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quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Golpe na Venezuela


Venezuela é vítima de uma nova tática intervencionista da direita


Vermelho entrevistou o secretário de Relações Internacionais do PCdoB, Ricardo Alemão Abreu, para entender a conjuntura política da Venezuela. Segundo ele, há um novo padrão de intervenção da direita na América Latina e o que está acontecendo no país é a aplicação desta tática de desestabilização, uma vez que a oposição não tem força política suficiente para enfrentar os governos de esquerda de forma democrática. Leia a seguir a íntegra da entrevista.

Por Théa Rodrigues, da Redação do Vermelho


Manifestação a favor do governo de Nicolás Maduro em Caracas. Foto: Alba.

Como avalia o momento pelo qual a Venezuela está passando atualmente?
Há um novo padrão de intervenção da direita na América Latina, que diz defender a democracia e a liberdade, mas que na verdade sempre foi antidemocrática e autoritária. A direita vem se apropriando dos discursos da esquerda, para implantar a dúvida de quem são os reais democratas e quem são os ditadores.

A Venezuela é um caso mais flagrante disso atualmente, mas essa mesma tática está sendo usada na Argentina e no Brasil. Trata-se da tentativa de criar um ambiente de desestabilização com o desabastecimento, que gera uma guerra econômica e o caos que força uma crise cambial. Por sua vez, isso provoca uma violência política que dá a sensação de que o governo não tem controle da situação e de que é culpado pela situação caótica.

Como os opositores conseguem o apoio popular utilizando essa tática?
Na Venezuela há uma parcela da população que ora vota no chavismo, ora vota contra. Esse grupo não cai no discurso fácil de que o presidente Nicolás Maduro é culpado por tudo, mas pode não votar novamente nele por conta da situação do país. Com isso, os opositores reforçam sua porcentagem de eleitores (cerca de um terço dos votantes) e disputam outra franja de apoio popular. Por meio da desestabilização do governo, o golpe de Estado se torna mais palpável para esses grupos de ultradireita, que utilizam quaisquer artifícios para manipular informações.

A manipulação e a desestabilização de governo rumo a um golpe de Estado são uma resposta à força da integração latino-americana?
Claro. À medida que temos a democracia e liberdade para o povo na América Latina, surgem ainda mais alternativas, mais à esquerda, progressistas e até revolucionárias, que sempre foram sufocadas ou por golpes militares, ou por invasão dos Estados Unidos, ou por apoio às ditaduras. O golpe militar de 1964 no Brasil é um exemplo, assim como o golpe que derrubou Salvador Allende no Chile, na década de 1970.

Tivemos, a partir do final dos anos 1990, um avanço no processo de democratização latino-americano e, consequentemente, a vitória de governos mais progressistas e até de forças revolucionárias que passaram a democratizar ainda mais esses países – a Venezuela teve 15 eleições no período de 10 anos. Por tanto, o processo é contrário ao que dizem dos governos de esquerda: que são ditaduras.

O governo de Cristina Kirchner democratizou os meios de comunicação na Argentina, o mesmo aconteceu no Uruguai e no Equador. Quer dizer, quanto mais os governos de esquerda avançam em reformas democráticas, os grupos de direita opositores ficam sem alternativa e buscam uma saída fascista.

Por isso o presidente Nicolás Maduro considera que a conjuntura na Venezuela é uma consequência da ação de grupos fascistas?
A oposição está mudando de tática e de líder na Venezuela. Veja bem, Henrique Capriles não dá mais conta de fazer oposição ao governo em eleições. Já perdeu para o Hugo Chávez e, posteriormente, para Nicolás Maduro. Nas eleições municipais de dezembro passado, eles achavam que teriam ao menos um empate técnico com o partido governista, mas as medidas que Maduro tomou contra a guerra econômica foram muito eficientes e, com isso, o mandatário teve a confirmação do apoio popular.

Então precisa ser alguém mais radical, como é o caso de Leopoldo López. Tanto que, anteriormente, ele e Capriles faziam parte da mesma coligação contra o chavismo e agora estão divididos. Ou seja, pelas vias democráticas a oposição não tem mais espaço. A cena golpista fica impaciente com os governos que vão se reelegendo e que dão continuidade e aprofundamento aos programas progressistas. A partir disto, a direita passa a fortalecer uma alternativa neofascista, de golpe de Estado, de ditadura e de violência.

Para ter uma ideia, em 2002, López liderou a agressão armada à embaixada de Cuba e hoje prega um discurso pacífico. Ele, na época, já organizava esses grupos neofascistas de ultradireita. O opositor continua sendo o mesmo, mas agora utiliza essa “fachada” de defensor da paz, da democracia e de José Martí. Isso é tudo jogo de cena.

E assim Leopoldo López ganha o apoio popular...
Sim, mas essa campanha denominada “A Saída” que ele comanda é ditatorial e acusa o governo que construiu um Estado com base na democracia popular, que é o conteúdo real da Revolução Bolivariana, de ser uma ditadura.

Podemos afirmar que há uma tentativa de golpe de Estado na Venezuela, tal e qual o presidente Nicolás Maduro vem denunciando?
Sim, há uma tentativa de golpe, mais complexa, mais sofisticada e que utiliza o discurso da democracia e da liberdade, mas com o conteúdo de um golpe fascista. Essa inversão de sinais e essa apropriação dos termos de esquerda promove uma confusão ao desconstruir a imagem da real democracia. Há uma falsificação que tenta enganar o povo para a saída golpista.

Qual o papel dos Estados Unidos no que está acontecendo na Venezuela?
Os Estados Unidos e as direitas locais não suportariam mais 10 anos de governos progressistas e anti-imperialistas na América Latina. Como disse anteriormente, existe hoje um novo padrão de intervenção política do imperialismo, que prepara a guerra midiática, a guerra econômica, o terror psicológico e a falsificação.

Gene Sharp, um escritor que possui ligações com a CIA, escreveu um livro no qual ele levanta 198 estratégias de desestabilização de governo. Tudo o que está sendo feito na Venezuela está nesse “manual”. Isso foi aplicado no Irã em 1953 e no Chile em 1970.

O opositor Leopoldo López tem muita ligação com os EUA. O próprio fato de o secretário de Estado norte-americano, John Kerry, ter se pronunciado contra a prisão de López pode ser uma demonstração da ligação entre eles.

Qual é a nossa tarefa para prevenir essa “infiltração” fascista?
Nós precisamos defender a democracia e os governos eleitos de forma legítima e denunciar essa tentativa de “fascistização” da América Latina. É importante agir agora para desmoralizar essa tática e essa estratégia da direita para implantar o golpe de Estado a qualquer custo.

Na Venezuela é importante aproveitar que a oposição não está totalmente unida nisso e desmascarar esse tipo de discurso fascista para evitar que a onda golpista cresça. Não acredito que possa haver um golpe na Venezuela manhã, mas pode ser criada uma situação favorável a isso. Temos que nos preparar para uma nova fase de contraofensiva.

