domingo, 7 de dezembro de 2008

Uma boa leitura para o domingo....

A valsa das borboletas

As narrativas de José Cardoso Pires e Jean-Dominique Bauby funcionam de modo a resgatar a dignidade do homem diante de situações que teriam tudo para reduzi-lo à condição de simples joguete do destino, de “ser” impotente diante de uma condição que lhe escapa à compreensão

Luís Fernando Prado Telles


É com desconforto e uma certa dose de temor que acompanhamos os relatos dos pouco volumosos, e nem por isso leves, De profundis, valsa lenta, do escritor português José Cardoso Pires (1925-1998), e O escafandro e a borboleta, do jornalista francês Jean-Dominique Bauby (1952-1997).

José Cardoso Pires, autor de vasta obra, em que se incluem os indispensáveis O hóspede de Job (1963) e O delfim (1968), e Jean-Dominique Bauby, ex-redator chefe da revista Elle, foram vítimas do que a medicina denomina de acidente vascular cerebral e os seus relatos constituem-se como testemunhos dessa dolorosa experiência. O ano fatídico para ambos foi o de 1995. Para Cardoso Pires a reviravolta se deu numa manhã de quinta feira, em janeiro daquele ano; para Bauby, o golpe ocorreu em dezembro, mais precisamente no dia 8, uma sexta-feira. O Escafandro e a borboleta foi concluído em 1996, já o De profundis, valsa lenta, só foi escrito em 1997. Os dois relatos foram publicados no mesmo ano de 1997, respectivamente na França e em Portugal. No Brasil, o relato de Cardoso Pires só foi publicado em 1998, pela Bertrand Brasil, e veio precedido por um prefácio em forma de carta escrito pelo médico João Lobo Antunes, amigo de Cardoso Pires e irmão do também médico e renomado escritor António Lobo Antunes. Já o livro de Bauby teve a primeira edição de sua tradução brasileira publicada ainda no ano de 1997, pela Martins Fontes. Houve uma segunda tiragem dessa edição, agora, em 2008; o que coincidiu com o lançamento, no Brasil, do filme homônimo baseado no livro.

O temor que sentimos diante dos dois relatos tem a ver com a experiência dolorosa da alteridade que neles é encenada. Em ambos, os narradores vêem-se como outros, distintos do que foram a vida toda. Enxergam-se reféns de uma situação sobre a qual não têm controle e, desse modo, conduzem-nos a nos colocarmos diante da incerteza de nosso próprio futuro, diante de nossa tragédia em aberto.

A memória da desmemória

O título do relato de Cardoso Pires é composto a partir do início do salmo (“De profundis clamavi ad te Domine”) que costuma ser utilizado na liturgia católica dos funerais. Este salmo é também conhecido como o “cântico da esperança”, e é declamado em forma de súplica. Em vez de cântico, o “De profundis” de Cardoso Pires é caracterizado como uma “valsa lenta”. Uma valsa de que participam um “eu” e um “ele” do escritor português, um “eu” que tenta lentamente recuperar do mais profundo de si as lembranças de um “ele” desmemoriado.

O acidente vascular cerebral de Cardoso Pires o conduziu ao que ele chamou de “morte branca”, um estado mental em que se viu destituído da memória e da capacidade de articulação da linguagem, fosse ela falada ou escrita. A ironia de tal “acidente” não podia ser maior, visto que privou o escritor daquilo que lhe era essencial. Conforme nos conta João Lobo Antunes, “o José Cardoso Pires sofria de uma afasia fluente e grave, ou seja, não era capaz de gerar as palavras e construir as frases que transmitissem as imagens e os pensamentos que algures no seu cérebro iam irrompendo” (p. 12). Diante da impossibilidade de linguagem e de reter nomes e identificá-los às coisas e pessoas, Cardoso Pires nos conta que durante todo o período em que esteve doente via-se como um estranho, não se reconhecia como um “eu”, permanecia como um constante desconhecido de si próprio, já que não sabia o seu nome e nem o seu passado, como diz: “me transferi para um Outro sem nome e sem memória” (p. 26).

