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terça-feira, 9 de outubro de 2012

McDonald´s: quando o primeiro emprego se torna armadilha para jovens

 



 
Rede de restaurantes usa da pouca maturidade e fragilidade da juventude para usurpar direitos trabalhistas básicos
 
 
 
Michelle Amaral,
da Reportagem do BRASIL DE FATO
 
 
   
   
Atraídos, jovens são presas fáceis para as irregularidades trabalhistas
da rede de lanchonetes - Foto: Michelle Amaral

















Atraídos pela chance do primeiro emprego, milhares de jovens brasileiros procuram a rede de restaurantes fast food McDonald´s para trabalhar. Eles buscam a oportunidade de iniciar a vida profissional e conquistar independência financeira. No entanto, pela pouca maturidade e falta de experiência, esses jovens se veem submetidos a condições irregulares de trabalho e têm usurpados seus direitos básicos.
“O McDonald´s tem essa imagem do primeiro emprego, [na contratação] eles passam uma coisa totalmente diferente do que é”, afirma Tatiana, que ingressou na rede de fast food com 16 anos e lá viveu uma das piores experiências de sua vida, que lhe traz consequências até hoje.
Aos 18 anos, Tatiana escorregou no refrigerante que havia escorrido de uma lixeira quebrada, caiu e sofreu uma séria lesão no joelho. Com fortes dores, a jovem foi levada para o gerente da loja. “Ele falou: ‘passa um Gelol e põe uma faixinha que sara’”, relata. Era final de ano, o restaurante estava lotado e Tatiana foi orientada a continuar trabalhando até o final do expediente. Após dois dias, sem conseguir andar, Tatiana procurou o médico, que diagnosticou o rompimento da rótula de seu joelho direito e indicou a necessidade de uma cirurgia. Segundo ela, ao procurar o McDonald´s para informar as consequências da queda, nada foi feito pela empresa que, inclusive, se negou a emitir um Comunicado de Acidente de Trabalho (CAT). “Eu fui ao INSS e perguntei como podia fazer esse CAT. Me deram o papel e mandaram eu ir até o McDonald´s”, conta a jovem, que afirma ter sido orientada pelo gerente a não informar a data correta do acidente para que não resultasse em multa para a loja. Ela ainda denuncia que a gerência sabia do defeito na lixeira, mas não a consertou para evitar gastos, resultando em seu acidente.
De lá para cá, a trabalhadora viveu sob intenso tratamento médico e teve que procurar reabilitação profissional por meios próprios, já que não podia exercer as mesmas funções e o McDonald´s se recusou a adaptá-la em outra área da empresa. Ela se formou em Direito e realizou estágio em um escritório de advocacia. Com isso, após 11 anos do acidente, Tatiana conseguiu a carta que a declara ser pessoa portadora de deficiência física e dá o reconhecimento de sua reabilitação pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS).
 
   
   
   
Tatiana passou por três cirurgias e anda com o
auxílio de uma muleta - Foto: Michelle Amaral
Hoje, aos 34 anos, Tatiana anda com o auxílio de uma muleta. Já passou por três cirurgias e necessita, ainda, realizar mais uma. No entanto, em março deste ano, ao tentar passar por uma consulta médica para agendar o procedimento, a trabalhadora foi informada do cancelamento de seu plano de saúde. O motivo foi a conclusão em janeiro da rescisão indireta do McDonald´s, solicitada pela trabalhadora em 2009. “O McDonald´s deveria ter comunicado ela [sobre o cancelamento da assistência médica], porque a lei diz isso, mas não comunicou, simplesmente cancelou”, protesta Patrícia Fratelli, advogada da trabalhadora. De acordo com a Lei nº 9.656 de 1998, regulamentada pela Resolução Normativa nº 279 da Agência Nacional de Saúde (ANS), no caso de rescisão do vínculo empregatício é assegurado ao trabalhador “o direito de manter sua condição de beneficiário, nas mesmas condições de cobertura assistencial de que gozava quando da vigência do contrato de trabalho, desde que assuma o seu pagamento integral”. “Eu tinha condição de pagar o meu convênio, o McDonald´s tinha que ter me dado essa opção, porque agora perdi a carência e nenhum convênio vai me aceitar”, desabafa Tatiana, que há quase 16 anos enfrenta uma batalha judicial contra o McDonald´s para ter seu dano reparado.
 
Armadilha
O caso de Tatiana não é isolado. Tramitam na Justiça do Trabalho na cidade de São Paulo e região metropolitana 1.790 ações contra o McDonald´s e a Arcos Dourados Comércio de Alimentos Ltda., franqueadora master da multinacional no Brasil e na América Latina. Somente na capital paulista são 1.133 demandas judiciais ativas por conta das irregularidades trabalhistas e o tratamento inadequado dado pela empresa aos seus funcionários, conforme levantamento feito junto ao Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região. Entre as falhas cometidas pelo McDonald´s estão o pagamento de remunerações abaixo do salário mínimo, utilização de jornada de trabalho ilegal, falta de comunicação dos acidentes de trabalho, fornecimento de alimentação inadequada, não concessão de intervalo intrajornada, ausência de condições mínimas de conforto para os trabalhadores, prolongamento da jornada de trabalho além do permitido por lei, assédio moral e sexual. Além disso, existem denúncias de jovens que trabalharam sem serem remunerados (leia matéria na página ao lado).
No Brasil, o McDonald´s emprega hoje 48 mil funcionários, de acordo com informações publicadas em seu site. Destes, 67% têm menos de 21 anos e 89% tiveram na rede de fast food a primeira oportunidade de emprego formal. Questionado pela reportagem sobre os processos movidos contra ele, o McDonald´s disse que “não comenta processos sub judice”.
Para Rodrigo Rodrigues, advogado do Sindicato dos Empregados em Hospedagem e Gastronomia de São Paulo e Região (Sinthoresp), a oferta do primeiro emprego a esses jovens é pensada pelo McDonald´s a fim criar nesses trabalhadores o sentimento de submissão incondicional, em que o contratado acata tudo o que lhe é imposto, pela gratidão da oportunidade de trabalho. “A pessoa fica com receio de se indispor contra o tratamento que é dado na empresa. Isso é sutilmente pensado para que se chegue a essas finalidades”, alega.
A mesma avaliação é feita pelo procurador Rafael Dias Marques, coordenador nacional da Coordenadoria de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente (Coordinfância) do Ministério Público do Trabalho (MPT). Segundo ele, a necessidade do primeiro emprego e a vontade de começar a vida profissional são vistas por alguns empregadores como uma possibilidade de fraudar direitos que são garantidos a esses trabalhadores por lei. “Muitas empresas preferem contratar os mais jovens para evitar problemas trabalhistas, para torná-los uma massa de manobra mais fácil para executar [o trabalho] sem direitos trabalhistas, sem qualquer questionamento ou um questionamento mais brando”, afirma.
 
   
   
Empresa utiliza pouca maturidade dos jovens para negligenciar direitos
trabalhistas básicos - Foto: Michelle Amaral
O procurador explica, ainda, que a pouca maturidade torna a contratação desses jovens vantajosa para essas empresas. “São pessoas que, por ainda serem jovens, não tem o senso crítico do questionamento e de resistir a determinadas situações de lesões de direitos”, analisa.
 
Garantia de direitos
O advogado do Sinthoresp lembra que o jovem tem que ser visto como um ser em transformação, que necessita de cuidados que lhe assegurem uma boa formação para a vida. “O trabalho é uma condição necessária, mas deve ser implementado aos poucos, não pode ser do jeito que está, coloca o jovem lá e vamos ver o que vai dar”, pondera Rodrigues. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) permite a contratação de adolescentes a partir de 14 anos, na condição de aprendiz, e de 16 anos para o trabalho normal. No entanto, o estatuto estabelece que a eles deve ser observado “o respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento”.
Desta forma, Marques ressalta que a atividade profissional não pode ser prejudicial ao desenvolvimento físico e social destes adolescentes e jovens, seguindo o que estabelece o Decreto nº 6.481/2008. “Eles são pessoas peculiares em desenvolvimento, em fase de formação, por isso que o trabalho nessa fase da vida tem que ser diferenciado”, analisa.
O procurador alerta que, se não observados os cuidados com esses jovens, o trabalho pode lhes causar danos irreversíveis para a vida adulta. “O risco de lesão à saúde por uma situação do trabalho é muito mais evidente nessa parte da população, porque ainda que está em formação biológica”, observa. Segundo ele, “uma doença do trabalho nessa fase da vida é mais suscetível a ter continuidade, inclusive de levar ao quadro da invalidez”.
Foi o que aconteceu com Tatiana. Com o acidente ocasionado por uma negligência da empresa, teve sua vida completamente mudada. “ Tive que parar a minha vida. Fiquei um tempo sem estudar. Queria fazer enfermagem e o médico falou que eu nunca poderia ser enfermeira, porque não podia ficar em pé”, conta.
Rede de restaurantes fast food usa da pouca maturidade e fragilidade da juventude para usurpar direitos trabalhistas básicos

quinta-feira, 13 de setembro de 2012

"Talvez duas crianças tenham morrido para você ter o seu celular"

   


         


     
     

    congoRepública Democrática do Congo - Brasil de Fato - [Inês Benitez] Consumidores de telefones celulares são chamados a refletir sobre a exploração sangrenta na República Democrática do Congo de uma matéria-prima para esses aparelhos, o tântalo

