Neste documentário, Nurit Peled-Elhanan fala de sua pesquisa relacionada com o conteúdo dos livros didáticos de Israel. Ela expõe em detalhes como estes livros são elaborados com o objetivo de desumanizar o povo palestino e fomentar nos jovens estudantes israelenses a base de preconceitos que lhes permitirá atuar de forma cruel e insensível com o mesmo durante o serviço militar.
Conforme explica Nurit Peled-Elhanan, a construção de mundo feita a partir dos livros didáticos, por serem as primeiras a se sedimentarem na mente das crianças, são muito difíceis de serem erradicadas. Daí a importância que o establishment israelense dedica à ideologia a ser transmitida nos livros didáticos. Neles, os palestinos nunca são apresentados como seres humanos comuns. Nunca aparecem em condições que possam ser consideradas normais. Segundo Nurit Peled-Elhanan, não há nesses livros nem sequer uma fotografia de um palestino que mostre seu rosto. Eles são sempre apresentados como constituindo uma ameaça para os judeus.
Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
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sábado, 15 de setembro de 2012
sábado, 1 de setembro de 2012
Padre culpa vítimas por pedofilia
Por Leonardo Sakamoto, em seu blog: via BLOG DO MIRO
De acordo com o sempre alerta Opera Mundi,
o padre norte-americano Bernard Groeschel escreveu um artigo para a
revista católica National Catholic Register relativizando a culpa dos
companheiros de batina que caem em pecado. Afirmou que, quando se pensa
em um pedófilo, “as pessoas normalmente imaginam uma pessoa que planejou
seus atos, um psicopata. (…) Mas não é o caso. Imaginem um homem que se
encontra em plena depressão nervosa e um jovem chega para consolá-lo.
Em muitos desses casos, o jovem é que é o sedutor”. Bernard defendeu que
os padres católicos não deveriam ser presos caso fossem descobertos,
desde que não repetissem seus atos, “porque a intenção deles não era de
cometer um crime”. A revista retirou o artigo do ar, pediu desculpas e
exigiu a retratação do padre – o que veio a acontecer.
Alguns consideraram a declaração do franciscano, mais do que uma apologia à pedofilia, uma tentativa de culpar as vítimas pelo ocorrido. Pode ser. Mas, comparando o discurso a outros que apareceram por aí, gostaria de propor que, ao invés de ser repreendido, Bernard se candidate a uma cadeira de vereador do município de São Paulo. Chances de ganhar ele tem.
Há cinco anos, o cantor e vereador Agnaldo Timóteo fez um discurso na Câmara dos Vereadores a favor da exploração sexual juvenil. Disse que o visitante que vem ao país atrás de sexo não pode ser considerado criminoso. “Ninguém nega a beleza da mulher brasileira. Hoje as meninas de 16 anos botam silicone, ficam popozudas, põem uma saia curta e provocam. Aí vem o cara, se encanta, vai ao motel, transa e vai preso? Ninguém foi lá à força. A moça tem consciência do que faz”, declarou. “O cara [turista] não sabe por que ela está lá. Ele não é criminoso, tem bom gosto.”
Foi reeleito.
O que é compreensível.
Afinal de contas, se tem peito e bunda, se tem corpo de mulher, está pronta para o sexo, não é mesmo?
E se está pronta para o sexo, por que não ganhar uns trocados para ajudar no orçamento familiar?
O cara que transa com essas meninas não tem culpa, elas é que estavam pedindo. Elas sempre pedem.
Pois “mulher honesta” – como minha mãe, minha esposa e minha filha – ficam em casa e não na rua, vadiando.
Mulher não se veste “daquele jeito” se não quer alguma coisa, não?
Enfim, tendo em vista a quantidade de vezes que ouvimos essas aberrações por aí, creio que há espaço para um segundo vereador que, ignorando os limites da razão e da lei, defenda que pedófilo não é criminoso.
Talvez dê para formar uma bancada.
Alguns consideraram a declaração do franciscano, mais do que uma apologia à pedofilia, uma tentativa de culpar as vítimas pelo ocorrido. Pode ser. Mas, comparando o discurso a outros que apareceram por aí, gostaria de propor que, ao invés de ser repreendido, Bernard se candidate a uma cadeira de vereador do município de São Paulo. Chances de ganhar ele tem.
Há cinco anos, o cantor e vereador Agnaldo Timóteo fez um discurso na Câmara dos Vereadores a favor da exploração sexual juvenil. Disse que o visitante que vem ao país atrás de sexo não pode ser considerado criminoso. “Ninguém nega a beleza da mulher brasileira. Hoje as meninas de 16 anos botam silicone, ficam popozudas, põem uma saia curta e provocam. Aí vem o cara, se encanta, vai ao motel, transa e vai preso? Ninguém foi lá à força. A moça tem consciência do que faz”, declarou. “O cara [turista] não sabe por que ela está lá. Ele não é criminoso, tem bom gosto.”
Foi reeleito.
O que é compreensível.
Afinal de contas, se tem peito e bunda, se tem corpo de mulher, está pronta para o sexo, não é mesmo?
E se está pronta para o sexo, por que não ganhar uns trocados para ajudar no orçamento familiar?
O cara que transa com essas meninas não tem culpa, elas é que estavam pedindo. Elas sempre pedem.
Pois “mulher honesta” – como minha mãe, minha esposa e minha filha – ficam em casa e não na rua, vadiando.
Mulher não se veste “daquele jeito” se não quer alguma coisa, não?
Enfim, tendo em vista a quantidade de vezes que ouvimos essas aberrações por aí, creio que há espaço para um segundo vereador que, ignorando os limites da razão e da lei, defenda que pedófilo não é criminoso.
Talvez dê para formar uma bancada.
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quarta-feira, 29 de agosto de 2012
Ainda obrigatório, ensino religioso será questionado no STF
Rachel Duarte no SUL21
Uma das mais antigas discussões da humanidade está nas mãos do Supremo Tribunal Federal (STF). A obrigatoriedade do Ensino Religioso na educação pública pode entrar na pauta dos ministros ainda este ano. Duas ações diretas de inconstitucionalidade (Adin) questionam a oferta do ensino religioso no formato atual. Movida por entidades que cobram o princípio da laicidade no país, as ações correm o risco de não entrar na pauta se o julgamento do Mensalão se arrastar até novembro, quando ocorre a aposentadoria do ministro relator, Ayres Britto. Enquanto o tema não tem um desfecho na corte, as normas de aplicação da lei ficam ao cargo dos estados – o que gera inevitáveis distorções, como o pouco espaço para religiões de matriz africana e a ausência de discussões sobre ateísmo.
A Constituição Federal de 1988 determina a oferta do ensino religioso nas escolas da rede pública de ensino fundamental, com matrícula facultativa – ou seja, cabe aos pais decidir se os filhos vão frequentar as aulas. A advogada da ONG Ação Educativa, uma das autoras da ação no STF, Ester Rizzi, explica que o tema é tão polêmico, quanto antigo no Brasil. “Esta discussão sempre existiu. É a maior polêmica de todas as constituintes desde 1924. Desde lá se questiona a obrigatoriedade ou não do ensino religioso. Luta perdida, na minha visão que acredito no estado laico, quando em 88 a Constituição tornou obrigatória”, explica.
Com a última reedição da Lei de Diretrizes e Bases (LDB), em 1996, passou a ser obrigação do estado o financiamento do ensino religioso. “O texto original não previa que o ensino religioso se constituísse como uma disciplina isolada. A mudança assegurou a religiosidade e mudou o caráter confessional, onde o aluno dizia a sua opção religiosa”, diz Ester.
O ensino religioso é hoje a única disciplina delegada por uma lei e sem qualquer diretriz curricular sobre seu ensinamento. A ONG Ação Educativa realizou estudo em 2008 nos estados brasileiros e constatou diversas invasões à laicidade no ensinamento da religiosidade no país. “No Rio de Janeiro, por exemplo, foi feita uma lei municipal que regulamenta o ensino confessional obrigando os professores a serem aprovados por autoridades religiosas para dar aulas ou não. Está previsto em concurso público esta norma”, diz Ester Rizzi.
Nos materiais didáticos oferecidos na rede pública a entidade também acusa omissão com alguns credos. “Mesmo quando o estado tenta o pluralismo, geralmente não inclui as religiões de matriz africanas e os ateus”, cita.
RS forma professores para diversidade, mas também não fala sobre ateísmo
No Rio Grande do Sul, a 3ª Coordenadoria Regional de Educação (CRE) promove formação de Diversidade Religiosa aos professores de Ensino Religioso. A intenção é ampliar a compreensão dos educadores sobre a relação transdiciplinar da religiosidade com outras áreas do conhecimento, respeitando a diversidade do contexto escolar. O primeiro módulo já ministrado com apoio do Conselho de Ensino Religioso do Rio Grande do Sul tratou de abordar a contribuição das tradições afro-brasileiras para a construção da cidadania.
A coordenadora do Ensino Religioso da 3ª CRE, Marisa Durayski, comentou que o curso totalizará 40 horas aula e o próximo módulo enfatizará as tradições indígenas. “No ano passado já promovemos um curso com as principais religiões, Judaísmo, Espiritismo, Hinduismo, entre outras”, fala. Porém, quando perguntada sobre ateísmo, ela disse que não foi pensado no curso. “Apesar de surgir nas palestras a pergunta sobre como lidar com alunos que não tem religião, não pensamos nisso. Pensamos a questão da cidadania e o respeito às diferenças de credo”, admite.
Para quem lida na ponta com os delicados limites dessa questão, torna-se um desafio garantir um ensino religioso que contemple as diferentes experiências e crenças encontradas em uma sala de aula. “Cada lugar tem a tendência a certas religiosidades. Em algumas regiões do estado não se admite o ateísmo. É uma cultura mais difícil de abordar”, fala coordenadora de Gestão de Aprendizagem da Educação Básica, da Secretaria Estadual de Educação, Ester Guareschi Soares.
Segundo ela, a política pedagógica do ensino público gaúcho é de não defender símbolos religiosos em sala de aula ou nas escolas e respeitar as diferentes manifestações culturais. “Sabemos que temos alunos com diferentes credos. Mas o estado é laico, e assim deve ser”, defende.