Qual o papel da mídia na propagação desse discurso “falsificado”?
As redes sociais repercutem o que a grande mídia diz. Manipulam imagens e divulgam sempre aquilo que é lhes é favorável. A multiplicação de um discurso que parece a favor do povo, mas que tem por trás grupos de extrema direita merece atenção especial.

Há algum perigo para a integração latino-americana?
Os três países fundamentais para a integração latino-americana são a Venezuela, o Brasil e a Argentina. Para quebrar a integração hoje, é preciso quebrar esses três países. Isso abalaria o todo o processo de avanço consolidado com o Mercosul, Unasul, Celac, Alba e outros.

Por isso, hoje, a direita intensifica sua campanha nesses três países. O plano era derrotar o Polo Patriótico, em dezembro passado, na Venezuela – o que não aconteceu – para criar uma alternativa para o próximo referendo revogatório daqui a dois anos. Também querem derrotar a presidenta Dilma Rousseff nas presidenciais deste ano e a o partido de Cristina Kirchner na Argentina, em 2015.

É possível, portanto, encontrar semelhanças nos acontecimentos recentes nesses países no último ano. Há uma guerra midiática, uma guerra política e econômica que acontece em intensidades diferentes contra esses três governos. Os opositores apostam que o caos e que um governo cada vez mais desprestigiado perca o apoio popular.

Como isso pode repercutir no Brasil?
No Brasil não será diferente, eles vão tentar ganhar uma parte do povo que vota na presidenta Dilma Rousseff utilizando o falso argumento de que a governante é incapaz, que a economia está um caos, que a política social está esgotada.

Aqui no Brasil, o discurso da direita em 1964 era “democracia e liberdade” com a chamada “revolução democrática”. Contudo, o governo deposto de Jango era, até então, o mais avançado e o que tinha mais compromisso com a luta dos trabalhadores, com a democratização e com a soberania nacional. 

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

‘Dilma aprofunda desregulamentação, liberalização e desnacionalização’


 VALÉRIA NADER, DA REDAÇÃO   do CORREIO DA CIDADANIA




“Os traidores sempre acabam por pagar por sua traição, e chega o dia em que o traidor se torna odioso mesmo para aquele que se beneficia da traição”. É com esta frase, atribuída a Victor Hugo, que o economista e professor titular de Economia da UFRJ, Reinaldo Gonçalves,encerra entrevista que concedeu ao Correio da Cidadania, para avaliar a atual crise econômica que arrasta países emergentes e as orientações econômicas e políticas em vigor nos anos petistas, em geral, e no governo Dilma, em particular.

Em busca de situar o Brasil em meio à grave crise econômica que as nações em desenvolvimento enfrentam em 2014, Gonçalves destaca que, há mais de dois anos, já havia previsto que onúmero de países atingidos pela crise econômica de 2008 aumentaria no mundo subdesenvolvido. “As locomotivas voltam para os trilhos e o vagão de 3ª classe chamado Brasil descarrila mais uma vez”.

Quanto às causas da tormenta, estas se situam muito além dos equívocos de política econômica tão ao gosto das citações da mídia corporativa e neoliberal, em coro com os ditames do FMI e Banco Mundial. “No Brasil, há o problema estrutural que se chama Modelo Liberal Periférico (MLP). Esse modelo híbrido combina o que tem de pior do liberalismo e da periferia e tem três conjuntos de características marcantes: liberalização, privatização e desregulação; subordinação e vulnerabilidade externa estrutural; e dominância do capital financeiro”, ressalta Gonçalves.

A atuação do governo dos trabalhadores para aquela que deveria ser um de seus alvos primordiais, a distribuição de renda, não passa, ademais, de algo “raso, superficial e circunstancial”, visto não incidir na distribuição da renda funcional (salários versus renda do capital) e da riqueza. “Depois de 11 anos de governo, há a falência do PT, que tem sido absolutamente incapaz de realizar mudanças estruturais no país. Só houve a consolidação do Modelo Liberal Periférico”.

Finalmente, em face do atual arranjo político e eleitoral, considerados governo e oposição, não são alvissareiras as expectativas de Gonçalves – o governo, enfraquecido, deverá no máximo proclamar um discurso eleitoral mais à esquerda, para, após eventual vitória, fazer ainda mais ajustes sociais regressivos e concessões aos setores dominantes.

A seguir, a entrevista completa.

Correio da Cidadania: O ano de 2014 começa, ao que parece, selando o fim da bonança para os emergentes. Trata-se de uma crise anunciada?

Reinaldo Gonçalves: É a queda do mito de que vagões podem puxar locomotivas. Esse mito deveu-se, principalmente, a uma visão otimista a respeito do crescimento da China. E a maior divulgação do mito deveu-se a visão equivocada em relação a outros grandes países em desenvolvimento (Índia, Rússia, Brasil, África do Sul etc.), que têm economias estruturalmente frágeis.

Em dezembro de 2011, escrevi um artigo com o título “Crise econômica: eles hoje, nós amanhã” (revista CIÊNCIA HOJE, nº.: 289, janeiro/fevereiro de 2012). Há mais de dois anos a conclusão era que havia risco crescente de que o número de países atingidos pela crise econômica de 2008 aumentasse no mundo subdesenvolvido. O cenário mais provável era que os Estados Unidos e os principais países desenvolvidos da Europa sairiam da crise no médio prazo. Por outro lado, o argumento era que o Brasil seria atingido pela crise caso não ocorressem mudanças significativas nas estratégias e nas políticas. O cenário mais provável no médio prazo era, por um lado, os Estados Unidos e países europeus importantes saírem da crise. E, por outro, o Brasil, país marcado por enormes fragilidades e vulnerabilidades estruturais, afundaria em crises de todos os tipos.

As locomotivas voltam para os trilhos e o vagão de 3ª classe chamado Brasil descarrila mais uma vez. Atualmente, o que temos é exatamente essa situação.

Correio da Cidadania: A mídia corporativa e neoliberal, em coro com os ditames do FMI e Banco Mundial, está sempre a salientar para o público leigo a inépcia fiscal, monetária e cambial dos governos, que seriam grandes motivadores dessa crise que agora assola os emergentes. Você poderia avaliar, neste sentido, as causas estruturais dessa crise?

Reinaldo Gonçalves: Não há como negar que políticas econômicas equivocadas também são causas de crises. Governos erram quando estimulam a expansão extraordinária do crédito e, portanto, o alto endividamento de indivíduos e empresas. Há outros erros: elevar a dívida pública para níveis insustentáveis e deixar as variáveis macroeconômicas fundamentais em níveis inadequados, como taxa de juro e taxa de câmbio. Os governos erram quando definem graus de liberalização e desregulamentação que são incompatíveis com a estrutura econômica do país. Os governos dos Estados Unidos e de países da Europa cometeram graves erros nos últimos anos e estão pagando por isso. No caso do Brasil, não há como negligenciar o déficit de governança e os erros cometidos nos governos FHC, Lula e Dilma. O Governo Dilma é a própria apoteose da mediocridade em termos de estratégias, condutas e resultados. Esse governo comete muitos erros.

