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quarta-feira, 27 de junho de 2012

A história é o inimigo quando as psy-ops se tornam notícia

por John Pilger
Manifestação nos EUA contra a Dow Chemical. 















Ao chegar a uma aldeia no Vietname do Sul, deparei-me com duas crianças que testemunhavam a mais longa guerra do século XX. Suas terríveis deformidades eram familiares. Ao longo do rio Mekong, onde as florestas foram petrificadas e silenciadas, pequenas mutações humanas viviam o melhor que podiam.

Hoje, no hospital pediátrico Tu Du em Saigon, um antigo anfiteatro é conhecido como a "sala da colecção" e, não oficialmente, como a "sala dos horrores". Ali há prateleiras com grandes garrafas que contêm fetos grotescos. Durante a sua invasão do Vietname, os Estados Unidos pulverizaram um herbicida desfolhante sobre a vegetação e aldeias a fim de negar "cobertura ao inimigo". Era o Agente Laranja , o qual continha dioxina, venenos com tal poder que provocavam a morte fetal, abortos, danos cromossomáticos e cancro.

Em 1970, um relatório do Senado dos EUA revelou que "os EUA despejaram [sobre o Vietname do Sul] uma quantidade de produtos químicos tóxicos que se eleva a seis libras [2,72 kg] per capita da população, incluindo mulheres e crianças". O nome de código para esta destruição maciça, Operação Hades, foi alterado para o mais amistoso Operação Ranch Hand. Hoje, cerca de 4,8 milhões de vítimas do Agente Laranja são crianças.

Len Aldis, secretário da Sociedade de Amizade Britânico-Vietnamita, retornou recentemente do Vietname com uma carta ao Comité Olímpico Internacional escrita pela União das Mulheres do Vietname. A presidente da união, Nguyen Thi Thanh Hoa, descreveu "as graves deformações congénitas [provocadas pelo Agente Laranja] de geração para geração". Ela pedia ao COI que reconsiderasse a sua decisão de aceitar patrocínio das Olimpíadas de Londres pela Dow Chemical Corporation, que foi uma das companhias a fabricar o veneno e que se recusou a indemnizar as suas vítimas.

Aldis entregou a carta em mãos no gabinete de Lord Coe, presidente do Comité Organizador de Londres. Não houve resposta. Quando a Amnistia Internacional denunciou que em 2001 a Dow Chemical adquiriu "a companhia responsável pela fuga de gás de Bhopal [na Índia em 1984] que matou 7 mil a 10 mil pessoas de imediato e 15 mil nos 20 anos seguintes", David Cameron descreveu a Dow como uma "companhia respeitável". Aclamações, portanto, para as câmaras de TV ao longo dos painéis decorativos de £7 milhões [€8,75 milhões] que orlam o estádio olímpico: são o resultado de um "acordo" de 10 anos entre o COI e um destruidor tão respeitável.

A história é enterrada juntamente com os mortos e deformados do Vietname e de Bhopal. E a história é o novo inimigo. Em 28 de Maio, o presidente Obama lançou uma campanha para falsificar a história da guerra no Vietname. Para Obama, não houve Agente Laranja, nem zonas de fogo livre, nem disparos sobre indefesos (turkey shoots), nem encobrimentos de massacres, nem racismo desenfreado, nem suicídios (pois muitos americanos acabaram com as suas próprias vidas), nem derrota frente à força de resistência de uma sociedade empobrecida. Ela foi, disse o sr. Hopey Changey, "uma das mais extraordinárias histórias de bravura e integridade nos anais da história militar [dos EUA]".

No dia seguinte, o New York Times publicou um longo artigo a documentar como Obama selecciona pessoalmente as vítimas dos seus ataques drone por todo o mundo. Ele faz isto nas "terças-feiras de terror" quando folheia álbuns com fotos de rostos numa "lista da morte", alguns deles adolescentes, incluindo "uma garota que parecia ainda mais jovem do que os seus 17 anos". Muitos são desconhecidos ou simplesmente em idade militar. Guiados por "pilotos" sentados frente a écrans de computador em Las Vegas, os drones disparam mísseis Hellfire que sugam o ar para fora dos pulmões e explodem pessoas em bocados. Em Setembro último, Obama matou um cidadão americano, Anwar al-Awlaki, puramente na base de rumor de que ele estava a incentivar terrorismo. "Este aqui é fácil", ele é citado por ajudantes como dizendo isso ao assinar a sentença de morte do homem. Em 6 de Junho, um drone matou 18 pessoas numa aldeia no Afeganistão, incluindo mulheres, crianças e um idoso que estavam a celebrar um casamento.

O artigo do New York Times não foi uma fuga ou uma revelação. Foi uma matéria de relações públicas concebida pela administração Obama para mostrar num ano de eleição quão duro o "comandante em chefe" pode ser . Se reeleito, a Marca Obama continuará a servir a riqueza, a perseguir os que dizem a verdade, a ameaçar países, a propagar vírus de computador e a assassinar pessoas toda terça-feira.

As ameaças contra a Síria, coordenadas em Washington e Londres, escalam novos picos de hipocrisia. Ao contrário da propaganda primária apresentada como notícia, o jornalismo investigativo do jornal alemão Frankfurter Allgemeine Zeitung identifica os responsáveis pelo massacre em Houla como sendo os "rebeldes" apoiados por Obama e Cameron. As fontes do jornal incluem os próprios rebeldes. Isto não foi completamente ignorado na Grã-Bretanha. Escrevendo no seu blog pessoal, de modo extremamente calmo, Jon Williams, o editor de notícias mundiais da BBC, efectivamente serve a sua própria "cobertura", citando responsáveis ocidentais que descrevem a operação "psy-ops" [operação psicológica] contra a Síria como "brilhante". Tão brilhante quanto a destruição da Líbia, do Iraque e do Afeganistão.

E tão brilhante quanto a psy-ops mais recente do Guardian com a promoção de Alastair Campbell, o colaborador chefe de Tony Blair na criminosa invasão do Iraque. Nos seus "diários", Campbell tenta salpicar sangue iraquiano sobre o demónio Murdoch. Há em abundância para encharcar todos eles. Mas o reconhecimento de que os medida respeitáveis, liberais, bajuladores de Blair, foram um acessório vital para um crime tão gigantesco é omitido e permanece como um teste singular de honestidade intelectual e moral na Grã-Bretanha.

Até quando devemos sujeitar-nos a um tal "governo invisível"? Esta expressão para a propaganda insidiosa cunhada por Edward Bernays – o sobrinho de Sigmund Freud que inventou as modernas relações públicas – nunca foi tão adequada. A "realidade falsa" exige amnésia histórica, a mentira por omissão e a transferência de significância para o insignificante. Deste modo, sistemas políticos que prometiam segurança e justiça social foram substituídos pela pirataria, "austeridade" e "guerra perpétua": um extremismo destinado ao derrube da democracia. Aplicado a um indivíduo, isto identificaria um psicopata. Por que aceitamos isto?
21/Junho/2012
O original encontra-se em www.johnpilger.com/...