Ester explica que a atual gestão estadual desconstitui a assessoria de Ensino Religioso existente na Secretaria Estadual de Educação e incluiu a religiosidade no setor de Ciências Humanas. Além dos professores formados pelo Conselho de Ensino Religioso, em um curso de 360 horas/aula, o estado oferece professores formados em outras áreas do conhecimento para ministrar as aulas. “Filosofia, antropologia, entre outras. Não trabalhamos doutrina específica. Trabalhamos um aspecto cultural de busca da espiritualidade, desenvolvimento de valores como justiça, solidariedade e fraternidade. Este é o foco. Mesmo os que se dizem não-crentes, buscam o transcendente”, fala a coordenadora.
terça-feira, 24 de julho de 2012
EUGENIO SALES: O CARDEAL DA DITADURA
O tratamento que a mídia deu à morte do cardeal dom Eugênio Sales, ocorrida na última segunda-feira, com direito à pomba branca no velório, me fez lembrar o filme alemão “Uma cidade sem passado”, de 1990, dirigido por Michael Verhoven. Os dois casos são exemplos típicos de como o poder manipula as versões sobre a história, promove o esquecimento de fatos vergonhosos, inventa despudoradamente novas lembranças e usa a memória, assim construída, como um instrumento de controle e coerção.
Comecemos pelo filme, que se baseia em fatos históricos. Na década de 1980, o Ministério da Educação da Alemanha realiza um concurso de redação escolar, de âmbito nacional, cujo tema é “Minha cidade natal na época do III Reich”. Milhares de estudantes se inscrevem, entre eles a jovem Sônia Rosenberger, que busca reconstituir a história de sua cidade, Pfilzing – como é denominada no filme – considerada até então baluarte da resistência antinazista.
Mas a estudante encontra oposição. As instituições locais de memória – o arquivo municipal, a biblioteca, a igreja e até mesmo o jornal Pfilzinger Morgen – fecham-lhe suas portas, apresentando desculpas esfarrapadas. Ninguém quer que uma “judia e comunista” futuque o passado. Sônia, porém, não desiste. Corre atrás. Busca os documentos orais. Entrevista pessoas próximas, familiares, vizinhos, que sobreviveram ao nazismo. As lembranças, contudo, são fragmentadas, descosturadas, não passam de fiapos sem sentido.
A jovem pesquisadora procura, então, as autoridades locais, que se recusam a falar e ainda consideram sua insistência como uma ameaça à manutenção da memória oficial, que é a garantia da ordem vigente. Por não ter acesso aos documentos, Sônia perde os prazos do concurso. Desconfiada, porém, de que debaixo daquele angu tinha caroço – perdão, de que sob aquele chucrute havia salsicha – resolve continuar pesquisando por conta própria, mesmo depois de formada, casada e com filhos, numa batalha desigual que durou alguns anos.
Hostilizada pelo poder civil e religioso, Sônia recorre ao Judiciário e entra com uma ação na qual reivindica o direito à informação. Ganha o processo e, finalmente, consegue ingressar nos arquivos. Foi aí, no meio da papelada, que ela descobriu, horrorizada, as razões da cortina de silêncio: sua cidade, longe de ter sido um bastião da resistência ao nazismo, havia sediado um campo de concentração. Lá, os nazistas prenderam, torturaram e mataram muita gente, com a cumplicidade ou a omissão de moradores, que tentaram, depois, apagar essa mancha vergonhosa da memória, forjando um passado que nunca existiu.
Os documentos registraram inclusive a prisão de um judeu, denunciado na época por dois padres, que no momento da pesquisa continuavam ainda vivos, vivíssimos, tentando impedir o acesso de Sônia aos registros. No entanto, o mais doloroso, era que aqueles que, ontem, haviam sido carrascos, cúmplices da opressão, posavam, hoje, como heróis da resistência e parceiros da liberdade. Quanto escárnio! Os safados haviam invertido os papéis. Por isso, ocultavam os documentos.
Deus tá vendo
E é aqui que entra a forma como a mídia cobriu a morte do cardeal dom Eugênio Sales, que comandou a Arquidiocese do Rio, com mão forte, ao longo de 30 anos (1971-2001), incluindo os anos de chumbo da ditadura militar. O que aconteceu nesse período? O Brasil já elegeu três presidentes que foram reprimidos pela ditadura, mas até hoje, não temos acesso aos principais documentos da repressão.
Se a Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio último pela presidente Dilma Rousseff, pudesse criar, no campo da memória, algo similar à operação “Deus tá vendo”, organizada pela Policia Civil do Rio Grande do Sul, talvez encontrássemos a resposta. Na tal operação, a Polícia prendeu na última quinta-feira quatro pastores evangélicos envolvidos em golpes na venda de automóveis. Seria o caso de perguntar: o que foi que Deus viu na época da ditadura militar?
Tem coisas que até Ele duvida. Tive a oportunidade de acompanhar a trajetória do cardeal Eugênio Sales, na qualidade de repórter da ASAPRESS, uma agência nacional de notícias arrendada pela CNBB em 1967. Também, cobri reuniões e assembleias da Conferência dos Bispos para os jornais do Rio – O Sol, O Paiz e Correio da Manhã, quando dom Eugênio era Arcebispo Primaz de Salvador. É a partir desse lugar que posso dar um modesto testemunho.
Os bispos que lutavam contra as arbitrariedades eram Helder Câmara, Waldir Calheiros, Cândido Padin, Paulo Evaristo Arns e alguns outros mais que foram vigiados e perseguidos. Mas não dom Eugênio, que jogava no time contrário. Um dos auxiliares de dom Helder, o padre Henrique, foi torturado até a morte em 1969, num crime que continua atravessado na garganta de todos nós e que esperamos seja esclarecido pela Comissão da Verdade. Padres e leigos foram presos e torturados, sem que escutássemos um pio de protesto de dom Eugênio, contrário à teologia da libertação e ao envolvimento da Igreja com os pobres.
O cardeal Eugenio Sales era um homem do poder, que amava a pompa e o rapapé, muito atuante no campo político. Foi ele um dos inspiradores das “candocas” – como Stanislaw Ponte Preta chamava as senhoras da CAMDE, a Campanha da Mulher pela Democracia. As “candocas” desenvolveram trabalhos sociais nas favelas exclusivamente com o objetivo de mobilizar setores pobres para seus objetivos golpistas. Foram elas, as “candocas”, que organizaram manifestações de rua contra o governo democraticamente eleito de João Goulart, incluindo a famigerada “Marcha da família com Deus pela liberdade”, que apoiou o golpe militar, com financiamento de multinacionais, o que foi muito bem documentado pelo cientista político René Dreifuss, em seu livro “1964: A Conquista do Estado” (Vozes, 1981). Ele teve acesso ao Caixa 2 do IPES/IBAD.
Nós, toda a torcida do Flamengo e Deus que estava vendo tudo, sabíamos que dom Eugênio era, com todo o respeito, o cardeal da ditadura. Se não sofro de amnésia – e não sofro de amnésia ou de qualquer doença neurodegenerativa – posso garantir que na época ele nem disfarçava, ao contrário manifestava publicamente orgulho do livre trânsito que tinha entre os militares e os poderosos.
“Quem tem dúvidas…basta pesquisar os textos assinados por ele no JB e n’O Globo” – escreve a jornalista Hildegard Angel, que foi colunista dos dois jornais e avaliou assim a opção preferencial do cardeal:
“A Igreja Católica, no Rio, sob a égide de dom Eugenio Salles, foi cada vez mais se distanciando dos pobres e se aproximando, cultivando, cortejando as estruturas do poder. Isso não poderia acabar bem. Acabou no menor percentual de católicos no país: 45,8%…”
Portões do Sumaré
Por isso, a jornalista estranhou – e nós também – a forma como o cardeal Eugenio Sales foi retratado no velório pelas autoridades. Ele foi apresentado como um combatente contra a ditadura, que abriu os portões da residência episcopal para abrigar os perseguidos políticos. O prefeito Eduardo Paes, em campanha eleitoral, declarou que o cardeal “defendeu a liberdade e os direitos individuais”. O governador Sérgio Cabral e até o presidente do Senado, José Sarney, insistiram no mesmo tema, apresentando dom Eugênio como o campeão “do respeito às pessoas e aos direitos humanos”.
Não foram só os políticos. O jornalista e acadêmico Luiz Paulo Horta escreveu que dom Eugênio chegou a abrigar no Rio “uma quantidade enorme de asilados políticos”, calculada, por baixo, numa estimativa do Globo, em “mais de quatro mil pessoas perseguidas por regimes militares da América do Sul”. Outro jornalista, José Casado, elevou o número para cinco mil. Ou seja, o cardeal era um agente duplo. Publicamente, apoiava a ditadura e, por baixo dos panos, na clandestinidade, ajudava quem lutava contra. Só faltou arranjarem um codinome para ele, denominado pelo papa Bento XVI como “o intrépido pastor”.
Seria possível acreditar nisso, se o jornal tivesse entrevistado um por cento das vítimas. Bastaria 50 perseguidos nos contarem como o cardeal com eles se solidarizou. No entanto, o jornal não dá o nome de uma só – umazinha – dessas cinco mil pessoas. Enquanto isto não acontecer, preferimos ficar com o corajoso depoimento de Hildegard Angel, cujo irmão Stuart, foi torturado e morto pelo Serviço de Inteligência da Aeronáutica. Sua mãe, a estilista Zuzu Angel, procurou o cardeal e bateu com a cara na porta do palácio episcopal.
Segundo Hilde, dom Eugênio “fechou os olhos às maldades cometidas durante a ditadura, fechando seus ouvidos e os portões do Sumaré aos familiares dos jovens ditos “subversivos” que lá iam levar suas súplicas, como fez com minha mãe Zuzu Angel (e isso está documentado)”. Ela acha surpreendente que os jornais queiram nos fazer acreditar “que ocorreu justo o contrário!”, como no filme “Uma cidade sem passado”.
Mas não é tão surpreendente assim. O texto de Hildegard menciona a grande habilidade, em vida, de dom Eugenio, em “manter ótimas relações com os grandes jornais, para os quais contribuiu regularmente com artigos”. As azeitadas relações com os donos dos jornais e com alguns jornalistas em postos-chave continuaram depois da morte, como é possível constatar com a cobertura do velório. A defesa de dom Eugênio, na realidade, funciona aqui como uma autodefesa da mídia e do poder.
Os jornais elogiaram, como uma virtude e uma delicadeza, o gesto do cardeal Eugenio Sales que cada vez que ia a Roma levava mamão-papaia para o papa João Paulo II, com o mesmo zelo e unção com que o senador Alfredo Nascimento levava tucumã já descascado para o café da manhã do então governador Amazonino Mendes. São os rituais do poder com seus rapapés.