Ademais, a crise no Brasil tem profundas causas estruturais. Por exemplo, a vulnerabilidade externa estrutural do Brasil é muito elevada e, portanto, o país é muito afetado pela desaceleração do comércio internacional e a volatilidade dos fluxos financeiros internacionais. Países como a China se protegem com elevados níveis de competitividade internacional e baixa dependência em relação a recursos financeiros externos. No Brasil, por outro lado, esses riscos são particularmente elevados porque o país depende significativamente da exportação de produtos básicos (minério de ferro, carne, soja e outros) e da captação de recursos externos para sustentar seu crescente e elevado déficit nas contas externas (as transações comerciais, de serviços e financeiras com os outros países).

Ou seja, a despesa do Brasil em moedas estrangeiras é maior do que a receita. Em 2013, o país precisou captar US$ 81 bilhões para fechar suas contas externas. Portanto, há crescente risco de crise cambial, que tende a causar crises financeira, real e fiscal, bem como maior inflação. Não podemos esquecer que o passivo externo brasileiro supera US$ 1,5 trilhão. Ou seja, nas contas externas há extraordinários desequilíbrios de fluxos e estoques. Além de haver evidente deficiência de gestão, no Brasil há o problema estrutural que se chama Modelo Liberal Periférico (MLP). Esse modelo híbrido combina o que tem de pior do liberalismo e da periferia. O MLP tem três conjuntos de características marcantes: liberalização, privatização e desregulação; subordinação e vulnerabilidade externa estrutural; e dominância do capital financeiro.

Correio da Cidadania: A Argentina esteve nestas últimas semanas no olho do furacão. Como vê o país e que correlação se pode fazer entre as conjunturas argentina e brasileira nesse momento?

Reinaldo Gonçalves: Há semelhanças importantes que derivam da vulnerabilidade externa estrutural e do déficit de governança em ambos os países. Entretanto, penso que, em uma perspectiva de longo prazo e estrutural, a situação argentina é melhor que a brasileira. Enquanto os argentinos procuram adotar um modelo de desenvolvimento com foco no crescimento e na redução da vulnerabilidade externa estrutural, o Brasil aprofunda cada vez mais o Modelo Liberal Periférico, marcado por crescente vulnerabilidade externa estrutural. A liberalização na área de serviços, as privatizações, a desnacionalização e a desindustrialização, que avançaram no Governo Dilma, ampliam e aprofundam este modelo. No que se refere às contas externas, tanto Brasil como Argentina têm elevados desequilíbrios de fluxos; no entanto, o desequilíbrio de estoque na Argentina (passivo externo financeiro líquido) é pequeno, enquanto no Brasil é muito elevado.

Correio da Cidadania: E as economias centrais, EUA e Europa por exemplo, como as situa neste contexto? Estão de fato em um processo de retomada de suas economias e sociedades, como se quer fazer crer a partir da algumas análises?

Reinaldo Gonçalves: Se, por um lado, é certo que instabilidade e crise são próprias ao capitalismo, também é verdadeiro que esse sistema econômico desenvolveu mecanismos para superar crises. Por esta e outras razões, o capitalismo, que é marcado por desperdício, injustiça e instabilidade, sobrevive e avança há séculos e, inclusive, atualmente, é o substrato da economia mais dinâmica do mundo (a chinesa).

Nos últimos anos, os principais países desenvolvidos perderam graus de liberdade na aplicação de políticas macroeconômicas convencionais (redução de juros e aumento de gastos públicos). Entretanto, esses países dispõem de pelo menos quatro instrumentos para a estabilização econômica: distribuição de riqueza e renda, progresso técnico, competitividade internacional e guerra. O processo de distribuição de riqueza e renda gera ampliação do consumo dos trabalhadores. Entretanto, é pouco provável que ocorra este processo no horizonte previsível. Muito pelo contrário, parte expressiva do ajuste frente às crises está recaindo sobre os trabalhadores e os grupos de menor renda. A política de distribuição de renda está sendo impedida pelo capital e pelas forças conservadoras e, de fato, a concentração de renda tem aumentado na maior parte dos países desenvolvidos.

A lógica da globalização (rivalidade internacional, foco na maior competitividade e efeito China) também tem dificultado a adoção de políticas distributivas. Boa parte da decepção com os governos Hollande e Obama advém dos fracassos das suas políticas de ajuste via mecanismos redistributivos. Entretanto, pode-se prever que os principais países capitalistas retomarão a fase ascendente no médio prazo tendo em vista o uso dos outros mecanismos estruturais. Este argumento aplica-se às principais economias capitalistas do mundo (EUA, Alemanha, França e Japão). É bem verdade que economias pouco importantes (Grécia, Portugal etc.) continuarão em crise.

O progresso técnico implica aumento de produtividade e lançamento de novos produtos, que elevam a massa de lucros. Há, então, estímulo para os investimentos. A maior competitividade internacional permite vender mais produtos no mercado internacional. A guerra impulsiona os gastos bélicos e, portanto, a geração de renda e emprego, além de estimular o progresso tecnológico e a competitividade internacional. Nesse sentido, há oportunidades extraordinárias (Líbia, Síria etc.), além de outras que podem ser criadas. Ou seja, além de desperdício, injustiça e instabilidade, o capitalismo é marcado por dinamismo e barbárie. O capitalismo é sustentado pelo dinamismo e pela barbárie!

Correio da Cidadania: Quais serão as consequências dessa crise para as economias emergentes, em especial para o Brasil?

Reinaldo Gonçalves: É a trajetória de instabilidade e crise. No caso do Brasil, o Modelo Liberal Periférico causa o processo de desenvolvimento às avessas. É a trajetória do Brasil no início do século XXI, que se caracteriza, na dimensão econômica, por: fraco desempenho; crescente vulnerabilidade externa estrutural; transformações estruturais que fragilizam e implicam volta ao passado; e ausência de mudanças ou de reformas que sejam eixos estruturantes do desenvolvimento de longo prazo. Nas dimensões social, ética, institucional e política desta trajetória, observam-se: invertebramento da sociedade; deterioração do ethos; degradação das instituições; e um sistema político corrupto e clientelista. Essas questões são analisadas no meu livro Desenvolvimento às Avessas (Rio de Janeiro: LTC, 2013; Prêmio Brasil de Economia, categoria livro, 1º lugar).

Correio da Cidadania: O que vê como alternativas para esta situação, a curto e médio prazos? O controle de câmbio poderia ser uma medida adotada frente a uma fuga de capitais do país?

Reinaldo Gonçalves: No atual quadro político e eleitoral não vejo saídas, nem mesmo no longo prazo. As candidaturas e os arranjos políticos este ano envolvem continuísmo, seja com a situação, seja com a oposição, ambos igualmente conservadores, medíocres e comprometidos com o Modelo Liberal Periférico. Neste quadro, é improvável qualquer controle de capitais. O governo Dilma continua ampliando e aprofundando a liberalização e desregulamentação dos fluxos financeiros internacionais. Este governo também tem estimulado o investimento externo direto, ou seja, a desnacionalização via privatizações (aeroportos, energia etc.). Qualquer mudança na direção de controles de capitais só ocorrerá em resposta a uma gravíssima crise cambial e risco de grave crise política e institucional.

