway – É a obscenidade do mundo de hoje. Começa com as tarifas de transportes públicos ou gastos públicos, ou corrupção ou destruição de um parque – como em Istambul –, mas o que explode é realmente uma raiva contra um mundo obsceno, um mundo de injustiças grotescas de violência que ultrapassa a compreensão, de destruição sistemática da natureza, um mundo que nos ataca em nossos interesses, mas que também nos insulta como seres humanos. Essas explosões que temos visto nos últimos meses ocorrem mais facilmente em cidades onde a obscenidade do sistema se impõe de forma muito agressiva. Mas o grande desafio é como ir construindo espaços para um mundo não obsceno, que vão contra e para além do capitalismo. Esta luta por um mundo digno é o que chamamos normalmente vida, ou amor, ou revolução.
Fórum – Também vimos vários movimentos que questionam a democracia representativa (os 99% contra os 1%), como Occupy e o 15-M na Espanha.
Holloway – Os movimentos dos indignados e os Occupy são parte da mesma explosão de cansaço e raiva. Temos aceitado este sistema que está nos matando por tanto tempo, mas já basta! É o grito da revolta zapatista de 1994 que está ecoando em um lugar após o outro. Basta! O sistema representativo é parte deste sistema obsceno, não faz nada para mudá-lo, só dá mais força. A desilusão segue na eleição de qualquer governo “progressista” (Lula, Dilma, os Kirchner, Obama), abre nos melhores casos outras perspectivas, as pessoas percebem que a mudança não pode ser feita por meio do Estado e começam a pensar na política de outra maneira.
Fórum – No livro, o senhor aborda a questão do tempo abstrato ou o tempo da futura revolução. Como as novas tecnologias mudam a relação entre o presente e o futuro, aqui e agora, e também do trabalho? Por exemplo, qual é o efeito da transmissão dos protestos em tempo real através da internet?
Holloway – O “Basta!”  rompe com o conceito tradicional que coloca a revolução no futuro. Antes se falava da paciência revolucionária como uma virtude: tinha que ir construindo o  movimento, preparando-se para o grande dia, no futuro, o grande dia que nunca chegou, ou se chegou não foi o que pensávamos que seria. Agora, está claro que não podemos esperar, temos de quebrar o sistema atual, aqui e agora, onde podemos. Temos de quebrar os relógios, rejeitar a homogeneidade, a continuidade e disciplina que eles incorporam. Creio que o uso das novas tecnologias para transmitir os protestos é importante, mas não produz o “Basta”, pode dar uma força contagiante que impressione.  F
Serviço
Fissurar o capitalismo
272 páginas
R$ 35
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terça-feira, 29 de outubro de 2013

O que Marx e Keynes tem a dizer a 2014

O que Marx e Keynes tem a dizer a 2014

Quem considera indiferente a vitória de Dilma Rousseff, Eduardo Campos ou Aécio Neves em 2014 deve abrir os olhos à experiência da história.

por: Saul Leblon

Um congresso sobre marxismo numa Europa devastada pela recessão e o desemprego, fruto da austeridade pró-mercados, seria a última pauta do mundo para a grande mídia conservadora.

Esse é um dos motivos pelos quais é importante existir pluralismo informativo (ademais de condições estruturais e econômicas para que ele possa ser exercido).

Carta Maior decidiu cobrir o II Congresso Karl Marx, em Lisboa,  por considerar que o Brasil vive uma transição de ciclo de desenvolvimento  fortemente condicionada pelas determinações internacionais. E pelas escolhas históricas embutidas nesse divisor.

As condicionalidades precisam ser entendidas para que possam ser afrontadas ou ao menos mitigadas –e isso passa pela compreensão que a  análise marxista propicia sobre a natureza da  crise atual.

A maior crise do capitalismo desde 1929 marmoriza o debate sobre o  passo seguinte do desenvolvimento brasileiro  mais do que desconfiam, ou gostariam de admitir,  os protagonistas reconhecidos e pretensos  da disputa de 2014.

É com esses  olhos que devem ser lidos os vários despachos enviados pela correspondente em Lisboa, Cristina Portella.

Não se trata de transpor as condições europeias para a singularidade de nossa equação de desenvolvimento.

Mas o que aqui se apregoa como sendo um ‘novo’ caminho para o Brasil, como alardeiam os presidenciáveis Campos, Marina , Aécio, seus colunistas e o dispositivo emissor que os ancora, encontra preocupantes pontos de identidade com as políticas de ajuste que jogaram a Europa no moedor de carne analisado no II Congresso Karl Marx.

Da entrevista feita por Cristina com o economista português Francisco Louçã, por exemplo,  do Bloco de Esquerda, ou da conversa carregada de angústia com o filósofo grego Stathis Kouvelakis, dirigente do Syriza, a Coligação da Esquerda Radical (leia nesta pág), avultam advertências implícitas às receitas de arrocho redentor (contração expansiva, diz-se elegantemente) embutidas no discurso do conservadorismo brasileiro.

Seria essa a alternativa  ao que se acusa de  ‘intervencionismo de baixo crescimento’ do governo Dilma.

Um aumento brutal da exploração social. Nisso consiste o ajuste a mercado das economias europeias, achatadas em endividamento e déficits fiscais vitaminados pela própria mecânica do arrocho em curso.

“O  que a burguesia europeia pretende é a estabilidade de um regime que permita assegurar esse aumento da extração da mais-valia”, diz Louçã na entrevista a Carta Maior. “ A redução da taxa de lucro é respondida pela afirmação das políticas liberais (...) o aumento da dívida (pública)  e o aumento da exploração. E a dívida é uma forma de exploração, porque é uma garantia do valor dos salários que é pago no futuro sobre a forma de impostos”, diz Louçã.

As consequências políticas da supremacia da lógica financeira sobre os interesses da sociedade  são devastadoras, explica o dirigente do Syriza,  Stathis Kouvelakis.

Na Grécia, reduzida a um laboratório de ponta do arrocho neoliberal, todo o antigo sistema político se dissolveu na convulsão mercadista.

“Um pouco da forma como o velho sistema político boliviano ou venezuelano desapareceram depois do choque das reformas neoliberais”, diz ele.

A receita só se viabiliza, na verdade, com a concomitante desintegração do próprio aparelho de Estado, uma vez que se trata de erradicar a dimensão pública da economia.

A singularidade terminal do caso grego, segundo Kouvelakis, é que essa liquefação não se restringiu à esfera social e dos serviços. Sua virulência atingiu o próprio núcleo duro do Estado. “Incluindo o aparelho repressivo, o próprio Exército, que também foi atingido pela contração da atividade e os cortes orçamentais”, explica.

“Há uma atmosfera geral de que a autoridade do Estado já não se sustenta, e isto cria situações absolutamente explosivas na Grécia. E muito contraditórias’, desabafa  o dirigente do Syriza na entrevista a Carta Maior.

“Há uma radicalização política tanto na esquerda quanto na direita, e a ascensão pela primeira vez, no contexto da Europa ocidental, de um movimento fascista, com apoio real em certos setores da sociedade, e também com a capacidade de infiltrar-se em certos setores do Estado, e até da polícia, como vimos recentemente”.

A derrota do Syriza nas eleições de 2012, mesmo sendo por pequena margem de votos, teve um efeito desmobilizador dramático  na Grécia, facilitando a sangria conservadora.

Quem considera indiferente no Brasil a vitória de Dilma, Campos ou  Aécio deve abrir os olhos à experiência da história.

 ‘Os tempos são muito duros, porque foram implementadas as mesmas políticas, a sociedade está ainda mais traumatizada do que há um ano e meio, os fascistas tornaram-se a terceira força política;  existe uma corrida entre as alternativas progressistas, como a do Syriza, ou soluções extremamente perigosas e autoritárias, como as defendidas não só pelos fascistas, mas também por todo um setor do Estado e das forças políticas dominantes’, adverte Kouvelakis.

A tragédia grega exacerba uma marca do nosso tempo.

A mesma que perambula dissimuladamente como virtude no discurso conservador brasileiro. Às vezes fantasiada da leveza verde.