“Dentro de uma sociedade, assim como os discursos, as memórias são controladas e negociadas entre diferentes grupos e diferentes sistemas de poder. Ainda que não possam ser confundidas com a “verdade”, as memórias têm valor social de “verdade” e podem ser difundidas e reproduzidas como se fossem “a verdade” – escreve Teun A. van Dijk, doutor pela Universidade de Amsterdã.
A “verdade” construída pela mídia foi capaz de fotografar até “a presença do Espírito Santo” no funeral. Um voluntário da Cruz Vermelha, Gilberto de Almeida, 59 anos, corretor de imóveis, no caminho ao velório de dom Eugênio, passou pelo abatedouro, no Engenho de Dentro, comprou uma pomba por R$ 25 e a soltou dentro da catedral. A ave voou e posou sobre o caixão: “Foi um sinal de Deus, é a presença do Espírito Santo” – berraram os jornais. Parece que vale tudo para controlar a memória, até mesmo estabelecer preço tão baixo para uma das pessoas da Santíssima Trindade. É muita falta de respeito com a fé das pessoas.
“A mídia deve ser pensada não como um lugar neutro de observação, mas como um agente produtor de imagens, representações e memória” nos diz o citado pesquisador holandês, que estudou o tratamento racista dispensado às minorias étnicas pela imprensa europeia. Para ele, os modos de produção e os meios de produção de uma imagem social sobre o passado são usados no campo da disputa política.
Nessa disputa, a mídia nos forçou a fazer os comentários que você acaba de ler, o que pode parecer indelicadeza num momento como esse de morte, de perda e de dor para os amigos do cardeal. Mas se a gente não falar agora, quando então? Stuart Angel e os que combateram a ditadura merecem que a gente corra o risco de parecer indelicado. É preciso dizer, em respeito à memória deles, que Dom Eugênio tinha suas virtudes, mas uma delas não foi, certamente, a solidariedade aos perseguidos políticos para quem os portões do Sumaré, até prova em contrário, permaneceram fechados. Que ele descanse em paz!
P.S: O jornalista amazonense Fábio Alencar foi quem me repassou o texto de Hildegard Angel, que circulou nas redes sociais. O doutor Geraldo Sá Peixoto Pinheiro, historiador e professor da Universidade Federal do Amazonas, foi quem me indicou, há anos, o filme “Uma cidade sem passado”. Quem me permitiu discutir o conceito de memória foram minhas colegas doutoras Jô Gondar e Vera Dodebei, organizadoras do livro “O que é Memória Social” (Rio de Janeiro: Contra Capa/ Programa de Pós- Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2005). Nenhum deles tem qualquer responsabilidade sobre os juízos por mim aqui emitidos.
* José Ribamar Bessa Freire e professor, coordena o Programa de Estudos dos Povos Indígenas (UERJ) e pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Memória Social (UNIRIO)
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domingo, 15 de julho de 2012
Werner Herzog - God's Angry Man (1980)
Créditos: MakingOff God's Angry Man (Glaube und Wärhung – Dr. Gene Scott, Fernsehprediger) Werner Herzog - God's Angry Man (1980) | |||||||
Poster | Sinopse | ||||||
Documentário para TV a respeito do pregador Gene Scott. (maiores informações na crítica abaixo) LEGENDAS EXCLUSIVAS!!!
|
Elenco | Informações sobre o filme | Informações sobre o release |
Gene Scott | Gênero: Documentário Diretor: Werner Herzog Duração: 44 minutos Ano de Lançamento: 1983 País de Origem: Alemanha / EUA Idioma do Áudio: Alemão / Inglês IMDB: http://www.imdb.com/title/tt0080796/ | Qualidade de Vídeo: DVD Rip Vídeo Codec: XviD Vídeo Bitrate: 1.936 Kbps Áudio Codec: MPEG1/2 L3 Áudio Bitrate: 135 kbps 48 KHz Resolução: 576 x 432 Aspect Ratio: 1.333 Formato de Tela: Tela Cheia (4x3) Frame Rate: 23.976 FPS Tamanho: 652.5 MiB Legendas: No torrent |
Crítica | ||
Enquanto esperava o período de pré-produção transcorrer para as filmagens de Fitzcarraldo no Peru, Werner Herzog não perdeu tempo, investindo na realização de dois filmes irmãos sobre desdobramentos da religiosidade americana. God's Angry Man e o posterior O Sermão de Huie, ambos de 1980, são frutos de um estado de espírito muito particular dentro do momento vivido pelo diretor em sua carreira, justamente o da realização de seu mais ambicioso projeto artístico, a ser lançado somente dois anos depois sob um véu de obstáculos como raramente o cinema terá enfrentado. Ainda que ambos os médias tenham sido relegados a um patamar próximo ao esquecimento, justificado inclusive pelo barulho que Fitzcarraldo gerou da gestação à estréia, não é possível ignorar a relevância que ambos os trabalhos possuem, mesmo após três décadas, de iluminar alguns dos interesses centrais e correntes no legado de Herzog. God's Angry Man, filme sobre a comercialização da fé — e por isso muito próximo ao que atualmente se intensifica no Brasil —, coloca em foco a controversa personalidade de Gene Scott (1929-2005), pastor protestante que, entre os anos 70 e 80, tornou-se um ícone da comunicação através de um programa (Festival da Fé) que liderava a audiência e convencia seu público, por meio de um discurso emotivo e ironicamente raivoso, a ofertar generosas quantias financeiras em nome de Deus. O curioso é que, ao invés de organizar seu material (arquivos found footage do programa, entrevistas exclusivas com Scott, registro de bastidores da TV) em tom de denúncia ou crítica direta aos questionáveis atos de quem observava, Herzog optou por aproximar-se do homem que se escondia atrás da imagem midiática evidenciando uma ambigüidade que ora se compadece, ora abomina, ora simpatiza com aquele que finalmente deixa sua máscara cair. Ao nos mostrar a rotina de um homem que vive para as câmeras — à época, os programas de Scott duravam entre 6 e 8 horas diárias e ininterruptas — e que, por isso, já diluíra sua identidade num conjunto de expectativas e códigos de conduta indiferentes à sua vontade, Herzog desconstruiu todo um conceito fílmico baseado no desequilíbrio que a realidade e a ficção sempre nele tensionam. O que seu filme faz com Gene Scott é o que nenhuma das incontáveis horas de TV poderiam extrair dele e, em contrapartida, o que ele jamais revelaria para alguém não mediado por uma câmera. Consciente de sobreviver num 'mundo de celulóide', de ocultar uma profunda tristeza sob a fachada do estrelato, finalmente Scott encontrará a possibilidade de uma imagem que não se preocupe em vesti-lo de sentidos e significados exteriores, pois ao contrário, vem dela o mais pleno desnudamento, o desejo simples e puro de ser. E se procurarmos identificar o tempo da restituição, aquele momento em que Scott é brevemente devolvido para si mesmo, este não poderá estar em outro movimento senão o do incisivo close-up dedicado por Herzog ao entrevistado, durante vários e longos minutos. Certamente o mais belo e funcional — sim, Herzog consegue fundir opostos — close já efetuado pelo diretor, eis uma proximidade que recupera todo o caráter trágico (chapliniano) do referido movimento técnico: há uma eterna dor na face que se deixa tocar pela lente, naquilo que da pele pulsa, dos vincos e rugas, de cada contorno. São nestas cenas que God's Angry Man deixa de ser um filme sobre o mercado da religião para tornar-se um retrato do desamparo humano, do corpo que, abandonado solitariamente num mundo esquecido por Deus, agoniza uma espiritualidade impossível. Parece desnecessário apontar a relação entre Gene Scott e o protagonista de Fitzcarraldo, megalomaníacos que precisaram ultrapassar os limites da razão para sobreviver num domínio simbólico da existência. Desnecessário procurar neles um reflexo de Herzog, que otimizando a espera pelo seu próximo filme, comprovou ser o movimento cinemático uma conseqüência do saber aguardar. Nandodijesus (Multiplot) |
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terça-feira, 10 de julho de 2012
Kardec Foi um Filósofo?
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segunda-feira, 9 de julho de 2012
Muçulmanos mudam regra da FIFA
A
decisão da FIFA de permitir às jogadoras dos países muçulmanos jogarem
com véu e corpo coberto é um perigoso precedente e uma grande vitória da
religião muçulmana sobre o mundo laico.
A notícia é muito mais política que esportiva e constitui a primeira
grande brecha importante dos religiosos muçulmanos no mundo laico, num
setor bastante popular como é o futebol. A França é até agora o único
país a reagir, pois decidiu continuar proibindo o uso do véu (chador) pelas jogadoras inscritas na Federação Francesa de Futebol, com base na laicidade.
Sem começar qualquer jogo, são perdedoras todas as mulheres do mundo,
porque o Ocidente laico está aceitando se submeter aos preceitos
religiosos corânicos. As jogadoras dos países muçulmanos poderão
competir com o véu, que cobre a cabeça e uma parte do rosto, mas não é
só – mesmo com temperatura elevada terão de vestir uma traje de jogging
cobrindo todo o corpo, um tanto folgado para não mostrar as formas das
jogadoras.
O pretexto de se tratar de uma questão cultural árabe ou tradição não
é procedente, pois muitas mulheres muçulmanas denunciam o véu como uma
imposição masculina e uma restrição à sua liberdade. A decisão da FIFA,
ao se dobrar ante uma exigência religiosa, anula os esforços de algumas
esportistas iranianas e árabes de obter derrogação para jogarem sem o
véu.
A francesa Anne Sugier, presidente da Liga do Direito Internacional
das Mulheres, num artigo publicado no Journal du Dimanche, em Paris,
considera a decisão da FIFA uma derrota para as mulheres e uma vitória
para os religiosos dos países do Golfo, liderados pelo Qatar, que sob
uma aparente promoção do esporte feminino reforçam a condição da mulher
como cidadã de segunda classe.
Anne Sugier lembra algumas mulheres campeãs olímpicas que desafiaram
os religiosos muçulmanos competindo de cabeça nua e no traje normal dos
atletas, como, em Los Angeles, em 1984, a marroquina Nawal
El-Moutawakel, primeira campeã olímpica africana e muçulmana, e Hassiba
Boulmerka, primeira medalha de ouro da Argélia, em 1991, em Barcelona,
que chegou a ser ameaçada de morte pelos islamitas argelinos do FIS e
que dedicou sua vitória às mulheres argelinas.
Com a desculpa de se tratar de uma simples questão cultural o uso de
um tecido cobrindo os cabelos (mas sem citar que as jogadoras são
obrigadas a jogar de corpo totalmente coberto) o International Football
Association Board ignorou o Artigo 4 do Regulamento da FIFA que proibe
qualquer concessão política ou religiosa aos jogadores.