Correio da Cidadania: Quanto a esta condução da política econômica pelo governo Dilma, analistas de mercado, paradoxalmente, criticam o que seria um intervencionismo estatal exacerbado na economia? O que diria nesse sentido?

Reinaldo Gonçalves: Intervenção do governo na economia é fundamental em qualquer país. Isso ocorre nas funções alocação, distribuição, regulação e estabilização. Mesmo em países que adotam modelos mais liberais (por exemplo, os Estados Unidos), o governo realiza essas funções. Quanto mais desenvolvido for o país, maior é o foco nas políticas de regulação e estabilização.
O desafio dos países em desenvolvimento é definir estratégias de desenvolvimento e, portanto, prioridades e hierarquia de funções e políticas de Estado. O problema brasileiro (evidente no caso do atual governo) é que a estratégia implícita (Modelo Liberal Periférico) está condenada ao fracasso, o sistema político é patrimonialista, clientelista e corrupto, e há déficit estrutural de governança. Mesmo a função distributiva do Estado é rasa, superficial e circunstancial, visto que não ataca o problema da distribuição funcional da renda (salários versus rendas do capital) e da distribuição da riqueza.

O problema do governo Dilma não é, naturalmente, o grau de intervenção, mas a qualidade da intervenção (gestão incompetente e inconsistência de políticas) e o enquadramento estrutural (dado pelo Modelo Liberal Periférico). Assim, quando há a adoção de políticas adequadas, esta é comprometida pela incapacidade de gestão, enquanto políticas equivocadas são adotadas para atender os setores dominantes (bancos, agronegócio, mineração, empreiteiras) e promover o MLP. Em artigo recente faço um balanço da economia brasileira durante os governos petistas e mostro os fracos resultados do governo Lula e os resultados medíocres do governo Dilma (comparáveis aos resultados igualmente medíocres do governo FHC). (“Balanço crítico da economia brasileira nos governos do Partido dos Trabalhadores”, Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, No. 37, janeiro de 2014).

Correio da Cidadania: Como, finalmente, enxerga as reações recentes do governo diante dessa crise e, em especial, como acredita que ele vá chegar às eleições?

Reinaldo Gonçalves: A direita não consegue fazer uma crítica consistente e realista ao atual governo. E é cada vez mais raro encontrar uma crítica rigorosa e contundente pela esquerda. Vejamos. O governo Dilma está tentando empurrar com a barriga o impacto dos problemas causados pelas nossas fragilidades e vulnerabilidades estruturais, bem como pelos erros de estratégias e políticas do próprio governo. Muito provavelmente o governo chegará ainda mais enfraquecido às eleições. Mas tenta ganhar tempo, fará um falso discurso eleitoral à esquerda e, após as eleições, fará ajustes de alto custo social e maiores concessões aos setores dominantes. Os protestos populares refletem este enfraquecimento. De fato, os protestos populares têm como principais causas os problemas estruturais e os erros cometidos no passado recente.

A crise atual também é conseqüência do surgimento de três fenômenos nos dois governos petistas: o Brasil Invertebrado, o Brasil Negativado e o Lulismo (transformismo do PT). O Brasil Invertebrado caracteriza-se pelo fato de que os grupos dirigentes têm cooptado a grande maioria das organizações sociais, sindicais, estudantis e patronais. Exemplos: MST, CUT e UNE. Grupos sociais não-organizados, assim como movimentos sociais de maior envergadura, também são neutralizados por meio de políticas clientelistas — o bolsa-família, os benefícios da previdência e o salário mínimo são instrumentos poderosos tanto no plano da redistribuição da renda dentro da classe trabalhadora, como no plano político e eleitoral. Ademais, a impunidade de corruptos e corruptores continua como a regra geral, que tem poucas e surpreendentes exceções (as condenações do mensalão). Grandes grupos econômicos desempenham papel de atores protagônicos via abuso do poder econômico, corrupção e financiamento de campanhas eleitorais. Neste sentido, a ausência de organizações efetivamente representativas provoca revolta no povo.

O Brasil Negativado, por seu turno, expressa a deterioração das condições econômicas e abarca o país, o governo, as empresas e as famílias. As finanças públicas se caracterizam por significativos desequilíbrios de fluxos e estoques, além, naturalmente, dos problemas epidêmicos de déficit de governança e superávit de corrupção. O aumento da dívida das empresas e famílias tem causado crescimento significativo da inadimplência. O aumento da negatividade é resultado da política de crédito fortemente expansionista no contexto de taxas de juros absurdas, fraco crescimento da renda, inoperância da atividade fiscalizadora e abuso de poder econômico por parte dos sistemas bancário e financeiro. Milhões de pessoas (pobres e classe média) estão desesperadas e perdem o sono diariamente porque estão negativadas, não conseguem pagar suas dívidas. E isto causa sofrimento e revolta.

Por fim, vale destacar que a eleição de Lula expressou a vontade popular de transformações estruturais e de ruptura com a herança do governo FHC. Entretanto, o transformismo dos grupos dirigentes do PT gerou grande frustração. O social-liberalismo corrompido do PT se consolidou com as transferências e políticas clientelistas e assistencialistas. Depois de 11 anos de governo, há a falência do PT, que tem sido absolutamente incapaz de realizar mudanças estruturais no país. Só houve a consolidação do Modelo Liberal Periférico (que reúne o que há de pior no liberalismo e na periferia) e a manutenção da trajetória de Desenvolvimento às Avessas. O transformismo petista gera frustração e revolta.

O Brasil Invertebrado, O Brasil Negativado e o Lulismo (transformismo do PT) agravam os problemas econômicos, sociais, éticos, políticos e institucionais, comprometem a capacidade de desenvolvimento do país e geram frustração, sofrimento, revolta e ódio. Portanto, os governos petistas e seus aliados são os principais responsáveis pela crise atual e pelos protestos populares. (Ver meu artigo disponível na internet: “Déficit de governança e crise de legitimidade do Estado no Brasil”, 2013). Por essas e outras razões, o povo e a esquerda não podem ser complacentes com o PT, seus dirigentes e suas candidaturas!

Capital estrangeiro, empreiteiros, mineradores, banqueiros e os figurantes do sistema político clientelista, patrimonialista e corrupto aplaudem de pé o atual governo e o MLP, e se protegem do risco-Brasil enviando cada vez mais capital para o exterior. Nunca antes na história desse país, os ricos mandaram tanto capital para o exterior — algumas dezenas de milhares de brasileiros, de gente rica e muito rica. Por outro lado, no que se refere ao povo, às massas, não há as alternativas de sonegação, corrupção, enriquecimento ilícito, lavagem de dinheiro, fuga de capitais e proteção frente ao risco-Brasil e ao Desenvolvimento às Avessas.