Talvez seja esse o dado mais terrível que nos salta aos olhos do relato de Cardoso Pires, a perda da memória, da identidade e das relações afetivas. Seu relato se abre com a cena do café da manhã daquela quinta-feira, em que o vemos acompanhado por sua esposa Edite. A primeira fala que Cardoso Pires dirige a sua companheira é “Como é que tu chamas?”. A esposa, depois de responder, pergunta ao escritor o seu nome, ao que ele responde, “Parece que é Cardoso Pires”. A cena seguinte à do café da manhã é bastante simbólica: ao se barbear, diante do espelho, o escritor já não se reconhecia na própria imagem refletida: “A partir de então, tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente – e foi ali. Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta da vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem memória e por conseqüência incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objeto, do eu com outro alguém ou do real com a visão que o abstracto contém.” (p. 26-27) Essas duas cenas iniciais demarcam a modificação na forma de o escritor relacionar-se com o mundo. A sua imagem não era mais sua, da mesma forma que a fala sobre si também já não era sobre uma primeira pessoa, mas sobre uma terceira. Tal como relata, o que mais chamou sua atenção daquela fala dirigida à mulher não foi apenas a incerteza expressa pela palavra “parece”, mas o uso do verbo na terceira pessoa, “é”, para se referir ao seu nome. O resultado dessa alienação de si, comenta o escritor, é que se perde a memória e sem ela “esvai-se o presente que simultaneamente já é passado morto. Perde-se a vida anterior. E a interior, bem entendido, porque sem referências do passado morrem os afectos e os laços sentimentais. E a noção do tempo que relaciona as imagens do passado e que lhes dá a luz e o tom que as datam e as tornam significantes, também isso. Verdade, também isso se perde porque a memória, aprendida por mim, é indispensável para que o tempo não só possa ser medido como sentido.” (p. 27)

A própria existência do relato de José Cardoso Pires talvez se justifique enquanto resposta a essa condição. Só por meio do relato o “eu” de Cardoso Pires pôde evitar que aquele seu “outro” se perdesse. Além disso, a narrativa tem o poder de unir o que antes parecia irreconciliável e de dar uma ordenação ao que parecia caótico. Por meio dela, José Cardoso Pires vai tentando incluir no curso da vida de seu “eu” recuperado aquele “outro” acidental. Isso garante, de certo modo, uma identidade àquele “outro” no sentido de que ele pode ser, em vários momentos, ainda identificado ao “eu”. Recuperar o traçado da desmemória faz com que aquele período da vida do escritor deixe de ser um hiato sem sentido e passe a se constituir como uma experiência. Desse modo, se, por um lado, há a constante demarcação da distinção entre um “eu” e um “outro”, por outro, este só é possível de ser recuperado pela busca de identificação com aquele. Assim, ao mesmo tempo em que o “eu” de Cardoso Pires se vê espantado diante das criações lingüísticas do seu “outro” (tais como a palavra “simosos” para se referir aos mais vários objetos como os “óculos” ou uma “gilete”, ou a palavra “cachimbo” sendo usada para identificar os chinelos), também consegue reconhecer-se naquele “outro” em alguns momentos. É o caso, por exemplo, quando o “eu” comenta o episódio de um teste de raciocínio por que passara o seu “outro”. De certo modo, comemora a ironia construída numa resposta dada à neurologista quando da aplicação do teste. À simples pergunta feita pela médica “Onze menos nove quantos são?”, o “outro” responde “Nada, senhora doutora. Qualquer coisa noves fora é nada”. Por essa resposta ingênua e brincalhona, Cardoso Pires reconhece ressurgir naquele “outro” o “eu” de sua infância: “O segredar da infância a assaltar-me numa brincadeira de tabuada, apetece-me anotar neste ponto da minha narração. Eu há anos, há séculos, na Escola Primária do Largo do Leão, em Lisboa, a declamar o ’nove, noves fora, nada`.” (p. 39) Por estas franjas de memória Cardoso Pires vai tentando alinhavar o “outro” ao seu “eu”, tal como quando relata o estranhamento daquele quando percebe a palavra “banhos” escrita de modo invertido numa placa do hospital; ou quando revê a sua “letra” nos testes de fala e de escrita e admite que em sua “caligrafia enlouquecida” o “J se mantém reconhecível”, o “J de José”.