A pressão crescente veio da CAF, Confederação Asiática de Futebol,
que representa mais de 220 milhões de muçulmanos, apoiada por um dos
vice-presidentes da FIFA, príncipe Ali ben Al-Hussein da Jordânia, e
pelo Irã. Essa brecha na laicidade do esporte pode chamar outras – a das
jogadoras das seleções femininas dos países não muçulmanos serem
convidadas a usarem o véu, quando os jogos forem em país muçulmano, a
pretexto de respeito de sua cultura (e não de sua religião!).
Com a esperada popularização do futebol feminino, a singularidade das
equipes de países muçulmanos nos encontros internacionais poderá
provocar protestos das mulheres ocidentais mas será, ao mesmo tempo, uma
publicidade religiosa até hoje ausente nos estádios. E logo mais haverá
certamente novas medidas religiosas aceitas tanto pela FIFA como pelo
COI.
Mas não é só no futebol a infiltração da lei corânica – os pais pedem
dispensa das meninas nos cursos mistos de natação nas escolas, as
mulheres não aceitam ser examinadas por médicos homens e maternidades
são obrigadas a prever médicas no trabalho de parto de mulheres
muçulmanas.
Traço marcante que envolveu essa decisão da FIFA – a insensibilidade
geral da imprensa que parece ter achado normal como se fosse uma
abertura da FIFA aos países muçulmanos e não uma restrição religiosa
local às mulheres agora imposta de maneira global.
E nossa visão da mulher ? Um objeto de cobiça e desejos pecaminosos
que deve ser obrigada a ficar coberta da cabeça aos pés para não
despertar lascívia ? Que as mulheres reajam, mesmo no Ocidente, antes
que seja tarde demais – na Tunísia, Líbia e Egito, onde podiam passear e
ir à escola, universidade ou trabalho com roupas normais, as mulheres
voltaram a ser obrigadas a colocar o véu e a usar roupas e mangas longas
para cobrir seu corpo. Foi o inesperado retrocesso resultante da
revolução árabe, numa mistura de religiosidade com machismo. (Publicado originalmente no site Direto da Redação)
Rui Martins, correspondente em Genebra
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quinta-feira, 24 de maio de 2012
Israel manda demolir povoado palestino na Cisjordânia
Todas
as casas do povoado beduíno de Deqeiqa, no sul de Hebron, receberam
ordem militar de demolição, em um mais um exemplo da política de
expulsão israelense na Cisjordânia ocupada, segundo denunciam
organizações de direitos humanos.
Este povoado, situado nas empobrecidas e desérticas colinas do sul de Hebron, é lar de cerca de 400 pessoas que vivem da pecuária e não têm eletricidade, nem água corrente. Em janeiro, o exército israelense demoliu 17 estruturas, entre elas um sala de aula, precários estábulos e 12 casas, e agora outras 75 estruturas, a maioria casas, também correm o risco de serem derrubadas.
Segundo Alon Cohen, da ONG israelense Bomkom, o problema com Deqeiqa é que esta área "está situada a 650 metros da linha verde, e (os israelenses) querem transferir a população quatro quilômetros ao norte, ao povoado de Hameda", uma medida que considera "impossível", tanto pela falta de espaço, como por questões culturais já que os habitantes de Hameda são de outra tribo beduína.
Yariv Mohar, porta-voz dos Rabinos pelos Direitos Humanos, acredita que as autoridades israelenses "querem anexar o sul de Hebron para que passe a ser parte do Neguev, porque está muito perto da fronteira e tem poucos habitantes palestinos".
O argumento do Exército é que Deqeiqa, fora dos mapas israelenses, é um mero "agrupamento de casas" e que não pode se manter como comunidade.
O porta-voz da Coordenação das Atividades do Governo israelense nos Territórios Palestinos (COGAT), o comandante Gay Inbar, disse à Agência Efe que o Exército "ainda está examinando uma série de alternativas para melhorar o padrão de vida das povoações" nessa zona e disse que "quando souberem as opções abrirão um diálogo com os líderes tribais".
Contudo, os moradores deste povoado disseram que nenhum oficial entrou em contato com eles, exceto as ordens de demolição, e que estão há mais de um século vivendo nessas terras, e que não têm para onde ir.
Yousef Nayada, líder local, denunciou que "os israelenses constroem casas de luxo nos assentamentos enquanto retiram as dos palestinos". Sobre a transição para Hameda, o representante se opõe: "Lá (Hameda) não resta um só metro quadrado livre. Temos três mil ovelhas e cabras e 150 camelos, precisamos de espaço".
Para Cohen, existe um "claro apartheid no sistema de planejamento urbano na Área C", cerca de 60% da Cisjordânia, e onde Israel tem controle administrativo e de segurança, segundo estabeleceram os Acordos de Oslo.
"O assentamento de Carmel tem 2,2 mil dunams (220 hectares) para 360 habitantes, enquanto Hameda tem 300 (30 hectares) para os mesmos habitantes, e querem colocar lá os 400 de Deqeiqa".
Khalil Nayada, morador de Deqeiqa e pai de 12 filhos, disse que se sente angustiado depois que recebeu as ordens de demolição para suas três propriedades: um estábulo e dois edifícios de barro.
"Tenho que manter 14 pessoas. Temos 50 cabras e no ano passado, quase não choveu, gastamos cerca de 45 mil shekels (8,9 mil euros) e tivemos uma renda de 30 mil (5,9 mil euros)", disse.
Apesar das dificuldades, Nayada não quer sair da terra povoada por seus antepassados: "Meu avô nasceu neste povoado e morreu aqui em 1951".
A advogada Avital Sharon, que apelou no Supremo Tribunal contra as 34 ordens de demolição emitidas em novembro, explica que a corte não concedeu uma liminar para paralisar a demolição até que saia a sentença, por isso as casas poderiam ser derrubadas a partir de quinta-feira.
Avital também não vê uma solução na transferência forçosa para Hameda, sugerida pelas autoridades militares israelenses, já que "os beduínos têm sua própria terra natal, que todas as tribos reconhecem, e não podem ir até outro povoado e pegar suas terras. As famílias de Hameda nunca o permitirão", disse.
"Israel não faz planos urbanísticos para os beduínos, mas sim para os assentamentos. A discriminação é tão óbvia que não pode ser ignorada. Inclusive, legalizam retroativamente as colônias e descumprem ordenes de demolição dos tribunais. Quando querem, o fazem, mas não será assim em Deqeiqa", concluiu.
Fonte: EFE, Patria Latina
Este povoado, situado nas empobrecidas e desérticas colinas do sul de Hebron, é lar de cerca de 400 pessoas que vivem da pecuária e não têm eletricidade, nem água corrente. Em janeiro, o exército israelense demoliu 17 estruturas, entre elas um sala de aula, precários estábulos e 12 casas, e agora outras 75 estruturas, a maioria casas, também correm o risco de serem derrubadas.
Segundo Alon Cohen, da ONG israelense Bomkom, o problema com Deqeiqa é que esta área "está situada a 650 metros da linha verde, e (os israelenses) querem transferir a população quatro quilômetros ao norte, ao povoado de Hameda", uma medida que considera "impossível", tanto pela falta de espaço, como por questões culturais já que os habitantes de Hameda são de outra tribo beduína.
Yariv Mohar, porta-voz dos Rabinos pelos Direitos Humanos, acredita que as autoridades israelenses "querem anexar o sul de Hebron para que passe a ser parte do Neguev, porque está muito perto da fronteira e tem poucos habitantes palestinos".
O argumento do Exército é que Deqeiqa, fora dos mapas israelenses, é um mero "agrupamento de casas" e que não pode se manter como comunidade.
O porta-voz da Coordenação das Atividades do Governo israelense nos Territórios Palestinos (COGAT), o comandante Gay Inbar, disse à Agência Efe que o Exército "ainda está examinando uma série de alternativas para melhorar o padrão de vida das povoações" nessa zona e disse que "quando souberem as opções abrirão um diálogo com os líderes tribais".
Contudo, os moradores deste povoado disseram que nenhum oficial entrou em contato com eles, exceto as ordens de demolição, e que estão há mais de um século vivendo nessas terras, e que não têm para onde ir.
Yousef Nayada, líder local, denunciou que "os israelenses constroem casas de luxo nos assentamentos enquanto retiram as dos palestinos". Sobre a transição para Hameda, o representante se opõe: "Lá (Hameda) não resta um só metro quadrado livre. Temos três mil ovelhas e cabras e 150 camelos, precisamos de espaço".
Para Cohen, existe um "claro apartheid no sistema de planejamento urbano na Área C", cerca de 60% da Cisjordânia, e onde Israel tem controle administrativo e de segurança, segundo estabeleceram os Acordos de Oslo.
"O assentamento de Carmel tem 2,2 mil dunams (220 hectares) para 360 habitantes, enquanto Hameda tem 300 (30 hectares) para os mesmos habitantes, e querem colocar lá os 400 de Deqeiqa".
Khalil Nayada, morador de Deqeiqa e pai de 12 filhos, disse que se sente angustiado depois que recebeu as ordens de demolição para suas três propriedades: um estábulo e dois edifícios de barro.
"Tenho que manter 14 pessoas. Temos 50 cabras e no ano passado, quase não choveu, gastamos cerca de 45 mil shekels (8,9 mil euros) e tivemos uma renda de 30 mil (5,9 mil euros)", disse.
Apesar das dificuldades, Nayada não quer sair da terra povoada por seus antepassados: "Meu avô nasceu neste povoado e morreu aqui em 1951".
A advogada Avital Sharon, que apelou no Supremo Tribunal contra as 34 ordens de demolição emitidas em novembro, explica que a corte não concedeu uma liminar para paralisar a demolição até que saia a sentença, por isso as casas poderiam ser derrubadas a partir de quinta-feira.
Avital também não vê uma solução na transferência forçosa para Hameda, sugerida pelas autoridades militares israelenses, já que "os beduínos têm sua própria terra natal, que todas as tribos reconhecem, e não podem ir até outro povoado e pegar suas terras. As famílias de Hameda nunca o permitirão", disse.
"Israel não faz planos urbanísticos para os beduínos, mas sim para os assentamentos. A discriminação é tão óbvia que não pode ser ignorada. Inclusive, legalizam retroativamente as colônias e descumprem ordenes de demolição dos tribunais. Quando querem, o fazem, mas não será assim em Deqeiqa", concluiu.