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

domingo, 29 de abril de 2012

Microcrédito, o negócio da miséria


Ao emprestar somas módicas a fim de possibilitar o desenvolvimento de uma atividade produtiva, o microcrédito deveria emancipar os mais pobres. Mas, na Índia, a lógica dos acionistas triunfou: empresas de microcrédito constroem fortunas vampirizando os mais vulneráveis
por Cédric Gouverneur no LeMondeBrasil
Laksmi e sua esposa Rama não aguentavam mais confeccionar, dia após dia, quase mil beedies(cigarros aromáticos), em doze horas de trabalho, na esperança de ganhar 70 rupias (R$ 2,50) ao final do mês. Esse casal com duas crianças fez então um empréstimo de 5 mil rupias (R$ 180) em uma empresa de microcrédito para abrir uma minúscula lojinha de noz de bétele na periferia de Warangal, no estado de Andhra Pradesh, no sul da Índia. Isso deveria permitir-lhes uma vida melhor, reembolsando 130 rupias por semana. Mas, conta Rama, Laksmi ficou doente: “Durante quatro meses, ele não pôde trabalhar”. Os vencimentos se acumularam e, com eles, os juros. Os vizinhos começaram a ficar agressivos, pois as empresas de microcrédito colocaram em ação um sistema de corresponsabilidade: quando um devedor falha, os outros devem reembolsar. Assediado, aterrorizado, o casal contratou um segundo empréstimo para pagar o primeiro. Depois um terceiro para pagar o segundo... Um total de cinco empréstimos, pelo equivalente a cerca de R$ 2.300.
Os credores acabaram por literalmente acampar diante do casebre de Laksmi e Rama. Depois – em completa ilegalidade – tomaram a lojinha de bétele, o fogão, as joias de ouro e finalmente a máquina de costura com a qual uma das filhas do casal, Eega, de 20 anos, fazia roupas para revender. “Você é bonitinha, vá se prostituir!”, disseram os credores quando ela perguntou como sua família iria conseguir comer. Humilhada, ela se imolou com fogo no dia 28 de setembro de 2010.
“Os pobres têm acesso a um crédito fácil, na porta de casa”, resume Reddy Subrahmanyam, na chefia do ministério do Desenvolvimento Rural do estado. “Mas a que custo! Com os impostos, as taxas de juros beiram os 60%.” Seguindo o espírito de seu inventor, o bengali Muhammad Yunus, Prêmio Nobel da Paz, o microcrédito deveria permitir a aquisição de uma nova fonte de renda, e não atuar como um complemento. Uma nuance fundamental, o microcrédito indiano se assemelha agora aos créditos de consumo: “Os mais pobres contratam créditos para pagar gastos médicos, um dote, um casamento, até uma televisão ou uma peregrinação”, fulmina Subrahmanyam. “O microcrédito deveria emancipar [empower] os mais desfavorecidos, devolver-lhes a dignidade. Agora ele os está afundando na miséria.” E em vez de criar solidariedades, a corresponsabilidade dos devedores implode as comunidades dos vilarejos.
Andhra Pradesh concentra um quarto dos microcréditos privados do país, ou seja, 52 bilhões de rupias (R$ 1,866 milhão) emprestados a 6,25 milhões de lares em 2010.1 “Nos anos 2000”, conta Abhay N., editor do jornal on-line India Microfinance, “o governo regional lançou diversos programas sociais para conter a influência dos maoístas”, cuja guerrilha é ativa na zona rural.2 O estado incitou os bancos a fazer empréstimos aos habitantes dos vilarejos reunidos no seio de grupos de cooperação (self-help groups, ou SHG), ele mesmo se encarregando de uma parte dos juros.
No vilarejo de Dharmasagaram, no distrito de Warangal, uma mãe de família, Bhergya, conta como pôde, graças ao SHG, fazer um empréstimo de pouco mais de R$ 2.300 no banco, com uma taxa de 12% (da qual 9% por conta do Estado) para adquirir um riquexó (carro de duas rodas para transporte de passageiros a tração humana) que ela depois alugou ao irmão: “O aluguel do riquexó me paga 6 mil rupias (R$ 215) líquido por mês, e eu devo reembolsar 2.700”, indica ela, satisfeita.
Mas empresas privadas utilizaram essa rede para abordar os habitantes dos vilarejos e vender créditos para consumo segundo o modelo europeu. Esse desvio se explica pela evolução da maioria dos setenta órgãos de microcrédito indianos, agora guiados por uma só lógica, a do lucro. Número um do setor, a SKS foi fundada em 1998 por Vikram Akula, um trabalhador social diplomado na Universidade de Chicago. A SKS era originalmente uma organização sem fins lucrativos. “Esse statusjurídico a impedia de emprestar dinheiro suficiente”, justifica o porta-voz da empresa na sede social em Hyderabad. “Akula decidiu então, em 2005, fazê-la evoluir para uma companhia financeira não bancária.” Em direito indiano, uma empresa empresta dinheiro, mas não pode receber depósitos. Assim como todos os patrões de órgãos de microcrédito contatados, Akula está “muito ocupado” para nos receber.
Uma ordem recente do governo de Andhra Pradesh (Partido do Congresso) proíbe os coletores de ir ao domicílio de seus devedores e condiciona a contratação de novos empréstimos ao aval das autoridades. Medidas julgadas insuficientes pela oposição: o Telugu Desam Party (TDP), no poder em Andhra Pradesh entre 1999 e 2004, incita os milhões de devedores a parar de pagar.
Na periferia de Hyderabad, encontramos Kaushalya e suas vizinhas. Essa enérgica avó fez um empréstimo para cuidar da saúde de seu marido paralítico. Incapaz de reembolsar, ela deveria ter sido assediada pelas outras devedoras do bairro, obrigadas a pagar em seu lugar. Mas essas senhoras decidiram se unir no enfrentamento e não pagar mais nada: “Não demos mais nada desde novembro de 2010”, dizem elas ao mesmo tempo orgulhosas e graves em seus saris. “As pessoas da empresa de crédito nos ameaçam, dizem que vamos para a prisão, mas nada acontece, a gente nem dá mais atenção a elas!” Tais exemplos de solidariedade nos vilarejos se multiplicam em todo o estado. E as taxas de reembolso afundam, passando de 97% para 20%, até 10%... Enfim, “investigações estão em andamento sobre uns cinquenta suicídios. Os responsáveis pelo assédio deverão responder por seus atos diante dos tribunais”, promete Subrahmanyam.
Sentindo o vento mudar, 39 dirigentes da SKS liquidaram suas stock optionsdesde o começo da crise, no fim de 2010.3 Segundo nossas informações, as empresas de microcrédito se instalam agora no interior profundo, nas cidades dos indígenas Adivasis: isolados, miseráveis, analfabetos, eles são menos suscetíveis a desconfiar... A microfinança indiana poderia tomar para si a tirada do humorista Alphonse Allais (1854-1905): “É preciso procurar o dinheiro onde ele está: com os pobres. Eles não têm muito, mas são muitos...”.
Cédric Gouverneur é jornalista.

Ilustração: Daniel Kondo

1 Narasimhan Srinivasan, “Microfinance India: state of the sector report” [Microfinança na Índia: relatório sobre o estado do setor], SAGE Publications India Pvt Ltd, Nova Déli, 2010.

2 Ler “En Inde, expansion de la guérilla naxalite” [Na Índia, expansão da guerrilha naxalita], Le Monde Diplomatique, dez. 2007.

3 Express India, Nova Déli, 11 fev. 2011.

sábado, 28 de abril de 2012

Primavera Árabe: ameaça aos direitos da mulher?

120428 mulher arabeRNW - “A Primavera Árabe é uma grande chance para os direitos das mulheres. Mas também existe o risco real de que conquistas do passado sejam revertidas.” Em que direção irá, segundo Liesl Gernholtz, diretora de direitos da mulher da Human Rights Watch, é imprevisível.


Ainda é muito cedo para fazer comentários fundamentados, acredita Gerntholz, que é advogada especialista em direitos da mulher, mas há vários indícios. “Existe a chance de que as mulheres não possam colher os frutos da democracia que substituirá os regimes derrubados.”
O motivo para isso é que os partidos islâmicos conservadores tiveram vitória substancial nas eleições no Egito e na Tunísia. “Eles defendem tradições que nem sempre apoiam os direitos da mulher. Há preocupação e mesmo medo de que estas forças conservadoras queiram voltar atrás nos limitados progressos que as mulheres conseguiram fazer nesses países.”

Clima desfavorável
 
Um outro ponto é que nem todos os países têm um forte movimento feminino. “Na Líbia os movimentos sociais foram proibidos por 42 anos. Agora têm que ser construídos do zero. Não há nenhuma experiência na luta pelos direitos da mulher. As mulheres ainda não têm habilidades para estabelecer organizações, tomar parte no debate público ou para serem eleitas para o parlamento. É difícil encontrar confiança e coragem para enfrentar essa aventura. Tradicionalmente, elas sempre foram mantidas fora do debate social e da política.”
Gerntholz constata que em muitos países falta um clima favorável para as mulheres, que têm grande dificuldade em exercer seus direitos.
“No dia 8 de março mulheres egípcias fizeram uma marcha na praça Tahrir, no Cairo, para celebrar o Dia Internacional da Mulher. Elas foram atacadas, insultadas e intimidadas. Lhes disseram que não tinham nada que procurar na rua e que deveriam ficar em casa. A revolução tinha acabado. E isso foi só um mês depois dos protestos populares, nos quais se pedia mais liberdade, e não muito depois da queda de Mubarak. Mas quando as mulheres pedem a mesma liberdade, são mandadas para casa.”

Emancipação feminina
 
Apesar disso, Gerntholz também vê sinais que dão esperança. As mulheres estão tentando mudar a maré. Egito e Tunísia têm movimentos fortes de emancipação feminina. “É possível que elas se fortaleçam com a transição para a democracia. Na Tunísia, pelo menos, já foi estabelecido um sistema de quotas. Metade das cadeiras no parlamento são ocupadas por mulheres. Elas também estão participando da elaboração da nova constituição.”
Mas Gerntholz está principalmente impressionada com as mulheres na Líbia. Um mês depois da queda de Kadhafi elas já haviam organizado uma conferência sobre direitos da mulher, da qual Gerntholz participou. “Elas discutiram sobre o que querem conquistar, quais são suas expectativas e principais desafios. Portanto, as mulheres com certeza vão lutar por seus direitos e estão se organizando. Embora não seja fácil, porque elas não têm acesso fácil ao poder e aos tomadores de decisão.”

Sharia
 
É certo, constatou Gerntholz durante sua visita à Líbia, que muitas mulheres lá optam por direitos compatíveis com a sharia, a legislação islâmica. “Elas acreditam que a sharia deve ser a base para a constituição. São em primeiro lugar muçulmanas. Sua religião deve ser determinante para a maneira como vivem. Este é um sentimento generalizado de um grupo de mulheres que certamente não é homogêneo. São mulheres de diferentes camadas da população, com pouca ou muita escolaridade, e de todas as idades.”
As mulheres líbias acham que a sharia não vai contra os direitos da mulher. Se as leis islâmicas forem interpretadas da maneira correta, elas apoiam estes direitos. “Segundo elas, a sharia não trata do apedrejamento de mulheres e de poligamia. Nem sobre o casamento de crianças. Para elas, estas não são leis islâmicas, mas atos ligados à tradição e à cultura.”

Direitos humanos
 
De acordo com Gerntholz, não há nada errado com este feminismo islâmico. Ele apenas é interpretado de um ângulo religioso, assim como também acontece com feministas católicas. “Se você é capaz de aplicar coisas como religião, cultura e tradição de uma maneira positiva e não discriminatória, acho que não é mau. Mas se isso for usado para excluir pessoas e reprimir, aí é realmente ruim.”
A introdução da sharia não traz necessariamente problemas, acredita Gerntholz. Desde que atenda aos princípios dos direitos humanos universais, nos quais as mulheres são iguais aos homens. Para isso é preciso assegurar que países como a Líbia, que assinaram estes direitos, também cumpram estes princípios.
Mas só o tempo dirá que influência a eventual introdução da sharia terá sobre os direitos das mulheres.