    Os consumidores de telefones celulares são chamados a refletir sobre a exploração sangrenta na República Democrática do Congo de uma matéria-prima para esses aparelhos, o tântalo.
    "Pode ser que duas crianças tenham morrido para você ter esse telefone celular", disse Jean- Bertin, um congolense de 34 anos que denuncia o "silêncio absoluto" sobre os crimes cometidos em seu país pela exploração de matérias-primas estratégicas como o coltan (columbita-tantalita). A República Democrática do Congo (RDC) possui pelo menos 64% das reservas mundiais de coltan, nome popular na África central para designar as rochas formadas por dois minerais, columbita e tantalita.
    Da tantalita se extrai o tântalo, metal duro de transição, de cor azul acinzentado e brilho metálico, resistente à corrosão e que é usado em condensadores para uma enorme variedade de produtos, como telefones celulares, computadores e tablets, bem como em aparelhos para surdez, próteses, implantes e soldas para turbinas, entre muitos outros. "A maldição da RDC é sua riqueza. O Ocidente e todos que fabricam armas metem o nariz ali", lamenta Jean-Bertin, que chegou há oito anos à cidade espanhola de Málaga, procedente de Kinshasa, onde vivem seus pais e dois irmãos.
    A extração de coltan contribui para manter um dos maiores conflitos armados da África, que causou mais de cinco milhões de mortos, êxodo em massa e violações de 300 mil mulheres nos últimos 15 anos, segundo organizações de direitos humanos. Isto foi reconhecido em 2001 pelo Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU), que confirmou a existência do "vínculo entre a exploração ilegal dos recursos naturais e a continuação do conflito na República Democrática do Congo". Um grupo de especialistas convocado pelo Conselho registrou até 2003 cerca de 157 empresas e indivíduos de todo o mundo vinculados, de um modo ou de outro, à extração ilegal de matérias-primas valiosas na RDC.
    A exploração de coltan em dezenas de minas informais, salpicadas na selva oriental da RDC, financia os grupos armados e corrompe militares e funcionários. A extração artesanal, sem nenhum controle de qualidade, comporta um regime trabalhista próximo da escravidão e um grande dano ao meio ambiente e à saúde dos trabalhadores, incluindo crianças, segundo o documentário de 2010 Blood in the Mobile (Sangue no Celular), do diretor dinamarquês Frank Piasecki.
    No entanto, fontes da indústria, como o Tantalum- Niobium International Study Center (TIC), alertam que as jazidas de coltan na RDC e de toda a região da África central estão longe de serem a fonte principal de tântalo. A Austrália foi o principal produtor desse mineral durante vários anos e mais recentemente cresceu a produção sul-americana e asiática, além de outras fontes, como a reciclagem. O TIC estima que as maiores reservas conhecidas de tântalo estão no Brasil e na Austrália, e ultimamente há informações sobre sua existência na Venezuela e na Colômbia.
    A RDC tem outras riquezas naturais igualmente contrabandeadas, como ouro, cassiterita (mineral de estanho), cobalto, cobre, madeiras preciosas e diamantes. Contudo, está em último lugar no Índice de Desenvolvimento Humano 2011. Neste cenário, as denúncias da sociedade civil organizada apelam cada vez mais aos consumidores de produtos que contêm estes materiais. Na Espanha, a Rede de Entidades para a República Democrática do Congo - uma coalizão de organizações não governamentais e centros de pesquisa - lançou em fevereiro a campanha Não com o meu Celular, para exigir dos fabricantes o compromisso de não usarem coltan de origem ilegal.
    O surgimento de novas fontes de tântalo e a reciclagem deveriam ajudar a reduzir a pressão da demanda sobre o coltan congolense. A organização Entreculturas e a Cruz Vermelha Espanhola promovem desde 2004 a campanha nacional Doe seu Celular, para incentivar a entrega de aparelhos velhos para serem reutilizados ou para reciclagem de seus componentes. Os fundos obtidos são investidos em projetos de educação, meio ambiente e desenvolvimento para setores pobres da população. Até julho foram coletados 732.025 aparelhos e arrecadados mais de um milhão de euros, contou ao Terramérica a coordenadora da campanha na Entreculturas, Ester Sanguino.
    Entretanto, fundações e empresas dedicadas à reciclagem, ouvidas pelo Terramérica, concordam que seria impossível abastecer com esta fonte uma porção significativa da crescente demanda mundial por tântalo. A pressão do mercado faz com que as pessoas troquem o celular por outro mais moderno de tempos em tempos, por isso a reciclagem, mesmo feita em grande escala, não daria conta, disse ao Terramérica uma fonte da BCD Electro, empresa de reutilização e reciclagem informática e eletrônica. E a telefonia móvel é apenas um segmento das aplicações atuais do tântalo.
    Apple e Intel anunciaram, em 2011, que deixariam de comprar tântalo procedente da antiga colônia belga. Nokia e Samsung fizeram declarações similares. A Samsung assegura em sua página corporativa que tomou medidas para garantir que seus terminais "não contenham materiais derivados do coltan congolense extraído ilegalmente". Na verdade, os códigos de conduta empresariais vieram preencher o vazio de normas taxativas.
    O esforço maior é o das Diretrizes da OCDE para Empresas Multinacionais, pois compreende todas as nações industrializadas sócias da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE). Porém, o longo e opaco circuito do coltan congolense torna difícil demonstrar que tais códigos são cumpridos. Os minerais explorados ilegalmente são contrabandeados através de países vizinhos, como Ruanda e Uganda, para Europa, China e outros destinos.
    "Os grupos rebeldes proliferam pela riqueza das terras em coltan, diamantes ou ouro", disse ao Terramérica o coordenador da organização humanitária Farmamundi na RDC, Raimundo Rivas. Os governos vizinhos são "cúmplices" e "até o momento tudo é apoiado e encoberto pelas empresas beneficiárias, em seu último destino, dessas riquezas", ressaltou. "Há muitos interesses econômicos em torno do negócio do coltan", alertou Jean-Bertin. Enquanto isso, na RDC "as matanças são reais. O sangue está por toda parte, e, no entanto, é como se o país não existisse".
    Por isso gera expectativas a decisão da Comissão de Valores dos Estados Unidos (SEC), que, no dia 22 de agosto, regulamentou um capítulo da Lei de Proteção do Consumidor e Reforma de Wall Street, referente aos "minerais de conflitos". A Lei 1.502 estabelece que todas as empresas nacionais ou internacionais já obrigadas a entregar informação anual à SEC e que manufaturem ou contratem a manufatura de produtos que contenham um dos quatro minerais de conflito (estanho, tântalo, tungstênio, ouro) deverão adotar medidas para determinar sua origem mediante a análise da cadeia de fornecimento.
    Contudo, o primeiro informe deverá ser apresentado em 31 de maio de 2014, prazo considerado excessivo por defensores dos direitos humanos, que denunciam os crimes que continuam sendo cometidos na RDC, apesar da presença desde 2010 de uma missão de paz da ONU. Com o olhar dominado pela raiva e sua filha de seis meses nos braços, o congolense Jean- Bertin insiste que os grupos armados "dão armas a muitas crianças e as obrigam a entrar para um ou outro bando". Para Rivas, "a única solução é um governo forte na RDC, que possa responder aos ataques, e um apoio internacional real que penalize aquelas empresas suspeitas de importar minerais de zonas em conflito".

    sábado, 18 de agosto de 2012

    Senador Paim faz alerta: Governo vai propor flexibilizar a CLT



    “Está em gestação processo para flexibilizar CLT”, alerta Paim

    do Vermelho, sugerido pelo Marco Aurelio

    Há pouco tempo, o senador Paulo Paim (PT-RS), na tribuna da casa legislativa de que faz parte, alertou: “Estou sabendo que o Poder Executivo pretende enviar ao Congresso Nacional proposta para mudar a legislação trabalhista e criar duas novas formas de contratação, a eventual e por hora trabalhada. Na prática, nós sabemos muito bem o que isso representa: a perda de direitos sociais para os trabalhadores”.
    O alerta do senador Paim não é um delírio, ao contrário. No início deste mês, o jornal Valor Econômico veiculou notícia que a presidenta Dilma Rousseff “prepara para depois das eleições municipais a negociação com o Congresso de duas reformas: a da previdência, em troca do fim do fator previdenciário, e a que flexibiliza a legislação trabalhista, cujo anteprojeto está na Casa Civil e que deverá dar primazia ao que for negociado entre as partes sobre o legislado, ampliando a autonomia de empresas e sindicatos”.
    “Tenho o dever e a obrigação de, a partir desta tribuna e utilizando os meios de comunicação desta Casa, fazer um alerta ao nosso país e à nossa gente. Está em plena gestação um processo para flexibilizar a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), a maior conquista social dos trabalhadores brasileiros. Da nossa parte, não aceitaremos, em hipótese alguma, a retirada ou a redução de direitos e de conquistas da classe trabalhadora, forjados na luta cotidiana!”, disse o senador em discurso.
    E anunciou que fará mobilização “a fim de chamar a atenção de todos para o perigo que se avizinha. Não somos profetas do pessimismo e nem temos bola de cristal para prever o futuro. Porém, a história tem nos mostrado que devemos sempre vigiar”.
    “O Ano da CLT”
    O senador encerrou sua fala anunciando que apresentará proposta para que 2013 seja considerado “O Ano da CLT”. Paim afirmou que “não podemos fechar os olhos para a ideia que estão tentando vender para a sociedade e que eu considero um engodo. As possíveis mudanças na CLT não representam modernidade. Ao contrário, elas pretendem desmontar a CLT e acabar com direitos e conquistas dos trabalhadores”.
    A CLT foi criada em 1º de maio de 1943, pelo então presidente Getúlio Vargas e, em novembro, começou a vigorar. Em 2013, completará 70 anos. Ela surgiu de novas demandas do país, que a partir de 1930 deixava de ter uma economia exclusivamente agrícola e passava a se tornar cada vez mais industrial.
    “A mobilização popular e a contribuição de vários intelectuais brasileiros foram fundamentais em todo este processo de progresso social e de proteção ao trabalhador”, destacou Paim.
    Tentativas anteriores
    Na época em que o governo de Fernando Henrique Cardoso pressionava o Congresso para modificar o artigo 618 da CLT, o advogado Benedito Calheiros Bomfim escreveu um artigo sobre o assunto. Na ocasião, ele disse que, em poucas palavras, a proposta era transformar a lei em letra morta, permitindo que uma falsa “livre negociação” fosse superior a ela – o que é totalmente inconstitucional, por razões óbvias.
    “De que vale uma lei que, além de permitir transgressões a si mesma (não como exceção, mas como regra), também permite transgressões ao artigo 7º da própria Constituição? Imaginemos se a Lei Áurea ‘permitisse’ aos escravos ‘negociar’ sua continuação como escravos.”
    O ex-presidente Lula, logo após assumir a Presidência da República, em 2003, mandou retirar do Congresso o projeto de Fernando Henrique.