Fonte: EFE, Patria Latina
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sábado, 19 de maio de 2012
64 anos do Nakba: A limpeza étnica da Palestina e as responsabilidades ocidental e brasileira
Por Idelber Avelar na REVISTA FORUM
I -Palestina Árabe
A derrota que os árabes impuseram ao domínio bizantino na Palestina,
confirmado entre os anos 633 e 638 da era cristã, foi bem recebida pela
população local,
tanto por cristãos como por judeus e samaritanos, que ainda eram grupos
numericamente importantes na região. Estes últimos grupos tinham todos
os motivos para preferir a organização árabe, vítimas que já eram da
intensa perseguição cristã, que só pioraria com os séculos (aliás, no
início do período árabe na Palestina—que se estenderia pelos próximos
1.300 anos–, uma pequena população judaica voltaria a se estabelecer em
paz em Jerusalém, depois de 500 anos de ausência, que datavam da
sangrenta expulsão que os romanos lhe haviam imposto no segundo século
da era cristã). O período árabe também foi bem recebido pelos cristãos
da região, que “eram arameus [e] não ficaram incomodados pela
organização árabe, pois a etnia era semelhante, de origem semítica”, não
tendo eles “motivos para gostar da administração bizantina, de origem
romana, não semítica”1.
Na Palestina árabe, apesar de um imposto específico para judeus e
cristãos, eles gozavam de proteção como “Povos do Livro”, e a atmosfera
não tinha muito em comum com o regime de terrorífica perseguição que se
instalaria nas regiões controladas pelo Cristianismo. A Sura 2 de Maomé
explicitamente rejeita a conversão e o proselitismo violento: “Não
obrigueis ninguém em assuntos de religião”. A violência sectária só
voltaria a se disseminar na Terra Santa com as empresas cristãs de
conquista conhecidas
como Cruzadas, a primeira das quais foi proclamada pelo Papa Urbano II
em 1095 e resultou no estabelecimento do “Reino de Jerusalém”, em 1099,
uma fortaleza de reduzidas relações com seu entorno árabe, ironicamente
semelhante, neste aspecto, ao enjaulamento que as construções
israelenses ilegais hoje impõem a Jerusalém.
As cruzadas à Palestina enfrentariam os muçulmanos locais aos
invasores cristãos, com a pequena população judaica da região
frequentemente lutando ao lado daqueles contra estes, como em 1099, em
Jerusalém, e em 1100, em Haifa. No século XII, na época da Segunda
Cruzada, os muçulmanos se reunificam politicamente sob o comando do
General Saladino, curdo nascido em Cairo. Saladino recupera Damasco
(1174), Acre, Jafa, Beirute, e a própria Jerusalém, em 1187. Na Terceira
Cruzada, Ricardo Coração de Leão derrotaria Saladino, forçando-o a
negociar e celebrar o tratado de paz que “abriu caminho a um período de
calmaria militar e tolerância religiosa na Palestina”2, permitindo aos cristãos visitar os lugares sagrados. A Quarta
Cruzada (1199) planejava tomar o Egito por mar, mas fez um desvio para a
região da atual Turquia, instalando o Império Latino de Constantinopla.
A Palestina só voltaria a ser afetada pela Cruzada de Federico II que,
conhecedor da língua árabe, foi capaz de “obter do sultão a entrega
pacífica, embora condicionada, de várias terras e das cidades de Belém,
Nazaré e Jerusalém, onde o imperador entrou e foi coroado em 1229”3.
Já em 1244, Jerusalém voltaria ao poder dos árabes, e o último reduto
cristão na Palestina, São João de Acre, cairia em 1291. O controle de
toda a área entre o Jordão e o Mar Mediterrâneo—os atuais territórios de
Israel e da Palestina Ocupada—permaneceria em mãos árabes até a invasão
turco-otomana, em 1517. Mesmo durante o período marcado pela sua
incorporação ao Império Turco-Otomano (de 1517 até 1917, com uma
interrupção egípcia durante a década de 1830), a Palestina manteria sua
enorme maioria árabe, organizada segundo laços sociais bem arraigados na
região, que o império turco não alteraria significativamente.
As sucessivas demonstrações de desmemória na política ocidental para o
Oriente Médio contrastam com o forte arraigo que certos eventos
históricos possuem na reminiscência das massas árabes. Em 1993, acusado
de estar celebrando com os israelenses, em Oslo, um tratado que não
concedia nada aos palestinos e o instalava na posição de cão de guarda
de Israel, o líder Yasser Arafat insistia, um pouco pateticamente (dadas
as condições em que negociava), que ele não celebraria qualquer paz,
mas “a paz de Saladino”. O leitor dos EUA não tinha a menor noção do que
se referenciava ali, mas o povo árabe não deixava de notar a ironia
involuntária da impotente insistência de Arafat na menção a Saladino.
Antes de entrar no período histórico que imediatamente influencia o
curso dos acontecimentos que nos ocupam, portanto, é boa ideia lembrar
alguns fatos que se desprendem desse esquemático sumário de alguns
séculos de história palestina. Inicia-se no século VII uma intensa
arabização da região, que já era visível em séculos anteriores a Maomé,
mas que solidifica suas raízes com a chegada dos árabes a Jerusalém, em
638, e a construção da mesquita Al-Aqsa. Durante os próximos 1.300 anos
os árabes serão a grande maioria em toda a região da Palestina. No
período das Cruzadas, estima-se que havia em torno de 1.000 famílias
judias na região.4
Em 1914, já depois das primeiras ondas migratórias estimuladas pelo
sionismo, a Palestina (ainda, naquele momento, sob domínio otomano)
tinha uma população de 657.000 árabes muçulmanos, 81.000 árabes cristãos
e 59.000 judeus.5
De acordo com o censo da Palestina de 1922, feito pelos britânicos, a
população era 78% muçulmana, 9,6% cristã (árabe, claro) e 11% judaica.
No entanto, no jornalismo “ponderado” sobre a região, mesmo depois de 60
anos de limpeza étnica e 43 anos de ocupação ilegal, você verá
desinformados funcionários da grande mídia dissertando, “mui
ponderadamente”, sobre os “direitos” dos dois povos sobre a Palestina.
O domínio otomano sobre a Palestina dura de 1517 a 1917, com uma
interrupção de 10 anos de administração egípcia na década de 1830. A
submissão ao império turco não altera de forma significativa o regime de
posse baseado na renda agrícola das terras, já visível no período do
sultanato, anterior aos otomanos. Esse sistema relativamente
descentralizado de vilas e aldeias, com arrecadação por senhores de
terras e trabalho de cultivo por lavradores, arraiga-se na região e
ajuda a explicar o terror dos palestinos com—e sua impotência para se
defender contra—a violenta campanha de confisco de terras e separação de
raças que se inicia com o armamento dos sionistas, nas décadas que
antecedem a fundação do estado de Israel. Nas primeiras décadas do
século XX, o sionismo armado traria à região um modelo eminentemente
europeu de organização territorial e compreensão do espaço,
caracterizado pela acumulação, posse e construção de barrreiras
fronteiriças. Munidos desse olhar que historicamente relativiza os
fatos, nos preparamos para explicar alguns “mistérios” que cercam a
história recente: como foi possível que metade de uma população árabe
palestina que já se media em bem mais de um milhão tenha sido expulsa
tão rapidamente por algumas dezenas de milhares de colonos sionistas?
Como foi possível que o nascente estado judeu tenha adquirido uma
supremacia tão incontestável no conflito com seus vizinhos árabes e com
os palestinos? Para repetir a pergunta que abre um artigo já clássico de
Walid Khalidi: Por que os palestinos foram embora?6Observando
a realidade relativamente fluida de comunicação entre as aldeias
árabes, a intensa organização acumuladora de terras e de armas entre os
colonos sionistas e o papel das grandes potências–particularmente da
Grã-Bretanha—no processo, começamos a vislumbrar a explicação, que só se
completará, claro, com um estudo do que aconteceu em 1948. A
compreensão dessa diferença nos regimes de posse da terra, no entanto, é
parte da explicação da vitória sionista. Essa explicação, aliás, não
tem a menor necessidade de recorrer a estereótipos antissemitas do judeu
mais esperto ou conspirador, nem a estereótipos antissemitas do árabe
mais atrasado ou indolente, nem a falsificações da mitologia oficial
israelense, que repetiram durante décadas que os palestinos saíram
voluntariamente ou obedecendo a misteriosas ordens radiofônicas dos
próprios árabes, mentiras já cabalmente corrigidas pela própria
historiografia israelense.
II – Da Declaração de Balfour (1917) à Palestina do Mandato Britânico (1922-48)
Quando se estuda o processo histórico pelo qual se chegou à atual,
desastrada situação na Terra Santa, salta aos olhos a responsabilidade
das potências ocidentais que, ao longo do século XX (para nos atermos à
história mais recente), jogaram um jogo duplo, perigoso e marcado pela
reversão do que se havia dito antes. Pensando em seu próprio interesse e
em completa desconsideração pelo destino de milhões de civis inocentes,
a Grã-Bretanha literalmente toca fogo na região, ao fazer promessas
contraditórias aos povos árabes e ao movimento sionista. O reino de Sua
Majestade não possui sequer a desculpa de que se tratava de uma causa
nobre. Era 1916 e 1917, e tratava-se da consolidação de sua coalizão na
Primeira Guerra Mundial. Ao contrário da Segunda Guerra, defensável como
reação legítima à agressão nazi-fascista, a Primeira é um típico
conflito napoleônico-clausewitziano moderno, um choque entre impérios. A
Turquia, aliada dos alemães, mantinha a Palestina árabe sob o seu
império otomano (como se viu acima, um jugo relativamente frouxo, onde a
vida palestina seguia com considerável autonomia, situação que nem de
longe tinha nada em comum com o horror das posteriores expulsão e
ocupação israelenses). Interessada em atrair os árabes, a Grã-Bretanha
promete para depois da guerra, em correspondência oficial entre Sir
Henry Mac Mahon e o xeque Hussein, de Meca, a criação de um estado
independente nas províncias do império turco em que se falava o árabe. A
luta dos árabes contra a dominação otomana acabaria sendo decisiva para
a vitória de seus aliados britânicos naquele front. Toda a evidência
histórica demonstra que as lideranças árabes esperavam que os britânicos
cumprissem sua palavra e confirmassem o estado árabe independente
depois da guerra. Não foi o que aconteceu.
