segunda-feira, 13 de agosto de 2007

As novas armas biológicas

Um relatório da Associação Médica Britânica alerta: indústrias e governos podem explorar os avanços da genômica e da biologia para desenvolver fármacos que provocam colapso dos processos vitais — ou produzem soldados sem medo e sem memória. EUA, Europa e China seriam a vanguarda desta corrida para a morte

Steve Wright

A Associação Médica Britânica (AMB) acaba de publicar um novo relatório sobre o “uso de drogas como armas” [1]. É a terceira publicação da entidade alertando para a militarização da medicina e seu potencial para criar novos artefatos de guerra. Mas até que ponto devemos nos preocupar com o avanço crescente da farmacologia tática?

O assunto esteve em cena pelo menos por quatro décadas. O especialista em armas químicas e biológicas Julian Perry Robinson, do Programa de Harvard-Sussex, relatou experimentos governamentais em seres humanos com as drogas alucinógenas incapacitantes LSD e BZ [2]; o uso de CS no campo de batalha do Vietnã; a pesquisa russa de codinome Bonfire, destinada a transformar os peptídeos humanos regulatórios em armas; o emprego de material químico em interrogatórios; e uma desconcertante linha de produtos psicoquímicos – paralisantes que interrompem a transmissão de impulsos nervosos, produtores de dor, irritantes baseados em componentes encontrados em fontes tão variadas quanto as urtigas (uruxiol) e o sapo comum (bufotenina) [3].

Mas a natureza altamente técnica dessa pesquisa restringiu o debate aos grupos envolvidos na criação de conhecimento organizado sobre armas não-convencionais, como o Comitê Internacional da Cruz Vermelha, o Fórum de Genebra, o Programa Harvard-Sussex e o Pugwash [4]. Enquanto isso, tem havido um interesse militar crescente pelas armas bioquímicas incapacitantes, à medida que o desenvolvimento das ciências da vida vem criando novas possibilidades. Essa pesquisa se acelerou depois do onze de setembro, com a liberação de recursos substanciais direcionados a tecnologias e armas que possam ser utilizadas em conflitos assimétricos, nos quais aliados e inimigos estão eventualmente misturados ou são indistinguíveis.

Revolução nas neurociências permite tratar doenças incuráveis ou... construir mentes sem medo e memória

A revolução que está ocorrendo nas neurociências tem clara ligação com o relatório da AMB. A genômica e a biologia de sistemas estão rompendo as fronteiras entre processos químicos e biológicos, que antes eram vistos como distintos. Agora, as moléculas podem ser reprojetadas racionalmente para afetar processos de biorregulação, como o funcionamento neurológico, cardiovascular etc. No passado, este era um procedimento experimental laborioso, mas agora a maior parte do trabalho pode ser computadorizada, de modo que os compostos bioativos mais promissores são identificados automaticamente, em uma velocidade prodigiosa.

Novos compostos podem ser projetados para agir como mecanismos de liberação que, por si sós, não causam doença. São produzidos rapidamente. E variantes desses novos agentes podem ser exploradas por meio da química combinacional, que se beneficia da alta capacidade de exame por varredura, investigando milhares de ligações potenciais. Enquanto isso, a genômica, a metodologia de microarray (utilizada para investigar a expressão simultânea de um grande número de genes) e a inteligência artificial fornecem previsões de toxicidade, evolução direcionada, proteômica (codificação de proteínas pelos genes), bioinformática e modelagem computadorizada de estruturas receptoras do cérebro.

Ninguém negaria tais facilidades à medicina e à indústria farmacêutica, pois apresentam um incrível potencial para curar doenças humanas e prolongar vidas ativas. Mas esta revolução das neurociências também traz o espectro da iminente militarização da biologia, acompanhado pelo circo de horrores de novos mecanismos para induzir paralisia, de técnicas avançadas de repressão, de tortura em massa, dor e terror.

Este uso perverso das neurociências pode não ficar restrito apenas aos oponentes do Estado. No Iraque, vimos as forças aliadas dos Estados Unidos utilizarem drogas para acentuar o estado de alerta de seus soldados. Em um futuro próximo, de acordo com Wheelis e Dando, poderemos presenciar soldados indo para a ação com agressividade e resistência ao medo, à dor e ao cansaço quimicamente aumentadas. E até mesmo com suas memórias desagradáveis removidas pela farmacologia militar [5].

Após o 11 de setembro, Europa derruba veto à pesquisa de armas capazes de afetar o cérebro

O relatório da AMB alerta para o fato de que, apesar das proibições das armas químicas e biológicas, os governos “demonstram considerável interesse na possibilidade de usar drogas como armas”. Parte desse interesse vem do desejo insatisfeito pelas assim chamadas “armas não-letais”. Parte decorre da mudança de atitude provocada pelo 11 de setembro. Antes disso, o Comitê de Assuntos Externos, Segurança e Política de Defesa do Parlamento Europeu tinha pedido uma “proibição global de qualquer trabalho de pesquisa e desenvolvimento, militar ou civil, que busque aplicar conhecimentos sobre o funcionamento químico, elétrico, ligado a vibrações sonoras ou outros meios do cérebro humano para o desenvolvimento de armas que possam permitir qualquer forma de manipulação de seres humanos” [6].

Depois do 11 de setembro, emudeceram as inquirições e críticas aos avanços indesejáveis das tecnologias de segurança de Estado nos EUA. Há muito menos pressão política sobre a responsabilidade do complexo de segurança industrial. E, em muitos sentidos, esse complexo está agora criando a agenda política [7]. É claro que tais desdobramentos não estão acontecendo apenas nos EUA e na Europa. A AMB alerta também para a pesquisa chinesa.

Para a organização, o uso militar de drogas levanta questões éticas cruciais, porque elas não são utilizáveis “sem gerar uma significativa mortalidade entre a população-alvo”. A droga que simplesmente tiraria as pessoas momentaneamente de ação, sem risco de morte, “não existe e é improvável que venha a existir em um futuro visível”.