    Da Redação em Brasília
    Com informações do Diap

    sexta-feira, 27 de julho de 2012

    Denúncias de trabalho escravo envolvem grifes de Buenos Aires 0




    Para quem reclama que a mídia só veicula denúncias de trabalho escravo na produção de roupas de grife quando elas ocorrem no Brasil (como se isso apagasse a nossa responsabilidade nesses casos): flagrantes recentes revelam que, assim como em São Paulo, Buenos Aires também vende roupas caras produzidas com a exploração de escravos. A matéria é de Daniel Santini, da Repórter Brasil, que foi à capital da Argentina para mostrar que o modelo adotado nas oficinas clandestinas de lá é bastante parecido com o que ocorreu aqui na produção de marcas como Gregory e Zara. Segue o texto.
    Polícia protege loja em meio a protestos após denúncia de escravidão

    “Trata-se de algo sistemático e não pontual. O mesmo modelo que existe no Brasil, existe aqui”, explica Gustavo Vera, da Fundação Alameda, organização que denunciou mais de 100 marcas nos últimos anos, incluindo casos que ganharam destaque, como o das grifes Soho e Cheeky, esta última ligada à Juliana Awada, esposa do prefeito de Buenos Aires, Maurício Macri.
    Assim como nas oficinas clandestinas de São Paulo, os costureiros escravizados na Argentina, bolivianos em sua maioria, cumprem jornadas de mais de dez horas por dia, sem descansos semanais e em condições degradantes. Os locais de trabalho funcionam como habitação também, em um ambiente em que famílias são obrigadas a compartilhar quartos apertados, em uma confusão de máquinas, agulhas, linhas e crianças. São ambientes escuros, sem iluminação adequada para costurar, sem ventilação, sem nada. Em um contexto em que direitos trabalhistas como horas extras, férias ou descanso remunerado são ignorados, os trabalhadores são pagos por produção – e normalmente produzem sem parar.
    As peças, vendidas a intermediários a preços baixos, acabam com etiquetas caras nas prateleiras das lojas mais luxuosas da cidade. “O pior é que, nas denúncias que fizemos, muitos ficaram chocados não com as condições degradantes, mas com o fato de vestidos e camisas comprados a preços caríssimos terem custado tão pouco na produção. As pessoas se sentem enganadas e isso provoca até mais revolta do que a escravidão em si em alguns casos”, diz Lucas Schaerer, da equipe de jornalismo investigativo da Alameda. As denúncias feitas pelo grupo, baseadas em apurações cuidadosas e registros detalhados, inclusive com o uso de câmaras ocultas, têm servido como subsídio para o combate à prática no país e que ajudado a explicitar a exploração degradante de pessoas.
    Entre os problemas recorrentes nas oficinas clandestinas, estão os fios expostos em redes elétricas irregulares instaladas ao lado de estoques de tecidos, combinação que, não raro, resulta em incêndios com mortes. Foi em um deles que, em março de 2006, seis pessoas morreram, entre elas quatro crianças e uma mulher grávida que viviam no mesmo local em que trabalhavam, a oficina Luis Viale. A tragédia expôs as condições degradantes a que trabalhadores do setor têxtil estão submetidos e deu força para o combate à prática. O episódio é considerado emblemático para os que lutam contra o trabalho escravo no país.
    Os mecanismos institucionais e legais para o combate ao trabalho escravo contemporâneo ainda estão sendo construídos na Argentina (leia especial com os principais documentos e leis de combate ao trabalho escravo na Argentina). Se no Brasil a fiscalização foi centralizada nos grupos móveis de combate ao trabalho tscravo, do Ministério do Trabalho e emprego, no país as ações ainda não foram unificadas e reúnem agentes do trabalho municipais e federais, representantes do poder judiciário e até a AFIP, órgão equivalente à Receita Federal brasileira, que tem tido papel importante em especial no combate ao tráfico de pessoas.
    As ações de responsabilização das grandes marcas têm se baseado na combinação da Lei de Trabalho Domiciliar (Lei 12.1713 – artigos 4, 35 e 35, principalmente), que prevê a responsabilidade do contratante mesmo em casos de terceirização, e na Lei de Migração (Lei 25.871), que condena a exploração de estrangeiros. De acordo com María Ayelén Arcos, pesquisadora do curso de Antropologia da Universidade de Buenos Aires, muitos dos empresários flagrados tentam se eximir da responsabilidade argumentando que desconheciam as condições dos que vivem nas oficinas. Também ligada à Alameda, ela tem estudado como se organizam as redes envolvendo oficinas clandestinas na cidade e ressalta que assim como no Brasil, a Justiça têm considerado que existe sim responsabilidade direta, mesmo no caso de terceirização da produção.
    Há casos em que, semelhante ao que acontece na Itália com bens de redes mafiosas, equipamentos caros como máquinas de costura especializadas foram confiscados e destinados a cooperativas de trabalhadores do setor. A escravidão está prevista no artigo 140 do Código Penal argentino. Fortalecem o combate e a prevenção a Lei de Trata de Personas (tráfico de pessoas, em espanhol), promulgada em 2008, e legislações locais, como a Lei de Assistências a Vítimas da Capital Federal (Buenos Aires). A Argentina também é signatária das Convenções 29 e 105 da Organização Internacional do Trabalho, que proíbem o trabalho escravo.

    quarta-feira, 13 de junho de 2012

    Drogas e sexo: principais formas de trabalho infantil no Brasil


    Rachel Duarte no SUL21

    Apesar de básico, o conceito de que ‘lugar de criança é na escola’ ainda está longe de ser realidade em muitas regiões do mundo. De acordo com as estimativas globais mais recentes da Organização Internacional do Trabalho (OIT), existem 215 milhões de crianças vítimas do trabalho infantil e mais da metade estão envolvidas com as piores formas de exploração. Além de violar os direitos fundamentais ao desenvolvimento e ao ensino, o trabalho infantil expõe crianças a maus tratos físicos, psicológicos e morais que podem causar-lhes danos para o resto de suas vidas. Porém, o principal vilão das crianças e adolescentes no Brasil, segue sendo o tráfico de drogas.
    Os dados oficiais e atuais do trabalho infantil no Brasil serão lançados em ato solene no Ministério da Justiça nesta terça-feira, 11, Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil. Mas, com base na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), estima-se que 4,8 milhões de crianças e adolescentes, entre 5 e 17 anos, foram submetidas a alguma forma de exploração que as obrigaram ao trabalho infantil. Ao invés de estarem na escola adquirindo conhecimentos e habilidades que iniciem uma formação para o futuro exercício da cidadania e ingresso no mercado de trabalho, eles estão nas sinaleiras, fazendas, lixões, ou em outras frentes que garantam alguma renda para as famílias mais pobres do Brasil.
    O escritório da OIT no Brasil desenvolve fiscalizações, programas de acompanhamento nos estados e relatórios sobre o trabalho infantil. Segundo a oficial de projetos da OIT Cíntia Ramos, “as regiões Norte e Nordeste, em consequência da situação de extrema pobreza, são aquelas em que mais as famílias subjugam os filhos ao trabalho desde crianças. Já na região Sul, devido à produção agrícola forte, os casos estão relacionados ao meio rural e têm respaldo na cultura local”.
    Marcello Casal Jr. / ABr
    Foto: Marcello Casal Jr. / ABr

    A necessidade do lucro com a economia da mão-de-obra na agricultura, principalmente na produção do fumo gaúcho, acaba tornando natural o trabalho infantil na região. “Nestes casos, são regiões e estados que têm boas taxas de escolarização e índices de desenvolvimento humano mais elevados, em que não faltam o acesso à escola, mas que, mesmo assim, se opta por manter as crianças trabalhando”, diz Cíntia. “Elas poderiam estar frequentando a escola ou, no mínimo, deveriam dividir os turnos com a escola para trabalhar. Isto deve ser feito na idade adequada, não violando a fase infantil”, defende.
    Conforme decreto presidencial de 2008, no Brasil, fica proibido o trabalho a menores de 18 anos nas atividades da Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP). São classificadas como tal, quaisquer atividades análogas à escravidão, tráfico de drogas, exploração sexual, conflitos armados, entre outras atividades ilícitas. Embora asseguradas pela lei, crianças e adolescentes seguem engrossando as estatísticas deficientes na constatação da realidade e divulgadas próximos as datas comemorativas.