Restam os protestos populares, que são reações concretas à crescente percepção do que se tornou odioso no Brasil. Essa percepção não é mitigada por elevação do salário mínimo, bolsa família e benefício da previdência. Aqui, cabe citar a frase atribuída a Victor Hugo: “Os traidores sempre acabam por pagar por sua traição, e chega o dia em que o traidor se torna odioso mesmo para aquele que se beneficia da traição”.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014

Medicina cubana, exemplo de humanidade...


Médico cubano fala à imprensa pela primeira vez

Em entrevista exclusiva, Maikell Rodriguez Valle diz por que escolheu Candiota para trabalhar, desmente inverdades sobre o Mais Médicos e diz como se sentiu ao ser denunciado por um colega de profissão
Profissional disse levar muito a sério o juramento de Hipócrates
Crédito: ANTÔNIO ROCHA
Ele gosta de churrasco, mas é hipertenso. Prometeu começar academia semana que vem, se o serviço permitir. Esteve na Venezuela e na Bolívia realizando o mesmo trabalho que faz no Brasil, em comunidades pobres e indígenas que, historicamente, tiveram pouco acesso à saúde pública. Foi manchete dos principais jornais brasileiros semana passada, quando um colega de profissão de Bagé o denunciou ao Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) por ter atendido a um paciente em estado grave, fora da sua jurisdição. "Nós temos experiências em outros países. Não somos novatos", disse, como que respondendo a quem duvida de sua competência. "Quando cheguei ao Brasil, falei que não íamos mudar nada na saúde que o Brasil não queira mudar", lembrou.     
O médico mais badalado do Brasil atualmente - depois, apenas, da colega Ramona Rodríguez, que pediu asilo aos EUA para ver o namorado em Miami - concedeu entrevista exclusiva ao Jornal MINUANO. Entrevista esta pretendida desde semana passada, quando o profissional se tornou assunto na imprensa nacional, mas preferiu esperar a turbulência passar.  
Na sede da prefeitura de Candiota, bairro Dario Lassance, Maikel Rodriguez Valle, 34 anos, recebeu a equipe de reportagem e falou, em bom portunhol, por mais de uma hora. Consequência do diálogo mantido com seus pacientes no interior do município, onde prefere atuar. Atrasou-se por alguns minutos, pois estava fazendo o que manda a profissão: salvando vidas. Agora, quando o Ministério da Saúde está prestes a arquivar a denúncia do Conselho Regional de Medicina (Cremers), numa demonstração clara de bom-senso, o cubano quebra o silêncio. Fala da medicina e da saúde pública em Cuba, do programa federal Mais Médicos, por que escolheu Candiota para trabalhar e o que sentiu ao ser denunciado por um colega de profissão.
 
De Cuba para o Brasil
Valle é divorciado e pai de dois filhos. Um de seis e outro de quatro anos de idade. Não os trouxe por opção, visto que são muito novos e, segundo ele, seria traumático para as crianças esse choque de cultura e mudança de idioma. Neste ponto, Valle desmente o primeiro mito acerca do Mais Médicos, onde diziam que eram proibidos de trazer as famílias. "Conheço colegas que trouxeram a família. Eu não trouxe por que moro em Cuba, vou voltar para lá e não quero que meus filhos retornem falando português", explicou. A família que ficou em Cuba segue recebendo o salário que ele recebia no Hospital de Pinar Del Rio: "O Mais Médicos é um extra no salário", declarou.   
Formou-se em Medicina em 2007, na Faculdade Ernesto Che Guevara, em Pinar Del Rio, província que fica ao leste da ilha, há 142 quilômetros da capital Havana. Fez residência em Medicina Geral e Integrada (saúde da família), e iniciou sua segunda especialização em anatomia patológica. Trancou os estudos após se inscrever no programa federal. Pretende retomá-los após cumprir sua estada em território brasileiro, que compreende três anos de trabalho. Ao completar um ano no Brasil, vai tirar férias na ilha e rever os filhos. 
Ficou sabendo do programa Mais Médicos através de um edital publicado pelo governo cubano. Resolveu se inscrever por iniciativa própria, desmitificando o boato de que são obrigados pelo regime castrista a vir trabalhar. "Nós que quisemos participar, nada é obrigado. Da mesma forma como fomos para Venezuela e Bolívia", afirmou. Perguntado se vale a pena financeiramente, respondeu: "Desse tema nós não falamos. Mas realmente estou muito feliz. Algumas coisas as pessoas tergiversam", disse, afirmando que está muito satisfeito com o salário e que não se tornou médico para ganhar dinheiro, mas para levar saúde à população.       
 
O episódio 2 de janeiro
Sobre o que aconteceu no dia 2 de janeiro de 2014, no Hospital Beneficente de Candiota, Valle foi reticente. Disse apenas que foi aquilo mesmo que está nos jornais e não quis discorrer sobre o assunto. Não se sentiu chateado ou magoado pela denúncia do colega de profissão. Pelo contrário. Mostrou amadurecimento e uma grande espiritualidade em não recriminar a atitude, respeitando a opinião dos brasileiros e se dando o direito de apenas discordar. "Para mim o importante é a opinião do povo", disse, fazendo alusão ao massivo apoio que obteve nas redes sociais e, inclusive, da presidente Dilma Rousseff. 
Sobre as críticas que o programa Mais Médicos e os cubanos vêm recebendo da categoria brasileira, Valle deu uma lição de humanidade e respeito: "Nós levamos muito a sério o juramento de Hipócrates, que diz que devemos tratar nossos colegas médicos como irmãos. Isso é uma lei do juramento hipocrático, que nós cubanos temos muito presente. Para nós eles são irmãos. O programa tem sido atacado por que toda a mudança traz um pouco de repercussão. É algo normal", considerou. "Da nossa parte nunca vai haver uma resposta negativa contra os colegas. Sempre vamos tratá-los como irmãos. Podemos dizer que em Cuba eles são bem-vindos. Eles e todos os colegas do mundo".
A maioria dos médicos cubanos, segundo Valle, tem duas especializações. Os que não possuem, estão cursando, assim como ele. Ou seja, ninguém é marinheiro de primeira viagem, como reza o corporativismo médico brasileiro que duvida das qualificações cubanas.   
Trabalham 32 horas por semana, com oito horas reservadas para os estudos. Mas como atende no interior, Valle trabalha bem mais tempo. "Estamos tratando de fazer realmente como está concebido na medicina familiar, que é a prevenção, mudanças de modos e estilo de vida, partindo da célula da sociedade, que é a família: tem que conversar, tem que ver as condições de vida, o ambiente onde mora, a alimentação, as condições da água", explicou, confessando que não gosta do tumulto da cidade e que prefere a calma dos campos. 
 