 Esse é um tempo em que a saúde dos mercados e a deriva da sociedade e do seu desenvolvimento  não são  realidades contraditórias.

Antes, exprimem uma racionalidade impossível de se combater sem uma intervenção política que enquadre os mercados e instrumentalize o Estado para agir nessa direção.

Sintomas dessa dualidade funcional podem ser pinçados nesse momento na Espanha, por exemplo.

A austeridade  jogou 26% da força de trabalho na rua (seis milhões de pessoas), mas os banqueiros saúdam ‘a recuperação’.
 
Despejos atingiram milhares de famílias espanholas, enquanto 750  mil imóveis novos encontram-se encalhados  e mais 500 mil inconclusos.

Segundo o jornal ‘El país’, especialistas discutem a conveniência de se demolir uma parte dessa ‘sobra’.

Para recuperar os preços do mercado imobiliário.

O absurdo foi implementado  nos EUA e na Irlanda. Com bons resultados, dizem os analistas de negócios.

O que parece ser exceção é a norma.

Corporações saudáveis, nações devastadas. Populações acuadas, ambientes asfixiados pela desigualdade, a violência e o desalento.

O que importa reter, das lições ecoadas no II Congresso Karl Marx,  é a tendência mais geral de um capitalismo que, deixado à própria sorte, mais que nunca vai operar em condições de baixa demanda efetiva e elevado desemprego.

Ou não será exatamente isso, deixa-lo à vontade para funcionar assim, o que tem pregado a agenda conservadora  no Brasil?

Duas em cada três manchetes do jornalismo econômico que a ecoa manifestam  irritação com o pleno emprego, com o fomento ‘desenvolvimentista do BNDES’, com as exigências de índice de nacionalidade nas encomendas do pré-sal, com a fórmula ‘inflacionária’ de reajuste do salário mínimo, com a baixa alocação de superávit fiscal aos rentistas   e a ‘gastança’ dos programas sociais.

Comandar socialmente o investimento, puxando-o pelas rédeas do Estado, como se inclina a fazer o governo, desde 2008, sem dúvida é uma dos antídotos ao arrocho que devasta a Europa e alguns querem trazer  ao Brasil.

Mas ser keynesiano em tempos de capital monopolista e desordem neoliberal tem um preço que o governo brasileiro hesita em pagar.

O keynesianismo em si  tornou-se  uma teoria desprovida de  conteúdo histórico.
A democracia precisa avançar sobre a supremacia dos mercados para abrir espaço de coerência à macroeconomia necessária ao fomento da  produção e da justiça social em nosso tempo.

Em outras palavras, o desenvolvimento que afronta a coagulação histórica do capital requer um projeto social  que o conduza.

Logo, um protagonista coletivo que o lidere.

Essa defasagem da democracia brasileira explica, em boa medida, o difícil parto do passo seguinte da história nesse momento.

Esgotada a fase alegre dos consensos, como é o caso, e o será cada vez mais, uma sugestão ao governo é de que aproveite a boa fase atual e se articule.

A disputa de 2014 pode ser uma oportunidade para recuperar o tempo perdido nesse quesito incontornável: erguer pontes de compromissos e políticas que harmonizem a democracia política com as tarefas sociais e econômicas de um novo ciclo de desenvolvimento.

A ver.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Chomsky: “Enquanto a Síria se suicida, Israel e EUA desfrutam do espetáculo”

Chomsky: “Enquanto a Síria se suicida, Israel e EUA desfrutam do espetáculo”