Ter prometido algo aos árabes não impediu que a Grã-Bretanha
celebrasse com a sua aliada França um tratado contraditório com a
promessa anterior. Os acordos de Sykes-Picot, de 1916, entre
Grã-Bretanha e França, reservavam aos franceses a Síria e o Líbano. Em
1917, as forças otomanas se rendem ao general britânico Allenby em
Jerusalém e em 1918 se confirma o fim do regime otomano na Palestina. O
Tratado de Versalhes, de 1919, selaria o arranjo de Sykes-Picot entre
França e Grã-Bretanha, deixando aos britânicos a área da Jordânia (então
chamada de Transjordânia), do Iraque e da Palestina. A Liga das Nações,
fundada depois da guerra, avalizaria esse arranjo, segundo o qual as
duas potências ocidentais se responsabilizariam por um “mandato”
temporário sobre essas regiões, até a sua independência formal. Em 22 de
julho de 1922, a Liga das Nações aprova o mandato britânico na
Palestina, que deixaria como legado o progressivo armamento dos
colonizadores sionistas e a catástrofe palestina de 1948.
Ao mesmo tempo em que prometia independência aos árabes, o império
britânico fazia sua famosa promessa ao movimento sionista internacional,
a Declaração de Balfour (1917), patentemente contraditória com a
promessa feita aos árabes e com o próprio arranjo subjacente a
Sykes-Picot e a Versalhes. Enviada pelo secretário exterior britânico
Arthur James Balfour ao Barão Rotschild, para transmissão à Federação
Sionista da Grã-Bretanha e da Irlanda, a declaração mudaria a história
do Oriente Médio: “O governo de Sua Majestade vê favoravelmente o
estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu, e
usará seus melhores esforços para facilitar a realização desse objetivo,
ficando claramente entendido que nada será feito que possa prejudicar
os direitos civis e religiosos das comunidades não judias existentes na
Palestina, ou os direitos e status político desfrutados por judeus em
qualquer outro país”. Apesar de que a declaração mencionava a
preservação de todos os direitos da população nativa, é evidente que
“Balfour não tinha nenhum interesse em consultar os árabes da Palestina
acerca de seu futuro”7.
Em suas memórias, Lloyd-George, primeiro-ministro em 1917, se refere à
declaração como uma recompensa a Chaim Weizmann, um dos líderes
sionistas mais importantes daquele momento (depois primeiro presidente
de Israel) e químico que havia desenvolvido um método de sintetizar a
acetona na produção de pólvora. A declaração também está inserida na
tentativa de mobilizar as comunidades judaicas da Rússia e dos EUA no
apoio aos esforços de guerra britânicos, e termina sendo um enorme
estímulo ao movimento sionista. Depois da vitória aliada, o próprio
Chaim Weizmann participaria da Conferência de Paz de Paris, em 1919,
clamando por uma “Palestina tão judia como a Inglaterra é inglesa”8,
num momento em que os judeus representavam não mais que 10% da
população da Palestina. No ano seguinte, fundava-se na Palestina a
Hagana, organização paramilitar judaica depois responsável pelo
extermínio ou limpeza étnica de centenas de aldeias palestinas.
Só depois de três décadas (1880-1910) de migração, compra de terras e
armamento sionistas é que aparecem os primeiros registros de
preocupação entre as lideranças palestinas. Em 06 de maio de 1911, o
palestino e membro do parlamento otomano, Said al-Husayni, apontava que
“os judeus planejam criar um estado na área que incluirá a Palestina, a
Síria e o Iraque”9.
Segundo o historiador israelense Ilan Pappe, já entre 1905 e 1910 há
alguma evidência de discussão, entre líderes palestinos, do fenômeno do
sionismo como movimento político que acumulava poder e terra. Mas só a
partir da queda do regime otomano na Palestina (1917) e o começo do
período britânico (ocupação em 1918, mandato da Liga das Nações em
1922), o movimento sionista se lançaria paulatinamente a um plano de
limpeza étnica dos árabes. Ali passa a ser visível a preocupação
sistemática e, por vezes, o pânico das lideranças palestinas com as
ondas migratórias, a acumulação de terras e a violência física que se
iniciava. Mas ao longo das duas últimas décadas do século XIX e das duas
primeiras do século XX, a imigração sionista não esteve entre as
grandes preocupações dos palestinos.
Na década de 1920, os palestinos representavam ainda uma maioria de
80% a 90% na região. A tentativa inglesa de construir estruturas
paritárias que reconciliassem as promessas contraditórias feitas por
eles ao povo árabe e ao movimento sionista encontrou compreensível
resistência entre os palestinos, que “se recusaram, no começo, a aceitar
a sugestão britânica de paridade, especialmente uma paridade que os
colocava na prática em desvantagem—o que incentivou os líderes sionistas
a endossarem-na”10.
Começa a se desenhar ali um paradigma que seria reconhecível até os
dias de hoje: 1) instala-se uma mediação ocidental que recomenda uma
solução patentemente favorável ao sionismo; 2) os árabes protestam,
apontando, como no caso em questão, que a paridade entre um povo que
representa 90% da população e outro que totaliza 10% contraria o mais
elementar princípio da democracia; 3) a liderança sionista, com intenso
trabalho de relações públicas, manifesta concordância tática com a
solução apresentada, sabendo que a recusa árabe os coloca na posição de,
ao mesmo tempo, aceitar um plano e não se comprometer com ele; 4)
enfraquecidos politica e militarmente, os representantes árabes voltam
atrás e aceitam a solução originalmente apresentada pela potência
ocidental; 5) ante a concordância árabe com o plano, é a vez da
liderança sionista dizer que a solução lhe é inaceitável, o que lhe
permite arrastar o impasse e, a partir de sua posição de força,
aboncanhar mais e mais, ao mesmo tempo em que adia outra vez uma solução
definitiva; a vitória não impede que a liderança sionista prolongue o
impasse, reinstalado por um aumento das suas exigências; 6) esse
prolongamento faz com que todo o ciclo se reinicie, com mais concessões
árabes e mais impasse, até o ponto a que chegamos hoje, em que a
população palestina já não tem o que oferecer, exceto alguma forma
mágica de desaparição. Esse filme se repete com macabra previsibilidade,
ante o olhar conivente das potências cúmplices (Grã-Bretanha e, depois,
os EUA), desde 1928, vinte anos antes da fundação do estado de Israel. É
a data em que as lideranças palestinas, “apreensivas com a crescente
imigração judia ao país e com a expansão de seus assentamentos
colonizadores, concordam com a fórmula [paritária] como uma base para as
negociações”11.
É a data em que os sionistas já não a aceitam e os britânicos
permanecem de braços cruzados. Esses mesmos sete passos se repetirão em
1947-48, no episódio que os apologistas da ocupação israelense descrevem
como o momento em que as Nações Unidas ofereceram um plano de partição
“que os judeus aceitaram e os árabes recusaram”. Já veremos adiante todo
o contexto que essa frase omite.
Entre 1924 e 1928 chegam mais 67.000 judeus (metade dos quais
oriundos da Polônia), elevando a população judaica para 16% do total da
Palestina do Mandato. Naquele momento, os judeus são donos de 4% da
terra na Palestina. O censo de 1931 registra uma população de 1,03
milhão de almas, 16,9% judeus. A não implementação, por parte da
Grã-Bretanha, da fórmula paritária que ela própria havia proposto, leva à
rebelião árabe de 1929, o primeiro grande sinal de descontentamento com
a política imposta no Mandato. Imagine um povo que representa quase 85%
da população se rebelando, em sua própria terra, para ter a paridade
que lhe havia sido proposta com os outros 15% que acabavam de chegar.
Agora imagine que a autoridade administrativa responsável pela proposta
se beneficiara da colaboração desse povo, como aliado seu, numa guerra
mundial, e que a moeda de troca oferecida por essa colaboração não era
paridade nenhuma, mas um estado seu, autônomo, em suas terras. Com isso
você terá os elementos centrais para entender a primeira rebelião de
desobediência civil árabe na Palestina moderna. Os confrontos em torno
ao Muro das Lamentações em 1929 levam à morte de 133 judeus e 116
árabes, a maioria por mãos inglesas.12 Em 1931, funda-se o Irgun, outra organização paramilitar judia que se caracterizaria pelos ataques sangrentos aos árabes.
Ao se completar uma década e meia da queda do regime otomano e uma
década da implantação do Mandato Britânico na Palestina, vão se
configurando os elementos que produziriam a tragédia: 1) o fim da ameaça
otomana ao sionismo, que depois de 15 anos já não tem que temer
qualquer eventual expulsão sua da Palestina vinda do regime de Istambul;
2) o pesado armamento de grupos paramilitares sionistas como a Hagana e
o Irgun, que vão acentuando a escolha por conquista e violência; 3) a
perplexidade das lideranças palestinas, arraigadas em séculos de
organização social descentralizada e não equipadas por sua experiência
para se contrapor de forma efetiva à ofensiva territorial e armamentista
do sionismo; 4) a incapacidade de setores das elites árabes de perceber
a natureza do fenômeno sionista, vendo-o muito mais como uma “tentativa
irresponsável por parte da Europa de transferir ao país o seu povo mais
pobre e sem estado”13;
e evidentemente 5) a subida ao poder do Partido Nacional Socialista
alemão, que em menos de uma década alçaria 19 séculos de antissemitismo a
níveis jamais vistos, com a intensa campanha de perseguições, agressões
bélicas e matanças que culmina, já numa Europa em guerra, com o
genocídio de 6 milhões de judeus.
Qual é, então, a Palestina que assiste à invasão hitlerista da
Polônia que dá início à Segunda Guerra Mundial em 1939? Robert Fisk
acerta ao descrevê-la como presa a uma “atmosfera de suspeita, paranóia e
intenso sofrimento”, tanto para árabes como para judeus, “os primeiros
com medo de a Grã-Bretanha acabar autorizando a fundação do estado
israelense em suas terras, e os segundos observando a aniquilação de sua
raça na Europa”14.
Não há dúvidas de que, na medida em que vão ficando visíveis as
dimensões do Holocausto judeu na Europa, reforça-se a percepção sionista
de que a implantação de seu estado na Palestina é uma questão de
sobrevivência. Mas antes mesmo do início da Segunda Guerra Mundial, em
1938, a voz de historiadores como George Antonius já se levantava contra
a eventual “resolução” do problema às custas dos árabes palestinos:
O tratamento dado aos judeus da Alemanha e outros países europeus é uma vergonha para seus autores e para a civilização moderna; mas a posteridade não exonerará nenhum país que não consiga enfrentar sua parte dos sacrifícios necessários para aliviar o sofrimento e a angústia dos judeus. Impor a maior parte da carga à Palestina árabe é uma miserável forma de esquivar-se das responsabilidades que deveriam recair sobre todo o mundo civilizado. Também é moralmente vergonhoso. Nenhum código moral pode justificar a perseguição de um povo em uma tentativa de pôr fim à perseguição de outro. O remédio para a expulsão dos judeus da Alemanha não deve ser buscado na expulsão dos árabes de sua pátria; e também não se conseguirá o alívio da angústia dos judeus às custas da angústia de um povo inocente e pacífico.15
Seria difícil formular o protesto em termos mais claros e moralmente
firmes que os de Antonius. Suas palavras datam de 1938 e são, portanto,
anteriores à guerra e aos horrores dos fornos crematórios nazistas;
precedem, em uma década inteira, a fundação do estado de Israel e a
expulsão de 750.000 palestinos de suas terras. Mais de sete décadas
depois de enunciadas, elas ainda ecoam em sua atualidade e retidão
ética.