Um caso emblemático e trágico: o uso de fentanil pelas tropas russas, na reação a atentado terrorista

As preocupações da AMB são múltiplas e universais, estendendo-se, para além da Grã-Bretanha, aos clínicos de toda parte. Elas dizem respeito, especificamente, a: 1.Envolvimento de médicos no planejamento e execução de ataque, usando drogas como armas; 2. Coleta de dados sobre os efeitos das armas em questão; 3. O papel da medicina e do saber médico no desenvolvimento de armas; 4. A dupla responsabilidade dos médicos – de um lado, não prejudicar pessoas; de outro, apoiar a "segurança nacional"; 4. O papel dos médicos no apoio à legislação internacional.

A relevância dessas preocupações veio à tona quando as Forças Especiais Russas utilizaram um anestésico do tipo fentanil para resgatar os reféns do cerco terrorista ao Teatro de Moscou, em 23 de outubro de 2002. Na ocasião, 130 dos 900 reféns morreram, na proporção de um para sete. As chamadas armas não-letais provaram ser letais – na realidade, mais letais do que as usadas em guerra, para as quais a taxa de mortalidade esperada é de um em 16. Este é um resultado importante a ser considerado, pois a participação dos médicos em semelhantes ações militares suscita questões éticas sobre seu papel e ressalvas quanto à adequação de seu treinamento para enfrentar tal tipo de ocorrência. No fim, ficou claro que participação médica foi muito mal-vista.

Há também alegações de que as autoridades, que ainda se recusam a identificar o produto usado, alteraram os certificados de óbito deliberadamente, para respaldar a idéia de que o material era inofensivo. Bem menos discutido foi o número de pessoas deixadas permanentemente inválidas por essa operação. Grupos em defesa das vítimas relataram 174 mortes e casos de invalidez permanente entre os sobreviventes [8]. O grupo também observou a liquidação de todos os tchetchnos suspeitos de terrorismo, reforçando a visão de que esses compostos podem facilitar a execução sumária, substituindo um processo legal.

Hipótese alarmante: potências militares poderiam terceirizar a pesquisa e produção das novas armas

Os médicos possuem altos padrões para indicar remédios e testes a pacientes. O relatório da AMB identifica uma potencial pressão futura dos fabricantes de armas sobre a indústria farmacêutica, com o objetivo de baixar esses padrões. Há repercussões de um alerta, publicado no Le Monde Diplomatique, em 2003, pela professora Chantal Bismuth e o coronel Patrick Barriot, de que as armas químicas de amanhã possam vir a ser encontradas nos catálogos de medicamentos [9].

A AMB cita um estudo do Centro de Pesquisa Aplicada da Faculdade de Medicina da Universidade de Pennsylvania que pede à indústria farmacêutica para levar em conta as milhares de drogas descartadas ou deixadas em prateleiras sem pesquisa concluída, devido a efeitos colaterais indesejados. O mesmo estudo identifica vários “produtos farmacêuticos órfãos”, com nove tipos diferentes de sistemas como neurotransmissor/receptor e outras classes de compostos, inclusive convulsivantes [10].

O que aconteceria se alguns países decidissem que tais armas químicas não precisam de testes clínicos? E, se esses testes forem realizados, como investigações em idosos, doentes e crianças poderiam ser permitidas por um comitê de ética médica? Uma preocupação de peso é que tal tipo de pesquisa possa ser “terceirizado” para um país onde dinheiro e capital político sejam mais importantes do que a ética médica. Trata-se de um ponto importante. Uma vez que a relutância em usar armas bioquímicas perigosas no contra-terrorismo ou na contra-insurgência tenha sido quebrada, é possível antever uma rápida evolução de novas variantes, com ampla gama de indução de efeitos de imobilização e dor. E o cenário de pesadelo de armas seletivas por etnia já foi apontado pela AMB, que lançou um grande alerta para o fato de estar em curso uma corrida às armas de avental branco. [11].

Sabe-se que pesquisadores militares estão estudando as propriedades da endotelina – uma cadeia de 21 aminoácidos, similar em estrutura a certos venenos de cobra – e toda uma nova classe de biorreguladores, com efeitos potenciais sobre o sistema circulatório. Entre outros compostos em análise, está a chamada “substância P”, uma taquiquinina que pode provocar intensa broncoconstrição.

Em paralelo às drogas, surgem armas para transportá-las: bombas dispersoras, pistolas, micro-cápsulas...

Outros riscos em discussão referem-se a compostos bioquímicos que podem induzir doenças de aparecimento tardio, como o câncer do fígado, favorecendo atos de genocídio retardados por talvez vinte anos. De igual importância neste debate é o fato de que, além de as drogas serem pesquisadas para se tornarem armas, novas armas estão sendo projetadas para transportá-las ao alvo, como seringas voadoras estabilizadas, bombas para a dispersão de grandes quantidades de produtos químicos, pistolas de paintball modificadas, micro-cápsulas que soltam o produto químico quando pisadas, veículos não-tripulados etc. O caso mais recente é o acordo comercial entre as companhias norte-americanas Taser, fabricante de pistolas que dão eletrochoques, e a iRobot, fabricante de veículos de guerra não-tripulados para exploração de terreno [12]. É só uma questão de tempo para que os novos modelos desses veículos incorporem pistolas para lançar armas químicas e que estas armas tenham opções algorítmicas autônomas.

A AMB enfatiza corretamente suas preocupações legais por três razões. As normas legais internacionais que protegem a humanidade de veneno e da disseminação deliberada de doença, adotadas depois de décadas de negociação, correm o risco de ser enfraquecidas. A disponibilidade ampla, mas responsável, de drogas com potencial emprego militar inevitavelmente resultaria na chegada delas às mãos de agentes, estatais ou não, para os quais a mortalidade no meio da população-alvo não teria importância. Usar as drogas existentes como armas, com conhecimento de causa, significa subir ao topo de uma ladeira escorregadia, no fim da qual está o espectro da militarização da biologia, que poderia trazer a manipulação intencional das emoções, memória, resposta imunológica e até a fertilidade das pessoas.