A rotina em Candiota 
De acordo com o médico cubano, quase não existe diferença entre trabalhar em Cuba ou no Brasil. A diferença maior, segundo ele, está nas doenças, visto que regiões tropicais apresentam enfermidades específicas. A outra diferença é a de que todo e qualquer exame, cirurgia, tratamento ou atendimento é gratuito na "ditadura castrista".  
Em Candiota, o maior problema são os hipertensos, em virtude da alimentação fronteiriça. Principalmente as carnes nos churrascos, o que ele sabe que faz parte da cultura, mas que pretende orientar os consumidores mais pré-dispostos à hipertensão. Ele mesmo é um adepto aos assados gaúchos, mas tem de pegar leve porque faz parte da lista dos que sofrem de pressão alta.    
Atua com uma equipe composta por três pessoas: um médico, um enfermeiro e um agente de saúde. De casa em casa percorrem quilômetros por dia, nos lugares mais isolados do município, alguns de difícil acesso. Comentou que, em Cuba, quando as localidades não permitem chegar de carro, alguns profissionais não se incomodam de atender a cavalo quando as situações exigem. 
Agora estão no aguardo de uma unidade móvel equipada para qualificar ainda mais o atendimento. E existe a previsão da chegada de mais dois profissionais cubanos para auxiliarem nos trabalhos.  
Mantém um bom relacionamento com os médicos brasileiros que atuam em Candiota. "O Mais Médicos trata-se de um trabalho em conjunto. Entre todos vamos tratar de ajudar a população. Nossa ideia é poder trabalhar juntos, mas não pensando cada um por si. Não tenho problemas pessoais com ninguém. Há médicos que falam bem do programa, que são a favor e que querem ajudar", relatou.    
Valle é situado historicamente. Explicou que pesquisou sobre Candiota e que escolheu a cidade não pela usina, mas por abrigar a região onde se travou a Batalha do Seival, por causa de Antônio de Souza Netto, destacado líder da Revolução Farroupilha, e também por Bento Gonçalves e os Lanceiros Negros. 
 
Os candiotenses agradecem 
Os pacientes até estranham em receber médicos em casa para atendê-los. "Eles são muito agradecidos", comentou. O cubano quer apenas trabalhar e levar saúde e informação aos candiotenses. Quando imprevistos ocorrem, como no caso da denúncia do Simers, apenas acompanha de longe, não se envolve, pois sabe que, no íntimo, agiu corretamente. "Estamos acostumados às dificuldades, mas isso nos dá mais forças. Cuba tem um povo lutador. Estamos bloqueados pelos EUA há décadas e Cuba segue firme sem esmorecer", alegou. "Nossa concepção de vida é mais espiritual do que material".    
Com a decisão extraoficial de que o Ministério da Saúde irá arquivar a denúncia feita pelo Cremers, sepultando a hipótese de deportação de alguém que quis salvar uma vida, quem ganha é a população de Candiota. Porque, parafraseando Che Guevara, "hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás".        
 
Fonte: JORNAL MINUANO
Por: Felipe Severo

terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Exemplo de Candiota-RS...

Prefeito e deputado acreditam em decisão favorável do Ministério da Saúde sobre cubano que atendeu emergência



Paulo Argollo, presidente do Simers, disse que o caso não era grave, mas dias depois o paciente morreu

 por Conceição Lemes no VIOMUNDO

Candiota fica a cerca de 400 quilômetros de Porto Alegre (RS), população estimada em 10 mil habitantes e uma peculiaridade: possui 32 assentamentos de reforma agrária e várias comunidades quilombolas.
Até o início de janeiro, provavelmente poucos fora do Sul do Brasil tinham ouvido falar desse município gaúcho, na faixa de fronteira.
Foi quando então ganhou destaque na mídia nacional.
O médico cubano Maikel Ramirez Valle,  do Programa Mais Médicos, foi  denunciado pelo Sindicato Médico do Rio Grande do Sul (Simers) por atender um paciente em estado grave no Hospital de Candiota. Pelo contrato,  os participantes só podem atuar  em unidades de atenção básica dos municípios.
Candiota tem sete médicos, apenas um reside na cidade. É justamente Maikel Ramirez Valle, o único credenciado no Programa Mais Médicos.
Tudo aconteceu em 2 de janeiro.
O médico escalado para o plantão tinha ido a Bagé acompanhar um paciente, e o substituto atrasou-se. Deveria entrar às 8h, chegou às 9h15.
Nesse período, um doente grave chegou ao hospital. Como não havia outros médicos no município naquele horário, Valle foi chamado em casa para atender o caso.
“A Secretaria de Saúde foi comunicada que não havia médico para realizar o atendimento. E, devido ao risco de morte, solicitada a autorização para que o profissional do Mais Médicos o fizesse”, conta ao Viomundo  o prefeito Luiz Carlos Folador. “Ao perceber a urgência do quadro, ele encaminhou o paciente para o pronto-socorro da Santa Casa de Bagé, com maior estrutura e referência para a nossa região.”
Em Bagé, o médico responsável pela internação percebeu que a requisição não continha o número do registro profissional e denunciou o caso ao Simers, cujo presidente é Paulo de Argollo Mendes. Ele está  há 16 anos no poder, sempre foi contra a vinda de médicos estrangeiros, embora tenha dois filhos formados em Medicina, em Cuba.
Ao Jornal Minuano, Argollo disse: “A informação que nós temos é de que não tinha nenhum médico atrasado. Outra informação que chegou até nós é de que o quadro do paciente não era tão grave”.
O caso era grave. Tanto que, depois de alguns dias internado na Santa Casa de Bagé, o paciente morreu, mostrando o encaminhamento correto do médico cubano.
Quanto à outra acusação de Argollo – a de que não havia médico atrasado –, Folador afirma: “Realmente, o plantonista estava atrasado. Está tudo relatado e comprovado na defesa que encaminhamos ao Ministério da Saúde”.

“Desde o primeiro momento, o presidente do Simers não estava preocupado com o fato em si, com a verdade. Só queria achar um motivo que pudesse desmoralizar o programa Mais Médicos”, diz o deputado federal Paulo Pimenta (PT-RS). “O Simers  e o seu presidente sempre se posicionaram abertamente contra o programa.”
O futuro do médico cubano e de Candiota no Programa Mais Médicos está na berlinda. A decisão final do caso deve sair nos próximos dias.
Perguntamos ao prefeito Luiz Carlos Folador o que significa para Candiota perder o doutor Maikel Ramirez Valle e o eventual descredenciamento do município do Mais Médicos.
“Não contamos com essa possibilidade. Confiamos na sensibilidade do Ministério da Saúde, pois foi, de fato, um caso excepcional, isolado, e já comprovamos isso. Não temos nenhum médico morando em Candiota, a exceção é o profissional do Mais Médicos. A quantidade de médicos em nossa cidade não é suficiente. Nosso Pronto-Atendimento recebe pessoas de outros municípios que veem trabalhar aqui. Também temos núcleos de famílias assentadas e comunidades quilombolas”, analisa Folador.  ”O descredenciamento seria uma perda irreparável, seria o maior dos prejuízos.”
Paulo Pimenta também acredita numa decisão favorável: “Não vamos permitir que posições corporativistas busquem contaminar e confundir a opinião pública sobre o Mais Médicos, que, além de requisitar profissionais estrangeiros, também está fazendo investimentos em infraestrutura e ampliando os cursos de graduação em medicina no país”.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