Em entrevista exclusiva para o portal britânico Cessar Fogo (Ceasefire), o renomado intelectual Noam Chomsky falou com Frank Barat sobre a situação atual no Médio Oriente, em particular a crise da Síria, as negociações de paz entre Israel e os palestinianos e o papel do poder dos EUA na região. “Se os EUA e Israel quisessem ajudar os rebeldes – não o fazem – poderiam fazê-lo sem intervenção militar”.
Qual é a definição das negociações entre Israel e Estados Unidos e porque a Autoridade Palestina (AP) continua a prestar-se a isso?
Do ponto de vista dos EUA, as negociações são, com efeito, um caminho para Israel continuar a sua política de tomar sistematicamente tudo o que quiser na Cisjordânia, mantendo o assédio brutal de Gaza, separando Gaza da Cisjordânia e, claro, ocupando os Montes Golã sírios, tudo com pleno apoio dos EUA. E o marco das negociações, igualmente aos últimos 20 anos de experiência de Oslo, simplesmente proporcionou o encobrimento desta situação.
Em sua opinião, por que a Autoridade Palestina (AP) continua a jogar esse jogo?
Provavelmente, em parte, por desespero. Podemos nos perguntar se é a decisão correta, mas ela não tem muitas alternativas.
Definitivamente, a AP aceita esse marco apenas para sobreviver?
Se ela se nega a negociar, tal como propõem os Estados Unidos, a sua base de apoio seria derrubada. A AP sobrevive essencialmente à base de doações. Israel assegurou que ela não tenha uma economia produtiva. É uma espécie do que em ídiche se chamaria “Sociedade Schnorrer”: pede emprestado e vive do que puder conseguir.
Se a AP tem outra alternativa, não está claro, mas se rejeitar a exigência dos EUA de acudir às negociações em condições totalmente inaceitáveis, a sua base de apoio iria erodir-se. E não tem apoio – externo – suficiente para que a elite palestiniana possa viver de maneira bastante decente – por tabela pródiga – no seu estilo de vida, enquanto a sociedade que a rodeia cai aos pedaços.
Desse modo, seria negativa a queda e desaparição da AP, depois disso tudo?
Depende do que vier a substituí-la. Se fosse permitido a Marwan Barghouti, por exemplo, unir-se à sociedade da forma como fez, por exemplo, Nelson Mandela, poderia ter um efeito dinamizador na organização de uma sociedade palestiniana, que poderia pressionar por exigências mais importantes. Mas lembre-se que eles não têm muitas opções.
De facto, se nos remetemos ao princípio dos Acordos de Oslo, há 20 anos, havia negociações em curso, as negociações de Madrid, nas quais a delegação palestiniana era encabeçada por Haider Abdel-Shafi, uma figura muito respeitada da esquerda nacionalista palestiniana. Abdel-Shafi negava-se a aceitar os termos dos EUA e Israel, que lhes permitiam fundamentalmente a continuidade da expansão dos colonatos. Negou-se, e as negociações estancaram sem chegar a lugar algum.
Enquanto isso, Arafat e os palestinianos do exterior foram paralelamente a Oslo, ganharam o controlo e Haider Abdel-Shafi opôs-se de forma tão contundente que nem sequer se apresentou à dramática cerimónia sem sentido, onde Clinton sorria enquanto Arafat e Rabin apertavam as mãos. Abdel-Shafi não se apresentou porque se deu conta de que era uma traição absoluta. Mas baseava-se em princípios e, portanto, não poderia chegar a nenhuma parte, a menos que conseguisse um importante apoio da União Europeia, dos Estados do Golfo e em última instância dos EUA.
O que acha que realmente está em jogo na Síria neste momento e o que significa para a região em geral?
A Síria está a suicidar-se. É uma história de terror e cada vez está pior. Não há uma saída no horizonte. O que provavelmente acontecerá, se continuar assim, é que a Síria será dividida em três regiões: uma região curda – que já está a formar-se – que poderia separar-se e unir-se de alguma maneira ao semi-autónomo Curdistão iraquiano, talvez com algum tipo de acordo com a Turquia.
O resto do país se dividiria entre uma região dominada pelo regime de Assad – um regime brutal, horrível – e outra secção dominada pelas diversas milícias, que vão desde o extremamente nocivo e violento até ao secular e democrático. Se olharmos o que saiu no New York Times, há uma citação de um funcionário israelita que expressa essencialmente a sua alegria de ver os árabes massacrando-se uns aos outros.
Sim, eu li.
Para os Estados Unidos, assim está bom, não querem outro tipo de saída. Se os EUA e Israel quisessem ajudar os rebeldes – não o fazem – poderiam fazê-lo, inclusive, sem intervenção militar. Por exemplo, com Israel mobilizando forças nos Montes Golã (claro, são as montanhas do Golã da Síria, mas por agora o mundo, mais ou menos, tolera ou aceita a ocupação ilegal de Israel). Se fizessem isso, obrigariam Assad a mover forças até ao sul, o que aliviaria a pressão sobre os rebeldes. Mas não há nenhum indício sequer disso. Mesmo assim, não estão a dar ajuda humanitária à grande quantidade de refugiados que sofrem, não estão a fazer nenhuma das coisas simples que poderiam fazer.
Tudo isso sugere que tanto Israel como os EUA preferem exatamente o que está a acontecer, tal como informava o NYT que mencionámos. Enquanto isso, Israel pode celebrar, a sua condição do que chamam de “cidade na selva”. Houve um interessante artigo do editor do Haaretz, Aluf Benn, que escreveu sobre como os israelitas vão à praia, desfrutam e congratulam-se de serem uma “cidade na selva”, enquanto as bestas selvagens de fora se desgarram entre si. E, claro, Israel, sob essa imagem, não está a fazer nada, exceto defender-se. Eles gostam dessa imagem e os EUA tampouco parecem muito descontentes com ela. O resto é conversa.
Assim, podemos falar de um ataque dos EUA, você acredita que ocorra?
Um bombardeamento?
Sim.
É uma espécie de debate interessante nos Estados Unidos. A ultra-direita, os extremistas da direita, que são uma espécie de espectro internacional, opõem-se, ainda que não seja pelas razões que me agradariam. Opõem-se porque pensam: “por que se dedicar a resolver os problemas dos outros e perder os nossos próprios recursos?” Estão literalmente a perguntar: “quem nos vai defender quando nos atacarem, se nós mesmos estamos dedicados a ajudar outros países, no estrangeiro?” Essa é a ultra-direita. Se nos fixamos na direita “moderada”, gente como, por exemplo, David Brooks, do New York Times, considerado um comentarista intelectual de direita, o seu ponto de vista é de que o esforço dos EUA em retirar as suas forças da região não está a ter um “efeito moderador”. Segundo Brooks, quando as forças norte-americanas estão na região, isso tem um efeito moderador, melhora a situação, como se pode ver no Iraque, por exemplo. Mas se vamos retirar as nossas forças, então já não somos capazes de moderar e melhorar a situação.
Essa é a visão normal da direita intelectual na corrente principal, os democratas liberais e outros. De modo que há um monte de indagações sobre como “devemos exercer a nossa ‘responsabilidade de proteger’”. Bom, basta dar uma olhada nos registos históricos dos EUA sobre a ‘responsabilidade de proteger’. O facto, inclusive, de dizer tais palavras revela algo de, certamente, insólito nos EUA e, de facto, na cultura moral e intelectual do Ocidente.
Isso é, à parte do facto em si, uma grave violação do direito internacional. A última linha de Obama é que ele não estabeleceu uma “linha vermelha”, mas que o mundo a estabeleceu, por meio das suas convenções sobre a guerra química. Bom, na verdade o mundo tem um tratado, que Israel não assinou e que os EUA descuidam totalmente – por exemplo, quando apoiaram o uso, realmente horrível, de armas químicas por Saddam Hussein. Hoje, isso é utilizado para denunciar Saddam Hussein, ignorando o facto de que não só se tolerava, mas, basicamente, havia o apoio do governo de Reagan. E, claro, a convenção não tem mecanismos de aplicação de sanções.
Tampouco existe o que se denomina ‘responsabilidade de proteger’, isso é uma fraude promovida na cultura intelectual do Ocidente. Há um conceito, na verdade dois: um aprovado pela Assembleia Geral da ONU, que se refere à ‘responsabilidade de proteger’, mas que não oferece nenhuma autorização a qualquer tipo de intervenção, exceto nas condições da Carta das Nações Unidas. Outra versão, que se aprovou só por parte do Ocidente, os EUA e os seus aliados, que é unilateral e diz que tal responsabilidade permite a “intervenção militar das organizações regionais na região da sua autoridade, sem a autorização do Conselho de Segurança”.
Pois bem, traduzindo, isso significa que se proporciona a autorização aos EUA e à NATO de utilizarem a violência aonde quiserem, sem autorização do Conselho de Segurança. Isso é o que se chama ‘responsabilidade de proteger’ no discurso ocidental. Se não fosse tão trágico, seria ridículo.
Frank Baraté coordenador do Tribunal Russell sobre a Palestina. O seu livro “Gaza in Crisis: Reflections on Israel's War Against the Palestinians”, com Noam Chomsky e Ilan Pappe, já está disponível. A edição francesa do livro, publicada em 2013, conta com uma extensa entrevista com Stephane Hessel.
Entrevista originalmente publicada no portal Ceasefire. Tradução para espanhol de Rebelióne para português de Gabriel Brito, do Correio da Cidadania.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