São estes resquícios do “eu” no “outro” que permitem a Cardoso Pires traçar os liames de sua narrativa, a qual acaba pontuando o momento do “reconhecimento” de sua tragédia, uma vez que promove a experiência antecipada de seu desfecho: “No escuro, junto a dois homens adormecidos, tento ver para trás do meridiano da morte que acabei de dobrar esta manhã, mas só encontro névoa luminosa. Dentro de uma ou duas horas, com as recordações da Edite e dos amigos em visita, vou continuar o reconhecimento da geografia sonâmbula por onde naveguei e que não era mais do que uma transfiguração do universo do meu quarto e de uns tantos passos à margem dele. Serão, rapaz, os teus últimos passeios do exílio, daí em diante saúde e baile é que é preciso”.(p. 59)

A “data de borboletas”, esta é a metáfora da morte extraída por Cardoso Pires da conversa de “loucos” que se dá entre Martinho e Ramiro, os “dois homens adormecidos” que lhe faziam companhia no quarto do hospital. Essa metáfora é transformada em alegoria pela reprodução de uma imagem (uma montagem fotográfica) que o escritor chama de “mariposa-caveira”, uma espécie de borboleta que tem o corpo formado por um esqueleto humano. Infelizmente, pouco tempo de “saúde e de baile” teve o escritor após ter saído do “exílio”, conforme diz. Não muito tempo depois da publicação desse seu relato em Portugal, José Cardoso Pires veio a ser acometido novamente por acidente vascular cerebral que o levou a um coma profundo e a conhecer, em 26 outubro de 1998, a sua “data de borboletas”.

A voz silenciosa

Se a Cardoso Pires foram linguagem e memória que faltaram, a Jean-Dominique Bauby seriam estas que garantiriam ainda uma sobrevida minimamente suportável. O acidente vascular cerebral que acometeu Bauby conduzira-o a uma imobilidade quase que total, não fora pelas pálpebras do olho esquerdo: o único movimento que conseguia realizar era o de piscar esse olho. Assim, Bauby deixa o seu corpo para passar a habitar o que ele chama de seu “escafandro”, apenas acompanhado por suas memórias, suas imaginações, fantasias e sua linguagem, mesmo que silenciosa. A história toda que lemos no livro de Bauby é a transcrição de um relato lento e doloroso “contado” por meio das piscadas de seu olho esquerdo. Uma única piscada significava “sim”, duas significavam “não”. Foi por esse código que Bauby pôde selecionar as letras que lhe eram ditadas e que acabaram por formar as páginas de seu livro.

O escafandro e a borboleta é formado por vinte e oito capítulos cuidadosamente lapidados, compostos mentalmente na íntegra antes de serem escritos, letra a letra. No prólogo, Bauby nos dá uma idéia do imenso trabalho de que resultaram os capítulos: “Na minha mente, remôo dez vezes cada frase, elimino uma palavra, junto um adjetivo e decoro meu texto, parágrafo após parágrafo”. (p. 9-10) Todos os capítulos são intitulados e cada um tem a sua autonomia. Mas, se, por isso, podem ser lidos separadamente, como contos; não deixam de constituir uma unidade, como um romance. A melhor definição, contudo, para os relatos que compõem o livro é a que é dada, ainda no prólogo, pelo próprio autor: “cadernos de viagem imóvel”. (p. 9)