    Trabalho infantil no Brasil = Exploração sexual comercial e tráfico de drogas

    Ramiro Furquim/Sul21

    Conforme a delegada do Departamento Estadual da Criança e do Adolescente (DECA) da Polícia Civil do Rio Grande do Sul, Eliete Mathias, as duas principais frentes de atuação do trabalho policial é combater a exploração sexual comercial e o tráfico de drogas na infância e adolescência. “São as principais práticas no RS. Não condenamos as crianças e adolescentes por isso, obviamente. Sabemos que eles estão nesta condição porque falhamos enquanto estado”, reconhece.
    Segundo ela, em 2011 a Polícia Civil gaúcha registrou 1,304 mil ocorrências envolvendo crianças e jovens. “Os que cometem crimes vão para o juizado da Infância e podem ser encaminhados ao cumprimento de medida socioeducativa. Os menores são encaminhados para a rede de assistência social”, explica.
    Com 10 anos de atuação no DECA, a delegada diz que, mesmo que houvesse um mapeamento preciso dos casos, a questão não é geográfica. “A cultura da sociedade influencia. Não há delimitação. Não é algo que ocorra só nas regiões de fronteira. Existem pontos de exploração sexual de menores em Porto Alegre. A incidência é maior ou menor conforme a capacidade de resposta dos municípios para lidar com o problema”, afirma. Ela defende que as políticas públicas para denunciar e coibir a exploração sexual, que atingem mais as meninas, têm mais êxito do que o combate ao tráfico.
    Para a coordenadora do Centro de Apoio Operacional da Infância, Juventude, Família e Sucessões, procuradora de Justiça Maria Regina Fay de Azambuja, a melhor aposta para enfrentar o problema é a prevenção e com ações de alcance na família. “A erradicação do trabalho infantil é muito difícil porque sua raiz é cultural e fundada no interesse dos adultos, já que nenhuma criança vai para o trabalho por conta própria. Por isso, é tão importante a atuação das instituições de forma integrada, para que se faça um cerco aos empregadores e às famílias”, explicou Maria Regina.

    “Sabemos que temos crianças fazendo programa por cinco reais ou uma pedra de crack”, afirma secretário gaúcho

    Bruno Alencastro/Sul21
    Foto: Bruno Alencastro/Sul21

    Para articular a rede de assistência social que pode intervir e localizar os casos de trabalho infantil no Rio Grande do Sul, o governo gaúcho desenvolve sistematicamente, desde 2011, a formação de agentes nos municípios. “O foco do nosso trabalho está no combate à exploração sexual comercial de crianças. Sabemos que temos crianças com nove anos nas casas noturnas ou nas estradas fazendo programa por cinco reais ou por uma pedra de crack”, reconhece o secretário de Justiça e Direitos Humanos, Fabiano Pereira.
    O trabalho do governo gaúcho está centrado no Programa de Ações Integradas para combater o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual no âmbito do Mercosul, desenvolvido nas cidades de fronteira com países vizinhos. Há ainda uma parceria com a iniciativa privada e governo federal para formação e acompanhamento de 100 meninas. “É uma bolsa formação que ao final de um ano, a menina tem a garantia de emprego”, falou sobre a iniciativa.
    Porém, as ações são indicadas para as jovens a partir de 14 anos, idade em que é possível o trabalho em funções administrativas asseguradas de direitos à saúde e segurança. “Nas regiões periféricas de Porto Alegre estamos inaugurando Casas da Juventude, para oferecer atividades culturais e esportivas como alternativa ao crime para os jovens”, explica Fabiano Pereira.
    Apesar de não ser um formato muito inovador, as campanhas publicitárias são boas aliadas no enfrentamento do tema, acredita a representante da OIT no Brasil, Cíntia Ramos. “Os casos de trabalho ilícito ou trabalho doméstico, que são mais difíceis de serem detectados por acontecerem dentro das casas das famílias ou de terceiros, podem ser denunciados ao estado. Para isso, as pessoas devem ser informadas”, afirma.

    Orientar para denunciar

    Para ajudar na orientação sobre quais práticas configuram como exploração ou trabalho infantil, o Fórum Estadual de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Trabalhador Adolescente/RS lançou a campanha estadual “Vamos acabar com o trabalho infantil”. O Fórum integra mais de 200 entidades, entre elas o Ministério Público Estadual e a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego.
    De acordo com a coordenadora do Fórum, Eridan Magalhães, a iniciativa visa estimular que servidores e a população em geral possam contribuir com a erradicação do trabalho infantil que atinge pelo menos 60 mil crianças, entre nove e 14 anos, no RS. “Vamos divulgar a campanha na Esquina Democrática nesta terça-feira pela manhã e seguiremos para a Assembleia Legislativa do RS onde vamos acompanhar a votação do Projeto de Lei 76/2012 que institui o Dia Estadual de Combate ao Trabalho Infantil no Estado do Rio Grande do Sul”, disse sobre proposta do deputado estadual Miki Breier (PSB).
    Somente em 2012, foram feitas 160 operações no RS, com o flagrante de aproximadamente 100 crianças trabalhando. Além disso, 12 mil fiscalizações gerais foram realizadas, em que também é vistoriada a presença de adolescentes trabalhando em locais insalubres e inseguros. As principais atividades que empregam crianças ainda são a lavoura de fumo, o comércio ambulante de bebidas alcoólicas e outros produtos no Litoral Norte, a colheita da maçã e da batata na Serra Gaúcha e o trabalho doméstico. Para os adolescentes, o maior problema é a cadeia coureiro-calçadista, em que adolescentes ainda sofrem com a manipulação de produtos tóxicos e sem equipamentos de segurança.
    Ao longo da semana, mais de 40 municípios farão atividades alusivas ao dia de combate ao trabalho infantil. Para auxiliar a atuação do Fórum, os cidadãos podem denunciar o trabalho infantil pelo telefone             51-3213-2800      , ou pelo e-mail roberto.guimaraes@mte.gov.br.

    terça-feira, 29 de maio de 2012

    Cumplicidade com o atraso

    Por Raul Silva Telles do Valle no BLOG DO JUREMIR MACHADO




    Em setembro de 2010, em plena corrida presidencial, um grupo de organizações da sociedade civil encaminhou aos então candidatos um conjunto de questões relativas às propostas de modificação do Código Florestal. Já àquela época, avançava na Câmara dos Deputados o projeto ruralista de modificação da legislação florestal e as organizações queriam saber o que pensavam os aspirantes ao cargo maior do País. A hoje presidenta da República, Dilma Rousseff, questionada se apoiava ou não a anistia proposta pelo texto então em tramitação, disse textualmente: “construímos no governo Lula um consenso de que a eventual conversão de multas só deve ocorrer após ações efetivas de recuperação das áreas desmatadas ilegalmente. Temos que estimular e apoiar esta transição, dando condições técnicas e materiais para nossos agricultores recuperarem estas áreas” (veja aqui).
    A partir daí, a candidata e depois presidenta teve a oportunidade de repetir diversas vezes que não passaria a mão na cabeça de quem desmatou ilegalmente. Isso alimentou um sentimento difuso de esperança na sociedade, que, depois de aprovado o projeto ruralista pelo Congresso Nacional, passou a manifestar de forma inequívoca, por todos os meios disponíveis, amplo apoio à presidenta para que ela cumprisse com sua palavra. Ciente de que ela estava emparedada entre sua palavra e os anseios da sociedade, de um lado, e os interesses de uma parte expressiva de sua base de apoio parlamentar, os cidadãos brasileiros sinalizaram que ela poderia contar com eles para confrontar a chantagem dos representantes da elite agrária brasileira.
    Na tarde da última sexta-feira, 25 de maio, exatamente um ano após a aprovação do relatório Aldo Rebelo na Câmara dos Deputados, três ministros vieram a público, com muitas palavras e nenhum documento, para reafirmar que o projeto seria vetado. Não na sua íntegra, como sinal de respeito ao Congresso Nacional. Mas os pontos que significassem anistia teriam sido extirpados. Mais desmatamentos? De jeito nenhum, tudo seria eliminado.
    O Brasil dormiu desconfiado, mas esperançoso, durante o final de semana, e acordou indignado na segunda-feira. Com 12 vetos e uma Medida Provisória, nasceu já remendado o Código Florestal do século 21 – e repleto de anistias.
    Perguntam-se muitos: mas como? A presidenta não disse que não aceitaria? Os ministros não afirmaram veementemente que a anisitia havia sido retirada? Então, como alguns ainda dizem que há anistia na lei?
    A partir de agora vai começar a guerra de comunicação. Tal como Goebbels, o Governo Federal vai insistir na tese de que uma mentira contada mil vezes vai virar verdade. Assim, para que não fique o dito pelo não dito, explico porque Dilma Roussef, contrariando tudo o que havia dito até agora, assinou embaixo da maior anistia ambiental da história do país.
    A ministra do Meio Ambiente, repetindo um mantra ecoado pelos ruralistas, afirmou publicamente que o projeto não tem anistia. Teria como objetivo, simplesmente, legalizar ocupações “antigas”, feitas de acordo com as regras da época.
    A Lei Federal 12.651, de 25 de maio de 2012, o novo Código “Florestal”, continua mantendo, no entanto, a figura de “área rural consolidada”. Segundo o artigo 3o, ela é uma “área de imóvel rural com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008” (inciso IV).
    Um incauto leitor da lei deve logo pensar: “então, antes de 2008, os proprietários rurais não precisavam proteger as florestas existentes em suas terras ou a quantidade de área protegida era menor”. Ledo engano. Desde 1934, com o “velho” Código Florestal, o proprietário é obrigado a manter as florestas das áreas “vulneráveis a erosões” e respeitar os 25% da propriedade que não poderiam ser convertidos para agropecuária, o que posteriormente veio a ser denominado de “reserva legal”.
    Em 1965, como todo mundo desmatava alegando que não sabia quais eram essas tais áreas vulneráveis, veio o “novo” Código Florestal e deixou claro que essas áreas eram os topos de morro, as encostas íngremes, as nascentes, as beiras de rio. E fixou padrões e metragens, para ninguém dizer que não sabia que ali não podia desmatar.
    Em 1986, houve uma alteração pontual: as matas ciliares deveriam ser protegidas em, no mínimo, 30 metros contados das margens, e não apenas cinco como era até então. Em 1996, veio outra modificação: na Amazônia Legal (e só lá), a reserva legal seria aumentada de 50% para 80% do imóvel, em áreas de floresta, e diminuída de 50% para 35%, em áreas de cerrado (clique no quadro abaixo para ampliar).