E o horror continua. O Sunshine Project, dos Estados Unidos, revelou documentação de uma pesquisa norte-americana orientada para utilizar a mudança de orientação sexual como tática de luta [13]. Como o mundo reagirá se um Estado militarizado decidir alterar a química do cérebro feminino, para produzir civis hormonalmente receptivas ao estupro militar em massa?

O papel decisivo da Convenção de Armas Químicas, que deverá ser revista em 2008

A visão comum é que, se todas as armas químicas e biológicas são proibidas pelas convenções internacionais, então não há problema, Porém, mesmo aqui, existe uma brecha: a Convenção de Armas Químicas (CAQ), no artigo II(9)d, permite uma exceção para o controle de conflitos internos. Isso era visto, essencialmente, como autorização do uso de armas químicas policiais destinadas ao controle de multidões (como o gás lacrimogênio, por exemplo) e do uso de injeção letal destinada à execução legal. Contudo, o emprego de produtos incapacitantes como armas contra o terrorismo abriu uma significativa janela. A questão agora é saber que tipos de compostos, além do gás lacrimogênio padrão, são permitidos em ações de manutenção da paz. Essa brecha enfraquece potencialmente a Convenção de Armas Químicas [14].

De acordo com o professor Malcolm Dando, da Escola de Estudos para a Paz da Bradford University: “A melhor solução para as dificuldades com o artigo II.9(d) seria os Estados signatários concordarem que não existe permissão para o uso de produtos químicos além dos produtos-padrão para o controle de distúrbios. Contudo, se isso não for possível, os Estados signatários teriam que relatar regularmente quais produtos químicos para esse tipo de ação eles possuem, em que quantidades e com quais os dispositivos de disseminação”.

A Convenção de Armas Químicas vai ser revista em 2008. O relatório da AMB alcançará seu propósito se os negociadores que se encontrarem em Genebra no ano que vem escutarem o alerta de pôr a mão nesse assunto antes que seja tarde demais.



[1] British Medical Association: “The use of drugs as weapons: the concerns and responsibilities of healthcare professionals”, 2007. Disponível em http://www.bma.org.uk/ap.nsf/Content/drugsasweapons

[2] Benzilato de quinuclidinil, uma droga que pode causar delírio durante dias.

[3] Robinson, Julian Perry: “Disabling Chemical Weapons: A Documentary Chronology of Events, 1945-2003)”, 2004. Documento de trabalho não publicado, Programa de Havard-Sussex.

[4] Em 1955, Bertrand Russel e Joseph_Rotblat criaram, na cidade canadense de Pugwash, uma conferência para trabalhar contra as ameaças de conflitos mundiais.

[5] Wheelis, M. e Dando, M.: “Neurobiology: a case study of the imminent militrarisation of biology”, em International review of the Red Cross, vol.87, no. 859, pp.553-571, 2005.

[6] Parlamento Europeu, Comitê de Assuntos Externos, Segurança e Política de Defesa: Report on the Environment, Security and Foreign Policy (Relatora Mrs. Maj. Britt Theorin), PE 227.710/fin, 14 de janeiro de 1999, p.10.

[7] Para uma excelente análise desta vertente, ver Hayes, B.: “Arming Big Brother: the EU’s security research programme”, TNI/Statewatch, Amsterdam, 2006. http://www.statewatch.org/news/2006/apr/bigbrother.pdf

[8] Burban, L., Gubareva, S., Karpova, T., Karpov, N., Kurbatov, V., Milovidov, D., Finogenov, P.: ‘Investigation Unfinished’, Regional Public Organization for Support of Victims of Terrorist Attacks, Moscou, 2006. Disponível em russo no site: http://www.pravdabeslana.ru/nordost/doklad.zip. Há também uma versão reduzida em inglês (sem apêndices) em: http://www.pravdabeslana.ru/nordost/dokleng.doc-> http://www.pravdabeslana.ru/nordost/dokleng.doc]

[9] Chantal Bismuth e Patrick Barriot, "A falsa retórica da classificação de armas", Le Monde Diplomatique Brasil, maio de 2003

[10] Lakoski, J., Bosseau, M.W., Kenny, JM.: “The advantages and limitations of calmatives for use as a non-lethal technique”, College of Medicine Applied Research Laboratory, Pennsylvania State University, 2000.

[11] Para uma revisão abrangente desses fatos, ver Davison, N., Lewer N.: Research Report no 8, Bradford Non-Lethal Weapons Research Project, 2006.

[12] http://uk.biz.yahoo.com/28062007/290/taser-international-forms-strategic-alliance-irobot.html

[13] http://www.sunshine-project.org/incapacitants/jnlwdpdf/

[14] Para uma análise clara destes temas ver Pearson, A: “Incapacitating bio-chemical weapons: science, technology, and policy for the 21st Century”, Non Proliferation Review, vol. 13, no 2, julho de 2006, pp. 151-179.