A nova Guerra Fria, agora na internet


Por Carlos Castilho no OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA

Os Estados Unidos ganharam a Guerra Fria nuclear sem disparar um tiro, mas podem estar perdendo a versão cibernética do conflito pela supremacia mundial. E acredite quem quiser: a nova superpotência virtual  é a China, apontada pelos especialistas ocidentais em segurança cibernética como a maior incógnita contemporânea no que se refere a políticas de uso da internet.
Os norte-americanos não admitem publicamente, mas o jornal inglês The Guardian afirmou na série "Batalha pela Internet" que o número de chineses especialistas em crackear [1] computadores e redes virtuais é maior do que o dos engenheiros norte-americanos dedicados ao desenvolvimento de novos programas e equipamentos para computação. Os crackers chineses são conhecidos também como cyber jedis (guerreiros cibernéticos), numa analogia com os guerreiros do bem na série Guerra nas Estrelas.
No fundamental, a nova versão da Guerra  Fria é essencialmente uma guerra por informações onde as armas convencionais passaram a um segundo plano, para desespero de toda a multimilionária indústria bélica mundial. Os jedis chineses, em sua esmagadora maioria protegidos pelo governo de Beijing, vasculham o sistema financeiro ocidental, as redes de comunicações privadas e governamentais, descobrem vulnerabilidades em bancos de dados, em complexos de energia e transporte, bem como, é óbvio, nos serviços de inteligência militar.
A grande diferença em relação à Guerra Fria nuclear é que agora a busca por informações não está voltada para o botão vermelho da retaliação atômica, mas a um complexo e ainda pouco estudado sistema de tomada de decisões no qual os indivíduos estão sendo substituídos por processos  impessoais, como as bolsas de valores.  A balança do poder mundial não depende mais exclusivamente de decisões tomadas na Casa Branca ou no Palácio do Povo, em Beijing.
A descoberta do poder chinês na internet assustou os governos ocidentais, em especial os Estados Unidos e a Inglaterra, onde os seguidores da velha Guerra Fria ainda são muito influentes. Se até a queda do Muro de Berlim (1989) , os espiões e cientistas nucleares eram os grandes alvos dos estrategistas soviéticos e norte-americanos, agora todas as atenções se voltam para jovens entre 17 e 30 anos, a faixa etária dos modernos guerreiros cibernéticos, um ramo dos nerds (jovens fanáticos por computação).
Em 2011 foi criado na Inglaterra um projeto chamado Cyber Security Challange (Concurso sobre Segurança Cibernética)  destinado a atrair nerds  para o campo da Guerra  Fria cibernética.  Logo na primeira edição, no ano passado, quatro mil jovens de ambos os sexos se inscreveram para a competição, que não chegou a ser divulgada na imprensa. No ano passado, o vencedor foi Jonathan Millican, estudante do primeiro ano de engenharia eletrônica, com 19 anos incompletos.
O julgamento final da versão 2012 Cyber Security Challange deveria ter ocorrido em março, mas teve que ser adiado porque o site do concurso foi crackeado, segundo os britânicos, por cyber jedis chineses. Os prêmios previstos no concurso variam desde bolsas de estudo até inscrição grátis em eventos ligados à segurança cibernética. Não há prêmios em dinheiro, mas segundo o jornal The Guardian, o emprego em empresas do setor é imediato.
São garotos como Jonathan que passaram a ser observados de perto por estrategistas mililtares que acabam de receber plenos poderes do presidente Barack Obama e do governo inglês para desenvolver uma estratégia antichinesa na guerra pelo controle da internet. Segundo a Casa Branca, cerca de 60% das empresas norte-americanas que tiveram seus sites invadidos por crackers acabaram pedindo falência.  
Até agora a principal estratégia do Pentágono era criar muros virtuais (firewall) contra invasões de redes de computadores, mas os especialistas já se deram conta que a defesa passiva é inútil, porque a criatividade dos cyber jedis é quase infinita. Para cada muro criado surgem imediatamente dezenas de opções sobre como derrubá-lo. Por isso a tendência é investir nas ações ofensivas, atacando os centros onde se aglutinam os guerreiros virtuais.
O problema é que a dispersão é enorme nessa área, da mesma forma que o altíssimo índice de privatização das empresas ligadas ao gerenciamento de informações na web  complica a ação dos militares, cuja cultura operacional é tradicionalmente centralizadora e vertical. Nos Estados Unidos, de 80% a 90% dos bancos de dados estão em mãos privadas, o que torna extremamente relevante o papel da Google, a megacorporação no setor de informações e a terceira maior empresa privada do mundo no ramo das comunicações.  
A estratégia da Google na Guerra Fria cibernética é fundamental para a balança do poder entre os Estados Unidos e a China, mas também transcendental para nós, que usamos gratuitamente os mecanismos de busca, correio eletrônico, YouTube e dezenas de outros aplicativos desenvolvidos pela empresa para captar nossas preferências e dados pessoais.


[1]Neologismo criado para expressar o ato de identificar códigos, senhas e arquivos protegidos em computadores ou redes de computadores. Os crackers são o oposto dos hackers, que desenvolvem novos softwares.

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Timor Leste: porque o mais pobre é ameaça para o poderoso

por John Pilger 
 
A partilha. O truísmo de Milan Kundera, "a luta do povo contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento", descreve Timor Leste. No dia em que decidi filmar ali clandestinamente, em 1993, fui à loja de mapas Stanfords, no Covent Garden de Londres. "Timor?", disse um assistente de vendas hesitante. Pusemo-nos a examinar prateleiras marcadas Sudeste Asiático. "Desculpe-me, onde é exactamente?"

Após uma pesquisa ele encontrou um velho mapa aeronáutico com áreas em branco assinaladas: "Dados de auxílio incompletos". Nunca lhe fora pedido Timor-Leste, o qual está a Norte da Austrália. Tal era o silêncio que envolvia a colónia portuguesa a seguir à sua invasão e ocupação pela Indonésia, em 1975. Mas nem mesmo Pol Pot conseguiu, proporcionalmente, matar tantos cambodgianos quanto o ditador Suharto, da Indonésia, matou em Timor-Leste.

No meu filme, Morte de uma nação , há a cena de um brinde a bordo de um avião australiano a voar sobre a ilha de Timor. Decorre numa festa e dois homens de fato estão a brindar-se com champanhe. "Isto é um momento histórico único", balbucia um deles, "é verdadeiramente histórico e único". Trata-se de Gareth Evans, ministro dos Negócios Estrangeiros da Austrália. O outro homem é Ali Alatas, o porta-voz principal de Suharto. Passa-se em 1989 e eles estão a fazer um voo simbólico para celebrar a assinatura de um tratado pirata que permitiu à Austrália e às companhias internacionais de petróleo e gás explorarem o fundo do mar ao largo de Timor-Leste. Por baixo deles há vales crivados de cruzes negras onde aviões caça fornecidos por britânicos e americanos estraçalharam pessoas em bocados. Em 1993, o Comité de Assuntos Estrangeiros do Parlamento australiano relatou que "pelo menos 200 mil", um terço da população, havia perecido sob Suharto. Graças a Evans, em grande parte, a Austrália foi o único país ocidental a reconhecer formalmente a conquista genocida de Suharto. As forças especiais assassinas da Indonésia, conhecidas como Kopassus, foram treinadas na Austrália. O prémio, disse Evans, eram "ziliões" de dólares.

Ao contrário de Muammar al-Kaddafi e Saddam Hussein, Suharto morreu pacificamente em 2008 cercado pela melhor ajuda médica que os seus milhares de milhões podiam comprar. Ele nunca correu o risco de ser processado pela "comunidade internacional". Margaret Thatcher disse-lhe: "Você é um dos nossos melhores e mais válidos amigos". O primeiro-ministro australiano Paul Keating encarava-o como uma figura paternal. Um grupo australiano de editores de jornais, conduzido pelo veterano servidor de Rupert Murdoch, Paul Kelly, voou a Djacarta para prestar homenagem ao ditador; há uma foto de um deles a fazer uma reverência.

Em 1991, Evans descreveu o massacre de mais de 200 pessoas por tropas indonésias, no cemitério de Santa Curz, em Dili, capital do Timor-Leste, como uma "aberração". Quando manifestantes colocaram cruzes do lado de fora da embaixada da Indonésia em Canberra, Evans ordenou a sua retirada.

Em 17 de Março, Evans estava em Melbourne para falar num seminário sobre o Médio Oriente e a Primavera Árabe. Mergulhado agora no ocupado mundo dos "think tanks", ele explana acerca de estratégias de grandes potências, nomeadamente a elegante "Responsabilidade de proteger", a qual é utilizada pela NATO para atacar ou ameaçar ditadores arrogantes ou desfavorecidos sob o falso pretexto de libertar seus povos. A Líbia é um exemplo recente. No seminário também estava presente Stephen Zunes, professor de política na San Francisco University, que recordou à audiência o longo e crítico apoio de Evans a Suharto.

Quanto acabou a sessão, Evans, um homem de fusível limitado, atacou Zumes e gritou: "Quem raios é você? De onde raios você saiu?" Disseram a Zumes, confirmou Evans posteriormente, que tais observações críticas mereciam "um soco no nariz". O episódio foi oportuno. A celebrar o décimo aniversário de uma independência que Evans outrora negava, Timor-Leste está nas convulsões da eleição de um novo presidente; a segunda volta da votação é em 21 de Abril, seguida pelas eleições parlamentares.

Para muitos timorenses, com seus filhos malnutridos e atrofiados, a democracia é uma noção. Anos de ocupação sangrenta, apoiada pela Austrália, Grã-Bretanha e EUA, foram seguidos por uma campanha implacável de intimidação por parte do governo australiano para afastar a pequena nova nação da fatia a que tem direito das receitas de petróleo e gás do seu leito marítimo. Tendo recusado reconhecer a jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça e a Lei do Mar, a Austrália mudou unilateralmente a fronteira marítima.

Em 2006 foi finalmente assinado um acordo, em grande medida nos termos da Austrália. Logo após, o primeiro-ministro Mari Alkatiri, um nacionalista que enfrentou Canberra e opôs-se à interferência estrangeira e ao endividamento ao Banco Mundial, foi efectivamente deposto naquilo a que chamou uma "tentativa de golpe" por "elementos externos". A Austrália tem tropas de "manutenção da paz" em Timor-Leste e treinou seus opositores. Segundo um documento escapado do Departamento da Defesa australiano, o "primeiro objectivo" da Austrália em Timor-Leste é que os seus militares "tenham acesso" de modo a que possa exercer "influência sobre a tomada de decisões em Timor-Leste". Dos dois actuais candidatos presidenciais, um é Taur Matan Rauk, um general e o homem de Canberra que ajudou a afastar o incómodo Alkitiri.