    Dessa brevíssima digressão espero ter ficado claro que um desmatamento realizado em 2008 em encostas íngremes ou nascentes, por exemplo, assim como na área destinada à reserva legal, era absolutamente ilegal. Mesmo que realizado dez anos antes, era ilegal. Em muitos casos, mesmo que realizado várias décadas antes seria ilegal.
    O “novíssimo” Código Florestal isenta de recuperação todas as Áreas de “Preservação Permanente” e a grande maioria das áreas de reserva legal que tenham sido desmatadas até 2008 (e não em 1965, 1989 ou 1996). Ou seja, desmatou, fica desmatado. Se havia multa, está anulada. Se a área havia sido embargada, está liberada. Isso é anistia. Mas como?
    O artigo 63 (não vetado) diz que nas encostas com mais de 45º de inclinação, nas bordas de chapadas, nos topos de morro e áreas com altitude superior a 1.800 metros de altitude – todos protegidos desde 1965 – serão mantidas as atividades agropecuárias implantadas até 2008. Mesmo pastagens, altamente degradadoras de áreas montanhosas, estão permitidas. Recuperação? Zero.
    O artigo 67 (não vetado) diz que, nos imóveis de até quatro módulos fiscais, não é preciso recuperar a reserva legal irregularmente desmatada antes de 2008 (e não em 1934 ou 1996). Isso significa que em mais de 90% dos imóveis rurais – que ocupam 24% da área do país – não haverá recuperação. Com as brechas que essa regra traz é muito provável que essa anistia se estenda para parte significativa dos 10% de imóveis restantes, impactando uma área bem maior (saiba mais).
    O artigo 11-A (incluído pela MP) permite, em seu §6º, que haja nos manguezais a “regularização das atividades e empreendimentos de carcinicultura e salinas cuja ocupação e implantação tenha ocorrido antes de 22 de julho de 2008”. Os manguezais, não custa lembrar, estão indiretamente protegidos pela lei desde 1965, e diretamente desde 1993, na Mata Atlântica, e 2002, na Amazônia. Esse artigo, além de promover essa anistia, permite que novas áreas sejam abertas para instalação de criações de camarões, contrariando o conselho unânime dos cientistas brasileiros (veja aqui).
    Mesmo no caso das matas ciliares e nascentes, que erroneamente foi tomado pela grande mídia como “o” caso de anistia (como se as anteriores não existissem), e que o Governo Federal, na pirotecnia feita no dia 25/5, usou como exemplo para dizer que “não havia mais anistia”, ela está lá, inteirinha. O art.61-A (incluído pela MP) prevê a “recuperação” de uma faixa de 5 a 100 metros em beiras de rio desmatadas até 2008 (e não em 1965 ou 1986), quando a área que deveria ter sido preservada variava de 30 a 500 metros. No caso de nascentes, protegidas desde 1965, mas cuja área exata de proteção (raio de 50 metros) foi estabelecida em 2002, a “recuperação” vai variar de 5 a 15 metros, mesmo para desmatamentos realizados em 2007. Nesse último caso, diga-se de passagem, a MP diminui a proteção mesmo em relação ao texto que fora aprovado pela Câmara dos Deputados há menos de um mês, no qual a recuperação prevista era de 30 metros. Em todos os casos, com exceção das beiras de rio situadas em imóveis com mais de 10 módulos fiscais, a “recuperação” será de apenas parte daquilo que deveria ter sido protegido.
    E por que estou usando aspas para falar de recuperação em beiras de rio e nascentes? Porque a MP incluiu uma novidade surpreendente: essa – pouca – restauração poderá, agora ser feita com “espécies lenhosas perenes ou de ciclo longo, nativas ou exóticas”. Para quem não sabe, isso quer dizer eucalipto, laranja, café, videiras, palma de dendê etc. Ou seja: o que era vegetação nativa, será – parcialmente – recomposto com espécies de uso econômico e nenhuma função ambiental. Portanto, recuperação ambiental mesmo, zero. Anistia 100%. Uma “correção” publicada hoje no Diário Oficial determina que esse dispositivo vale apenas para áreas de até quatro módulos fiscais.
    Mas o problema da anistia não é apenas, ou principalmente, moral. É ambiental. O “novíssimo” Código Florestal diz em seu Art. 3º que as áreas de preservação permanente têm a função de “preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas”. Com a anistia promulgada pela Presidente Dilma Rousseff, haverá uma grande parte dessas áreas que nunca mais cumprirão com essa função, pois jamais voltarão a ter vegetação nativa. Em várias regiões do país há mais APPs e reservas legais desmatadas do que preservadas (leia mais). Justamente nessas regiões falta água, sobram enchentes, morrem nascentes, acaba a fauna. E assim será.
    Somando-se todas as anistias com todos os pontos onde há uma diminuição na proteção das florestas que não foram ainda derrubadas e como prenunciado aqui (leia aqui), deixamos de ter, na prática, uma lei de proteção às florestas existentes em áreas privadas. O remendo de lei aprovado tem todos os defeitos das leis anteriores (poucas medidas de apoio a sua implementação), mas poucas de suas virtudes. É contraditório e complexo de interpretar.
    Ao não cumprir com a palavra empenhada perante a sociedade, a presidenta Dilma Rousseff se tornou cúmplice do projeto de país que a ala mais retrógrada de nossa elite econômica está desenhando. E entrará para história como aquela que, mesmo podendo, mesmo tendo todo o apoio da sociedade, não evitou o maior retrocesso nos padrões de proteção ambiental da história brasileira. E talvez mundial, pois não me consta que em outros países a proteção às florestas esteja diminuindo, muito pelo contrário. Em pleno século 21, voltaremos a um patamar anterior ao de 1934, quando nosso primeiro Código Florestal foi aprovado.

    terça-feira, 8 de maio de 2012

    Proposta que confisca propriedade com trabalho escravo deve ser votada nesta terça


    Foto: Renato Alves/Ministério do Trabalho e Emprego
    Desde 1995, 42 mil trabalhadores foram libertados de trabalho escravo | Foto: Renato Alves/Ministério do Trabalho e Emprego

    Felipe Prestes no SUL21

    Após oito anos parada, a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 438/2001, conhecida como PEC do Trabalho Escravo, deve ser votada nesta terça-feira (8) pela Câmara dos Deputados. A proposta determina que o empresário que tiver explorando trabalho escravo terá suas terras ou imóvel urbano confiscado para reforma agrária ou uso social nas cidades. No que depender do presidente Marco Maia, estará pautada uma sessão extraordinária para votá-la, no início da noite, após a sessão ordinária. O petista, entretanto, vai colocar o tema em debate na reunião de líderes, que ocorre no início da tarde.
    A PEC do então senador Ademir Andrade (PSB-PA) foi aprovada no Senado em 2001, chegou à Câmara, onde foi aprovada em primeiro turno em2004. A votação em segundo turno pode ocorrer agora, oito anos depois, fruto da pressão do Governo Federal e de movimentos sociais. No mês de março, a presidenta Dilma Rousseff estabeleceu, inclusive, prazo para votação da PEC: até o dia 13 de maio, aniversário de 124 anos da Lei Áurea, que acabou com a legalidade da escravidão no país. Maia apoiou a escolha da data e prometeu colocar em pauta nesta semana.
    Para ativistas que combatem o trabalho escravo, a PEC é importante, porque as multas e sanções que são aplicadas a empresários não têm sido suficientes para conter a prática. “A PEC do Trabalho Escravo é hoje a lei mais relevante em trâmite no Congresso no combate ao trabalho escravo, porque confisca a propriedade. É muito paradigmática, porque deixa claro que o Estado brasileiro não aceita esta violação à dignidade humana”, afirma Leonardo Sakamoto, jornalista e diretor da ONG Repórter Brasil, que desde 2001 reporta casos de violação aos trabalhadores rurais.
    Sakamoto relata que, desde 1995, quando o Governo Federal reconheceu a existência do trabalho escravo no país e criou um sistema público de combate à prática, 42 mil trabalhadores já foram libertados desta condição. Hoje, 291 empregadores estão no cadastro do trabalho escravo, atualizado semestralmente, a maior parte deles está no campo. Para o jornalista, contudo, o tema é mais próximo da população das cidades do que parece. “Faz parte da nossa alimentação e do nosso vestuário. É interessante que a gente, que se beneficia disto, pressione para que não aconteça mais”, diz.
    José Cruz / ABr
    Terça-feira será de manifestações pela aprovação da PEC em Brasília | Foto: José Cruz / ABr

    Voto aberto pode ajudar na aprovação

    Nesta terça (8), às 11h, movimentos sociais como o MST e a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag), entre outras entidades, e artistas como Osmar Prado. Letícia Sabatella, Bete Mendes e Paulo Betti, além de intelectuais e integrantes da Igreja farão ato na Câmara dos Deputados para entrega de abaixo-assinado com cerca de 50 mil assinaturas pela aprovação da PEC. Entidades farão vigília no Congresso durante todo o dia.
    Para Leonardo Sakamoto, a aprovação depende de não haver subterfúgios, como a falta de acordo entre líderes ou a falta de quórum para a votação. “O voto é aberto, isto ajuda. Acredito que uma vez colocado em votação, será aprovado”, diz. Para ser aprovada, uma PEC precisa de 3/5 dos votos. Normalmente, a bancada ruralista tem tido bem mais que 2/5 dos votos na Casa, mas, como o voto é aberto, o diretor da Repórter Brasil crê que pouco se arriscariam em votar contra uma matéria que ajuda a combater o trabalho escravo. “Qual deputado vai querer votar contra uma lei que vem sendo chamada de nova Lei Áurea, em ano eleitoral?”, questiona.
    Ainda assim, Sakamoto diz que na Câmara “tudo pode acontecer” e considera uma incógnita se a PEC chegará a ser votada mesmo. “Não tenho resposta. Depende muito se o Governo Dilma vai entrarem campo. Depende se o Governo ainda tem base aliada, se o Congresso ainda se importa com os temas que o Governo prioriza, se base aliada não é aliada apenas em temas que lhe interessa”, diz. Caso seja aprovada, a PEC precisa voltar ao Senado, porque a Câmara fez alterações no texto, incluindo os imóveis urbanos.
    valdircolatto
    Colatto: Se for votada, PEC será derrotada | Foto: Janine Moraes/Ag. Câmara