Elis Regina - 1976 - Falso Brilhante
Elis Regina - Falso Brilhante

Copiado de:Mate-Couro

domingo, 12 de agosto de 2007

Mulheres - Martinho da Vila

Wassily Kandinsky



Wassily Kandinsky poderia ter sido apenas um obscuro professor de direito na velha Rússia czarista, se não houvesse decidido, certa manhã, conferir uma exposição de pintores impressionistas franceses em Moscou. A visão de um monte de feno, pintado por Monet, provocou nele um entusiasmo incomum.Numa época em que os críticos mais tradicionais torciam o nariz e consideravam os quadros impressionistas meros borrões de tinta sobre a tela, Kandinsky ficou deslumbrado. Segundo ele próprio contaria mais tarde, foi ali que percebeu, pela primeira vez, que a obra de arte não precisava se resumir a imitar a natureza. Estava plantada a semente da arte abstrata, forma de expressão que teria em Kandinsky um pioneiro e um de seus mais ardorosos teóricos.Nascido em Moscou, no ano de 1866, Kandinsky não abraçou o abstracionismo da noite para o dia. Foi necessário todo um processo de evolução pictórica, até alcançar gradativamente a completa abolição da figura em sua obra.Ainda sob o efeito da exposição impressionista, decidiu recusar o cargo de assistente na faculdade de direito em uma universidade russa e, em 1896, aos 30 anos, mudou-se para Munique, na Alemanha, com o firme propósito de dedicar-se ao estudo da arte. Antes de partir, casou com uma prima, Anya Ticheyeva, que levou junto com ele.Mas as aulas ministradas pelos professores na Alemanha, ainda presos ao realismo e ao academicismo, não o satisfizeram. Aproximou-se então de artistas mais jovens, como Paul Klee, e passou a desenvolver sua própria teoria estética, pregando a libertação da arte da reprodução subserviente da natureza.Seus primeiros quadros europeus, é verdade, ainda mostravam nítidas influências impressionistas. Exibiam figuras humanas, objetos naturais e evocavam elementos da arte popular russa.

Aos poucos, porém, os contornos se fizeram mais imprecisos, os rostos perderam definição e, cada vez mais, as formas tornaram-se apenas vagas referências de algo existente no mundo real. "Enquanto a arte não dispensar o objeto, ela será meramente descritiva", sentenciou Kandinsky.Casado pela segunda vez, com uma artista alemã, Gabriele Muenter, Kandinsky decidiu voltar à Rússia em 1914. Três anos depois, em 1917, trocou Gabriele por uma jovem russa, Nina von Andreyewsky, com quem ficará até o fim da vida. Naquele mesmo ano, eclodiu a revolução socialista, liderada por Lênin. Respeitado pelos intelectuais revolucionários, o artista foi convidado a fazer parte do Comissariado para a Educação e a dar aulas em academias estatais, mantidas pelo novo regime.Mas a pintura de Wassily Kandinsky era abertamente incompatível com o "realismo socialista", estilo imposto aos artistas russos após a Revolução.

Classificado pelos ideólogos soviéticos como um representante da "arte burguesa e decadente", Kandinsky viu-se obrigado a deixar novamente o seu país natal, retornando em 1921 à Alemanha, onde assumiu o cargo de professor da Bauhaus, famosa e inovadora escola de arquitetura e artes aplicadas.Em 1933, com a chegada de Hitler ao poder, a alemã Bauhaus foi fechada. Kandinsky, que já fora criticado e defenestrado pelos soviéticos, passou a ser rotulado pelos nazistas como um "cancro da bolchevização da arte". Não lhe restava outra alternativa a não ser providenciar uma nova e imediata transferência, agora para Paris.Sete anos mais tarde, quando os nazistas invadiram a França, Wassily Kandinsky estava velho demais para empreender mais outra mudança. Septuagenário, cuidou de diminuir o ritmo de sua produção e passou a viver de forma discreta e reservada.Kandinsky morreu em 1944, aos 78 anos. Passado o obscurantismo nazista, seu nome foi aclamado, na Alemanha e em toda a Europa, como o mestre que inaugurou o abstracionismo, uma das maiores revoluções de todos os tempos na história da arte.

Kandinsky costumava dizer que passou a compreender de forma mais decisiva o poder da arte abstrata quando, certa noite, ao entrar em seu ateliê, não conseguiu reconhecer um de seus próprios trabalhos, que estava de cabeça para baixo.

As primeiras reações da crítica à obra abstracionista de Kandinsky foi de absoluta surpresa e rejeição. Muitos consideraram que aquele amontoado de linhas, cores e formas sem significado era obra de um doido varrido. Ou, na melhor das hipóteses, de alguém que manejara tintas e pincéis sob os efeitos de algum alucinógeno, como o haxixe.

Kandinsky mudou de nacionalidade duas vezes. Inicialmente, após deixar a Rússia e fixar-se em Munique, solicitou cidadania alemã. Mais tarde, com a ascensão dos nazistas ao poder, refugiou-se em Paris e, mais uma vez, trocou oficialmente de nacionalidade, tornando-se cidadão francês.

O abstracionismo de Kandinsky representou uma ruptura tão radical em relação à arte figurativa tradicional que, hoje, muitos críticos e historiadores da cultura costumam colocá-lo em um honroso panteão de grandes pensadores e cientistas da história da humanidade: ele estaria, para a pintura, no mesmo grau de importância que Freud tem para a psicologia e Einstein para a física.
Copiado de: AmigosDoFreud
A rotina