A institucionalidade participativa


A institucionalidade participativa
por Francele Cocco
As mobilizações das últimas semanas evidenciaram as aspirações da população pela ampliação da democracia no Brasil. Para debater as institucionalidades participativas existentes, entrevistamos Anna Luiza Salles Souto, socióloga e membro do Instituto Pólis, e Rosangela Dias Oliveira da Paz, assistente social e professora da PUC/SP, que acabam de coordenar uma pesquisa sobre o tema
DIPLOMATIQUE – O que se construiu no Brasil como mecanismos de participação? Isso foi uma conquista?
ROSANGELA – Temos de entender que as instâncias de participação são uma conquista dentro do processo de construção democrática. A construção desses espaços deu-se nos anos 1990, respondendo a uma demanda por democratização das relações entre o Estado e a sociedade civil.
ANNA LUIZA– Essa demanda remonta aos anos 1970, vem do movimento dos sanitaristas, os conselhos de saúde foram a fonte inspiradora de outros conselhos. Foi um movimento que foi se formando, que foi experimentando a participação nessas instâncias, até chegar a 1988, quando havia força política para escrever isso na Constituição.
DIPLOMATIQUE – Que mecanismos de participação existem?
ROSANGELA – Basicamente nós temos nos mecanismos de participação os conselhos e as conferências; há outros instrumentos de democracia direta, mas eles têm outra natureza. Os conselhos de políticas públicas têm um papel muito mais de controle social, de fiscalização e de deliberação da política. Já as conferências são um processo que amplia significativamente a participação dos cidadãos. Hoje há mais de setenta conselhos nacionais instalados, que vão se reproduzir na esfera estadual e na esfera municipal. Na pesquisa que Pólis e Inescrealizaram, chegamos a levantar 71 conselhos e 74 conferências no período de 2003 a 2010.
DIPLOMATIQUE – O que esses conselhos fazem? Eles decidem alguma coisa?
ROSANGELA – Esse estudo olhou para todos os conselhos nacionais e para as conferências nacionais. Os conselhos são muito distintos, em sua maioria são deliberativos, 38 têm caráter deliberativo e 24 são consultivos, mas nem por isso há uma alta incidência na política.
ANNA LUIZA – Esses conselhos no plano nacional são predominantemente masculinos, e nos conselhos locais há uma presença significativa das mulheres. Quanto mais se sobe na hierarquia do poder, na estrutura federativa, mais eles vão se masculinizando, ainda que a presença de mulheres nos conselhos nacionais seja maior do que no Parlamento.
Ser deliberativo não é suficiente. Os conselhos que conseguiram incidir na agenda governamental ou na agenda pública são os que têm atores com uma força política grande. A capacidade de incidência depende de quem está lá e também do lugar que essa questão ocupa no projeto do governo.
ROSANGELA – Essas instâncias de participação começaram a representar a possibilidade de um compartilhamento de projetos entre governo e sociedade civil. Nesse diálogo, nesse compartilhamento de projetos, a disputa está presente, mas há mais escuta governamental − esse é um dado que aparece nos anos 2000 diferentemente do que era nos anos 1990.
DIPLOMATIQUE – O que é compartilhamento de projetos?
ROSANGELA – Por exemplo, o Sistema Único de Assistência Social [Suas] não é um projeto de governo, é um projeto de Estado, e no Suas se começa a criar consenso em torno de algumas propostas que são governamentais ou que eram da sociedade civil e passaram a ser governamentais.
No caso do Sistema Único de Saúde, há uma disputa muito grande quanto à terceirização dos serviços, às privatizações etc., mas a defesa do sistema único de saúde público cria um compartilhamento de projeto, e nesse sentido se reforçam e se fortalecem posições nessa disputa.
ANNA LUIZA – Houve um adensamento, uma proliferação de instâncias de participação durante o governo Lula. Conselhos foram criados, outros reativados, conferências foram feitas pela primeira vez sobre temáticas como a da juventude, mas há áreas blindadas.
DIPLOMATIQUE – O que é uma área blindada?
ANNA LUIZA – Por exemplo, Minas e Energia. Não existe Conselho de Minas e Energia. Isso para não falar das questões relacionadas à área econômica, às questões estratégicas. Existem conselhos para todas as áreas de políticas sociais, mas existem áreas em que nunca se aventou a criação de conselhos: são as áreas estratégicas, a área econômica.
Os grandes projetos correm por fora. Não é à toa, por exemplo, que dá problema com os índios lá em Belo Monte, porque existe uma instância de debate, de negociação, de explicitação dos distintos interesses presentes na sociedade em torno daquela questão.
DIPLOMATIQUE – E com o Conselho das Cidades? O programa Minha Casa, Minha Vida sai da Casa Civil. Como você vê isso?
ANNA LUIZA – Esse é o caso emblemático. Não é só o Minha Casa, Minha Vida; o PAC inteiro corre por fora. Fica a pergunta: o que é efetivamente discutido dentro do Conselho? O que passa pelo Conselho e o que não passa? O que passa, passa como? E o que não passa, por que não passa? Ainda que exista hoje uma explosão de estudos sobre participação, há as famosas perguntas que não querem calar e que ninguém respondeu ainda.
DIPLOMATIQUE – Rosangela, o que você diz sobre a existência de um sistema de participação e decisões que passam por fora?
ROSANGELA – Existe de fato um núcleo duro do projeto de governo que não interessa abrir ao debate e à participação. São os interesses econômicos, sim, e acho que o PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] e o Minha Casa, Minha Vida são exemplos disso. Mas há áreas em que o governo é permeável à participação, que influi sobre o desenho das políticas. Isso foi possível na área da juventude, na igualdade racial, na assistência social e em muitas outras. Se olharmos para as áreas setoriais, a participação estruturou sistemas de política pública nas três esferas. E isso é muito significativo.
Esse sistema participativo dialoga com setores organizados da sociedade. Para você participar, tem de ser organizado numa instituição ou num movimento. É difícil você ver o sistema participativo aberto a uma participação mais informal para o cidadão.
Há um distanciamento dessas instâncias do que acontece nas cidades, no cotidiano das pessoas que pegam ônibus, que ficam horas em filas, que pagam suas despesas. As instâncias de participação não respondem ao cotidiano imediato das pessoas; a participação é para o sujeito politicamente organizado e para as entidades de representação de segmentos. Essa é a divisão que foi feita lá no final dos anos 1980.
ANNA LUIZA – É necessário mexer no desenho da representação, tornar essas instâncias mais representativas da diversidade de atores que estão na sociedade. As instâncias de participação são uma aposta política; a democracia participativa é para ampliar as vozes na arena pública e de fato ampliou, mas ampliou e cristalizou, e aí eu acho que precisa de oxigenação.
DIPLOMATIQUE – Como seria isso?
ANNA LUIZA – Por exemplo, as representações são por segmentos, que estão delineados e não se mexe nisso. Mudam-se os representantes, mas não se muda a representação do segmento. Com isso se excluem novos atores e novas agendas. Acho que é necessária uma coisa mais aberta à diversidade.
ROSANGELA – Outro exemplo é no segmento dos trabalhadores. Para você ir a um conselho nacional tem de ser de uma central sindical, de uma federação ou de um órgão equivalente. Qualquer outra forma de organização dos trabalhadores não é reconhecida no sistema participativo. Os conselhos teriam de prever a possibilidade de que uma assembleia de trabalhadores muito mais horizontal pudesse indicar seu representante.
ANNA LUIZA – É um engessamento. E por que não uma renovação permanente, para que outros interesses, com outras agendas, possam ser colocados para dentro dessas institucionalidades? Por que são sempre os mesmos interesses ali representados?
ROSANGELA – Uma organização deve representar uma ideia, um projeto e um grupo. Com a cristalização da representação, a gente começa a perder a ideia de volta para a base. Cadê a base? Cadê os fóruns da sociedade civil, cadê os movimentos sociais organizados? Há nesse processo um distanciamento e uma perda na representação.
O que está colocado para algumas representações é a defesa do seu projeto, da sua organização, da sua igreja, do seu partido. Então elas vão estar presentes nos vários conselhos. É possível mapear uma estratégia política de um setor da sociedade que quer estar presente onde acha que é fundamental estar.
ANNA LUIZA – Precisaria de estudos que aprofundassem melhor essa questão: que desenho é esse? Por que algumas demandas são mais legítimas do que outras? A representação deve ser rotativa; é preciso haver vários olhares oxigenando a agenda do país.
DIPLOMATIQUE – Você falou que esse processo participativo estruturou políticas, estruturou a participação ou estruturou as políticas?
ROSANGELA – Acho que os dois. Eu falo da experiência do Conselho de Assistência Socialporque eu fui conselheira, representando a Abong e o Pólis. Estruturou a participação de uma área muito despolitizada, cujos atores foram convocados a participar. Mas estruturou também a política, no sentido de que todas as mudanças na política tiveram de passar pelo Conselho e foram deliberadas por ele.
DIPLOMATIQUE – A política brasileira mudou muito a partir das conferências? Que sugestões e encaminhamentos foram dados aos organismos de governo? Como sabemos o que mudou?
ROSANGELA – Esse é um dos temas de estudo para aprofundarmos. A pesquisa apontou que as conferências desse período, 2003 a 2010, aprovaram 14 mil propostas, algumas delas que se sobrepõem, algumas que se contradizem. Em certos casos, como em relação ao aborto, há deliberações contraditórias, e não sabemos como foram tratadas, se foram tratadas. Quantas dessas 14 mil propostas se tornaram política pública, tiveram uma efetividade ou impactaram a política?
ANNA LUIZA – Eu acho que existem pontos positivos. No campo da juventude, a prioridade da 1ª Conferência Nacional de Juventude era a luta contra o genocídio da juventude negra; passados quatro ou cinco anos, isso se transformou numa prioridade de governo, que é o Plano Juventude Viva.
ROSANGELA – Um bom exemplo é o do Consea: a cada dois anos faz uma conferência de monitoramento do que foi deliberado e só depois de dois anos há uma nova conferência para novas deliberações. Essa é uma indicação interessante para outras áreas e para o Sistema Nacional de Participação que está em discussão no governo federal.
DIPLOMATIQUE – As conferências apresentam pleitos e o governo escolhe? É uma escuta, que eles chamam de escuta forte, ou um processo deliberativo? Como se encaminha isso?
ANNA LUIZA– É uma escuta, mas existem atores que berram mais alto e se fazem escutar. Não é que simplesmente o governo escolhe, também há a correlação de forças, ou isso já estava na agenda do governo e, portanto, a conferência reforça e legitima a proposição governamental.
ROSANGELA– O governo também vota nas conferências, ele também está presente, então parte dessas propostas deliberadas é legitimação de propostas governamentais que já estão em curso.
ANNA LUIZA– Eu volto à questão da necessária oxigenação dos segmentos que estão presentes. Quem convoca as conferências? Se forem sempre os mesmos segmentos, temos aí um problema, porque você muda as pessoas, mas não muda os segmentos que estão representados e suas demandas.
Somente em 18% dos conselhos mapeados no nosso estudo há a eleição para a escolha de representantes. Em 29% deles a indicação foi por ministro ou órgão ao qual o conselho se vincula, e em 31% dos conselhos seus integrantes são representantes de organizações mencionadas em atos normativos.
DIPLOMATIQUE – Nós temos de fato então uma representação da sociedade nesses conselhos?
ANNA LUIZA – Temos de parte da sociedade.
DIPLOMATIQUE– Quem ficou de fora?
ANNA LUIZA– Quem tinha menos capacidade de organização no momento da criação dessas institucionalidades, eu não sei se teve modificação no desenho das representações nesses 25 anos. O desafio é a gente ousar experimentar mudanças. Enfim, acho que as manifestações de rua, de junho, nos desafiam a pensar isso.
ROSANGELA – Alguns setores organizados não tiveram força para garantir sua representação, e alguns setores deliberadamente disseram não para esses espaços. O movimento de moradia é um exemplo interessante, que combina as duas coisas, não saiu da rua, não saiu das ocupações dos prédios e vai para conselhos das cidades, mesmo não sendo deliberativos, com toda a crítica que fazem a ele.
DIPLOMATIQUE – Nesses conselhos estão incluídos os empresários também, ou não?
ANNA LUIZA – Em alguns casos estão. Mas que empresários? As grandes corporações não estão certamente, pois seus espaços de interlocução são outros.
DIPLOMATIQUE – Nós tivemos em junho aqui no Brasil mais de 2 milhões de pessoas nas ruas, cerca de quatrocentas cidades tiveram manifestações. Com essa mobilização toda, esses conselhos foram superados?
ANNA LUIZA – No nosso estudo buscamos também discutir as utopias em torno da democracia participativa. Foram feitas várias entrevistas e, ao falarem sobre as utopias que mobilizaram e seguem mobilizando diversos atores políticos, os entrevistados acabaram fazendo uma avaliação das estruturas participativas no Brasil e uma autoavaliação sobre sua aposta política nas instâncias de participação. Nessa autoavaliação, eles dizem: ocupamo-nos demais com as institucionalidades e nos esquecemos das ruas. Uns falavam que a questão da utopia passava pelo resgate das ruas; outros, pelo resgate da educação popular; outros falavam ainda no necessário adensamento das institucionalidades, enfim, mas o “nos esquecemos da rua” foi bastante significativo.
As manifestações de rua resgatam e fortalecem a utopia da democracia participativa. As institucionalidades devem ter a sabedoria e a ousadia de se repensar − acho que esse é o desafio, repensar isso, sobretudo a sociedade civil, tensionar para que essa democracia participativa tenha cacife ou capital social, que é a mobilização.
DIPLOMATIQUE – Rosangela, eu entendi que a Anna Luiza disse que a participação nas ruas é o que está dando a verdadeira energia renovadora para a democracia brasileira. Isso quer dizer que os conselhos já foram, ficaram para trás?
ROSANGELA – Não, os conselhos hoje têm de ser revistos. Eles vão passar por um teste importante este ano. O impacto das manifestações nos conselhos é significativo, pois eles vão ser questionados: como funcionam, como é a representação, como é feita a eleição, como se publica o que é feito nesses conselhos, o que é discutido, o que não sai de dentro dos conselhos... É uma pauta imensa, uma agenda para discussão muito grande, mas me parece que os conselhos hoje têm a oportunidade de se renovar, senão eles vão perder o bonde.
O que está colocada é a combinação da democracia direta com a democracia representativa, é o tema da reforma política, é a democracia participativa e as instâncias, porque um pedacinho da democracia participativa são as instâncias de participação; elas têm de ser revistas no seu modo de funcionamento, na sua representação, na sua deliberação, na sua efetividade, no seu diálogo com a sociedade.
DIPLOMATIQUE– Mas não há nenhum sinal de que o governo esteja promovendo isso. Ele está organizando um monte de conferências para o semestre que vem sem absolutamente mudar qualquer coisa nos seus procedimentos. Isso é um sinal promissor?
ANNA LUIZA – As próximas conferências serão um termômetro: as ruas vão conseguir ocupar as conferências, “invadi-las” com seus temas? Para além de querer mais saúde, mais e melhores políticas públicas, as ruas estão falando: nós queremos participar.