    Deputado ruralista acredita que trabalho escravo não está bem definido na PEC

    Para o deputado Valdir Colatto (PMDB-SC) ainda não é o momento da PEC ser apreciada. “A PEC não tem um conceito definido de trabalho escravo. Vai deixar na mão do fiscal que for na fazenda? Fiscal não pode ser quem decide, cada fiscal faz o que quer, é uma ditadura do fiscal”, diz.
    Segundo Colatto, o Ministério do Trabalho tem uma instrução normativa com 255 exigências aos produtores e eles poderiam perder sua propriedade por questões não tão importantes. “Nenhuma propriedade no Brasil cumpre todas estas exigências, e é uma instrução normativa, não tem respaldo em lei. Quando o funcionário toma água na bica, o produtor pode ser enquadrado. Tem que ter um banheiro para cada dez funcionários, azulejo na cozinha. Como vai fazer isto?”.
    Para o peemedebista, o produtor rural também não pode ser cobrado da mesma maneira que uma indústria, por exemplo. “Uma propriedade rural no meio da Amazônia não pode ter a mesma estrutura que em uma indústria”.
    O deputado também ressalta que está ocorrendo na Câmara uma CPI do Trabalho Escravo e que, portanto, seria mais adequado esperar o fim dos trabalhos para apreciar a PEC com mais subsídios. “Tem uma CPI que vai ouvir todos os lados. Agora não é o momento de votar. Não sei por que tanta pressão se tem uma CPI. Seria uma irresponsabilidade aprovar agora, vai criar mais conflitos, pode criar desemprego”, diz.
    Colatto acredita que se a proposta entrar em votação será derrotada. “Se o governo quer tanto colocar, tem que colocar na pauta. Vai ser derrotado”.
    Divulgação / MTE
    Uma realidade Brasil afora: adolescentes libertados de trabalho escravo | Foto: Divulgação / MTE

    Conceito de trabalho escravo é claro, garante Sakamoto

    Para Leonardo Sakamoto, o conceito de trabalho escravo é claro, tanto que está na lei brasileira, no artigo 149 do Código Penal. De acordo com o texto legal, a condição análoga à da escravidão se dá quando o trabalhador é submetido a trabalho forçado, a jornada exaustiva, ou a trabalhar em condições degradantes. O trabalho forçado pode se dar, segundo a lei, por dívidas contraídas com o empregador, por cerceá-lo de meios de transporte, manter vigilância ostensiva para que ele não deixe o local de trabalho ou se apoderar de seus documentos.
    O diretor da Repórter Brasil ressalta que o trabalho escravo não está apenas na legislação brasileira, mas em convenções e tratados subscritos pelo país na esfera internacional, em instituições como a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e as Nações Unidas. Além disto, afirma o jornalista, o STF, o TST e outros tribunais brasileiros já têm inúmeras decisões contra o trabalho escravo. “Primeiro, os ruralistas diziam que o trabalho escravo não existia. Quando as evidências contrariavam muito isto, passaram a dizer que o conceito não é claro. Para estas pessoas não adianta mostrar convenções da OIT, da ONU, o artigo 149 do Código Penal. Não adianta apresentar fatos para quem não quer ouvi-los”, diz.
    Sakamoto também rebate o argumento de que fazendeiros poderiam perder sua propriedade por pequenas coisas como não ter azulejo na cozinha. Segundo ele, é muito comum proprietários que são enquadrados mostrarem apenas parte de suas autuações, ocultando os motivos principais. “O trabalho escravo é conjunto da obra”, diz. O jornalista explica que na maioria das propriedades que descumprem alguma exigência do Ministério do Trabalho, os empregadores corrigem os erros e não são enquadrados na lista suja do trabalho escravo. “Apenas 42 mil trabalhadores foram libertados e existem 18 milhões de trabalhadores rurais no país. Se fosse como o deputado diz, este número seria muito maior”.
    leonardo sakamoto
    | Foto: Alexandra Martins/Ag. Câmara

    Para jornalista, função social da propriedade é o cerne da discordância

    Leonardo Sakamoto ressalta que a imensa maioria dos proprietários rurais cumpre com suas obrigações trabalhistas. No entanto, a PEC preocupa grande parte deles porque mexe com a propriedade, dando caráter efetivo à função social da propriedade, pouco cumprida no Brasil. “Certa vez o Ronaldo Caiado (deputado federal, DEM-GO) chegou a dizer que se podia jogar na cadeia quem tivesse trabalho escravo em sua fazenda, mas que não se tirasse a propriedade. O medo é vincular à função social. É que haja outros mecanismos, como desapropriar propriedades por crimes ambientais, por trabalho infantil. Para eles a propriedade é inviolável”, diz.
    O ativista afirma que os produtores deveriam entender que há concorrentes praticando dumping social, levando vantagem ao submeter trabalhadores a condições degradantes. “A maioria fica dentro da lei, dá qualidade de vida a seus trabalhadores e sofre concorrência desleal de quem não dá”, diz.
    Ele afirma também que é comum empresários agradecerem depois de sofrerem pressão da Repórter Brasil e regularizarem sua situação. “Ruralistas já me agradeceram por terem sido fiscalizados. Hoje, podem dizer, por exemplo, para o cliente europeu que seu algodão é limpo, o que não se pode dizer da produção no Paquistão e na Índia”.

    terça-feira, 1 de maio de 2012

    O OPERÁRIO EM CONSTRUÇÃO


    Vinicius de Moraes

    E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo: — Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu. E Jesus, respondendo, disse-lhe: — Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás (Lucas, cap. IV, versículos 5-8).

    Era ele que erguia casas
    Onde antes só havia chão.
    Como um pássaro sem asas
    Ele subia com as asas
    Que lhe brotavam da mão.
    Mas tudo desconhecia
    De sua grande missão:
    Não sabia por exemplo
    Que a casa de um homem é um templo
    Um templo sem religião
    Como tampouco sabia
    Que a casa que ele fazia
    Sendo a sua liberdade
    Era a sua escravidão.


    De fato como podia
    Um operário em construção
    Compreender porque um tijolo
    Valia mais do que um pão?
    Tijolos ele empilhava
    Com pá, cimento e esquadria
    Quanto ao pão, ele o comia
    Mas fosse comer tijolo!
    E assim o operário ia
    Com suor e com cimento
    Erguendo uma casa aqui
    Adiante um apartamento


    Além uma igreja, à frente
    Um quartel e uma prisão:
    Prisão de que sofreria
    Não fosse eventualmente
    Um operário em construcão.
    Mas ele desconhecia
    Esse fato extraordinário:
    Que o operário faz a coisa
    E a coisa faz o operário.
    De forma que, certo dia
    À mesa, ao cortar o pão
    O operário foi tomado
    De uma subita emoção
    Ao constatar assombrado
    Que tudo naquela mesa
    - Garrafa, prato, facão
    Era ele quem fazia
    Ele, um humilde operário
    Um operário em construção.
    Olhou em torno: a gamela
    Banco, enxerga, caldeirão
    Vidro, parede, janela
    Casa, cidade, nação!
    Tudo, tudo o que existia
    Era ele quem os fazia
    Ele, um humilde operário
    Um operário que sabia
    Exercer a profissão.


    Ah, homens de pensamento
    Nao sabereis nunca o quanto
    Aquele humilde operário
    Soube naquele momento
    Naquela casa vazia
    Que ele mesmo levantara
    Um mundo novo nascia
    De que sequer suspeitava.
    O operário emocionado
    Olhou sua propria mão
    Sua rude mão de operário
    De operário em construção
    E olhando bem para ela
    Teve um segundo a impressão
    De que não havia no mundo
    Coisa que fosse mais bela.


    Foi dentro dessa compreensão
    Desse instante solitário
    Que, tal sua construção
    Cresceu também o operário
    Cresceu em alto e profundo
    Em largo e no coração
    E como tudo que cresce
    Ele nao cresceu em vão
    Pois além do que sabia
    - Excercer a profissão -
    O operário adquiriu
    Uma nova dimensão:
    A dimensão da poesia.


    E um fato novo se viu
    Que a todos admirava:
    O que o operário dizia
    Outro operário escutava.
    E foi assim que o operário
    Do edificio em construção
    Que sempre dizia "sim"
    Começou a dizer "não"
    E aprendeu a notar coisas
    A que nao dava atenção:
    Notou que sua marmita
    Era o prato do patrão
    Que sua cerveja preta
    Era o uisque do patrão
    Que seu macacão de zuarte
    Era o terno do patrão
    Que o casebre onde morava
    Era a mansão do patrão
    Que seus dois pés andarilhos
    Eram as rodas do patrão
    Que a dureza do seu dia
    Era a noite do patrão
    Que sua imensa fadiga
    Era amiga do patrão.


    E o operário disse: Não!
    E o operário fez-se forte
    Na sua resolução


    Como era de se esperar
    As bocas da delação
    Comecaram a dizer coisas
    Aos ouvidos do patrão
    Mas o patrão não queria
    Nenhuma preocupação.
    - "Convençam-no" do contrário
    Disse ele sobre o operário
    E ao dizer isto sorria.


    Dia seguinte o operário
    Ao sair da construção
    Viu-se súbito cercado
    Dos homens da delação
    E sofreu por destinado
    Sua primeira agressão
    Teve seu rosto cuspido
    Teve seu braço quebrado
    Mas quando foi perguntado
    O operário disse: Não!


    Em vão sofrera o operário
    Sua primeira agressão
    Muitas outras seguiram
    Muitas outras seguirão
    Porém, por imprescindível
    Ao edificio em construção
    Seu trabalho prosseguia
    E todo o seu sofrimento
    Misturava-se ao cimento
    Da construção que crescia.