Joana de Angelis


A natural transformação social, decorrente dos efeitos da ciência aliada à tecnologia a partir do século 19, impôs que o individualismo competitivo pós renascentista cedesse lugar ao coletivismo industrial e comunitário da atualidade.
A cisão decorrente do pensamento cartesiano, na dicotomia do corpo e da alma, ensejou uma radical mudança nos hábitos da sociedade, dando surgimento a uma série de conflitos que irrompem na personalidade humana e conduzem a alienações perturbadoras.
Antes, os tabus e as superstições geravam comportamentos extravagantes, e a falsa moral mascarava os erros que se tornavam fatores de desagregação da personalidade, a serviço da hipocrisia refinada.
A mudança de hábitos, no entanto, se liberou o homem de algumas fobias e mecanismos de evasão perniciosos, impôs outros padrões comportamentais de massificação, nos quais surgem novos ídolos e mitos devoradores, que respondem por equivalentes fenômenos de desequilíbrio.
Houve troca de conduta, mas não de renovação saudável na forma de encarar-se a vida e de vivê-la.
De um lado, a ciência em constante progresso, não se fazendo acompanhar por um correspondente desenvolvimento ético-espiritual, candidata-se a conduzir o homem ao niilismo, ao conceito de aniquilamento.
Noutro sentido, o contubérnio subjacente, apresenta um elenco exasperador de áreas conflitantes nas guerras e ameaças de guerras que se sucedem, nas variações da economia, nos volumosos bolsões de miséria de vária ordem, empurrando o homem para a ansiedade, a insegurança, a suspeição contumaz, a violência.
A fim de fugir à luta desigual — o homem contra a máquina — os mecanismos responsáveis pela segurança emocional levam o indivíduo, que não se encoraja ao competitivismo doentio, à acomodação, igualmente enferma, como forma de sobrevivência no báratro em que se encontra, receando ser vencido, esmagado ou consumido pela massa crescente ou pelo desespero avassalador.
Estabelece algumas poucas metas, que conquista com relativa facilidade, passando a uma existência rotineira e neu-rotizante, que culmina por matar-lhe o entusiasmo de viver, os estímulos para enfrentar desafios novos.
Rotina é como ferrugem na engrenagem de preciosa maquinaria, que a corrói e arrebenta.
Disfarçada como segurança, emperra o carro do progresso social e automatiza a mente, que cede o campo do raciocínio ao mesmismo cansador, deprimente.
O homem repete a ação de ontem com igual intensidade hoje; trabalha no mesmo labor e recompõe idênticos passos; mantém as mesmas desinteressantes conversações: retorna ao lar ou busca os repetidos espairecimentos: bar, clube, televisão, jornal, sexo, com frenético receio da solidão, até alcançar a aposentadoria.. - Nesse ínterim, realiza férias programadas, visita lugares que o desagradam, porém reúne-se a outros grupos igualmente tediosos e, quando chega ao denominado período do gozo-repouso, deixa-se arrastar pela inutilidade agradável, vitimado por problemas cardíacos, que resultam das pressões largamente sustentadas ou por neuroses que a monotonia engendra.
O homem é um mamífero biossocial, construído para experiências e iniciativas constantes, renovadoras.
A sua vida é resultado de bilhões de anos de transformações celulares, sob o comando do Espírito, que elaborou equipamentos orgânicos e psíquicos para as respostas evolutivas que a futura perfeição lhe exige.
O trabalho constitui-lhe estímulo aos valores que lhe dormem latentes, aguardando despertamento, ampliação, desdobramento.
Deixando que esse potencial permaneça inativo por indolência ou rotina, a frustração emocional entorpece os sentimentos do ser ou leva-o à violência, ao crime, como processo de libertação da masmorra que ele mesmo construiu, nela encarcerando-se.
Subitamente, qual correnteza contida que arrebenta a barragem, rompe os limites do habitual e dá vazão aos conflitos, aos instintos agressivos, tombando em processos alucinados de desequilíbrios e choque.
Nesse sentido, os suportes morais e espirituais contribuem para a mudança da rotina, abrindo espaços mentais e emocionais para o idealismo do amor ao próximo, da solidariedade, dos serviços de enobrecimento humano.
O homem se deve renovar incessantemente, alterando para melhor os hábitos e atividades, motivando-se para o aprimoramento íntimo, com conseqüente movimentação das forças que fomentam o progresso pessoal e comunitário, a benefício da sociedade em geral.
Face a esse esforço e empenho, o homem interior sobrepõe-se ao exterior, social, trabalhado pelos atavismos das repressões e castrações, propondo conceitos mais dignos de convivência humana, em consonância com as ambições espirituais que lhe passam a comandar as disposições íntimas.
O excesso de tecnologia, que aparentemente resolveria os problemas humanos, engendrou novos dramas e conflitos comportamentais, na rotina degradante, que necessitam ser reexaminados para posterior correção.
O individualismo, que deu ênfase ao enganoso conceito do homem de ferro e da mulher boneca, objeto de luxo e de inutilidade, cedeu lugar ao coletivismo consumista, sem identidade, em que os valores obedecem a novos padrões de crítica e de aceitação para os triunfos imediatos sob os altos preços da destruição do indivíduo como pessoa racional e livre.
A liberdade custa um alto preço e deve ser conquistada na grande luta que se trava no cotidiano.
Liberdade de ser e atuar, de ter respeitados os seus valores e opções de discernir e aplicar, considerando, naturalmente, os códigos éticos e sociais, sem a submissão acomodada e indiferente aos padrões de conveniência dos grupos dominantes.
A escala de interesses, apequenando o homem, brinda-o com prêmios que foram estabelecidos pelo sistema desumano, sem participação do indivíduo como célula viva e pensante do conjunto geral.
Como profilaxia e terapêutica eficaz, existem os desafios propostos por Jesus, que são de grande utilidade, induzindo a criatura a dar passos mais largos e audaciosos do que aqueles que levam na direção dos breves objetivos da existência apenas material.
A desenvoltura das propostas evangélicas facilita a ruptura da rotina, dando saudável dinâmica para uma vida integral em favor do homem-espírito eterno e não apenas da máquina humana pensante a caminho do túmulo, da dissolução, do esquecimento.

sábado, 11 de agosto de 2007

Muçulmanos contra a Al-Qaeda

Tanto no Iraque quanto no Afeganistão, a rede terrorista de Bin Laden enfrenta oposição crescente de outros grupos armados árabes. Suspeita-se, ao priorizar o combate entre facções muçulmanas, ela esteja fazendo o jogo da Casa Branca

Syed Saleem Shahzad

Dois incidentes ilustram as divergências crescentes no seio dos movimentos islâmicos armados. No Waziristão do Sul, uma zona tribal do Paquistão situada na borda da fronteira afegã, talibãs locais perpetraram, em março de 2007, um massacre de combatentes estrangeiros do Movimento Islâmico do Uzbequistão, filiado à Al-Qaeda. Quase simultaneamente, ferozes combates opunham o Exército Islâmico no Iraque ao ramo local da Al-Qaeda. Duas visões – duas maneiras de conceber o combate islâmico – confrontam-se cada vez mais violentamente.

Desde 2003, voluntários estrangeiros afluem ao Paquistão e ao Iraque. Porém, em vez de satisfazer aos dirigentes dos talibãs e aos grupos de resistência islâmicos autóctones, esse afluxo de combatentes ligados ao takfirismo – uma ideologia que considera os “maus muçulmanos” seus principais inimigos (ler, nesta edição, Takfirismo, uma ideologia messiânica) – provocou mal-estar e sofrimento. Combatendo governos muçulmanos, esses militantes desencadearam o caos nas mesmas populações que diziam defender.