domingo, 9 de fevereiro de 2014

O novo não se inventa, descobre-se


Reconhecido internacionalmente por suas contribuições às Ciências Humanas e, entre os que conviveram com ele, por sua generosidade e humildade, Milton Santos é hoje uma referência também para o movimento negro
Por Glauco Faria na REVISTA FORUM
“Ele representava nas Ciências Humanas o que se pode chamar de ala combatente. O que Florestan Fernandes foi na Sociologia, ele foi na Geografia. Nos seus trabalhos, o rigor científico nunca foi obstáculo a uma consciência social desenvolvida e profundamente arraigada nos problemas do Brasil.” Foi assim que um dos grandes intelectuais brasileiros, Antonio Candido, definiu o geógrafo Milton Santos, que foi seu colega na Universidade de São Paulo (USP).
Baiano de Brotas de Macaúbas, Milton Santos cursou Direito em Salvador, embora quando jovem tivesse dado aulas na área que verdadeiramente o apaixonava, a Geografia. Na universidade, envolveu-se com a política estudantil e chegou a ser eleito vice-presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE). Mas as letras da lei não foram suficientes para seduzi-lo e, concluída a graduação, Milton tornou-se professor de Geografia do Instituto Central de Educação Isaías Alves (Iceia) e do Colégio Central. Levou a concurso sua tese Povoamento da Bahia, e passou a ocupar a cadeira de Geografia Humana do Ginásio Municipal de Ilhéus. E foi ali que escreveu seu primeiro livro, A Zona do Cacau, que tratava da monocultura na região. A obra já alertava para os riscos que poderiam advir da adoção de tal prática.
No ano de 1956, foi convidado pelo professor Jean Tricart, uma de suas principais influências, a realizar seu doutorado em Estrasburgo, na França. Sobre o orientando, escreveu Tricart: “O humor, a alegria, e o sorriso de Milton, classificado como inimitável, conquistaram a simpatia de toda a equipe da Universidade”. Após viajar pelos continentes europeu e africano, publicou em 1960 o estudo Mariana em Preto e Branco e, depois de apresentar sua tese de doutorado, O Centro da Cidade de Salvador, regressou ao Brasil.

Mas os périplos de Milton Santos pelo mundo não pararam. Logo após o golpe militar de 1964, foi exilado e retornou à França, onde lecionou na Universidade de Toulouse por três anos. Seguiu para Bordeaux e, até voltar ao Brasil em 1977, passou por diversas universidades do mundo. Deu aulas na Venezuela, no Peru, e no Massachusetts Institute of Technology (MIT) dos Estados Unidos.
De regresso ao Brasil, boa parte da obra que o faria mundialmente conhecido já tinha sido escrita, inclusive o clássico Por uma geografia nova, com enfoque nas questões sociais e referência em geógrafos marxistas, evidenciando a necessidade de se constituir uma análise do espaço como algo essencialmente humano, promovendo um redirecionamento da Geografia. Dizia ele na introdução: “A verdade, porém, é que tudo está sujeito à lei do movimento e da renovação, inclusive as ciências. O novo não se inventa, descobre-se”.
A geógrafa Ana Clara Torres Ribeiro trabalhou com Milton Santos e confirma o grande legado deixado por ele na área das Ciências Humanas. A ideia defendida por ele era tirar a Geografia de seu isolamento e promover um diálogo com as outras disciplinas da “A Geografia deve estar atenta para analisar a realidade social total a partir de sua dinâmica territorial, sendo esta proposta um ponto de partida para a disciplina, possível a partir de um sistema de conceitos que permita compreender indissociavelmente objetos e ações”, disse.
“Por uma geografia nova”
O depoimento do geógrafo da USP Wagner Costa Ribeiro ilustra a generosidade de Milton Santos, que não se furtava a colaborar com colegas da área. “Conheci o professor Milton Santos em Paris, por ocasião de uma visita de estudos, em 1988. Naquele ano o professor também estava pesquisando na França e me recebeu em sua casa, sem nunca termos nos falado antes, a partir de um telefonema. De maneira direta, indicou colegas franceses que me receberam com muita atenção, grande parte deles ex-alunos de Milton. A partir daí, recebi seu renovado apoio em diversas ocasiões, como quando solicitei artigos para publicações da Associação dos Geógrafos Brasileiros”, conta.
A seguir, o leitor poderá conferir uma das últimas entrevistas concedidas por Milton Santos, que revela pontos importantes do pensamento do único geógrafo fora do mundo anglo-saxão a receber, em 1994, o prêmio Vautrin Lud, o equivalente ao Nobel no campo da Geografia. E que deixou uma herança que vai muito além da já grandiosa transformação promovida por ele no estudo da Geografia, que coloca a exclusão como o principal inimigo a ser vencido. A professora Maria Adélia Aparecida de Souza, que trabalhou com o geógrafo na USP, define o que significaria a concretização de sua visão de mundo. “O período popular da história, a que se referiu Milton Santos, envolve uma nova humanidade, onde se construirá a paz através da consolidação de mecanismos solidários que não serão fabricados em laboratórios. Já estamos em pleno período popular da história.” F