Francele Cocco
Historiadora e editora web do Le Monde Diplomatique Brasil


Ilustração: Daniel Kondo

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Noam Chomsky: os EUA estão a acelerar a destruição do mundo


No seu ensaio mais recente, Noam Chomsky afirma: “pela primeira vez na história da espécie humana, temos claramente desenvolvida a capacidade para nos destruir a nós próprios”. Refere-se não apenas à ameaça do holocausto nuclear, presente desde 1945, mas também “a processos de longo prazo como a destruição ambiental que conduzem na mesma direcção”. E sublinha que a nação mais poderosa do mundo continua a agir como se desejasse efectivamente essa destruição.


Desde a Crise dos Mísseis de Cuba até ao frenesim dos combustíveis fósseis, os EUA têm a intenção de ganhar a corrida para o desastre. Essa é a opinião do filósofo, linguista e activista estado-unidense Noam Chomsky.
“Pela primeira vez na história da espécie humana, temos claramente desenvolvida a capacidade para nos destruir a nós próprios. Isto tem sido assim desde 1945. Agora, finalmente, reconhece-se que há processos de longo prazo como a destruição ambiental que conduzem na mesma direcção”, assegura Chomsky no seu ensaio mais recente, publicado em Tomdispatch.com.
Segundo o linguista, as sociedades menos desenvolvidas estão a tratar de mitigar ou de superar estas ameaças. “Não estão a falar de guerra nuclear ou de desastre ambiental, estão realmente a tratar de fazer alguma coisa a esse respeito”, diz.
O filósofo destaca as políticas de países como Bolívia, que tem “uma maioria indígena e requisitos constitucionais que protegem os direitos da natureza”, e Equador, que também tem uma grande população indígena “e é o único exportador de petróleo que conheço onde o Governo procura ajudar a que esse petróleo permaneça no solo em lugar de o produzir e o exportar, e é no solo que ele deve permanecer”.

Segundo Chomsky, no outro extremo, as sociedades “mais ricas e poderosas da história do mundo, como Estados Unidos e Canadá, correm a toda a velocidade para destruir o meio ambiente o mais rapidamente possível. Ao contrário de Equador e das sociedades indígenas em todo o mundo, querem extrair até à última gota de hidrocarboneto da terra à maior velocidade possível”.
O outro assunto que Chomsky analisa é a guerra nuclear. “Acaba de passar o 50º aniversário da Crise dos Mísseis, que foi considerado o momento mais perigoso da história pelo historiador Arthur Schlesinger, assessor do presidente John F. Kennedy. Entretanto, o pior destes nefastos acontecimentos é que a lição não tenha sido aprendida ” afirmou.
“Neste momento el tema nuclear surge frequentemente nas primeiras páginas dos jornais, como sucede com a Coreia do Norte e o Irão”, aponta o activista.
Os recentes exercícios militares da Coreia do Sul e dos EUA na península coreana, que suscitaram ameaças de Pyongyang de realizar um ataque nuclear, ter-se-ão certamente apresentado como ameaçadores do ponto de vista do Norte. “Também nós os veríamos como ameaçadores se tivessem ocorrido no Canadá e nos tomassem como alvo”, acrescentou.
“Isto desperta, sem dúvida, alarmes do passado. Eles recordam esse passado, e portanto reagem de forma muito agressiva e extrema. O problema não é que não existam alternativas, é que essas alternativas não sejam concretizadas. Isso é perigoso. E assim, se nos interrogamos acerca de como é que o mundo vai a parecer, a imagem que surge não é bonita imagem. A menos que as pessoas façam alguma coisa a esse respeito”, conclui Chomsky.