Durante três anos, entre 2003 e 2006, a própria complexidade da situação nesse vasto teatro de guerra, composto pelo Waziristão do Norte, Waziristão do Sul, Afeganistão e Iraque, reforçou a influência doutrinária da Al-Qaeda e reduziu os grupos autóctones ao silêncio. No Waziristão, zelotas takfiristas favoreceram o surgimento de enclaves islâmicos, que escaparam da jurisdição do Paquistão e alimentaram ações armadas nos grandes centros urbanos, com o objetivo último de desencadear um levante contra o regime militar pró-ocidental de Islamabad. Em resposta, o exército paquistanês conduziu operações sangrentas, massacrando centenas de não-combatentes, entre os quais mulheres e crianças, alimentando assim o furor dos extremistas. Já na época, muitos dirigentes talibãs reconheciam, reservadamente, que os takfiristas estavam se desviando, ao abandonar a estratégia exclusivamente anti-ocidental, pregada por Osama Bin Laden nos anos 1990, e ao transformar sua guerra de resistência nacional contra a ocupação estrangeira em um ataque ao poder militar do Paquistão.

No Iraque, tafkiristas visam os xiitas, e esquecem de lutar contra norte-americanos

No Iraque, Abu Mussab Al-Zarkawi, um dos principais dirigentes takfiristas, que deixara o Waziristão para ir a esse país às vésperas da invasão norte-americana, tornou-se o responsável mais visível da resistência. Zarkawi declarara publicamente fidelidade a Bin Laden. Em torno dele haviam-se agrupado militantes, na maioria estrangeiros, que constituíam o ramo iraquiano da Al-Qaeda. A situação no Iraque logo iria se assemelhar às do Waziristão e do Afeganistão.

Depois da queda de Saddam Hussein, as forças de resistência locais levaram algum tempo para se mobilizar. Precisaram de vários meses para organizar as diversas tribos, grupos religiosos fragmentados, membros do Baas, o antigo partido de Saddam Hussein, e oficiais da extinta Guarda Republicana em unidades eficientes de combate. Nesse ínterim, os combatentes estrangeiros, vindos dos quatro cantos do mundo muçulmano sob os estandartes negros da Al-Qaeda, constituíram um majlis alchoura (conselho) e deram prova de uma eficácia que os grupos locais ainda não demonstravam. Nessas condições, estes últimos não podiam expressar suas reservas à ideologia takfirista. Alguns já haviam tido a oportunidade de deplorar os métodos da Al-Qaeda, que, embora sunita como eles, deixava a luta contra o ocupante norte-americano para atacar lugares sagrados dos xiitas.

No entanto, com o anúncio feito pela Al-Qaeda, no fim de 2006, da criação de um emirado “ideologicamente puro” no Iraque, a estratégia dos grupos autóctones foi totalmente submetida à ideologia takfirista e a seu programa fratricida. A guerra contra a ocupação transformou-se em uma miríade de lutas sectárias. Mas os germes da ruptura entre os combatentes “internacionalistas” e a resistência autóctone estavam semeados.

Divisões têm origem na luta islâmica contra presença soviética no Afeganistão

Para compreender essas divergências, é necessário examinar as circunstâncias particulares que contribuíram para as transformações ideológicas da Al-Qaeda, quando da jihad contra a ocupação soviética no Afeganistão, durante os anos 1980, e depois. Os árabes que haviam afluído àquele país com o intuito de se juntar à resistência local dividiam-se em dois campos: “iemenita” e “egípcio”.

Os zelotas religiosos, enviados ao Afeganistão por seus imãs, pertenciam ao primeiro. Quando não estavam combatendo, passavam os dias em atividades rudes, cozinhando para si mesmos e dormindo logo após a isha, a última prece do dia. Com o fim da jihad afegã, voltaram ao seu país ou se misturaram à população local, no Afeganistão ou no Paquistão, onde muitos se casaram. Nos meios da Al-Qaeda, estes eram qualificados como dravesh – os que gostam da vida fácil.

O campo “egípcio” compunha-se dos mais politizados e ideologicamente motivados. A maioria era afiliada aos Irmãos Muçulmanos [1], mas rejeitava a via parlamentar preconizada por essa organização. Para os partidários dessas idéias, homens muitas vezes instruídos – médicos, engenheiros etc – a jihad afegã constituía um forte cimento. Muitos eram antigos militares que haviam aderido ao movimento clandestino Jihad Islâmica, do doutor Ayman al-Zawahiri (que viria a ser o braço direito de Bin Laden). Foi esse o grupo que assassinou Anuar Sadat em 1981, para puni-lo por ter assinado a paz com Israel em Camp David, três anos antes. Todos estavam convencidos de que os Estados Unidos e os “governos fantoches” do Oriente Médio eram os responsáveis pelo declínio do mundo árabe.

No campo egípcio, depois da isha, debatia-se sem cessar sobre o futuro. Os dirigentes inculcavam nos adeptos a necessidade de investir energia nas forças armadas de seu próprio país e de cultivar ideologicamente os melhores cérebros.

Talibãs afegãos afastam-se da Al-Qaeda e se aproximaram do Paquistão

Nas origens da Al-Qaeda encontra-se o Maktab Al-Khadamat (Agência de Serviços), criada por Abdallah Azzam a partir de 1980, a fim de apoiar a resistência afegã. O fundador veio a falecer em 1989 num atentado [2]. Bin Laden, um de seus principais discípulos, sucedeu-o à frente do movimento, para transformá-lo na Al-Qaeda.