A história dessa “viagem imóvel”, tal como numa narrativa épica, não é contada a partir de seu início, mas começa com o seu herói já dentro do hospital de Berck, saído do coma de vinte dias e sendo apresentado pela primeira vez à sua cadeira de rodas. O primeiro capítulo, intitulado, “A cadeira”, é bem simbólico daquela experiência dolorosa da alteridade. A cadeira passa a representar a sua nova realidade, à qual se vê estranhamente identificado: “não imaginava que relação poderia existir entre mim e uma cadeira de rodas”. (p. 11) Assim, ao longo dos capítulos vamos testemunhando o aprendizado de Bauby em reconhecer-se outro. Conforme diz no início do segundo capítulo, “o choque da cadeira foi salutar”, pois “as coisas ficaram mais claras” e passou a deixar de “fazer castelos no ar”; ou seja, deixara de lado a ilusão de voltar a ser quem era. Assim, se, de início a cadeira de rodas lhe é estranha, aos poucos passa, ironicamente, a ser um meio de criação de identidade. A imagem da cadeira volta a aparecer no capítulo doze, quando Bauby reconhece-se numa personagem sinistra de Alexandre Dumas, o velho Noirtier de Villefort, de O conde de Monte Cristo: “Descrito por Dumas como um cadáver de olhar vivo, homem já quase totalmente afeiçoado para o túmulo, esse inválido profundo não faz sonhar, porém estremecer. Depositário impotente e mudo dos mais terríveis segredos, passa a vida prostrado numa cadeira com rodinhas, e só se comunica por piscar de olhos: uma piscada significa sim; duas, não. Na verdade, o paizinho Noirtier, como o chama a neta com afeição, é o primeiro caso de locked-in syndrome, e até hoje o único, a aparecer em literatura. [...] Desde que meu espírito saiu da bruma espessa em que o tal acidente o mergulhou, pensei muito no paizinho Noirtier”. (pp. 51-52)

É assim, ironicamente, que Bauby acaba por se descrever ao descrever a personagem de Dumas. Aliás, a ironia marca a maioria dos capítulos. É ela que dá o tom, por exemplo, ao terceiro capítulo, quando fala das religiões e de todas as preces já a ele oferecidas, ou do quarto capítulo, em que narra a tarefa homérica do seu banho semanal e justifica a sua vontade de deixar as vestimentas do hospital e voltar a vestir as suas velhas roupas: “Já que é para babar, que seja em cashimere”. (p. 21) Além da ironia, comentários como estes guardam também uma certa dose de humor, por eles o autor nos permite rir, com ele, do inusitado de sua condição. Isso ocorre, por exemplo, quando comenta sobre as dificuldades de seu novo método de comunicação e o efeito que tem a formação de palavras inesperadas: “entendi a poesia desses trocadilhos no dia em que, como eu pedisse meus óculos (lunettes), alguém me perguntou com grande elegância o que eu queria fazer com a lua (lune)...” (p. 26). Esse tom irônico e bem-humorado se mantém em vários momentos do relato, tais como no capítulo em que fala do estranhamento dos demais pacientes do hospital (os quais denomina de “turistas”, visto que lá estavam de passagem) em relação a ele. Ou então quando explica, no capítulo intitulado “O legume”, ter resolvido escrever para os seus amigos para mostrar a eles que ainda não havia se transformado num vegetal, que ainda podia diferenciar-se de um salsão.

Contudo, se, por um lado, a ironia de seu relato aponta, em vários momentos, para uma certa autoderrisão, em vários outros o efeito irônico faz ressaltar o tom trágico. É o que se vê, por exemplo, no belo capítulo intitulado “A Imperatriz”, em que Bauby parece flertar com o busto “em mármore branco” da imperatriz Eugênia, esposa de Napoleão III, madrinha do hospital de Berck, o qual visitara em 1864. O reconhecimento trágico da alteridade se dá quando o flerte é interrompido, como diz, por uma “figura desconhecida que veio a intrometer-se” entre os dois: “Num reflexo da vitrina apareceu um rosto de homem que parecia ter pernoitado em barril de dioxina. A boca era torta, o nariz amarrotado, o cabelo desgrenhado, o olhar apavorado. Um olho estava costurado, e o outro arregalado como o olho de Caim. Por um minuto fixei aquela pupila dilatada sem entender que simplesmente era eu mesmo. [...] Fui tomado pelo acesso de riso nervoso que o acúmulo de catástrofes sempre acaba por provocar quando decidimos tratar o último golpe do destino como piada. Meus estertores de bom humor inicialmente desconcertaram Eugênia, até que ela cedeu ao contágio de minha hilaridade. Rimos até chorar. A fanfarra municipal começou então a tocar uma valsa, e eu estava tão alegre que até me levantaria para convidar Eugênia a dançar se isso fosse de molde”. (p. 29) Surpreendentemente, Bauby consegue criar movimento a partir da imobilidade, tanto a da estátua da imperatriz quanto a sua.