Um pequeno país independente montado sobre recursos naturais lucrativos e caminhos marítimos estratégicos é objecto de preocupação séria para os Estados Unidos e o seu "vice xerife" em Canberra. (O presidente George W. Bush promoveu realmente a Austrália a xerife pleno). Isso explica em grande medida porque o regime Suharto exigiu tanta devoção dos seus patrocinadores ocidentais. A obsessão permanente de Washington na Ásia é a China, a qual hoje oferece a países em desenvolvimento investimento, qualificação e infraestrutura em troca de recursos.

Ao visitar a Austrália em Novembro, o presidente Barack Obama emitiu outra das suas ameaças veladas à China e anunciou o estabelecimento de uma base dos US Marines em Darwin, bem em frente às águas de Timor-Leste. Ele entende que países pequenos e empobrecidos podem muitas vez apresentar a maior ameaça à potência predatória, porque se eles não puderem ser intimidados e controlados, quem poderá?
O original encontra-se em www.johnpilger.com/...

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

terça-feira, 3 de abril de 2012

Europa: até a prostituição em crise


Empobrecimento no Leste multiplica casos de tráfico de mulheres, levando violência até a países onde profissão foi regulamentada, como Holanda

Por Antonio Barbosa Filho*, de Amsterdã para o PASSA PALAVRAS

Em pelo menos nove países da Europa a prostituição é legalizada, e as profissionais do sexo têm direitos trabalhistas, tratamento médico preventivo e proteção contra a exploração por gigolôs. Nem sempre tudo que está nas leis é obedecido, mas o fato é que em países como a Holanda a criminalidade que cerca a prostituição em outras partes do mundo é bastante reduzida.

A relativa tranquilidade do chamado Red Light District (Bairro da Luz Vermelha), onde encontram-se dezenas de bordéis e centenas das famosas vitrinas onde as prostitutas se exibem e tentam atrair seus clientes, está sendo abalada nos últimos dois anos pela crise econômica que atinge a Europa. Segundo as autoridades, aumenta a presença do crime organizado no tráfico de mulheres que buscam fugir dos países mais pobres (especialmente os da antiga União Soviética, como Moldova, Ucrânia, Belorússia, Romênia, Bulgária, República Tcheca e outros). Trazidas para os países mais adiantados, como a Holanda, Alemanha, Bélgica, Inglaterra e França, além da Escandinávia, muitas delas são escravizadas através de dívidas que são obrigadas a assumir, ou da violência pura e simples. Muitas vezes, elas passam antes por um “estágio” em países intermediários como a Macedônia (parte da antiga Iugoslávia), onde sofrem torturas e humilhações para ficarem “dóceis” aos seus “donos”.
É impossível verificar os números envolvidos no tráfico de mulheres e nas redes de prostituição, mas a polícia calcula que entre 200 mil e 400 mil mulheres e garotas sejam retiradas anualmente dos países do Leste, e pelo menos a metade delas acaba sendo prostituída no Oeste – um quarto iria para os Estados Unidos. Organizações de direitos humanos e combate à escravidão lutam para que as polícias dos vários países ajam, mas a corrupção neste setor é grande. O chefe de polícia encarregado de combater este crime em Velesta, na Moldova, Vitalie Curarari, por exemplo, chega a culpar as próprias mulheres: “Cinquenta por cento de nossas mulheres vão para o estrangeiro procurar outros homens e depois voltam apenas para se divorciarem de seus maridos”… Ele também culpa a imprensa por fazer “sensacionalismo” ao denunciar as máfias do tráfico humano e as crueldades praticadas contra mulheres prostituídas.

A situação econômica influencia na prostituição de várias maneiras.
Em primeiro lugar, força mulheres dos países pobres a aceitarem convites ou atenderem a anúncios oferecendo empregos em países distantes. Há casos, por exemplo, de jovens que pensavam estar embarcando para um emprego de garçonete na Itália, mas depois de entregarem seus passaportes ao “agente de empregos” foram embarcadas para outros países, presas nos fundos de prostíbulos, espancadas e obrigadas a praticarem serviços sexuais sob ameaça e em troca de comida.
Também muitas jovens estudantes nas principais cidades de toda a Europa, diante dos elevados preços das escolas (os governos cortam gastos com Educação como parte de seus “ajustes fiscais e orçamentários”), dos aluguéis e demais despesas, acabam recorrendo à prostituição através de agências de acompanhantes. Este trabalho lhes permite horários flexíveis, boa remuneração, e visitas a hotéis e restaurantes que uma estudantes jamais poderia frequentar.

Já no Bairro da Luz Vermelha, em Amsterdã, as prostitutas reclamam que o volume de clientes tem diminuído, e que eles passaram a pechinchar muito mais pelos serviços. Fora desta área organizada e mais protegida, há muitas mulheres se prostituindo por valores mínimos, como no Theemsweg, uma área do tamanho de um campo de futebol, onde a Prefeitura instalou vários pontos de ônibus. As mulheres se abrigam neles, e os carros as apanham para uma relação rápida, dentro dos automóveis mesmo. Um policial nos informa que ali 70% das mulheres estão no país ilegalmente, e a maioria veio dos países do Leste europeu.

Tudo isso vem preocupando as autoridades holandesas, que legalizaram a prostituição no ano 2000 para evitar a superexploração, a prostituição de menores, a violência dos gigolôs, e a disseminação das drogas neste meio. A legalização funcionou razoavelmente por vários anos, mas nada fica imune diante da grave crise do capitalismo que atinge profissionais de todas as áreas – inclusive as que comercializam o sexo.

* Antonio Barbosa Filho é jornalista e escritor, autor de A Bolívia de Evo Morales e A Imprensa x Lula – golpe ou sangramento? (All Print Editora). Em viagem pela Europa, acompanha as consequências da crise financeira pós-2008 e da onda corte de direitos sociais (‘políticas de austeridade’) iniciada em 2010

sábado, 11 de fevereiro de 2012

Vinte anos sem a URSS




 
O desaparecimento da União Soviética é uma das três questões-chave que explicam a realidade no século XXI. As outras duas são o reforçar dos chineses e o início da decadência norte-americana. E essa decadência, neste contexto, ameaça conduzir o mundo a uma tragédia global.