“A maioria dos combatentes ’iemenitas’ – guerreiros bastante rústicos, cuja única ambição era o martírio – deixou o Afeganistão depois da queda do governo comunista”, explicou, durante uma entrevista recente em Amã, o filho do fundador do Maktab Al-Khadamat, Hudaifa Azzam. “Os ‘egípcios’ ficaram, pois suas ambições políticas continuavam insatisfeitas. Mais tarde, juntaram-se a Bin Laden, que voltara do Sudão em 1996, e começaram a convertê-lo à visão takfirista — pois, até então, seu pensamento era inteiramente voltado para a luta contra a hegemonia norte-americana no Oriente Médio”.

Hudaifa Azzam passou quase vinte anos junto aos militantes árabes no Afeganistão e no Paquistão. “Quando encontrei Bin Laden em Islamabad, em 1997, ele estava acompanhado do somaliano Abu Obadia e dos egípcios Abu Haf e Saiful Adil, os três pertencentes ao campo ‘egípcio’. Percebi então que as idéias extremistas destes últimos tinham influência sobre ele. Em 1985, quando meu pai pediu a Bin Laden que fosse ao Afeganistão, ele respondeu que iria apenas com a permissão do rei Fahd, da Arábia Saudita, que, na época, ele ainda honrava com o título de Wali al-Amr (“Autoridade Suprema”). Depois do 11 de setembro, quando denunciou os dirigentes sauditas, pude medir o quanto o campo ‘egípcio’ o havia influenciado”.

Era essa, portanto, a situação quando, no início de 2006, mais de 40 mil combatentes aguerridos de origem árabe, tchetchna e uzbeque, ao lado dos waziristaneses e de outros militantes paquistaneses vindos das cidades, reuniram-se no Waziristão do Sul e do Norte. A liderança talibã viu-se diante de um dilema, pois a maioria desses militantes preferia combater as forças armadas paquistanesas na zona tribal a lutar contra a ocupação do Afeganistão.

Novos confrontos pareciam inevitáveis. A cúpula talibã entendeu que o conflito punha em risco a grande ofensiva contra as forças da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), preparada para a primavera de 2006, e que era preciso desmontá-lo o mais rapidamente possível. O mulá Muhammad Omar, chefe em fuga dos talibãs, enviou o mulá Dadullah (um dos melhores comandantes do sudoeste do Afeganistão, morto em maio de 2007) para persuadir os talibãs paquistaneses e as facções da Al-Qaeda a se concentrarem nessa ofensiva, em vez de desperdiçarem suas forças. A mediação resultou, sim, num acordo de paz, mas entre os talibãs da zona tribal e as forças armadas paquistanesas. Tal acordo, firmado em 5 de setembro de 2006, previa, principalmente, a dispensa de todos os combatentes estrangeiros. O cessar-fogo permitiu ao poder paquistanês tecer sólidos laços com os líderes talibãs nos dois Waziristãos. Esses líderes receberam quantidades consideráveis de armas e dinheiro, além de lisonjeiros convites em Islamabad.

O acordo assinado resultava da constatação feita pela direção dos talibãs: depois de cinco anos de colaboração com a Al-Qaeda, a resistência no Afeganistão estava num impasse. Certamente ela havia se tornado mais forte. Mas os talibãs não puderam atingir nenhum objetivo estratégico maior, como teria sido a tomada de Kandahar ou o cerco de Kabul. Os comandantes talibãs perceberam que sua organização não podia esperar ganhar uma batalha contra o poder do Estado. A solução consistia, portanto, em encontrar outros recursos, de origem governamental. Voltaram-se então, naturalmente, para seu antigo protetor, o Paquistão. Daí o acordo de 5 de setembro.

O acordo resiste, apesar das provocações dos partidários de Bin Laden

Os líderes talibãs, tanto no Waziristão quanto no Afeganistão, estavam satisfeitos com o compromisso e pouco criticaram a expulsão dos combatentes estrangeiros. Supunha-se que eles fossem se juntar em massa à resistência afegã. Não estavam descontentes tampouco por se livrarem da Al-Qaeda e dos elementos que desenvolviam uma estratégia global, desviando-os do combate contra as forças da OTAN.

Em contrapartida, o acordo era inaceitável para os “guerreiros planetários” da Al-Qaeda, que sonhavam com um conflito regional em várias frentes, conduzido a partir das bases novamente estabelecidas no Waziristão. A perspectiva de pequenas escaramuças no Afeganistão pouco compensava seu sonho de uma vitória brilhante sobre a direção paquistanesa, muçulmana não-praticante. Além disso, a Al-Qaeda pensava em se beneficiar com novos trunfos.

Os dirigentes da rede terrorista logo entenderam que os acordos entre o Paquistão e os talibãs constituíam uma ameaça. Temiam também que os talibãs fossem emboscados pelos serviços de informações paquistaneses. Procuraram, então, sabotar a trégua, explorando divergências entre os signatários. Uma dessas oportunidades lhes foi oferecida pelo bombardeio de um campo de treinamento no Waziristão do Sul pela aviação paquistanesa, em 17 de janeiro de 2007, causando a morte de vários combatentes estrangeiros. Baitullah Mehsud, um dos raros dirigentes talibãs no Waziristão do Sul, denunciou os acordos, considerando que o Paquistão os havia violado. Tahir Yaldeshiv, conhecido militante uzbeque e ideólogo takfirista baseado no Waziristão do Sul, logo lhe deu apoio, despachando mais de uma dezena de grupos de kamikazes a fim de espalhar o terror nos centros urbanos paquistaneses. O balanço foi pesado para a população civil, mas os acordos sobreviveram, apesar das preocupações do presidente Pervez Musharaff com o seminário da Mesquita Vermelha (Lal Masjid) de Islamabad, que procurava impor uma islamização ao estilo talibã na capital.