Vários capítulos poderiam ser citados para ilustrar a beleza do relato de Jean-Dominique Bauby. Indispensável, contudo, se faz a menção ao capítulo intitulado “O anjo da guarda”. Este é o modo como se refere à “ortofonista” Sandrine, a responsável por resgatá-lo da incomunicabilidade de seu escafandro. Deste anjo se vale, como diz, “para ouvir a voz de algumas pessoas da família e assim apanhar no ar fragmentos de vida, como quem caça borboletas”. (p. 45) Essas borboletas, uma vez capturadas, são cultivadas no silêncio do seu escafandro: “posso ouvir as borboletas voando pela minha cabeça. É preciso muita atenção e até certo recolhimento, pois o seu adejar é quase imperceptível. Uma respiração mais forte basta para abafá-las”. (p. 105)

Essa fragilidade do som das borboletas representa, aqui, a fragilidade da própria vida, a qual, num átimo, pode ser mudada de rumo ou simplesmente interrompida. Daí talvez a importância da fixação de uma data no relato, a do dia em que foi acometido pelo acidente. Curiosamente, o relato deste dia, o início de tudo, é reservado ao penúltimo capítulo, o qual vem intitulado pelo nome de uma canção dos Beatles: “A day in the life”. Tal canção era a que tocava no rádio da BMW que Bauby dirigia naquela sexta-feira em que resolvera ir pegar o seu filho Théophile para passarem o final de semana juntos, final de semana este que nunca chegou. Os versos de “A day in the life” vão sendo entremeados à narrativa do capítulo e, de certo modo, marcam o seu ritmo. Além do caráter rítmico da introdução dos versos, há que se destacar o fato de que estes funcionam como comentários à própria história que está sendo narrada, como se fossem as vozes de um coro que tem por função preparar o leitor para o fato trágico que está por vir. De certa maneira, esse capítulo nos reenvia ao começo do livro, em que se inicia, como vimos, o relato dos dias que se seguiram a esse “day in the life”. Simultaneamente, nos prepara também para o final do relato, que vai acontecer no capítulo seguinte e do qual não conseguimos sair ilesos.

*

Tanto Cardoso Pires quanto Bauby foram conduzidos à experiência da incomunicabilidade, a qual foi vencida por ambos, prova disso são os seus relatos. O primeiro lançou-se ao desafio paradoxal de contar as memórias de um tempo sem memória; já o segundo teve de encontrar um meio de comunicar-se a partir de dentro de seu escafandro. A força dos relatos de Cardoso Pires e de Bauby, além das razões acima já enumeradas, está no fato de haver neles um certo tom de sacrifício que comove e constrange aquele que ousa aventurar-se por suas linhas, visto que estas não existiriam sem o sofrimento daqueles que as escreveram. As narrativas funcionam de modo a resgatar a dignidade do homem diante de situações que teriam tudo para reduzi-lo à condição de simples joguete do destino, de “ser” impotente diante de uma condição que lhe escapa à compreensão.

A narrativa tem o poder de conferir sentido ao que aparentava não ter. Curiosamente, as narrativas de Cardoso Pires e de Bauby apontam para uma mesma imagem, a das borboletas. Na do primeiro, a borboleta é morte; na do segundo, vida. Em ambas as narrativas, o que se encena é uma valsa dessas borboletas.

Referências bibliográficas:

BAUBY, Jean-Dominique. O escafandro e a borboleta. Tradução Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 1997. (2ª tiragem 2008).

PIRES, José Cardoso. De profundis, valsa lenta. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Reflexões de Fidel....

Navegar contra a maré

www.granma.cu


• APÓS o discurso de Obama, em 23 de maio passado, à tarde, perante a Fundação Nacional Cubano-Americana, criada por Ronald Reagan, escrevi uma reflexão intitulada A política cínica do império, com datada em 25 desse mês.