* Serviço da Novosti
Texto completo em http://actualidad.rt.com/actualidad/view/96580-chomsky-eeuu-destruccion-mundo

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Alarme de incêndio: o fascismo espreita a crise


 POR MILTON PINHEIRO   no CORREIO DA CIDADANIA



No último dia 5 de junho, o jovem estudante Clément Méric, 18 anos, foi espancado até a morte por hordas fascistas na cidade de Paris, França. O triste fato, mais que um acontecimento político, desperta o alarme de incêndio na sociedade em tempos de crise. A sociedade tardo-burguesa, na aurora do século XXI, tem se mostrado incapaz de produzir uma solução estratégica que possibilite a saída da crise e a continuidade da lógica capitalista; no entanto, continua em vigor a manutenção do seu projeto societário através de agressivos ajustes ideológicos. Essa crise cresceu, expandiu-se sobre a sociedade e consolidou-se numa crise sistêmica que está colocando em xeque as instituições da ordem burguesa e o sistema capitalista, expondo a crescente erosão institucional desse sistema predatório.

A particularidade mais visível da crise sistêmica global, que é a crise financeira mundial, já se estende por um período de seis anos e continuará por um tempo ainda mais longo. Não existe uma causalidade única para a crise, mas, examinando esse processo, a partir das descobertas científicas de Marx n´O Capital, pode-se concluir que essa crise tem na superprodução seu elemento determinante. Apesar de o Estado burguês ter injetado uma quantidade substancial de recursos para evitar o aprofundamento da crise, o equilíbrio do sistema está cada vez mais distante. O que se apresenta na cena do capitalismo é a anarquia social da produção. O descompasso entre oferta e demanda tem aprofundado a erosão do sistema, gerando pobreza para o conjunto dos trabalhadores e luxo exorbitante para a burguesia. Apesar do aporte de cifras substanciais por parte do fundo público – algo em torno de alguns trilhões de dólares para evitar o colapso do sistema bancário –, a fome ataca centenas de milhões de pobres em todo o mundo e aprofunda o pauperismo dos trabalhadores.

Esse ciclo de erosão societária remete a um processo de restauração tardo-burguesa. A degeneração ideológica do pensamento burguês falsifica e naturaliza a crise através da violência do Estado, quando ataca os direitos sociais dos trabalhadores, quando avança sobre o fundo público, quando modifica a legislação colocando em seu lugar regulações reacionárias e que vão, via o aparato jurídico-político, esgarçando o tecido social.

Estamos começando um período histórico em que a crise levará à abertura da cena política, quando o imponderável poderá se tornar realidade numa velocidade extraordinária. Os efeitos desse projeto de barbárie já se manifestam para além do aumento da recessão, do desemprego, do eclipse financeiro. Esses fatores se consolidam na crise de subjetividade dos trabalhadores, na xenofobia crescente que se alastra pela Europa e, até mesmo, na periferia de São Paulo (vide o tratamento dispensado aos bolivianos), no racismo que infesta os estádios na Europa, no rigor com que a “classe média” exige novas leis para punir os pobres (vide a campanha pela mudança na maioridade penal no Brasil), nas legislações fascistas que visam impedir que os comunistas disputem as eleições (Hungria), na ascensão do populismo neofranquista na Espanha, no crescimento dos partidos fascistas na Grécia, Holanda, Itália e Áustria.

Acendeu o alarme de incêndio, precisamos do freio de emergência para conter a barbárie. A crise sistêmica está erodindo as estruturas da institucionalidade burguesa e essa classe começou a construir brechas para a ação do fascismo. A morte do jovem lutador Clément Méric deve iluminar a compreensão sobre os caminhos a trilhar e as lutas a desenvolver, agora, no fogo da conjuntura.

O fascismo, em síntese, é uma possibilidade política de caráter social conservador que se apresenta durante o período do imperialismo capitalista para tentar se consolidar no desenvolvimento do capitalismo monopolista, apresentando-se como um instrumento de modernização social de corte irracionalista, alimentado por uma cultura de consumo dirigida a partir da vigência do capital financeiro. Essa sociedade da lógica tardo-burguesa tem estimulado a guerra imperialista, desenvolvido o misticismo da aparência para fugir da ciência e da filosofia, se aquartelando nos “nacionalismos chauvinistas”, no anticomunismo e nas saídas da contrarrevolução permanente (governos da ordem neoliberais).

Diante desse processo de emergência se faz necessário a “unidade da teoria e da prática”, como pensado por Marx. É importante acabar com o espaço político para a manobra fascista que se utiliza do pragmatismo radical, e suas técnicas de propaganda, para fazer a disputa ideológica, agindo em campo aberto de forma “antiliberal, antidemocrático, antissocialista, antioperário”, aplicando, em muitos momentos, a violência física, estabelecendo o medo e o terror.

Contudo, a abertura da cena política, com sua imprevisibilidade, está forjando um mundo em convulsão que tem movimentado milhões de trabalhadores. Partem da indignação, se comportam de forma espontaneísta, balançam estruturas com greves e manifestações. A história do tempo presente está lançando uma palavra de ordem: urge a auto-organização dos trabalhadores. É tarefa da emergência histórica organizar a vanguarda para, quando os trabalhadores se movimentarem, ter condições políticas de dirigir as batalhas que a luta de classes acena. Numa só palavra, precisamos da construção do operador político enquanto sujeito coletivo que tenha capacidade de formular e agir a partir de um projeto orgânico dos trabalhadores. Esse operador político se constitui de forma diversa para, a partir da unidade do bloco revolucionário do proletariado, fazer o enfrentamento à ordem do capital, impedindo assim que o fascismo em seu novo ciclo vença. Ao mesmo tempo, esse instrumento de vanguarda, orgânico aos trabalhadores, deve construir a possibilidade da revolução.

Milton Pinheiro é professor de Ciência Política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), autor/organizador, entre outros, do livro Teoria e prática dos conselhos operários, juntamente com Luciano Cavini Martorano, no prelo (Expressão Popular, São Paulo, 2013).

sábado, 2 de março de 2013

Primavera árabe: ‘Há que se passar pela experiência do islamismo no poder’


Nesta entrevista ao ‘Le Monde’, o destacado analista libanês Gilbert Achcar comenta as dificuldades dos governos islâmicos que subiram ao poder no mundo árabe. Além disso, diz que a Turquia não é uma referência para esses países, pois lá o AKP turco se reconciliou com o laicismo, tornando-se a versão islâmica da democracia cristã europeia.

Personagem desta entrevista, Gilbert Achcar é professor na School of Oriental and African Studies (SOAS) de Londres e um dos mais respeitados analistas do mundo árabe contemporâneo. Nasceu em 1951 e deixou o Líbano em 1983.

Ensinou na Universidade de París VIII e no Centro Marc-Bloch de Berlim. O seu compromisso com as esquerdas e movimento pró-palestina nunca o impediu de dirigir um olhar severo sobre as ditaduras nacionalistas árabes. É autor de “Le peuple veut une exploration radicale du soulèvement arabe”, editora Actes Sud.

Como qualificar o que aconteceu no mundo árabe, desde 2011?
 
Escolhi a palavra “levante” como título para o meu livro. Mas, na introdução falo de um processo revolucionário a longo prazo. O que estava claro desde o princípio é que estávamos muito no início de uma explosão, e o que se pode prever com certeza é que será de longa duração.

Emmanuel Todd deu uma explicação demográfica do fenômeno. Você inclina-se mais para uma explicação marxista.
 
A fase durante a qual o mundo árabe se distinguia por uma demografia galopante acabou há vinte anos. Comecei com a análise da situação em vésperas da explosão, em 2010. Constata-se um bloqueio do desenvolvimento que contrasta com o resto do mundo; inclusivamente com a África subsariana. A expressão mais espetacular desse bloqueio é uma taxa de desemprego recorde, particularmente entre os jovens. Além disso, há uma modalidade específica do capitalismo na região: em diferentes níveis, todos os Estados são rentistas. A outra caraterística é um patrimonialismo no qual o clã dominante se apropria do Estado até ao ponto de o transmitir de forma hereditária.

As revoluções árabes traduziram-se em liberalizações políticas, mas não em grandes mudanças sociais. Por quê?
 