    Sentindo que a violência
    Não dobraria o operário
    Um dia tentou o patrão
    Dobrá-lo de modo contrário
    De sorte que o foi levando
    Ao alto da construção
    E num momento de tempo
    Mostrou-lhe toda a região
    E apontando-a ao operário
    Fez-lhe esta declaração:
    - Dar-te-ei todo esse poder
    E a sua satisfação
    Porque a mim me foi entregue
    E dou-o a quem quiser.
    Dou-te tempo de lazer
    Dou-te tempo de mulher
    Portanto, tudo o que ver
    Será teu se me adorares
    E, ainda mais, se abandonares
    O que te faz dizer não.


    Disse e fitou o operário
    Que olhava e refletia
    Mas o que via o operário
    O patrão nunca veria
    O operário via casas
    E dentro das estruturas
    Via coisas, objetos
    Produtos, manufaturas.
    Via tudo o que fazia
    O lucro do seu patrão
    E em cada coisa que via
    Misteriosamente havia
    A marca de sua mão.
    E o operário disse: Não!


    - Loucura! - gritou o patrão
    Nao vês o que te dou eu?
    - Mentira! - disse o operário
    Não podes dar-me o que é meu.


    E um grande silêncio fez-se
    Dentro do seu coração
    Um silêncio de martirios
    Um silêncio de prisão.
    Um silêncio povoado
    De pedidos de perdão
    Um silêncio apavorado
    Com o medo em solidão
    Um silêncio de torturas
    E gritos de maldição
    Um silêncio de fraturas
    A se arrastarem no chão
    E o operário ouviu a voz
    De todos os seus irmãos
    Os seus irmãos que morreram
    Por outros que viverão
    Uma esperança sincera
    Cresceu no seu coração
    E dentro da tarde mansa
    Agigantou-se a razão
    De um homem pobre e esquecido
    Razão porém que fizera
    Em operário construido
    O operário em construção


    Fontes: Helena Sut | Mariana Cruz, Filosofia, Educação Pública, CIERJ |

    O trabalho e os pobres que fazem a História



    Mauro Santayana no JB


    Até recentemente os historiadores desdenhavam os pobres. A crônica do passado se fazia em torno de reis débeis, alguns; corajosos, outros. Também os intelectuais, cientistas e artistas sempre estiveram na vanguarda da história oficial. A civilização se fazia também com os santos, mas os santos da Igreja, em sua maioria, eram recrutados entre os membros da classe dominante na Idade Média, ainda que renunciassem à riqueza, como Francisco de Assis, ou se fizessem mártires nas guerras que, de santas nada tinham, como as cruzadas. Os santos modernos, com raras exceções, são militantes políticos contra os pobres, como o fundador da Opus dei.

    Hoje cresce entre os acadêmicos a preocupação com a “História vista de baixo”, embora a razão recomende não estabelecer o que seja alto ou baixo na construção do homem. É bom olhar o trabalho dos pobres, e sua luta por justiça, como o sumo da História. Não foram os faraós que construíram as pirâmides, mas, sim, os escravos; as grandes cidades modernas podem ter sido imaginadas pelos arquitetos geniais, mas não sairiam das pranchetas sem as mãos ásperas dos pedreiros, armadores e carpinteiros. O mundo virtual, abstrato, dos pensadores, prescinde do trabalho pesado, mas a doma da natureza, com a agricultura e o pastoreio, e sua transformação em objetos tangíveis, são conquistas da  fadiga cotidiana.

    Muitos trabalhadores que hoje estão comemorando o primeiro de maio, não  sabem exatamente como surgiu essa tradição. Ela se deve a uma das primeiras greves organizadas nos Estados Unidos, em 1886. No dia 3 de maio, parados havia algum tempo, os trabalhadores de uma indústria de máquinas colheitadeiras de Chicago, a McCormick Harvesting Machine Company, formaram piquetes diante dos portões da fábrica e foram dissolvidos pelos policiais que protegiam os fura-greves, com a morte de vários operários e  dezenas de presos e feridos. Como protesto, eles se reuniram, com o apoio de outros trabalhadores, no dia seguinte, na praça do Heymarket, no centro da cidade.

    Entre outras reivindicações, os grevistas exigiam a fixação da jornada do trabalho em oito horas diárias. Os patrões, como fazem até hoje, organizaram pelotões de bate-paus, garantidos para ajudar a polícia. Houve o conflito, com os grevistas se defendendo como podiam, e uma bomba explodiu, matando sete policiais. A polícia atirou, matou muitos trabalhadores e buscou suspeitos. Um líder dos trabalhadores, August Spies, embora provasse não estar no local, foi, com três outros, também vistos como inocentes, condenados à forca, e executados em 11 de novembro do ano seguinte. Um dos presos matou-se.  Os três que conseguiram escapar do cadafalso foram perdoados, em 1893,  pelo governador de Illinois, John P. Altgeld. O movimento sindical, que existia, de forma dispersa e débil, desde a presidência de Andrew Jackson, tomou corpo a partir do episódio, com a reorganização da American Federation of Labor.

    O século 20 começou com a criação de novos sindicatos de trabalhadores, principalmente  nos Estados Unidos e na Inglaterra ( já anteriormente com o incentivo do conservador Disraeli), e na Alemanha. Foram as lutas dos trabalhadores que moderaram, um pouco, a avidez dos capitalistas liberais. Essas lutas se iniciaram em 1848 na Europa, tiveram impulso com a Comuna de Paris, em 1871, e viveram a sua grande data no massacre do Haymarket e suas conseqüências, em 1886.

    Na luta contra a Depressão dos anos 30, os países ocidentais (na União Soviética a situação era outra) procuraram incentivar o sindicalismo e contar com seu apoio. Hitler decretou, no dia 1º de maio de 1933, que a data seria festejada sob o nazismo como o Dia do Trabalho. No dia seguinte, fechou todos os sindicatos, prendeu seus líderes e iniciou a perseguição aos socialistas e comunistas.  Nos Estados Unidos e no Canadá, para desvincular a comemoração do massacre de maio,  a data escolhida foi a da primeira segunda feira de setembro.

    O movimento sindical, para ser autêntico, não deve atrelar-se aos governos, ainda que, na defesa do interesse dos trabalhadores, possa apoiar essa ou aquela medida dos estados nacionais. Foi a luta dos trabalhadores ingleses que criou o Labour Party na Inglaterra, em 1906, e conseguiu as reformas das leis do trabalho que permitiram o desenvolvimento econômico e político da Grã Bretanha, e a levaram ao forte  desempenho bélico na Primeira e na Segunda Guerra Mundial.

    Os historiadores começam a deixar os papéis dos gabinetes oficiais e as alcovas da nobreza, a fim de encontrar os verdadeiros agentes da civilização,  no estudo da vida e da resistência dos pobres contra a opressão – o que ela tem de melhor. É hora de que se faça o mesmo em nosso país. É mais importante estudar a resistência dos negros e dos  brancos miseráveis do Brasil Colônia – que valiam menos do que os escravos, posto que os últimos, como bens de produção, tinham valor de mercado – do que imaginar como eram os encontros galantes de Pedro I com a Marquesa de Santos. Foi o suor dos desprezados que deu liga à argamassa de nossa nação – e de todas as outras nações.