A técnica e o poder


Em uma de suas últimas entrevistas, Milton Santos fala sobre globalização, a violência do dinheiro e da informação, e analisa qual deveria ser o papel dos intelectuais
Era um estagiário do Serviço de Divulgação e Informação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) quando, junto com a colega Julienne Gananian, entrevistei Milton Santos, em setembro de 2000. Já debilitado pelo câncer, o professor recebia dois estudantes e conversava com eles como dois iguais, sem adotar uma postura arrogante, como não raro acontece entre os acadêmicos.
Docemente, não concedeu uma entrevista, mas deu uma aula. Permitindo sempre que pudéssemos intervir, esclareceu conceitos e mostrou sua visão sobre o mundo. Abaixo, alguns trechos da entrevista, que dão um pouco a dimensão da importância de seu legado.
Globalização
A história é feita pela sucessão de épocas e cada época tem sua própria marca. A marca de cada época é dada, a meu ver, por dois fatores, que são na realidade inseparáveis: um é o estado da técnica, o outro é o estado da política. A nossa época é caracterizada por uma técnica que atinge níveis altíssimos de precisão, uma técnica altamente cientificizada, pois é penetrada pela produção científica, permitindo, por isso mesmo, um alto grau de intencionalidade no seu uso. Deste modo, os atores hegemônicos atuais se apropriam dessa qualidade da técnica para aumentar seu poder.
Como a técnica se tornou planetária, algo que nunca tinha acontecido, os atores se tornaram planetários. A globalização é resultado de uma forma particular de casamento da técnica com a política. Nesse caso, a política será exercida pelos atores hegemônicos e não mais pelos Estados. A técnica hegemônica é a base de dois fenômenos também inéditos, que são a informação e o dinheiro globalizados. A informação e o dinheiro globalizados fazem com que as fronteiras tenham se tornado permeáveis, resultando na diminuição do poder interno das nações.
Na realidade, isso não é algo que se dá de forma homogênea: o país que mais globaliza, os Estados Unidos, é o menos globalizado. A Europa também não aceita a globalização totalmente. Eles impõem aos demais a globalização, querem impor a ideia de democracia, que na verdade é uma não-democracia, implantada por meio do regime neoliberal. Mas vai dizer nas ruas que não vivemos numa democracia…
O dramático de nosso tempo
Quanto mais nos informamos, mais nos tornamos desinformados. A própria casa do pensamento livre, que é a universidade, estimula cada vez menos o pensamento livre. E nós continuamos com as velhas palavras, com conteúdos que não são eficazes, razão pela qual a democracia sucumbe em toda América Latina. Essa desinformação continuada, esse poder implacável do dinheiro globalizado, são uma ofensa às pessoas, mas aparecem como se fossem suas metas. Isso é o dramático do nosso tempo.
Violência da informação
A própria violência do dinheiro não se daria sem a violência da informação. Você liga o rádio e as informações não interessam ao público em geral, apenas a determinados segmentos. As informações sobre bolsa de valores, por exemplo, interessam apenas para quem tem muito dinheiro. Nós somos levados a ficar paralisados diante do discurso do dinheiro, que é a base da ação do dinheiro globalizado.
As técnicas atuais podem ser utilizadas de forma diferente do que acontece hoje. Na realidade, na minha juventude, na época das técnicas de massa, estas só podiam ser utilizadas pelos poderosos. Como eu iria comprar uma locomotiva? Eu não podia criar uma estrada de ferro… Agora é diferente: pela primeira vez, as técnicas são “maleáveis”. Só que o mercado se apossou dessas “técnicas maleáveis” e as endureceu. A técnica se endureceu politicamente pelo uso que os poderosos fazem dela. Se amanhã os atores individuais, dotados de uma vocação de generosidade, se apossam dessas técnicas, aí muda tudo. Aliás, já está mudando. Veja a multiplicação das rádios piratas, dos pequenos jornais, das televisões comunitárias… O que não há é uma legislação feita para evitar o sufocamento desses pequenos atores. É a política corrompendo algo que dá frutos. Era impossível no tempo do Marx ou do Keynes pensar nisso, hoje é possível. Por isso digo que não sou otimista, eu sou realista. A base da vida, de certa forma, é a técnica, que em si não é desfavorável.
O papel da universidade
Não posso abrir as portas da universidade para o trabalho feito para o mercado e continuar dizendo que é pública. Posso dizer que o meu trabalho aqui é pensar, discutir o mercado, só que o que é solicitado a mim é um trabalho para o mercado. É preciso repensar o conceito de universidade pública, que era válido no século XIX e não é mais. São duas as universidades públicas no Brasil: a que vende o saber e outra que produz saber, mas grandes fatias do trabalho acadêmico não têm relação com o interesse público.
E a universidade tem muita dificuldade para fazer uma autocrítica. Várias pessoas desviam o foco da questão, dizendo que a maioria dos alunos é da classe média, que se deveria cobrar mensalidades… É uma falsa questão. Porque devo cobrar da classe média? Aqui há poucas bolsas, a maioria está nas faculdades privadas. Há um discurso não só vazio, mas vadio, que simplifica uma questão que é muito mais complexa.
Se a universidade produz o saber que serve ao mercado e não à grande maioria, estou paulatinamente fechando as portas a um debate sadio. Não estamos buscando a solução, estamos buscando remédios. Os intelectuais críticos estão sendo estrangulados. Não podemos nos contentar com o grande enunciado e esse é o desafio imposto, por exemplo, às faculdades de Filosofia e de Geografia, que têm o dever de criticar. Nós estamos aqui para criticar.
Universidade e mercado
A universidade deve ensinar a usar bem as técnicas. Não posso abrir as portas da universidade para o trabalho feito para o mercado e continuar dizendo que é pública. Posso dizer que o meu trabalho aqui é pensar, discutir o mercado, só que o que é solicitado a mim é um trabalho para o mercado. É preciso repensar o conceito de universidade pública, que era válido no século XIX e hoje não é mais. São duas as universidades públicas no Brasil: a que vende o saber e outra que produz saber.
Perspectivas
Existe um estreitamento das perspectivas para a juventude. O emprego hoje se tornou uma obsessão. Quando eu terminei a faculdade, podia escolher entre os empregos que me eram oferecidos. Isso cria um outro estado de espírito. Mesmo assim, a juventude tem um caldo de cultura fértil para as ideias novas.
Creio que o crescimento beneficia algumas camadas mais do que as outras. Há aquelas que sempre ganharam e as que sempre perderam. No Brasil, as ofertas para os pobres sempre foram mais reduzidas que em outros países. Formulam-se teorias de ciência política e de sociologia baseadas na Europa, mas lá os pobres sempre tiveram mais oportunidades. A classe média deles sempre teve preocupações políticas, enquanto a nossa tem preocupações eleitorais.
Intelectuais “prostitutos”
Os compositores de música popular resistiram à massificação da música e hoje conseguem levar suas ideias à população. Existem músicos, como o Mano Brown, que não estão nas grandes gravadoras e que conseguem vender de forma significativa. Nós do meio acadêmico é que estamos atrasados. Os pobres não têm acesso à elaboração sistêmica da técnica, mas nós temos. Nós, intelectuais, somos um pouco “prostitutos”. É mais simples nos aproximarmos dos poderosos que nos dão dinheiro para pesquisas, financiam nossas viagens. Mas as grandes ideias não precisam de muito dinheiro. Acho que já está acontecendo uma revolução, mas não estamos preparados para percebê-la. Como a universidade está burocratizada, tudo que é novo tem dificuldade para ser absorvido.  F

A condição de negro
“O fato de eu ser negro e a exclusão correspondente acabam por me conduzir à condição de permanente vigília.” Esse depoimento de Milton Santos evidencia a sua consciência em relação à questão do preconceito e da discriminação que sofrem os negros no Brasil. Não
participava de movimentos ligados à causa, uma questão de coerência com aquilo que ele dizia ser fundamental para um intelectual: a independência. “Não sou militante de coisa nenhuma. Essa ideia de intelectual, apreendida com Sartre, de uma independência total, distanciou-me de toda forma de militância”, declarou.

Descendente de escravos que foram emancipados antes da abolição da escravatura no país, Milton Santos enfrentou quando jovem diversas manifestações de racismo. Desistiu de cursar Engenharia, entre outros motivos, quando o alertaram que havia resistência aos negros na Escola Politécnica. Em outra ocasião, foi convencido por colegas a não se candidatar ao cargo de presidente da Associação dos Estudantes Secundários da Bahia. O argumento usado por eles foi de que, como negro, não teria acesso ao diálogo com as autoridades.
Mesmo assim, continuou sua trajetória no meio acadêmico e hoje, pela sua relevância como intelectual, tornou-se referência para o movimento negro. “Não porque ele militava, era um acadêmico, mas pelo debate que fazia sobre inclusão. E também por não esquecer suas origens, apesar de ter se consagrado como um dos mais importantes intelectuais do mundo”, aponta o geógrafo João Raimundo de Souza, a propósito de uma homenagem feita pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) a Milton Santos.