No Egito e na Tunísia, só foi quebrada a ponta do icebergue; quer dizer, os déspotas e o seu grupo próximo. Por outro lado, nesses dois países, o “Estado profundo”, a administração, os aparelhos de segurança, não mudaram. Neste momento, só na revolução Líbia se deu uma mudança radical: hoje, já não há Estado; já não há exército. Nesse país, o descalabro social foi mais profundo, porque o reduzido espaço privado que existia era ocupado pela família Gadafi.

No Ocidente estranhou-se o triunfo dos islamitas nas eleições, quando não foram eles a lançar essas revoluções…
 
As expectativas do Ocidente, esse romanticismo em volta da “primavera” e o “jasmim”, todo esse vocabulário orientalista, baseavam-se num desconhecimento da situação. Era evidente que os integristas iam apanhar as castanhas do fogo porque, desde finais dos anos 70, impuseram-se como uma força hegemónica no protesto popular. Encheram o vazio deixado pelo fracasso do nacionalismo árabe. Por outro lado, a principal razão pela qual os governos ocidentais apoiavam os despotismos árabes era o receio dos integristas. Crer que essa situação iria ser varrida pelos acontecimentos, era tomar os desejos por realidades. Com o apoio financeiro do Golfo e o apoio televisivo da Al Jazeera, não se podia esperar outra coisa que vitórias eleitorais integristas. O que é chamativo é que essas vitórias não tenham sido esmagadoras. No Eipto, desde as legislativas ao referendo sobre a Constituição, passando pelas presidenciais, estamos a ver a velocidade a que se desmorona o voto integrista. Na Tunísia, Ennahda consegue 40% numas eleições em que participaram metade das pessoas inscritas. E, na Líbia, a Irmandade Mulçumana local foi derrotada.

Surpeendem-lhe as atuais dificuldades dos islamistas no poder?
 
Em primeiro lugar, há que dizer que o regresso aos despotismos não é algo exequível. Há que passar pela experiência do islamismo no poder. As correntes integristas construíram-se como forças de oposição com um slogan simplista: o islão é a solução. É algo completamente oco, mas funcionava num contexto de miséria e de injustiça no qual se podia vender essa ilusão. Os islamistas são traficantes do ópio do povo. Desde o momento em que estão no poder, isso já não é possível. São incapazes de resolver os problemas das pessoas. Chegaram aos postos de comando em condições que ninguém inveja e não têm nenhum programa econômico.

Pode-se confiar neles no momento de organizar escrutínios que os poderão expulsar do poder?
 
Esse é o argumento clássico: uma pessoa, um voto, mas uma só vez. Salvo que cheguem ao poder em posição de força. O povo aprendeu a “querer” sair à rua. Jamais um dirigente, na história do Egito, foi tratado com tanto desprezo pelo seu povo como atualmente Morsi…

Pode-se copiar o modelo turco para o mundo árabe?
 
Não, na Turquia não é a Irmandade Mulçumana que dirige o país, mas uma cisão modernista que se reconciliou com o princípio do laicismo. O AKP turco é a versão islâmica da democracia cristã europeia. A Irmandade Mulçumana não é isso. É uma organização integrista que milita pela Sharia e para quem a palavra laicismo é uma injúria. No terreno econômico, não tem nada a ver: o AKP encarna um capitalismo de pequenos industriais, enquanto a Irmandade Mulçumana participa numa economia rentista, fundada no lucro a curto prazo.

Pode descrever a influência do Qatar nestas revoluções?
 
É um enigma. Alguns dirigentes colecionam carros ou armas; o Emir do Qatar, por seu lado, joga na política externa. Apresentou-se como comprador da Irmandade Mulçumana da mesma forma que compraria uma equipe de futebol. Um homem que jogou um papel fundamental nesta nova aliança (que faz recordar a que houve entre Mohamed ben Abdel Wahab e a dinastia dos Saud no século XVIII) é o sheik Qaradhawi, chefe espiritual dos Irmandade Mulçumana, instalado desde há muito no Qatar, e que tem grande influência na Al Jazeera. Tudo isso acontece num país em que o Emir não tolera qualquer oposição.

Como explicar a complacência dos Estados Unidos para com a Irmandade Mulçumana?
 
É algo que começou sob a administração Bush. Para os neoconservadores, o despotismo nacionalista produziu o terrorismo e, portanto, havia que derrubar déspotas como Saddam Hussein para poder estender a democracia. Condoleezza Rice quis retomar a aliança com a Irmandade Mulçumana, que se deu nos anos 50 e 60. Mas a vitória do Hamas nas eleições palestinianas bloqueou o processo. A administração Obama, que herdou uma situação catastrófica no Médio Oriente, mostrou uma atitude indecisa e prudente. Quando tudo estalou, optou por tentar dar a impressão de acompanhar o movimento. A obsessão de Washington na região é a estabilidade e o petróleo. E a tradução desta obsessão, é a procura de aliados que disponham de uma base popular.

Por que é que a intervenção da OTAN foi possível na Líbia e não na Síria?
 
A Síria encontra-se perante um risco de caos tipo Líbia, mas num contexto regional bastante mais perigoso. Está também o apoio da Rússia e do Irão. Desde o começo, a OTAN disse que não queria intervir. A questão não é “porque é que o Ocidente não intervém na Síria?”, mas “porque é que impede a entrega de armas à rebelião?”. A razão profunda é o medo do movimento popular na Síria. E o resultado é que a situação está a apodrecer. O regime sírio acabará por cair, mas a que preço? A miopia dos governos ocidentais é alucinante: com o pretexto de não reproduzir os erros cometidos no Iraque, quer dizer, o desmantelamento do estado baasista, fazem algo pior. Hoje, os sírios estão persuadidos de que o Ocidente deixa que o seu país se auto-destrua para proteger Israel.

A esquerda anti-imperialista vê um complô americano nestas revoluções…
 
Se, por oportunismo, as insurreições populares são apoiadas por potências imperialistas, não justifica que apoiemos as ditaduras. A teoria do complô americano é grotesca. Basta ver o aperto de Washington. É claro que, depois de quarenta anos de totalitarismo, o que chega é o caos, mas, como diria Locke, prefiro o caos ao despotismo, porque no caos tenho uma opção.


* Tradução: António José André, do Esquerda.net

A China de ontem, hoje e amanhã segundo o Nobel de Literatura Mo Yan

Diario do Centro do Mundo
Os países escandinavos são objeto de admiração e de esperança para ele.

Mo Yan
Mo Yan

A entrevista abaixo, com o Nobel de Literatura Mo Yan, foi publicada, originalmente, na revista alemã Der Spiegel. O Diário recomenda vivamente sua leitura, e nota que  Mo Yan vê nos países escandinavos uma espécie de utopia realizada.

Sr. Mo, seu pseudônimo, Mo Yan, significa literalmente: “Não fale”. Você parece levá-la muito a sério, e pouco fala em público, especialmente para jornalistas. Por que isso?

Mo: Porque não gosto de dar declarações políticas. Sou um escritor rápido. Quando eu falo em público, imediatamente me pergunto se me fiz claro. Mas meus pontos de vista políticos são bem claros. Basta ler meus livros.

O seu primeiro livro a ser traduzido para o alemão depois do Prêmio Nobel de Literatura se chama “Sapo” e trata da política de um filho só na China, algo que afeta a vida de mais de um bilhão de pessoas. Qual é a sua opinião pessoal sobre esta política?

Mo: Como pai, sempre senti que todos devem ter quantas crianças quiserem. Como integrante do Partido Comunista, no entanto, tive que obedecer à regra que se aplica a todos os funcionários: uma criança, não mais. A questão populacional da China não é fácil de ser resolvida. Tenho certeza de apenas uma coisa: ninguém deve ser impedido de ter um filho por meio da violência.

Exatamente isso, no entanto, acontece em “Sapo”. Qual foi a inspiração para este livro? Era sua opinião pessoal sobre a política? Foi uma determinada cena, uma figura, um diálogo?

Mo: Era a história épica da vida de uma tia minha que trabalhou por décadas como ginecologista e presenciou coisas indizíveis. Senti um impulso interior para escrever isso.
A doutora Wan, personagem principal do romance, é uma figura complicada, monstruosa, assombrada por seus próprios atos. Como sua tia reagiu ao livro?