    domingo, 29 de abril de 2012

    Microcrédito, o negócio da miséria


    Ao emprestar somas módicas a fim de possibilitar o desenvolvimento de uma atividade produtiva, o microcrédito deveria emancipar os mais pobres. Mas, na Índia, a lógica dos acionistas triunfou: empresas de microcrédito constroem fortunas vampirizando os mais vulneráveis
    por Cédric Gouverneur no LeMondeBrasil
    Laksmi e sua esposa Rama não aguentavam mais confeccionar, dia após dia, quase mil beedies(cigarros aromáticos), em doze horas de trabalho, na esperança de ganhar 70 rupias (R$ 2,50) ao final do mês. Esse casal com duas crianças fez então um empréstimo de 5 mil rupias (R$ 180) em uma empresa de microcrédito para abrir uma minúscula lojinha de noz de bétele na periferia de Warangal, no estado de Andhra Pradesh, no sul da Índia. Isso deveria permitir-lhes uma vida melhor, reembolsando 130 rupias por semana. Mas, conta Rama, Laksmi ficou doente: “Durante quatro meses, ele não pôde trabalhar”. Os vencimentos se acumularam e, com eles, os juros. Os vizinhos começaram a ficar agressivos, pois as empresas de microcrédito colocaram em ação um sistema de corresponsabilidade: quando um devedor falha, os outros devem reembolsar. Assediado, aterrorizado, o casal contratou um segundo empréstimo para pagar o primeiro. Depois um terceiro para pagar o segundo... Um total de cinco empréstimos, pelo equivalente a cerca de R$ 2.300.
    Os credores acabaram por literalmente acampar diante do casebre de Laksmi e Rama. Depois – em completa ilegalidade – tomaram a lojinha de bétele, o fogão, as joias de ouro e finalmente a máquina de costura com a qual uma das filhas do casal, Eega, de 20 anos, fazia roupas para revender. “Você é bonitinha, vá se prostituir!”, disseram os credores quando ela perguntou como sua família iria conseguir comer. Humilhada, ela se imolou com fogo no dia 28 de setembro de 2010.
    “Os pobres têm acesso a um crédito fácil, na porta de casa”, resume Reddy Subrahmanyam, na chefia do ministério do Desenvolvimento Rural do estado. “Mas a que custo! Com os impostos, as taxas de juros beiram os 60%.” Seguindo o espírito de seu inventor, o bengali Muhammad Yunus, Prêmio Nobel da Paz, o microcrédito deveria permitir a aquisição de uma nova fonte de renda, e não atuar como um complemento. Uma nuance fundamental, o microcrédito indiano se assemelha agora aos créditos de consumo: “Os mais pobres contratam créditos para pagar gastos médicos, um dote, um casamento, até uma televisão ou uma peregrinação”, fulmina Subrahmanyam. “O microcrédito deveria emancipar [empower] os mais desfavorecidos, devolver-lhes a dignidade. Agora ele os está afundando na miséria.” E em vez de criar solidariedades, a corresponsabilidade dos devedores implode as comunidades dos vilarejos.
    Andhra Pradesh concentra um quarto dos microcréditos privados do país, ou seja, 52 bilhões de rupias (R$ 1,866 milhão) emprestados a 6,25 milhões de lares em 2010.1 “Nos anos 2000”, conta Abhay N., editor do jornal on-line India Microfinance, “o governo regional lançou diversos programas sociais para conter a influência dos maoístas”, cuja guerrilha é ativa na zona rural.2 O estado incitou os bancos a fazer empréstimos aos habitantes dos vilarejos reunidos no seio de grupos de cooperação (self-help groups, ou SHG), ele mesmo se encarregando de uma parte dos juros.
    No vilarejo de Dharmasagaram, no distrito de Warangal, uma mãe de família, Bhergya, conta como pôde, graças ao SHG, fazer um empréstimo de pouco mais de R$ 2.300 no banco, com uma taxa de 12% (da qual 9% por conta do Estado) para adquirir um riquexó (carro de duas rodas para transporte de passageiros a tração humana) que ela depois alugou ao irmão: “O aluguel do riquexó me paga 6 mil rupias (R$ 215) líquido por mês, e eu devo reembolsar 2.700”, indica ela, satisfeita.
    Mas empresas privadas utilizaram essa rede para abordar os habitantes dos vilarejos e vender créditos para consumo segundo o modelo europeu. Esse desvio se explica pela evolução da maioria dos setenta órgãos de microcrédito indianos, agora guiados por uma só lógica, a do lucro. Número um do setor, a SKS foi fundada em 1998 por Vikram Akula, um trabalhador social diplomado na Universidade de Chicago. A SKS era originalmente uma organização sem fins lucrativos. “Esse statusjurídico a impedia de emprestar dinheiro suficiente”, justifica o porta-voz da empresa na sede social em Hyderabad. “Akula decidiu então, em 2005, fazê-la evoluir para uma companhia financeira não bancária.” Em direito indiano, uma empresa empresta dinheiro, mas não pode receber depósitos. Assim como todos os patrões de órgãos de microcrédito contatados, Akula está “muito ocupado” para nos receber.
    Uma ordem recente do governo de Andhra Pradesh (Partido do Congresso) proíbe os coletores de ir ao domicílio de seus devedores e condiciona a contratação de novos empréstimos ao aval das autoridades. Medidas julgadas insuficientes pela oposição: o Telugu Desam Party (TDP), no poder em Andhra Pradesh entre 1999 e 2004, incita os milhões de devedores a parar de pagar.
    Na periferia de Hyderabad, encontramos Kaushalya e suas vizinhas. Essa enérgica avó fez um empréstimo para cuidar da saúde de seu marido paralítico. Incapaz de reembolsar, ela deveria ter sido assediada pelas outras devedoras do bairro, obrigadas a pagar em seu lugar. Mas essas senhoras decidiram se unir no enfrentamento e não pagar mais nada: “Não demos mais nada desde novembro de 2010”, dizem elas ao mesmo tempo orgulhosas e graves em seus saris. “As pessoas da empresa de crédito nos ameaçam, dizem que vamos para a prisão, mas nada acontece, a gente nem dá mais atenção a elas!” Tais exemplos de solidariedade nos vilarejos se multiplicam em todo o estado. E as taxas de reembolso afundam, passando de 97% para 20%, até 10%... Enfim, “investigações estão em andamento sobre uns cinquenta suicídios. Os responsáveis pelo assédio deverão responder por seus atos diante dos tribunais”, promete Subrahmanyam.
    Sentindo o vento mudar, 39 dirigentes da SKS liquidaram suas stock optionsdesde o começo da crise, no fim de 2010.3 Segundo nossas informações, as empresas de microcrédito se instalam agora no interior profundo, nas cidades dos indígenas Adivasis: isolados, miseráveis, analfabetos, eles são menos suscetíveis a desconfiar... A microfinança indiana poderia tomar para si a tirada do humorista Alphonse Allais (1854-1905): “É preciso procurar o dinheiro onde ele está: com os pobres. Eles não têm muito, mas são muitos...”.
    Cédric Gouverneur é jornalista.

    Ilustração: Daniel Kondo

    1 Narasimhan Srinivasan, “Microfinance India: state of the sector report” [Microfinança na Índia: relatório sobre o estado do setor], SAGE Publications India Pvt Ltd, Nova Déli, 2010.

    2 Ler “En Inde, expansion de la guérilla naxalite” [Na Índia, expansão da guerrilha naxalita], Le Monde Diplomatique, dez. 2007.

    3 Express India, Nova Déli, 11 fev. 2011.

    terça-feira, 3 de abril de 2012

    Europa: até a prostituição em crise


    Empobrecimento no Leste multiplica casos de tráfico de mulheres, levando violência até a países onde profissão foi regulamentada, como Holanda

    Por Antonio Barbosa Filho*, de Amsterdã para o PASSA PALAVRAS

    Em pelo menos nove países da Europa a prostituição é legalizada, e as profissionais do sexo têm direitos trabalhistas, tratamento médico preventivo e proteção contra a exploração por gigolôs. Nem sempre tudo que está nas leis é obedecido, mas o fato é que em países como a Holanda a criminalidade que cerca a prostituição em outras partes do mundo é bastante reduzida.

    A relativa tranquilidade do chamado Red Light District (Bairro da Luz Vermelha), onde encontram-se dezenas de bordéis e centenas das famosas vitrinas onde as prostitutas se exibem e tentam atrair seus clientes, está sendo abalada nos últimos dois anos pela crise econômica que atinge a Europa. Segundo as autoridades, aumenta a presença do crime organizado no tráfico de mulheres que buscam fugir dos países mais pobres (especialmente os da antiga União Soviética, como Moldova, Ucrânia, Belorússia, Romênia, Bulgária, República Tcheca e outros). Trazidas para os países mais adiantados, como a Holanda, Alemanha, Bélgica, Inglaterra e França, além da Escandinávia, muitas delas são escravizadas através de dívidas que são obrigadas a assumir, ou da violência pura e simples. Muitas vezes, elas passam antes por um “estágio” em países intermediários como a Macedônia (parte da antiga Iugoslávia), onde sofrem torturas e humilhações para ficarem “dóceis” aos seus “donos”.
    É impossível verificar os números envolvidos no tráfico de mulheres e nas redes de prostituição, mas a polícia calcula que entre 200 mil e 400 mil mulheres e garotas sejam retiradas anualmente dos países do Leste, e pelo menos a metade delas acaba sendo prostituída no Oeste – um quarto iria para os Estados Unidos. Organizações de direitos humanos e combate à escravidão lutam para que as polícias dos vários países ajam, mas a corrupção neste setor é grande. O chefe de polícia encarregado de combater este crime em Velesta, na Moldova, Vitalie Curarari, por exemplo, chega a culpar as próprias mulheres: “Cinquenta por cento de nossas mulheres vão para o estrangeiro procurar outros homens e depois voltam apenas para se divorciarem de seus maridos”… Ele também culpa a imprensa por fazer “sensacionalismo” ao denunciar as máfias do tráfico humano e as crueldades praticadas contra mulheres prostituídas.

    A situação econômica influencia na prostituição de várias maneiras.
    Em primeiro lugar, força mulheres dos países pobres a aceitarem convites ou atenderem a anúncios oferecendo empregos em países distantes. Há casos, por exemplo, de jovens que pensavam estar embarcando para um emprego de garçonete na Itália, mas depois de entregarem seus passaportes ao “agente de empregos” foram embarcadas para outros países, presas nos fundos de prostíbulos, espancadas e obrigadas a praticarem serviços sexuais sob ameaça e em troca de comida.
    Também muitas jovens estudantes nas principais cidades de toda a Europa, diante dos elevados preços das escolas (os governos cortam gastos com Educação como parte de seus “ajustes fiscais e orçamentários”), dos aluguéis e demais despesas, acabam recorrendo à prostituição através de agências de acompanhantes. Este trabalho lhes permite horários flexíveis, boa remuneração, e visitas a hotéis e restaurantes que uma estudantes jamais poderia frequentar.

    Já no Bairro da Luz Vermelha, em Amsterdã, as prostitutas reclamam que o volume de clientes tem diminuído, e que eles passaram a pechinchar muito mais pelos serviços. Fora desta área organizada e mais protegida, há muitas mulheres se prostituindo por valores mínimos, como no Theemsweg, uma área do tamanho de um campo de futebol, onde a Prefeitura instalou vários pontos de ônibus. As mulheres se abrigam neles, e os carros as apanham para uma relação rápida, dentro dos automóveis mesmo. Um policial nos informa que ali 70% das mulheres estão no país ilegalmente, e a maioria veio dos países do Leste europeu.

    Tudo isso vem preocupando as autoridades holandesas, que legalizaram a prostituição no ano 2000 para evitar a superexploração, a prostituição de menores, a violência dos gigolôs, e a disseminação das drogas neste meio. A legalização funcionou razoavelmente por vários anos, mas nada fica imune diante da grave crise do capitalismo que atinge profissionais de todas as áreas – inclusive as que comercializam o sexo.

    * Antonio Barbosa Filho é jornalista e escritor, autor de A Bolívia de Evo Morales e A Imprensa x Lula – golpe ou sangramento? (All Print Editora). Em viagem pela Europa, acompanha as consequências da crise financeira pós-2008 e da onda corte de direitos sociais (‘políticas de austeridade’) iniciada em 2010