Nela, citei suas palavras textuais perante os anexionistas de Miami: "Todos nós juntos vamos procurar a liberdade para Cuba; essa é minha palavra; esse é o meu compromisso... É hora de que o dinheiro estadunidense torne o povo cubano menos dependente do regime de Castro. Vou manter o embargo."

Depois de incluir várias considerações e exemplos nada éticos sobre o comportamento em geral dos presidentes anteriores a quem fosse eleito para esse cargo nas eleições do dia 4 de novembro, escrevi textualmente:

"Tenho a obrigação de fazer algumas perguntas delicadas:

"1º- É correcto que o presidente dos Estados Unidos ordene o assassinato de qualquer pessoa no mundo, seja qual for o pretexto?

"2º- É ético que o presidente dos Estados Unidos ordene torturar outros seres humanos?

"3º- É o terrorismo de Estado um instrumento que um país tão poderoso, como os Estados Unidos, deve utilizar para que exista a paz no planeta?

"4º - É boa e honrosa uma Lei de Ajuste, aplicada como punição a um só país, Cuba, para desestabilizá-lo, embora custe a vida a crianças e mães inocentes? Se for boa, por que não será aplicado o direito de residência aos haitianos, dominicanos e a outros dos demais países do Caribe, e se fará a mesma coisa com os mexicanos, centro-americanos e sul-americanos, que morrem como moscas no muro da fronteira mexicana ou nas águas do Atlântico e do Pacífico?

"5º - Será que os Estados Unidos podem prescindir dos imigrantes, que plantam vegetais, árvores frutíferas, amendoeiras e outras delícias para os norte-americanos? Quem limparia suas ruas, prestaria serviços domésticos e faria os piores e menos remunerados trabalhos?

"6º - Será que são justas as rusgas de indocumentados, que envolvem inclusive, crianças nascidas nos Estados Unidos?

"7º - Será que é moral e justificável o roubo de cérebros e a contínua extração das melhores inteligências científicas e intelectuais dos países pobres?

"8º- O senhor afirma que o seu país advertiu, há muito, as potências européias que não admitiria intervenções no hemisfério, e ao mesmo tempo, enfatiza o reclamo desse direito, exigindo também o de intervir em qualquer parte do mundo com o apoio de centenas de bases militares, forças navais, aéreas e espaciais distribuídas no planeta. Pergunto-lhe: Será essa a maneira em que os Estados Unidos expressam seu respeito pela liberdade, pela democracia e pelos direitos humanos?

"9º - Será que é justo atacar de surpresa e preventivamente sessenta ou mais escuros cantos do mundo, como os chama Bush, seja qual for o pretexto?

"10º - Será que é honroso e sensato investir trilhões de dólares no complexo militar-industrial para produzir armas que podem liquidar várias vezes a vida na Terra?"

Podia ter incluído outras perguntas.

Apesar das cáusticas perguntas, não deixei de ser amável com o candidato afro-americano, em quem via muita mais capacidade e domínio da arte da política que nos candidatos adversários, não só no partido da oposição, mas também no seio de seu partido.

Na semana passada, o presidente eleito dos Estados Unidos, Barak Obama, anunciou seu Programa de Recuperação Econômica.

Na segunda-feira, 1º de dezembro, apresentou o responsável pela Segurança Nacional e o da Política Externa:

"Biden e eu congratulamo-nos em anunciar-lhes nossa equipe de Segurança Nacional… os velhos conflitos ainda não se resolveram e as novas potências que se afirmam, pressionam mais o sistema internacional. A propagação das armas nucleares aponta para o perigo de que a tecnologia mais letal do mundo caia em mãos perigosas. Nossa dependência do petróleo estrangeiro fortalece governos autoritários e põe em risco o nosso planeta."

"…nosso poderio econômico tem que ser capaz de sustentar nossa força militar, nossa influência diplomática e nossa liderança global."

"Renovaremos antigas alianças e criaremos associações novas e duradouras… os valores dos Estados Unidos são o maior produto que este país pode exportar ao mundo."