Mo: Ela não o leu. Eu disse explicitamente a ela que não lesse, porque ela poderia ficar com raiva de mim. Claro, nem tudo o que acontece em “Sapo” é baseado na história de minha tia – que na verdade tem quatro filhos. Adicionei experiência de outros médicos e coisas que eu mesmo vi.

Coisas indizíveis acontecem em muitos de seus romances. Em “Balados do Aalho”, por exemplo, uma mulher grávida, já em trabalho de parto, se enforca. Ainda assim, “Sapo” parece ser o seu livro mais tenso. É por isso que demorou tanto tempo para escrever?

Mo: Levei a idéia para este livro comigo por um longo tempo, mas, em seguida, escrevi de forma relativamente rápida. Você está certo, eu me sentia pesado quando escrevi o romance. Vejo-o como uma obra de auto-crítica.

Em que sentido? Você não tem nenhuma responsabilidade pessoal pela violência e os abortos forçados descritos em seu livro.

Mo: A China passou por uma tremenda mudança nas últimas décadas, e a maioria de nós nos consideramos vítimas. Poucas pessoas se perguntam: “Será que eu também feri os outros?” “Sapo” lida com essa questão, com essa possibilidade. Eu, por exemplo, tinha apenas 11 anos de idade em meus tempos de escola primária, mas me juntei aos guardas vermelhos e tomei parte nas crítica públicas do meu professor. Eu tinha inveja das conquistas, dos talentos de outras pessoas, de sua sorte. Mais tarde, eu mesmo pedi a minha esposa para fazer um aborto por causa do nosso futuro. Sou culpado.
Ai Wei Wwi não gosta de Mo Yan e é correspondido
Ai Wei Wwi não gosta de Mo Yan e é correspondido
Seus livros pintam um quadro sombrio da China moderna. Não parece haver nenhum progresso nos valores e na sociedade. O país parece não estar indo a lugar nenhum.

Mo:  Sou diferente do típico escritor chinês a este respeito. Os romances na China costumam ter um final feliz. A maioria dos meus romances termina tragicamente. Mas ainda assim há em meus livros  esperança, dignidade e poder.

Alguns de seus livros lidos parecem filmes. Você evita mergulhar muito profundamente na psiquê de seus personagens. Por que, por exemplo, a doutora Wan segue os princípios do partido tão estritamente, apesar de estar claramente consciente de suas falhas?

Mo: Isto é fruto da experiência espiritual da minha geração. Algumas pessoas perceberam que a Revolução Cultural foi um erro, mas  também perceberam que o governo fez as correções necessárias.

O que você pensa sobre isso? Afinal, você foi forçado a interromper a sua educação durante a Revolução Cultural. E, no entanto, você ainda é membro do partido.

Mo: O Partido Comunista da China tem mais de 80 milhões de membros, e eu sou um deles. Entrei para o partido em 1979, quando estava no exército. Percebi que a Revolução Cultural foi o erro de líderes específicos, e não do partido.

Em seus livros, você critica duramente funcionários do partido, mas suas declarações políticas, como a que você acabou de fazer, são leves. Como explicar essa contradição?

Mo: Não há contradição com a minha opinião política quando critico funcionários do partido em meus livros. Tenho dito repetidamente que estou escrevendo em nome do povo, e não do partido. Detesto os funcionários corruptos.

Quando o escritor chinês Liao Yiwu foi premiado na Alemanha no ano passado, ele criticou você como um “escritor do Estado”, e disse que você não mantém distância suficiente diante do governo.

Mo: Li o discurso que ele proferiu na cerimônia de premiação. No discurso, ele demandou a divisão do Estado chinês. Eu absolutamente não posso concordar com esta posição. Acho que o povo de Sichuan (a província de onde Liao é) não concordaria em se separar da China. Não posso nem imaginar que ele próprio queira aquilo, no fundo de seu coração. Sei que ele me inveja por este prêmio e eu entendo isso. Mas a sua crítica é injustificada.

Outro dos argumentos de seus críticos é que você contribuiu para um livro comemorativo do infame discurso de Mao Zedong de 1942 – um discurso no qual ele estabeleceu os limites dentro dos quais os escritores chineses teriam que escrever a partir de então.

Mo: Esse discurso é um documento histórico que tem sua racionalidade, mas também os seus limites. Quando eu e minha geração de escritores começamos, ampliamos estes limites passo a passo. Quem realmente ler meu trabalho a partir desse período não pode afirmar que eu era acrítico.

Mas por que você contribuiu com esse projeto?

Mo: Honestamente, foi um projeto comercial. O editor de uma editora, um velho amigo meu, veio com a idéia. Ele tinha convencido cerca de 100 escritores antes e, quando participamos juntos de uma conferência, ele andava com um livro e uma caneta. Ele me pediu que escrevesse à mão, ali mesmo, alguma coisa sobre o discurso de Mao. Eu era vaidoso o suficiente para ter a oportunidade de mostrar minha caligrafia.

Num romance seu, um dos protagonistas inadvertidamente deixa cair uma imagem de Mao em uma latrina. Em seu livro autobiográfico “Mudança”, você conta que usava pequenas estatuetas de Mao para afastar os ratos em seu dormitório. Por que você escreve tão ousadamente em seus livros e é tão cuidadoso em seus comentários pessoais?

Mo: Você acha que eu sou cuidadoso em minhas observações pessoais? Se fosse assim, então eu não teria concordado com esta entrevista. Eu sou um escritor, não um ator. E quando eu escrevi essas cenas, eu não acho que estava quebrando um tabu. Apenas deixei claro que Mao era um homem e não um deus, que assim seja. Quando eu era criança, achava que ele era deus.
Copenhague: a Escandinávia é admirada pelo Nobel
Copenhague: a Escandinávia é admirada pelo Nobel

Hoje você é o vice-presidente da Associação de Escritores da China. Pode-se ter este título na China sem estar perto do governo?

Mo: Este é um título honorífico sobre o qual ninguém reclamou antes de eu ser premiado com o Nobel. Há pessoas que pensam que o Nobel só deve ir para as pessoas que se opõem ao governo. É isso mesmo? O Prêmio Nobel de literatura é para a literatura ou para outra coisa?

Mas há pessoas neste país que são perseguidas, mesmo presas pelo que escrevem. Você não sente a obrigação de usar o seu prêmio, fama e reputação para falar em nome dos colegas perseguidos?

Abertamente expresso a esperança de que Liu Xiaobo, Nobel da Paz de 2010, recupere sua liberdade o mais breve possível. Manifestei isso várias vezes, e sempre sou criticado. Sou forçado a falar de novo e de novo sobre o mesmo assunto.

 Outro dos seus críticos é Ai Weiwei, um artista particularmente bem conhecido na Alemanha.

Mo: O que ele tem a dizer sobre mim?
Ele também o acusa de estar fechado com o Estado. Ele diz que você está distante da realidade e não pode representar a China atual.

Mo: Que intelectual pode reivindicar representar a China? Eu certamente não reivindico isso. Ai Weiwei reivindica? Aqueles que realmente representam a China estão limpando a sujeira e pavimentando as estradas com as próprias mãos.

Você mantém uma visão utópica do comunismo. No entanto, seus livros mostram passo a passo que esta utopia não se torna realidade. Não seria hora de abandonar esta utopia completamente?

Mo: O que Marx escreveu no “O Manifesto Comunista” era de grande beleza. No entanto, é muito duro fazer esse sonho realidade. Mas olho para os países escandinavos com admiração e me pergunto: será que estas sociedades tão avançadas seriam possíveis sem Marx? Nós costumávamos dizer que na China de uma maneira o marxismo salvou o capitalismo. Porque aqueles que mais se beneficiaram de sua ideologia parecem ser as sociedades do Ocidente. Nós, chineses, russos e europeus orientais, parecemos ter entendido mal o marxismo.
 
Sr. Mo, obrigado por esta entrevista.