III – A responsabilidade da diplomacia brasileira no Nakba: Oswaldo Aranha
Antes de transferir a questão da Palestina às mãos das Nações Unidas,
em fevereiro de 1947, os ingleses apresentaram a proposta de um estado
binacional, rejeitada pelos sionistas. Na mitologia oficial israelense, é
frequente a referência à rejeição árabe do plano de partição
apresentado pela ONU em 1947, mas é muito menos comum qualquer menção à
rejeição sionista do plano inglês de um estado binacional. Já antes da
transferência da questão à ONU, a liderança sionista tinha bastante
claro que a Grã-Bretanha saía da Segunda Guerra Mundial como uma
potência de segunda ordem, muito mais interessada, portanto, em
abandonar o imbróglio da Palestina que em ajudar a resolvê-lo. Também já
estava claro para os sionistas que só restavam os britânicos entre eles
e a execução do plano de limpeza étnica, e que a saída britânica da
região era iminente. O imperialismo ocidental mais uma vez largava um
desastre de sua criação nas mãos de uma população nativa não equipada
para resolvê-lo. Qualquer semelhança com o Iraque atual não é mera
coincidência.
O Brasil também tem sua responsabilidade histórica no arranjo que
produz a catástrofe palestina. Foi Oswaldo Aranha, diplomata brasileiro,
quem presidiu as discussões que levariam à fundação do estado de
Israel. Até mesmo a hagiográfica biografia de Aranha escrita pelo
norte-americano Stanley Hilton dá alguma ideia do que foram as manobras
do diplomata brasileiro. Convocado pelo general Dutra em 1947, Aranha
seria o representante brasileiro no Conselho de Segurança da recém
fundada Organização das Nações Unidas. Depois, seria eleito presidente
da sessão especial da Assembleia Geral encarregada de discutir o
problema da Palestina. Aranha prometeria aos representantes árabes
“plena liberdade de discussão” do tema, logo depois que a Assembleia
rejeitara uma proposta árabe para que se incluísse na agenda a questão
da independência da Palestina. Não foi o que aconteceu. Ante a
observação do Grã Mufti de Jerusalém, de que “os judeus queriam se
apoderar da Palestina para sua maior expansão na região”, Aranha
retrucou que “a opinião do Mufti não me interessa”16.
A recomendação do comitê enviado à Palestina foi favorável ao ponto de
vista sionista, ou seja, a partilha, por uma maioria de sete votos (num
total de onze). Mas na Asssembleia Geral, vinte países se abstiveram e a
recomendação não teve os dois terços necessários. Hilton relata que os
últimos dias de novembro foram de crescente tensão, e que apesar das
declarações públicas de Aranha, de que não exerceria nenhuma influência,
sua atuação nos bastidores era fortemente alinhada com os sionistas,
fato reconhecido por Abba Eban, membro da equipe negociadora da Agência
Judaica na ONU17.
Quando a liderança sionista percebe que ainda não detinha a maioria,
inicia uma manobra pelo adiamento da votação. Aranha “inteirado da
situação, usou de sua autoridade para ajudar: quando terminaram alguns
discursos protelatórios encomendados, anunciou ‘com irreverência’ que,
sendo período de férias nos Estados Unidos, seria justo que a Assembleia
o respeitasse e suspendeu a sessão”18.
Quando se reabriram os trabalhos, no dia 29 de novembro, eram os árabes
que sentiam que haviam perdido terreno. Tentaram adiar o voto. Aranha
ignorou uma moção do Irã, que pedia um reexame da questão palestina e um
adiamento dos trabalhos para janeiro de 1948. Aranha, que tinha “a mão
mais rápida no martelo que já vi”, segundo a expressão de Abba Eban,
procedeu a conduzir a votação, que aprovou a partição da Palestina por
33 votos a favor, 13 contra e 10 abstenções. Note-se aí, claro, a
limitada representatividade da ONU naquele momento anterior à
descolonização na África e Ásia. Os árabes, num padrão que se repetiria
ao longo do anos, deixaram o espaço livre para os sionistas ao se
retirarem do recinto. Chaim Weizmann, que seria o primeiro presidente de
Israel, testemunhou a Aranha que “a sessão da Assembleia não poderia
ter terminado com esta decisão histórica [...] se não fosse vosso
esforço persistente e vossa devoção como presidente”19.
Em 29 de novembro de 1947, quando a ONU adotou a resolução de
partição da Palestina, os árabes representavam dois terços da população
da região. Eles eram aproximadamente 90% no início do Mandato Britânico,
em 1922. A partição proposta pelo Comitê Especial das Nações Unidas
para a Palestina (UNSCOP, pela sigla em inglês) concedia ao terço judeu
nada menos que 56% do território, deixando aos dois terços árabes
somente 44% da terra. Por pressões do Vaticano e das nações católicas, a
resolução da partição reservava à cidade de Jerusalém (de população de
200.000 pessoas, divididas mais ou menos igualmente entre árabes e
judeus) a condição de área internacionalmente governada. A divisão
demográfica dos dois putativos países era bizarra: no estado árabe,
deveriam viver 818.000 palestinos, hospedando 10.000 judeus. No estado
judeu, viveriam 438.000 palestinos entre 499.000 judeus. Esse estado
detinha a esmagadora maioria das terra férteis e, das 1.200 aldeias
palestinas, aproximadamente 400 estavam incluídas em seu interior, sob
soberania sionista20.
Elaborada pelo UNSCOP, cujos membros não sabiam muito sobre a
Palestina, a partição se transformaria na Resolução 181 da ONU. Não é de
se estranhar que a liderança palestina do momento a rejeitasse. Com o
boicote palestino ao UNSCOP, com certeza um erro político grave, a
liderança sionista, de ampla superioridade bélica, se viu livre para
dominar também o jogo diplomático.
A amarga ironia da história, quando a vemos do ponto de vista árabe, é
que, como já argumentou a própria historiografia israelense (Simcha
Flapan, por exemplo), se os palestinos tivessem aceitado a partição, a
liderança sionista com certeza a teria rejeitado21.
Basta examinar as comunicações entre Ben-Gurion e a hierarquia sionista
para ver como a rejeição árabe ao plano de partição permitiu ao
sionismo aceitá-lo publicamente e ao mesmo tempo trabalhar contra ele.
Logo depois da adoção da Resolução 181, Ben-Gurion afirmava ao círculo
da liderança sionista que a rejeição árabe ao plano significava que “não
há fronteiras territoriais para o futuro estado judeu” e que as
fronteiras “serão determinadas pela força e não pela resolução de
partição” (p.37). Respondendo a um líder sionista e ministro do exterior
(Moshe Sharett) acerca das possibilidades de defender o seu território,
Ben-Gurion afirmava: “seremos capazes não só de nos defendermos, mas de
infligir golpes letais aos sírios em seu próprio país—e tomar a
Palestina como um todo” (p.46). Essas comunicações, disponíveis para
consulta nos próprios arquivos israelenses, demonstram claramente que a
liderança sionista viu o plano de partição como uma conquista tática,
que colocava em definitivo sobre a mesa a legitimidade de um estado
judeu na Palestina e estabelecia um trampolim para conquistas
posteriores. Essas conquistas, é certo, foram facilitadas pelo perplexo
boicote palestino ao Comitê da ONU. Reitere-se, então, que as citações
de Ben-Gurion acima são parte de uma ampla documentação que prova que a
liderança sionista jogou um jogo duplo e não se comprometeu com a
partição como fórmula definitiva. Isso jamais é mencionado pelos
apologistas da ocupação de Israel que repetem a consigna de que “os
judeus aceitaram a partição de 1947 e os árabes a rejeitaram” como
justificativa dos crimes cometidos por Israel em 2010, e bem além dos
limites dessa partição.
Antes de descrever a expulsão dos palestinos de suas terras, mais um
elemento do xadrez político legado pelo Mandato Britânico deve ser
explicado: o acordo sionista-jordaniano que deixa os palestinos sem o
apoio do principal exército árabe na Guerra de 1948 e à mercê do
superior poder bélico sionista. Aliada dos ingleses na Primeira Guerra
Mundial, a família real Hashemita havia recebido os reinos da Jordânia e
do Iraque como recompensa por seus serviços. O que passou a ser
conhecido como Transjordânia “era um pouco mais que um principado
desértico e árido ao leste do Rio Jordão, cheio de tribos beduínas e
aldeias circassianas” (p.43). As férteis terras da Palestina situadas a
oeste do Rio Jordão, no que hoje é conhecido como Cisjordânia (ou seja, o
grosso do território do que é, legalmente, a Palestina atual), passaram
a ser objeto da cobiça da família real Hashemita. Havia poucos judeus
ali, e entre 1946 e 1947 a realeza jordaniana e a liderança sionista
chegaram um acordo: os jordanianos não interfeririam na guerra
árabe-israelense que se avizinhava—promessa que os jordanianos
cumpriram—e a região da Cisjordânia seria anexada pelo reino dos
Hashemitas, sem interferência sionista—promessa que os israelenses
quebraram em 1967, ao ocupar o território e mantê-lo sob seu controle,
picotagem policial e colonização armada até hoje. Também ali se
instalaria um paradigma repetido incontáveis vezes desde 1948. Acuados
pelo poder superior dos sionistas, as elites árabes vizinhas rifavam os
palestinos, deixando-os entregues à própria sorte num jogo no qual não
tinham nenhuma chance. É mais um elemento da tragédia do Oriente Médio.