O desaparecimento da União Soviética é uma das três questões chave que explicam a nossa realidade no século XXI. As outras duas são o reforçar dos chineses e o início da decadência norte-americana. A dissolução da União Soviética precipitou-se na atmosfera de crise e de confronto que se apoderou da vida soviética nos últimos anos do governo de Gorbatchev, ainda que este tenha encabeçado um processo de renovação (no início, exigindo um retorno ao leninismo), levou a uma gestão desastrosa de governo e a uma torpe acção política que agravou a crise e facilitou a acção dos adversários do sistema socialista. As disputas entre Yeltsin e Gorbatchev, o premeditado e apressado desmantelamento das estruturas soviéticas e da organização do Partido Comunista, foram acompanhadas por reivindicações nacionalistas, que começaram na Arménia e se espalharam como uma mancha de óleo por outras repúblicas da União, enquanto a crise económica se aprofundava, abastecimentos escasseavam e os laços económicos entre as diferentes partes da União começavam a ressentir-se. Os problemas enfrentados por Gorbatchev eram muitos, e a sua administração piorou-os: a aspiração por maior liberdade, face ao autoritarismo soviético, e um explosivo cocktail de más colheitas, inflação galopante, queda na produção industrial, a escassez de alimentos e medicamentos, escassez de matérias-primas, uma reforma monetária dirigida pelo incompetente Valentin Pavlov em Janeiro de 1991, juntamente com as ambições pessoais de muitos líderes políticos, bem como as distorções na economia socialista e o ajuste da nova economia privada, aumentaram o mau estar da população.
Em Maio de 1990, Yeltsin tornou-se presidente do parlamento (Soviete Supremo) da Federação da Rússia, anunciando a intenção de declarar a soberania da república russa, contribuindo assim para o aumento da tensão e das pressões de ruptura, com que já avançavam os dirigentes das repúblicas bálticas. Pouco depois, em Junho de 1990, o Congresso dos Deputados da Rússia aprovou uma “declaração de soberania”, que proclamava a supremacia das leis russas sobre as soviéticas. Foi um torpedo na linha de água do grande navio soviético. Surpreendentemente, a declaração foi aprovada por 907 deputados a favor e apenas 13 votaram contra. Em 16 de Junho, o parlamento russo, por proposta de Yeltsin, anulou o papel dirigente do Partido Comunista. Egor Ligachev, um dos líderes da oposição a Yeltsin e à deriva de Gorbatchev, afirmava que o processo que estava sendo seguido era perigoso e levava ao “colapso da URSS.” Eram palavras proféticas. Yeltsin, já depois de liquidada a União, converteu em 1992 essa data em feriado nacional russo, enquanto os comunistas hoje a consideram justamente um “dia negro” para o país.
As tensões nacionalistas desempenharam um papel importante na destruição da URSS; por vezes com obscuras operações que a historiografia ainda não abordou de forma rigorosa. Um exemplo pode ser suficiente: em 13 de Janeiro de 1991 houve um massacre frente á torre de televisão de Vilnius, capital lituana. Treze civis e um militar do KGB foram mortos, e a imprensa internacional classificou o incidente como “brutal repressão soviética”, como manchete de muitos jornais. O Presidente George Bush criticou a actuação de Moscovo, e a França e a Alemanha, bem como a NATO, pronunciaram duras palavras de condenação: o mundo ficou horrorizado com a violência extrema do governo soviético, enfrentando o governo nacionalista lituano que controlava nessa época o Sajudis, liderado por Vytautas Landsbergis. Sete dias depois, em 20 de Janeiro, uma maciça manifestação em Moscovo exigia a renúncia de Gorbatchev, enquanto Yeltsin o acusava de incitar o ódio nacionalista, acusação obviamente falsa. Uma onda de protestos contra Gorbatchev e o PCUS, e em solidariedade com os governos nacionalistas bálticos, sacudiu muitas cidades da União Soviética.
No entanto, sabemos agora que, por exemplo, Audrius Butkevicius, membro do Sajudis e responsável da segurança no governo nacionalista lituano, e depois ministro da Defesa, se vangloriou perante a imprensa pelo seu papel na preparação desses eventos, a fim de desacreditar o exército soviético e o KGB; chegou a reconhecer que sabia que ocorreriam vítimas nesse dia ante a torre de televisão, e também sabemos agora que os mortos foram provocados por franco-atiradores nos telhados de edifícios e não receberam tiros em trajectória horizontal, como seria o caso se tivessem sido atacados pelas tropas soviéticas que estavam na entrada da torre de TV. Butkevicius reconheceu anos após os factos que membros do DPT (Departamento de Protecção do Território, o embrião do exército criado pelo governo nacionalista) colocados sobre a torre de televisão dispararam para a rua. Não se trata de desenvolver uma teoria da conspiração para a queda da URSS, mas as provocações e planos de desestabilização existiram. Assim como as tensões nacionalistas, de modo que estas provocações actuaram em solo fértil, excitando a paixão e os confrontos.
Em Março de 1991, neste clima de paixões nacionalistas, ocorreu o referendo sobre a preservação da URSS. Os governos de seis repúblicas recusaram-se a organizar a consulta (as três bálticas que haviam declarado a sua independência, embora não efectiva; e da Arménia, Geórgia e Moldávia), apesar de que oitenta por cento dos eleitores soviéticos participaram, e os resultados deram uma percentagem de apoiantes da conservação de 76,4 e de 21,4 que votaram negativamente, valores que incluem as repúblicas onde o referendo não se verificou. O esmagador resultado favorável à manutenção da URSS foi ignorado pelas forças que trabalhavam para a ruptura: os nacionalistas e os “reformadores”, que já controlavam grande parte das estruturas de poder, bem como instituições russas. Yeltsin, como presidente do parlamento russo, praticava um jogo duplo: não se opunha publicamente à manutenção da União, mas activamente conspirava com outras repúblicas para destruí-la. De facto, uma das razões, se não a mais importante, do referendo de Março de 1991 foi a tentativa do governo central de Gorbatchev para limitar a voracidade dos círculos dirigentes de algumas repúblicas e, acima de tudo, para travar a louca corrida de Yeltsin para o fortalecimento de seu próprio poder, para o que precisava de destruir o poder central representado por Gorbatchev e o governo soviético. Sem esquecer que, neste clima de confusão e descontentamento, a demagogia de Yeltsin ganhou muitos seguidores.
Assim, antes da tentativa de golpe no verão de 1991, Yeltsin reconheceu em Julho a independência da Lituânia, numa clara provocação ao governo soviético a que Gorbatchev foi incapaz de responder. Os dirigentes das repúblicas queriam consolidar o seu poder, sem ter que prestar contas ao centro federal, e para isso precisavam da ruptura da União Soviética. Um sector dos partidários da manutenção da URSS facilitou com a sua torpeza o avanço das posições da coligação tácita entre os nacionalistas e os “reformadores” liberais, que também eram apoiados pelos partidários do sector da economia privada que floresceu sob Gorbatchev, e inclusive do mundo do crime, que farejava a possibilidade de alcançar magníficos negócios, para não mencionar os líderes do PCUS, como Alexandr Yakovlev, que trabalhavam activamente para destruir o partido. Um dia antes do dia fixado para a assinatura do novo Tratado da União, os golpistas avançaram com um denominado Comité Estatal para a situação de emergência na URSS. O comité contava com o vice-presidente Gennady Yanaev, o primeiro-ministro Pavlov, o ministro da Defesa, Yazov, presidente do KGB Kryuchkov, o ministro do Interior Boris Pugo, e outros dirigentes como Baklanov e Tiziakov. O fracasso do golpe de Agosto de 1991, impulsionado por sectores do PCUS em oposição à política de Gorbatchev, serviu de detonante para a contra-revolução e incentivou as forças que defendiam, ainda que sem o formularem, a dissolução da URSS.
A improvisação dos golpistas, apesar de contarem com chefe da KGB e o ministro da Defesa, chegou ao extremo de anunciar o golpe antes de porem em movimento as tropas que supostamente os apoiavam; nem sequer fecharam os aeroportos, nem tomaram os meios de comunicação, nem detiveram Yeltsin e outros dirigentes reformistas e a imprensa internacional pode movimentar-se à vontade. Os serviços secretos dos EUA confirmaram a incrível improvisação do golpe, e a ausência de movimentos de tropas importantes que pudessem apoiá-lo. Na verdade, a estupidez dos golpistas tornou-se a principal via dos sectores anticomunistas que acabaram com a URSS: ainda que pretendessem o contrário, sua acção, como a de Gorbatchev, facilitou o caminho aos partidários da restauração capitalista.
A seguir ao fracasso do golpe, Yeltsin voltou novamente a adiantar-se: a 24 de Agosto reconhecia a independência da Estónia e da Letónia. E não foi só Yeltsin, que iniciou os passos para a proibição de comunismo: também Gorbachev incapaz de lidar com as pressões da direita. Em 24 de Agosto de 1991, Gorbachev anunciava a sua renúncia como secretário-geral do PCUS, a dissolução do Comité Central do partido, e a proibição da actividade das células comunistas no exército, no KGB, e no Ministério do Interior, assim como o confisco de seus bens. O PCUS ficava sem organização e recursos. Não havia travão para a revanche anticomunista. Yeltsin já havia proibido todos os jornais e publicações comunistas. A fraqueza de Gorbachev era evidente, a ponto de Yeltsin, presidente da república russa, ser capaz de impor ministros de sua própria confiança ao próprio presidente soviético nos ministérios da defesa e interior, fundamentais na situação crítica do momento. Yeltsin já tinha proibido o PCUS na Rússia e apreendido os seus arquivos (na verdade, esses arquivos eram os arquivos centrais do partido comunista), e outras repúblicas seguiram o exemplo (Moldávia, Estónia, Letónia e Lituânia apressaram-se a proibir do Partido Comunista e solicitar aos Estados-Unidos o apoio para a sua independência), enquanto o “reformista” presidente da Câmara de Moscovo apreendia e lacrava edifícios comunistas na capital. Por sua parte, Kravchuk anunciava em 24 de Agosto o abandono de suas posições no PCUS e no Partido Comunista da Ucrânia. Yeltsin, que contava com um importante apoio social, abstinha-se cuidadosamente de revelar a sua intenção de restaurar o capitalismo.