Se os acordos sobreviveram foi porque convinham a ambas as partes. Eles permitiam aos dirigentes paquistaneses construir uma estratégia capaz de fazer face à ação da Al-Qaeda na zona tribal. Por outro lado, eram uma resposta à desilusão dos talibãs, cansados da estratégia global da Al-Qaeda, considerada monomaníaca, que servira apenas para enfraquecer a resistência afegã. Haji Nazir, comandante talibã pouco conhecido, cortejado e alimentado com dinheiro e armas pelos serviços de segurança paquistaneses, tornou-se rapidamente o homem forte do Waziristão do Sul. Nazir deixou a escolha aos combatentes estrangeiros: serem desarmados ou irem reforçar a ofensiva contra as tropas da OTAN no Afeganistão. Como se podia prever, eles rejeitaram a oferta. E um confronto armado, em março de 2007, fez mais de 140 mortos, na maior parte originários da Ásia central. No Waziristão do Norte, houve incidentes do mesmo tipo.

Os comandantes talibãs precisaram levantar o cerco aos militantes estrangeiros e permitir-lhes seguir qualquer destino de sua escolha. Estes preferiram ir para o Iraque, nova terra prometida, em vez de para o Afeganistão.

Suspeita: ao dividir os árabes no Iraque, a Al-Qaeda estaria trabalhando para os EUA?

A Al-Qaeda começou a enviar combatentes dos dois Waziristão para o Iraque imediatamente depois da invasão norte-americana de 2003. Esse movimento foi acelerado pelas divergências ideológicas e estratégicas que a opunham aos talibãs. “Logo que foi nomeado administrador do Iraque, Paul Bremer [3] dissolveu todas as forças de segurança do país”, lembra Muhammad Bashar Al-Faidy, dirigente da Associação dos Ulemas Muçulmanos, um dos atuais integrantes da resistência anti-norte-americana. “Fomos então visitá-lo em delegação e o alertamos contra essa decisão, que iria permitir que todos atravessassem nossas fronteiras. Deveríamos ter preservado ao menos os guardas de fronteira. Bremer não concordava: para ele, todas as forças de segurança estavam com Saddam. Logo, os iraquianos assistiram, impotentes, a um afluxo de todo tipo de indivíduos sem escrúpulos, terroristas da Al-Qaeda ou vindos do Irã, que se juntaram no Iraque em torno de objetivos próprios”. Ele conclui: “Hoje, creio que essa política de Bremer era conscientemente destinada a atrair os militantes da Al-Qaeda para o Iraque, onde ele pensava que fosse mais fácil matá-los ou capturá-los do que no Afeganistão ou no Waziristão [4].

Todavia, enquanto a Al-Qaeda se esforça para tomar a direção da luta e convertê-la à sua visão global, os dirigentes iraquianos da resistência, movidos antes de tudo por objetivos nacionalistas, preocupam-se cada vez mais e gostariam de se livrar desses combatentes estrangeiros. Indícios dessas dissensões foram recentemente relatados pela mídia árabe. A rede de televisão Al-Jazira transmitiu, em abril de 2007, as palavras de Ibrahim Al-Shammari, porta-voz do Exercito Islâmico, sobre sua ruptura com a Al-Qaeda. Os objetivos dos dois movimentos são tão diferentes, afirmou, que, em certas circunstâncias, o Exército Islâmico preferiria tratar com os Estados Unidos.

A esse respeito, Al-Faidy não tem meias palavras: “Todos os elementos estrangeiros que se integraram às milícias irregulares são uma maldição para a resistência. Eles se obstinam em querer controlar o Iraque para levar à frente seu próprio projeto. A Al-Qaeda foi infiltrada por numerosos serviços de informações, sem falar de seus desvios religiosos, como o takfirismo. Afinal de contas, é o povo iraquiano que está pagando um pesado tributo. O mesmo se dá com as milícias xiitas apoiadas pelos serviços iranianos. Elas querem dominar o sul do Iraque e já assassinaram, até o momento, cerca de trinta xeques. Os xeques dessa região gostariam de se juntar à resistência contra o ocupante, mas as atividades dessas milícias apoiadas pelo Irã os impedem”.

Segundo o dirigente da associação dos ulemas, a maior parte das operações de envergadura montadas no Iraque é realizada pelos grupos nacionais de resistência. Mas, como estes são lentos em reivindicá-las, os meios de comunicação internacionais os atribuem freqüentemente à Al-Qaeda. “Até mesmo James Baker [5]”. ]] admite que a Al-Qaeda é apenas um elo modesto da resistência. Pagamos hoje o preço de ter aceito a Al-Qaeda dentro da resistência, num primeiro impulso de entusiasmo. Depois da invasão norte-americana, queríamos convencer todo mundo a se juntar à luta contra o invasor. Quando chegaram ao Iraque os primeiros combatentes da Al-Qaeda, nós os recebemos de braços abertos. Mas, hoje, tudo o que eles fazem prejudica seriamente a resistência”.

Seja a resistência iraquiana sejam os talibãs ou outros grupos que aceitaram a Al-Qaeda em suas fileiras, todos agora pagam o preço.



[1] A Organização dos Irmãos Muçulmanos foi criada em 1928, no Egito, por Assam Al-Banna. Disseminou-se depois pelo mundo árabe. Ler «Une internationale en trompe-l’œil”, de Wendy Kristianasen, Le Monde Diplomatique, edição francesa, abril de 2000.

[2] O assassinato continua um mistério. Segundo alguns, Bin Laden teria sido o mandante, depois de divergências surgidas entre os dois homens.

[3] Paul Bremer foi procônsul dos Estados Unidos no Iraque, entre maio de 2003 e junho de 2004.

[4] Outra possibilidade a ser considerada é que Bremer pretendesse se valer da Al-Qaeda para debilitar a posição dos xiitas no Iraque – o que, de fato, viria a ocorrer. As relações entre a Al-Qaeda e o governo Bush ainda estão por ser esclarecidas (nota da edição brasileira impressa)

[5] Alusão às conclusões do Relatório Baker-Hamilton, The Irak Study Group Report, publicado nos Estados-Unidos em dezembro de 2006, que levanta uma série de propostas para a política norte-americana no Iraque. Representantes democratas e republicanos participaram da redação, mas suas principais conclusões foram rejeitadas pelo presidente Bush. Pode ser consultado em: www.usip.org/isg/iraq_study_group_report/report/1206/index.html

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