Revisando os diários de Ben-Gurion e os arquivos israelenses
posteriores à partição, o historiador Ilan Pappe encontra certa surpresa
e júbilo entre a liderança sionista com o caráter limitado da reação
palestina ao recorte de suas terras. Seguindo-se à Resolução 181, os
palestinos se limitam a convocar uma greve geral de três dias, durante a
qual a repressão inglesa foi duríssima. As revoltas árabes que
aconteceram entre 1936 e 1939 deram também à organização paramilitar
judia Hagana sua primeira experiência na execução das táticas militares
aprendidas com a Grã-Bretanha. A destruição da liderança política
palestina seria decisiva para o rumo posterior dos acontecimentos. O
quadro que precede a guerra de 1948 é de intenso armamento sionista,
coincidindo com um momento de particular fragilidade da liderança
palestina, destroçada pela repressão britânica à revolta de 1936-39. No
jogo diplomático, começa a pesar a consciência culpada da Europa, em
choque com as dimensões gigantescas do Holocausto judeu, recém
perpetrado. Quebrar as promessas feitas aos árabes era preço
relativamente pequeno para expiar, às custas de outrem, a culpa européia
pelo judeocídio. No xadrez político da região, o acordo
sionista-jordaniano neutralizava o principal exército árabe. Em pânico
com os constantes ataques dos grupos paramilitares judeus (Hagana, Irgun
e Stern), a população autóctona, já em 1947, começa a perceber o
poderio sionista como uma força imbatível. Estava aberto o caminho para a
limpeza étnica da Palestina.
IV – A preparação da expulsão
Toda sorte de distorções e mitos já foram circulados sobre o que
aconteceu na Palestina entre o final de 1947 e o começo de 1949. Na
mitologia oficial israelense, no senso comum, no jornalismo mais venal
ou preguiçoso, nas Wikipédias e até mesmo em livros embalados como se
fossem de pesquisa historiográfica séria, essas distorções foram
sedimentando uma coleção de narrativas que recorrem a falsificações não
raro contraditórias entre si: 1) que o povo palestino como tal não
existia; 2) que ele existia mas que saiu voluntariamente de suas terras
em 1948; 3) que não saiu voluntariamente, mas que tampouco foi vítima do
sionismo, pois abandonou suas aldeias atendendo a ordens radiofônicas
dos próprios árabes; 4) no ramo da pseudo-historiografia sem-vergonha,
paga para mentir, já apareceram até livros sobre como os palestinos não
eram tão antigos assim na região, já que eles teriam chegado também em
imigração recente. Essas diferentes versões da mitologia oficial vão se
sucedendo ou se combinando, a gosto do freguês, formando uma geleia
geral de enganação empacotada. Acompanham-na algumas frases que, até
corretas em si mesmas, omitem um universo de contexto que lhes
transforma o sentido, como é o caso de “os sionistas aceitaram a
partição proposta pela ONU, os árabes, não”, analisado acima, e “a
guerra de 1948 foi iniciada pelos palestinos”, mantra que é essencial em
todo mascaramento do processo.
Como se sabe agora, a liderança militar sionista ficou surpresa com o
caráter limitado dos protestos palestinos que se seguiram ao decreto da
partição, em novembro de 1947. Afinal de contas, seu território havia
sido rachado com uma comunidade minoritária de colonos, que receberam
não só um naco de 56% do território, desproporcional à sua representação
na população, mas um naco que continha pelo menos 400 aldeias
palestinas, nas quais 800.000 palestinos deviam seguir vivendo sob
soberania imposta e recém chegada. Ao longo dos dias que se seguem à
partição, o comando sionista se reúne para encontrar formas de ataque
possíveis, ante a ausência de pretextos. Os arquivos estudados por Ilan
Pappe, das reuniões a liderança judaica na Palestina, dão amplo
testemunho do planejamento da limpeza étnica. Os fazendeiros dos
Kibbutzim transformavam suas cooperativas em postos militares, enquanto
nas aldeias palestinas a vida seguia seu curso, no qual a “normalidade
era a regra e a agitação a exceção”, segundo os informes do próprio
Palti Sela, membro de uma unidade de inteligência sionista. Ao longo do
mês de dezembro de 1947, anterior à guerra propriamente dita, as aldeias
palestinas sofrem uma campanha de terror e intimidação das organizações
paramilitares judias que representam o primeiro capítulo da limpeza
étnica da Palestina.
A linguagem da ameaça foi prática comum naquele momento, como mostra o
exemplo citado por Ilan Pappe, de panfletos lançados às aldeias sírias e
libanesas na fronteira palestina: “Se a guerra for levada até você, ela
causará expulsão massiva de aldeões, com suas mulheres e crianças …
haverá matança sem piedade, sem compaixão” (p.56). Lembremos que nesse
momento o sionismo já possui um mapa completo das aldeias palestinas,
incluindo-se informação sobre água, possíveis defesas e indivíduos
vinculados à resistência árabe durante os protestos de 1936-39. Esse
mapeamento seria chave na destruição das centenas de aldeias palestinas e
na expulsão de centenas de milhares de habitantes autóctonos da região
No mês de dezembro se disseminam as ações que a Hagana chamava de
“reconhecimento violento” (hassiyur ha-alim): invadir uma
aldeia à noite, instaurar toque de queda, atirar em qualquer um que ouse
sair de casa, permanecer durante algumas horas e ir embora. A aldeia de
Deir Ayyub foi uma das vítimas de dezembro de 1947. Com aproximadamente
500 habitantes, ela acabava de comemorar a abertura de uma escola. Foi
invadida por tropas judaicas que passaram a atirar indiscriminadamente
nas casas. Deir Ayyub ainda seria atacada três vezes antes de ser
destruída em sua totalidade em abril de 1948 (p.56). No nordeste da
Galileia, na aldeia de Khisas, algumas centenas de muçulmanos coexistiam
pacificamente há tempos com uma centena de cristãos. Até que no dia 18
de dezembro de 1947, tropas judaicas a invadiram e passaram a explodir
casas durante a noite, provocando a morte de quinze aldeões, pelo menos
cinco crianças. Ações como estas proliferaram ao longo de dezembro de
1947, e não costumam ser mencionadas pelos que justificam as atrocidades
de Israel com o argumento de que “os palestinos iniciaram a guerra” em
janeiro de 1948.
As ações de expulsão da população anteriores à declaração formal de
guerra em janeiro de 1948 não se limitaram às aldeias pequenas. Na
cidade de Haifa, principal porto da Palestina, 75.000 palestinos “foram
submetidos a uma campanha de terror instigada conjuntamente pelo Irgun e
pela Hagana. Como haviam chegado em décadas recentes, os colonos
judaicos construíram suas casas no alto das montanhas. Viviam
topograficamente acima dos bairros árabes e podiam disparar e lançar
morteiros contra elas. Começaram a fazê-lo com frequência a partir do
começo de dezembro. Usaram também outros métodos de intimidação: as
tropas judaicas rolavam barris cheios de explosivos, e enormes bolas de
aço, na direção das áreas residenciais árabes, lançavam óleo misturado
com combustível nas estradas, que aí incendiavam. Os residentes
palestinos, aterrorizados, corriam para fora de suas casas para tentar
apagar o fogo, e aí passavam a ser alvo de rajadas de metralhadora”
(p.58). A descrição documentada do que aconteceu em Haifa em dezembro de
1947 é importante porque a cidade é, com frequência, mencionada como
exemplo de que as lideranças judaicas insistiram para que os palestinos
ficassem e eles saíram “voluntariamente”.
V – Epílogo e promessa
Não está contada aqui, evidentemente, nada da história do Nakba
propriamente dito. Para se entender a monstruosidade a que foi submetida
o povo palestino, há que se conhecer os quatro planos de limpeza étnica
da Palestina elaborados pela liderança sionista desde antes da II
Guerra Mundial. O Plano A, também conhecido como “Plano Elimelech”, toma
seu nome do líder do comandante da Hagana que, em 1937, já elaborara, a
pedido de Ben-Gurion, um projeto de limpeza étnica a ser executado no
momento em que os ingleses abandonassem a Palestina. O Plano B foi
escrito em 1946 e ambos depois se fundiram no Plano C, que previa: a)
assassinatos seletivos da liderança política palestina; b) destruição da
infraestrutura de transporte palestina; c) sabotagem específica às
fontes de sustento da população nativa, como os moinhos; d) ataques
escalonados às aldeias; e) bombardeios de ônibus, cafés, locais de
reunião. O fundamental desse plano é mantido no projeto que é
efetivamente executado, o Plano D (Dalet), anterior à guerra de 1948, e que previa a sistemática expulsão do povo palestino de suas terras.
O Plano Dalet já é consenso entre a liderança sionista em Dezembro de
1947, antes da oficialização da guerra. Ao cabo do processo de limpeza
étnica, espantosamente curto e brutal, mais da metade da população
palestina nativa (pelo menos 750.000 pessoas) foi expulsa, 531 aldeias
foram destruídas e onze bairros urbanos foram esvaziados de sua
população, um crime contra a humanidade de enormes proporções, ainda
hoje negado e envolvido em falsificação. Hoje, os refugiados e seus
descendentes vivem esparramados por, em números aproximados, Jordânia (2
milhões), Líbano (430.000), Síria (480.000), além de 800.000 que são
parte da população palestina que mora sob ocupação militar israelense na
Cisjordânia (2,3 milhões) e outro 1,1 milhão que vive sob bloqueio (e
frequente bombardeio) militar israelense em Gaza. Outros 1,2 milhão de
palestinos vivem como cidadãos de segunda classe em Israel. O melhor
guia do Nakba é o livro de Ilan Pappé, The Ethnic Cleansing of Palestine,
infelizmente ainda inédito em português. Pretendo publicar num futuro
próximo, aqui pela Editora Publisher, um breve livro que contará um
pouco dessa história. Se você lê inglês e se interessa pelo
acompanhamento diário do horror, sugiro o site Electronic Intifada.
.
Referências bibliográficas: otoRe.N
1 Aragão, Maria José. Israel x Palestina: Origens, História e Atualidade do Conflito (Rio de Janeiro: Revan, 2006), p. 23-4.
4 Heynick, Frank. Jews and medicine, An Epic Saga, KTAV Publishing House, Inc., 2002 p.103.
5 McCarthy, Justin. The Population of Palestine. (Nova York: Columbia UP, 1990), p. 37-8.
5 McCarthy, Justin. The Population of Palestine. (Nova York: Columbia UP, 1990), p. 37-8.
6 Khalidi, Walid. “Why did the Palestinians leave?” Journal of Palestine Studies 34.2 (2005): 42-54. Ver também Benny Morris, The Birth of the Palestinian Refugee Problem Revisited (Cambridge: Cambridge UP, 2004).
7 Fisk, Robert. A grande guerra pelo Oriente Médio. Trad. Sandra Dolinsky (São Paulo: Planeta, 2007), p. 432.
15 Antonius, George. Arab Awakening: The Story of the Arab National Movement (Londres: International Book Center, 1938), p. 387.
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