A desenfreada corrida para o desastre continuou durante os últimos meses de 1991. O referendo realizado na Ucrânia em 1 de Dezembro de 1991 contava com o controle do aparelho de Kravchuk, até poucos meses o secretário comunista da República, reconvertido em nacionalista, campeão da independência ucraniana. Na sequência dos resultados, no dia seguinte, Kravchuk anunciou a sua recusa em assinar o Tratado de União com as outras repúblicas soviéticas. Kravchuk foi o protótipo do perfeito oportunista, pronto a adoptar qualquer ideologia para manter o seu papel: em Agosto de 1991 com a tentativa de golpe contra Gorbachev, não deixou clara a sua posição, nem apoiou Yeltsin nem Gorbachev, mas após o fracasso adoptou uma posição nacionalista, abandonou o Partido Comunista e lançou-se a reivindicar a independência da Ucrânia. Ele era um profissional do poder, que intuiu os acontecimentos, e tendo sido eleito presidente do parlamento ucraniano em 1990 pelos deputados comunistas, após o fracassado golpe, deixou as fileiras comunistas. Então, tudo se precipitava. Se alguns meses antes, em 17 de Março de 1991, a população ucraniana tinha amplamente apoiado a conservação da URSS (83% votaram a favor e apenas 16% contra) a campanha maciça do poder controlado por Kravchuk conseguiu o milagre de que, oito meses depois, a população ucraniana apoiasse a declaração de independência do parlamento por 90%, com uma participação de 84%.
Yeltsin anunciou como pretexto, que se a Ucrânia não assinava o novo Tratado da União, a Rússia também não o faria: era a explosão descontrolada da URSS. Por trás, havia um activo trabalho ocidental: dois dias depois do referendo da Ucrânia no dia 1 de Dezembro, Kravchuk conversava com Bush sobre o reconhecimento da independência pelos EUA: ainda que Washington mantivesse a cautela oficial nas relações com Moscovo, a sua diplomacia e os seus serviços secretos trabalhavam activamente apoiando as forças da ruptura. Também a Hungria e a Polónia, já convertidos em estados satélites de Washington, reconheciam Ucrânia. Yeltsin fez o mesmo, já lançado na destruição da URSS. Imediatamente foi lançado um plano para dissolver a União Soviética numa operação protagonizada por Yeltsin, Kravchuk e o bielorrusso Shushkevich em 8 de Dezembro de 1991, reunidos na residência de Viskulí na Reserva Natural de Belovezhskaya Pushcha, na Bielorrússia, onde proclamaram a dissolução da URSS e correram a informar George Bush para obter a sua aprovação. Faltam investigar muitos aspectos dessa operação, embora os personagens vivos, como Shushkevich, insistam em que não estava preparada com antecedência a dissolução da URSS, que foi decidida no momento. O Presidente bielorrusso foi encarregado de relatar a um Gorbachev impotente e ultrapassado pelos acontecimentos, que sabia que ia celebrar-se a reunião de Viskulí, e se fez participante, para agrado de George Bush. A rápida sucessão de eventos, com a assinatura em Alma-Ata, em 21 de Dezembro, por onze repúblicas soviéticas da criação da CEI e a renúncia de Gorbachev, quatro dias depois, com a retirada simbólica da bandeira vermelha soviética do Kremlin, marcaram o fim da União Soviética.
Numa disparatada corrida de reivindicações nacionalistas, muitas forças políticas que tinham crescido ao abrigo da perestroika reivindicavam soberania e independência, argumentando que a sua república iria começar um novo caminho de prosperidade e progresso, sem as alegadas hipotecas que implicavam a adesão à União Soviética. Desde o Cáucaso às repúblicas Bálticas, passando pela Ucrânia, Bielorrússia e Moldávia, e com a excepção das repúblicas da Ásia Central, a maioria dos protagonistas foram rápidos a quebrar os laços soviéticos… para se apoderar do poder nas suas repúblicas. A aliança tácita entre sectores nacionalistas e liberais (que supostamente deveriam iluminar de liberdade e prosperidade), velhos dissidentes, altos funcionários do Estado e directores de fábricas e combinados industriais, oportunistas do PCUS, dirigentes comunistas reconvertidos à pressa para manter o seu estatuto (Yeltsin já o tinha feito, e foi seguido por Yakovlev, Kravchuk, Shushkevich, Nazarbayev, Aliyev, Shevardnadze, Karimov, etc.), sectores comunistas desorientados, e ambiciosos chefes militares dispostos a tudo, até mesmo a trair os seus juramentos, para se manter na escala ou dirigir os exércitos de cada república, confluíram no esforço de demolir a URSS.
Com todo o poder em suas mãos, e com o Partido Comunista desarticulado e proibido, Yeltsin e os líderes das repúblicas lançaram-se na recolha dos despojos, nas privatizações selvagens, no roubo da propriedade pública. Não havia freios. Depois, para esmagar a resistência à deriva capitalista, seria o golpe de Yeltsin em 1993, inaugurando a via militar para o capitalismo, a sangrenta matança nas ruas de Moscovo, o bombardeio do Parlamento (algo sem precedentes na Europa pós-1945, que chocou o mundo, mas que foi apoiado pelos governos de Washington, Paris, Berlim e Londres) e, finalmente, a manipulação e roubo nas eleições de 1996 na Rússia, que foram ganhas pelo candidato do Partido Comunista, Gennady Zyuganov.
A destruição da URSS tornou milhões de pessoas pobres, destruiu a indústria soviética, desarticulou completamente a complexa rede científica do país, destruiu a saúde e educação públicas, e levou à eclosão de guerras civis em várias repúblicas, muitas das quais caíram nas mãos de déspotas e ditadores. É verdade que havia uma insatisfação evidente entre uma grande parte da população soviética, que teve suas raízes nos anos de repressão estalinista e que foi agravada pelo controle obsessivo da população, e ainda mais, pela desorganização progressiva e falta de alimentos e suprimentos que caracterizou os últimos anos sob Gorbachev, mas a dissolução piorou todos os males. Essa parte da população estava predisposta a acreditar nas mentiras que percorriam a URSS, muitas vezes recolhidas na comunicação ocidental.
Nas análises e na historiografia que se foi construindo nos últimos vinte anos tem sido um lugar-comum questionar sobre as razões para a falta de resposta do povo soviético perante a dissolução da URSS. Vinte anos depois, a visão de conjunto é mais clara: o aprofundamento da crise paralisou grande parte das energias do país, as disputas nacionalistas colocaram o debate nas supostas vantagens da dissolução da União (todas as repúblicas, incluindo a russa, ou pelo menos os seus dirigentes, proclamavam que o resto se aproveitava dos seus recursos, fossem quais fossem, agrícolas ou mineiros, industriais ou de serviços, e que a separação iria superar a crise e o início de uma nova prosperidade), e as ambições políticas de muitos dirigentes (novos ou velhos) passava pela criação de novos centros de poder, novas repúblicas. Além disso, ninguém poderia organizar a resistência, porque as principais lideranças do Estado encabeçavam a operação de desmantelamento, de forma activa como Yeltsin, ou passiva, como Gorbachev, e o Partido Comunista tinha sido declarado ilegal e as suas organizações desmanteladas. O PCUS tinha sido confundido durante anos com a estrutura do Estado, e essa condição dava-lhe força, mas também fraqueza: quando foi proibido, os seus milhões de militantes ficaram órfãos, sem iniciativa, muitos deles expectantes e impotentes diante das mudanças rápidas que sucediam.
No passado, esses líderes oportunistas (como Yeltsin, Aliev, Nazarbayev, o presidente do Cazaquistão desde o desaparecimento da URSS, cuja ditadura acaba de proibir a actividade do novo Partido Comunista do Cazaquistão) tiveram que agir dentro do âmbito de um partido único na URSS e sob leis e uma Constituição que os obrigou a desenvolver uma política favorável aos interesses populares. O colapso da União mostrou o seu verdadeiro carácter, tornando-os protagonistas da pilhagem de propriedade pública, e da criação de regimes repressivos, ditatoriais e populistas… que receberam imediata compreensão dos países capitalistas ocidentais. Numa sinistra ironia, os dirigentes que protagonizaram o maior roubo da história eram apresentados pela imprensa russa e ocidental como “progressistas” e “renovadores”, enquanto aqueles que tentavam salvar a URSS e manter as conquistas sociais da população eram apresentadas como “conservadores” e “imobilistas”. Esses “progressistas” iriam lançar-se depois num saque frenético da propriedade pública, roubo às mãos cheias, porque os “libertadores” e “progressistas” iam ao leme da maior fraude na história e de um massacre de dimensões assustadoras, não só pelo bombardeamento do Parlamento, mas também porque essa operação de engenharia social, a privatização selvagem, causou a morte de milhões de pessoas.
Um aspecto secundário, mas relevante devido às suas implicações para o futuro, é a questão de quem ganhou com o desaparecimento da URSS. Desde logo, não foi o povo soviético, que, vinte anos depois, continua abaixo dos níveis de vida a que ele tinha chegado na URSS. Três exemplos bastam: a Rússia tinha 150 milhões de habitantes, e agora só tem 142; a Lituânia, que contava em 1991, com 3.700.000 habitantes, tem agora apenas dois milhões e meio; a Ucrânia, que atingiu os 50 milhões, hoje tem apenas 45. Além dos milhões de mortes, a expectativa de vida caiu em todas as repúblicas. O desaparecimento da URSS foi uma catástrofe para a população, que caiu nas mãos de criminosos, de sátrapas, de ladrões, muitos deles agora convertidos em “respeitáveis empresários e políticos.” Os Estados Unidos apressaram-se a declarar vitória, e tudo parecia indicar que assim tinha sido: o seu principal adversário ideológico e estratégico tinha deixado de existir. Mas, se Washington ganhou então, a sua desastrosa gestão de um mundo unipolar deu início á sua própria crise: seu declínio, embora relativo, é um facto, e sua retirada militar do mundo vai aumentar, apesar dos desejos de seus governantes.
Vinte anos depois, a União Soviética permanece na memória dos cidadãos, tanto entre os veteranos, como entre as gerações mais jovens. Olga Onóiko, uma jovem escritora de 26 anos, que ganhou o prestígio prémio Debut, disse (com uma ingenuidade que também revela a consciência de uma grande perda) alguns meses atrás: ” A União Soviética aparece na minha mente como um grande e belo país, ensolarado e festivo, o país do meu sonho de infância, com um céu azul claro e acenando bandeiras vermelhas.” Enquanto isso, Irina Antonova, uma mulher excepcional de 89 anos, directora em exercício do famoso Museu Pushkin, em Moscovo, acrescentava: “A época de Estaline foi um momento difícil para a cultura e para o país. Mas também vi como muito depois se perdeu um grande país de uma maneira involuntária e desnecessária. […] Às vezes digo a mim mesma que só quero ir para um outro mundo depois de ter voltado a ver os ramos verdes de algo novo, algo realmente novo. Um Picasso que transforme essa realidade a partir da arte, da beleza e da emoção humana. Mas a cultura de massas tem devorado tudo. Baixou o nosso nível. Apesar de ir passar. É apenas um mau momento. E sobreviveremos a ele.”

Rebelión publicou este artigo com a permissão do autor através de uma licença da Creative Commons, http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/2.5/es/ respeitando a sua liberdade de publicar em outros lugares.
Tradução: Guilherme Coelho

quinta-feira, 15 de setembro de 2011

Turquia, na vanguarda da Primavera Árabe


Pepe Escobar, Asia Times Online, Tradução: Vila Vudu

Finalmente. Cristalinamente claro. Alguém, afinal, disse o que todo mundo – exceto Washington e Telavive – sabe no fundo do coração coletivo mundial: o reconhecimento de um estado palestino “não é escolha, é obrigação”.
E foi prodigioso que o homem que o disse tenha sido o primeiro-ministro da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, no Cairo, para a Liga Árabe, à frente de todos os ministros árabes de Relações Exteriores, com virtualmente todo o mundo árabe de olhos colados às telas de televisão conectadas por satélite, e cada palavra de Erdogan sob cerrado escrutínio.
O atual tour de Erdogan pela Primavera Árabe – como noticiou a imprensa turca – passando por Egito, Tunísia e Líbia, já o havia catapultado ao status de equivalente geopolítico de cruza de Bono, do U2, com o argentino Lionel Messi, superstar da equipe de futebol do Barcelona.
Erdogan teve recepção de estrela do futebol/rock no aeroporto do Cairo – completada com faixas e “Erdogan Herói” brandidas pela Fraternidade Muçulmana. Até falou em árabe à multidão (de “Saúdo a juventude e o povo do Egito. Como vão vocês?” até “Que a paz esteja com vocês”).
Erdogan repetiu várias vezes que “Egito e Turquia andam de mãos dadas”. Mas o subtexto foi ainda mais incendiário. No momento em que dois bons ex-amigos de Israel, Egito e Turquia andam de mãos dadas, Israel foi deixada isolada, de cara para um muro. Não poderia haver desenvolvimento mais radicalmente redemarcador em todo o Levante – coisa que jamais se viu desde os acordos de paz de Camp David, entre Israel e o Egito, em 1978.
Divulgador militante modelo
O tour de Erdogan é lição magistral de realpolitik. Está posicionando a Turquia como vanguarda do apoio à causa dos palestinos. Também está posicionando a Turquia no núcleo duro da Primavera Árabe – como apoiador e modelo inspiracional, apesar de, até agora, ainda não ter havido revolução às veras. Está enfatizando uma sólida unidade turco-árabe – planejando, por exemplo, um conselho de cooperação estratégica entre Egito e Turquia.
Além do mais, a coisa toda faz bom sentido em termos de business. A caravana de Erdogan inclui seis ministros e quase 200 empresários turcos – interessados em investir pesadamente em todo o norte da África. No Egito, talvez não igualem os bilhões de dólares já prometidos pela Casa de Saud à junta militar liderada pelo marechal-do-ar Mohammed Tantawi. Mas em 2010, o comércio turco com o Oriente Médio e Norte da África já era de quase $30 bilhões, 27% das exportações da Turquia. Mais de 250 empresas turcas já investiram $1,5 bilhão no Egito.
Crucialmente importante, Erdogan disse ao canal Dream da televisão egípcia: “Não desconfiem do secularismo. Espero que haja estado secular no Egito.” Erdogan referia-se sutilmente à constituição secular da Turquia; ao mesmo tempo, cuidadosamente, lembrava aos egípcios que o secularismo é compatível com o Islã.
O atual modelo turco é enormemente popular na rua egípcia, com partido islâmico moderado no poder (o partido Justiça e Desenvolvimento, AKP); constituição secular; militares – embora fortes – na caserna; e florescente boom econômico (a Turquia foi a economia que mais cresceu, em todo o mundo, no primeiro semestre de 2001).[1]
Esse modelo não é exatamente o que deseja a reacionária Casa de Saud. Prefeririam governo pesadamente islâmico controlado pelas facções mais conservadoras da Fraternidade Muçulmana. Pior: no que tenha a ver com a Líbia, a Casa de Saud adoraria ter lá um emirado amigo, ou, pelo menos, governo salpicado com islâmicos fundamentalistas.
Erdogan também destacou que a “agressividade” de Israel “é ameaça ao futuro do povo israelense”. É música aos ouvidos da rua árabe. O presidente palestino Mahmoud Abbas encontrou-se com Erdogan no Cairo – e confirmou que levará adiante o pedido para que a Palestina seja reconhecida como estado pelo Conselho de Segurança da ONU ainda nesse mês de setembro.
A Palestina será definitivamente aceita como estado membro sem direito a voto pelo plenário da Assembleia Geral da ONU. O problema é o Conselho de Segurança extremamente não representativo – ao qual compete sancionar o direito dos membros plenos, que votam. Claro que Washington vetará. A União Europeia fraturada, fiel ao próprio caráter, ainda não decidiu se votará como bloco. Há forte possibilidade de que Grã-Bretanha e França também vetem o pedido dos palestinos ao Conselho de Segurança.
Mas mesmo que só alcancem o prêmio de consolação de tornar-se estado membro sem voto, ainda assim os palestinos alcançarão uma vitória moral – alinhada com o que deseja a opinião pública mundial. Como estado membro, e mesmo sem o direito a voto, a Palestina poderá tornar-se estado membro da Corte Criminal Internacional, indispensável para processar Israel até o Juízo Final, por violação serial da legislação internacional.
Seguir o chefe
O jogo da Turquia vai muito além de algum ‘neo-otomanismo’ – ou nostalgia de reviver dias de superpotência dos séculos 16 e 17. É desenvolvimento natural da política de “zero problemas com nossos vizinhos” do ministro Ahmet Davutoglu das Relações Exteriores – que se move para criar vínculos mais profundos com a maioria desses vizinhos e consolidar o que o próprio Davutoglu define como destino estratégico da Turquia[2].
A Turquia, há alguns anos, abandonou decididamente uma deriva isolacionista do nacionalismo turco. O país parece ter afinal superado o trauma associado ao sonho de unir-se à União Europeia; para todas as finalidades práticas, o sonho foi destruído por França e Alemanha.
Quanto à aliança Israel-Turquia, de fato afastou o mundo árabe e confinou a Turquia a um papel passivo, de marginal sem qualquer ação efetiva no Oriente Médio. Já não é assim. Erdogan pode agora enviar várias mensagens simultâneas a Israel, EUA, União Europeia, a um sortido de líderes árabes e, sobretudo, diretamente à rua árabe.
Davutoglu tem sido relativamente magnânimo em relação a Israel, dizendo que “está sem contato com a região e incapaz de ver as mudanças que estão acontecendo, o que impossibilita que [Israel] mantenha relações saudáveis com os vizinhos”.
Poderia ter acrescentado que com ‘amigos’ como aqueles – Benjamin Netanyahu, como primeiro-ministro; o ex-leão-de-chácara na Moldávia Avigdor Lieberman como ministro de Relações Exteriores; colonos judeus fanáticos ditando políticas – Israel não precisa de inimigos ou, então, que produz inimigos em massa. Foi o próprio governo de Israel que acelerou a aproximação entre Turquia e Egito – o que está deixando Israel totalmente isolada.
O toque de gênio de todo o processo é que Erdogan representa uma democracia em país de maioria muçulmana, fortemente apoiado tanto pelos palestinos quando pelos verdadeiramente pró-democracia na Primavera Árabe. Assim se gera uma conexão direta entre a tragédia dos palestinos e o espírito da Primavera Árabe (que nada tem a ver, vale destacar, com a Organização do Tratado do Atlântico Norte, OTAN, bombardear a Líbia, ou com uma junta militar governar o Egito).
Será crucialmente decisivo observar o que acontecerá com o partido AKP, de raízes islâmicas, de Erdogan. É praticamente certo que, nas próximas eleições no Egito, a Fraternidade Muçulmana aparecerá jabeando. É também praticamente certo que a Fraternidade pressionará na direção de relacionamento minimalista com Israel, inclusive com revisão completa dos acordos de Camp David. Teoricamente, a Turquia apoiará tudo isso.
E há ainda o front líbio. No primeiro discurso em Trípoli, o presidente do sinistro Conselho Nacional de Transição, Mustafa Abdel Jailil, destacou que a lei islâmica, Xaria, seria a principal fonte da legislação. Mas acrescentou, rápido: “Não aceitaremos nenhuma ideologia extremista, à esquerda ou à direita. Somos povo muçulmano, por um Islã moderado.”
Não há qualquer sinal ainda, sequer, de que o Conselho de Transição consiga manter a integridade do país, para nem falar de ter condições para promover “Islã moderado”. Os abutres (estrangeiros) continuam rondando. O secretário-geral da OTAN, Anders Fogh Rasmussen, andou avisando que a Líbia corre o risco de cair em mãos de extremistas islâmicos, que podem “tentar explorar” o atual vácuo de poder. Não se sabe com clareza que papel terá a Turquia – membro chave da OTAN – numa OTAN plenamente implantada na Líbia.
Dores heavy metal do parto
E tudo isso, enquanto as petromonarquias do Golfo Persa – horrorizada com a Primavera Árabe – propuseram ajuda direta anual de $2 bilhões à Jordânia, que assim se integraria ao Conselho de Cooperação do Golfo, também conhecido como Clube Contrarrevolucionário do Golfo. Como clube monarquista, o CCG quer a Jordânia e o Marrocos como novos membros. Mas a cereja do bolo seria, isso sim, uma Líbia monárquica.
Em trilha paralela, os contrarrevolucionários foram forçados pela Turquia a garantir – pelo menos verbalmente, apoio à Palestina. Até o rei Abdullah da Jordânia, sólido aliado dos EUA e único “amigo” de Israel que sobrou no Oriente Médio, já disse que “os futuros palestinos são mais fortes que Israel é hoje”.
Ora, Israel procurou por isso – depois da invasão do Líbano em 2006, do massacre de Gaza, em 2008 e do ataque à flotilha turca em 2010. Em termos de opinião púbica, Israel está frita – e até a contrarrevolução árabe teve de perceber.
Inclui-se aí a Casa de Saud. Ninguém menos que o ex-supremo da inteligência saudita, o príncipe Turki al-Faisal, publicou coluna no New York Times em que diz claramente, “líderes sauditas serão forçadas por pressões domésticas e regionais a adotar política exterior muito mais independente e assertiva”[3] se os EUA vetarem o pedido dos palestinos no Conselho de Segurança.
O príncipe Turki também destacou que tudo deve evoluir em torno de uma solução de dois estados baseado nas fronteiras de antes de 1967 – o que todos os grãos de areia do Sinai sabem que Israel jamais aceitará.
No caso de os EUA vetarem, o príncipe Turki ameaçou que a Arábia Saudita “fará oposição ao governo do primeiro-ministro Nuri al-Maliki no Iraque” e “se separará de Washington no Afeganistão e também no Iêmen”.
Imaginem, então, a Casa de Saud financiando prodigamente uma dupla guerra de guerrilhas por todo o “arco de instabilidade” do Pentágono – sunitas contra xiitas no Iraque, mais os já super hiper turbinados Talibã no Afeganistão –, ao mesmo tempo em que fazem lobby a favor de governos islâmicos no Egito e na Turquia; e, isso, enquanto Egito e Turquia, por sua vez, unem-se plenamente contra uma isolada e furiosa Israel. É. São essas as tais “dores do parto do novo Oriente Médio”.
NOTAS
           [1] “Robust private sector gives Turkey fastest H1 growth worldwide” Zaman, 12/9/201.
[2] Ver “Turkey: the sultans of swing”, Pepe Escobar, 7/4/2011, Asia Times Online, em inglês, e “Fazer andar outra vez o fluxo da história”, Ahmet Davutoglu, Al-Jazeera, 16/3/2011, em portuguê [NTs]

[3] 12/9/2011, New York Time.

sábado, 3 de setembro de 2011

Como entender a Rússia de hoje


Adelto Gonçalves (*)no PORTAL PRAVDA
                                                          

I
Como entender a Rússia de hoje. 15424.jpegMOSCOU - Quem tem a cabeça no século XX e ainda pensa ideologicamente nunca vai entender a Rússia de hoje. O poder hoje no país é exercido e disputado por grupos políticos que defendem interesses econômicos e não estão interessados nas velhas divisões marxistas de classe. O que esses grupos mais querem, além de acumular altos lucros, é dinamizar a economia da Rússia para afastar da população mais carente certa nostalgia dos tempos soviéticos, quando, acredita-se, o país crescia mais devido à competição com os Estados Unidos, motivada pela Guerra Fria. 
            Hoje, em Moscou, o que mais preocupa as autoridades é o futuro daquela que é a maior cidade da Europa, com mais de 10 milhões de habitantes. O prefeito de Moscou, Sergei Sobyanin, e o governador da região de Moscou, Boris Gromov, andam às voltas com planos que prevêem a construção de um distrito financeiro internacional no distrito Oeste da cidade. Um desses projetos estabelece uma expansão de 144 mil hectares de terras na periferia de Moscou nos próximos 20 anos.
            De acordo com esse plano de expansão dos limites da cidade, que está hoje nas mesas de Sobyanin e Gromov e do presidente Dimitri Medvedev, Moscou cresceria 2,4 vezes, cobrindo uma área de 251 mil hectares, em vez dos 107 mil atuais. Mas, mesmo sem o plano, a cidade já cresce a um ritmo intenso, pois onde quer que se vá vê-se prédios em construção tanto para fins residenciais como comerciais. Até porque mais e mais gente vem se instalando em áreas periféricas de Moscou, embora a maioria procure e encontre emprego no centro da cidade.
            Duas áreas estão na mira dos planejadores: o distrito de Rublyovo-Arkhangeskoye, no Oeste da cidade, o lugar favorito da nova classe média alta, e Varshavskoye Shosse e Kievskoye Shosse, no Sudoeste. São áreas menos povoadas. Mas Rublyovo-Arkhangeskoye aparece como o lugar mais viável para se tornar esse centro financeiro internacional projetado para Moscou. Segundo os planos, deverá abrigar pelo menos dois milhões de moradores e oferecer emprego para pelo menos 10% da força trabalhadora de Moscou.
            Financiar o projeto é o que mais preocupa as autoridades, mas, seja como for, boa parte do financiamento deve sair dos cofres do governo. Para tanto, pensa-se que o governo pode vender os escritórios que hoje ocupa no centro de Moscou, nos arredores da Praça Vermelha, onde está o Kremlin, com o objetivo de torná-los hotéis de três, quatro ou cinco estrelas.
            O problema é que, segundo os especialistas, Moscou dispõe da pior infraestrutura entre as grandes cidades dos países do Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). De qualquer modo, a área de Rublyovo-Arkhangeskoye já oferece conexões com o centro de Moscou, embora o metrô moscovita seja muito antigo, se comparado, por exemplo, com o de São Paulo.  É barulhento e extremamente abafado nos dias de verão. Além disso, precisa passar por reformas urgentes, já que, em muitas estações, as escadas rolantes não funcionam e as sinalizações em russo transformam o turista em barata tonta. Sem contar que, em algumas estações, as catracas são bem antigas.
                                                            II
            Para se tornar uma capital turística com um centro financeiro internacional, Moscou precisa também domar a ânsia desenfreada por dinheiro de seus motoristas de táxi. Não há turista que não saia do aeroporto Domododevo com má impressão dos taxistas. Este articulista, em seu primeiro dia de Moscou, teve de pagar 500 rublos (30 reais) por uma corrida de menos de cinco minutos, que, no Brasil, não sairia por mais de 7 reais, da estação de metrô Yugo-Zapadnaya ao Hotel Astrus, na Leninskiy Prospect.
            Pior ocorreu com um casal de franceses que se perdeu de seu grupo de viagem e ficou um bom tempo no aeroporto Domododevo sem saber o que fazer. Sem nenhum contato na cidade, sem reserva em hotel e sem falar uma palavra de russo, o casal passou pela pior experiência que Moscou pode oferecer: caiu nas mãos da máfia de taxistas.
            Depois de 14 horas no aeroporto tentando obter informações, os franceses conseguiram dormir num hotel nas proximidades do Domododevo. Mas para levá-los do aeroporto ao hotel o taxista cobrou-lhes 5 mil rublos (321 reais). E, quando o francês recusou-se a pagar, teve de entrar em luta corporal com o taxista, o que lhe valeu escoriações e arranhões nos braços. A situação dos franceses só melhorou no dia seguinte quando eles conheceram, no balcão da Air Moldova, no aeroporto, o jornalista Olaf Koens, que fala francês.  Koens contou a triste história do casal francês numa crônica publicada na edição de 15-18 de julho de 2011 do The Moscow News (pág. 15).
            De qualquer modo, se os franceses soubessem falar pelo menos inglês, talvez tivessem tido melhor sorte. Tanto no aeroporto Domododevo como nas principais estações de trem de Moscou - são nove -, há postos de informação com atendentes que falam inglês. Basta dizer o destino a que se pretende ir para que a atendente informe antecipadamente o valor da viagem e chame um taxista autorizado. De preferência, deve-se pedir à atendente que escreva num papel o valor em rublos da viagem. Depois, é só exibi-lo ao taxista. É melhor tomar essa precaução porque pegar um táxi na rua é correr o risco de sofrer um constrangimento igual ao que passou o casal de franceses.
            Até porque, em função de dificuldades financeiras, há muitas pessoas que usam o próprio automóvel como táxi. E não trabalham com taxímetro, cobrando de acordo com a cara do freguês. Em dias de calor, é comum ver-se taxistas trabalhando muito à vontade: de bermudas e chinelos. Muitos, inclusive, dispensam o uso do cinto de segurança. E, ao que parece, não correm riscos de sofrer multa por isso.
                                                            III
            Olhando sob uma perspectiva macro para a Rússia pós-soviética, percebe-se que o país ainda carrega um pesado fardo histórico deixado pelo antigo regime - burocracia, corrupção e fragilidade das instituições, além de certa vulnerabilidade econômica. Além disso, há quem veja na era Putin-Medvedev um retrocesso em relação às reformas liberais empreendidas por Boris Yeltsin a partir de julho de 1991, quando o presidente assinou a lei de privatização de moradias, garantindo a propriedade àqueles que já moravam no mesmo apartamento desde os anos 70.
            De início, houve uma explosão nos preços dos imóveis e muita especulação. Máfias atuaram nesse mercado, forçando muitos moradores desfavorecidos a deixar suas casas. Mas a situação hoje parece normalizada, ainda que os prédios de apartamentos residenciais de áreas mais próximas ao centro Moscou, que foram construídos dentro de áreas verdes, mostrem-se, na maioria, em situação crítica, exibindo janelas em condições precárias. Sem contar o espetáculo um tanto deprimente dos fios que passam de um prédio para outro.
            Na época stalinista, os locais e prédios mais próximos do centro de Moscou eram os de maior prestígio e mais valorizados, mas hoje já não é assim. Casas que mais parecem pequenos castelos começaram a ser levantadas em locais mais distantes do centro, inclusive, em áreas próximas do aeroporto Domodedovo.
                                                            IV
            Hoje, quem manda na Rússia são alguns oligarcas-burocratas que se deram bem com as reformas de Yeltsin: dominam os negócios privados com o beneplácito do poder público. Há cada vez maior conexão entre a esfera dos negócios privados e a esfera política. Em outras palavras: há uma interpenetração cada vez mais intensa entre o capital e o Estado. Aqueles que usufruem desses negócios, geralmente, são os proprietários dos carrões modernos que se vêem estacionados nas avenidas do centro de Moscou. O partido Rússia Unida (Yedinaya Rossiya), que domina o Parlamento, tem apoiado algumas intervenções do Estado sobre a economia.
            O que se discute hoje nas ruas é a iniciativa do primeiro-ministro Vladimir Putin, que foi presidente de 2000 a 2008, de articular a formação de um bloco de livre comércio entre Rússia, Belarus e Cazaquistão, que muitos já começam a chamar de "mini-União Soviética". Desde o dia 1º de julho, já não há maiores exigências alfandegárias nas fronteiras entre esses países: os cidadãos ainda têm de exibir seus passaportes, mas já não pagam taxas aduaneiras para passar com mercadorias.
            Desde janeiro, trabalhadores e empresas de serviços podem atuar indiferentemente nos três países. Mas no Cazaquistão e em Belarus já surgiram protestos contra essa zona de livre comércio: os preços da gasolina são diferentes nos três países e começou a haver uma entrada excessiva de carros de segunda mão.
            Há planos para a formação de uma União Econômica Euroasiática, que poderia começar a funcionar no início de 2013.  Seria, na verdade, uma restauração do antigo espaço soviético, mas dentro de moldes capitalistas. Não está em discussão a restauração da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), mas maior inter-relação entre as nações do antigo bloco.
            O Cazaquistão, por exemplo, dispõe de três milhões de metros cúbicos de reservas de gás, a que a Rússia poderia ter maior acesso, desde que desse uma contrapartida, permitindo que os empresários daquele país colocassem seus produtos no seu mercado interno. Como o país tem crescido nos últimos anos, a popularidade de Putin continua em alta e não será difícil que venha a suceder Medvedev na presidência. Nesse caso, a formação desse bloco estaria assegurada.
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br