"…a equipe que aqui reunimos hoje está especialmente preparada para fazer justamente isso."

"…homens e mulheres representam todos esses elementos do poderio dos Estados Unidos... Eles já prestaram serviços como militares e como diplomatas… compartilham meu pragmatismo sobre o uso do poder e meus objetivos sobre o papel dos Estados Unidos como líder do mundo."

"Conheço Hillary Clinton" ― diz.

Não esqueço, por minha parte, que foi a adversária do presidente eleito, Barack Obama, e esposa do ex-presidente Clinton, que sancionou as leis extraterritoriais Torricelli e Helms-Burton contra Cuba. Em sua luta pela candidatura, ela se comprometeu com essas leis e com o bloqueio econômico. Não me queixo, simplesmente, menciono-o.

"Sinto-me orgulhoso de que ela seja a nossa próxima secretária de Estado" ― prosseguiu Obama. "…gozará do respeito em todas as capitais, e evidentemente, terá faculdade para fazer avançar nossos interesses em todo o mundo. A indicação de Hillary é um sinal, para amigos e inimigos, da seriedade do meu compromisso…"

"No momento em que enfrentamos uma transição sem precedentes, em meio a duas guerras, pedi para Robert Gates continuar no cargo de secretário de Defesa…

"A nosso secretário Gates e a nosso exército encomendarei uma nova missão, assim que eu assumir o cargo: a responsabilidade de pôr fim à guerra no Iraque, mediante uma transição bem-sucedida até o controle iraquiano."

Chama-me a atenção que Gates é republicano e não democrata; a única pessoa que tem ocupado os cargos de secretário de Defesa e director da Agência Central de Inteligência, que ocupou um ou outro cargo sob a direcção de governo de um ou otro partido. Gates, que, como é sabido, é popular, declarou que primeiramente se assegurou de que o presidente eleito era escolhido para o tempo que for necessário.

Enquanto Condoleezza Rice ia à India e ao Paquistão com instruções de Bush para mediar nas tensas relações entre os dois países, o ministro de Defesa do Brasil tinha autorizado, fazia dois dias, uma empresa brasileira a fabricar mísseis MAR-1, mas, em vez de um, como até agora, cinco por mês, para vender ao Paquistão 100 mísseis, avaliados em 85 milhões de euros.

"Estes mísseis são acoplados com aviões e projetados para localizar radares em terra. Funcionam como uma maneira de monitorar eficazmente o espaço e também a superfície" ― afirma textualmente o ministro em sua declaração pública.

Obama, por sua vez, continua imperturbável em sua declaração da segunda-feira: "Para ir para frente, continuaremos fazendo os investimentos necessários para o fortalecimento do nosso exército e o aumento das nossas forças terrestres, visando derrotar as ameaças do século 21."

A respeito de Janet Napolitano, assinalou: "Contribui com a experiência e a habilidade executiva de que precisamos na Secretaria da Segurança Interior…"

"Janet assume este papel crucial , após aprender as lições dos últimos anos, algumas delas dolorosas, desde o 11 de setembro até o Katrina… Ela compreende, como todos, o perigo de uma fronteira não segura, e será uma chefa capaz de reformar um Departamento que cresce sem controle, sem deixar de proteger nossa pátria."

Esta conhecida figura foi indicada por Clinton promotora do distrito do Arizona em 1993, promovida a procuradora-geral do Estado em 1998; foi candidatada pelo Partido Democrata em 2002 e eleita mais tarde governadora nesse estado fronteiriço, que é o caminho mais transitado pelos indocumentados e por onde eles entram no país. Foi reeleita governadora em 2006.

A respeito de Susan Elizabeth Rice, disse: "Susan sabe que os desafios globais que enfrentamos exigem de instituições globais que funcionem… precisamos de umas Nações Unidas mais eficazes" ― afirma com desprezo ― "como órgão de ação coletiva contra o terrorismo e a proliferação, a mudança climática e o genocídio, a pobreza e as doenças.

De James Jones, assessor da Segurança Nacional, expressou: "Estou certo de que o general James Jones está especialmente bem preparado para ser um hábil e enérgico assessor da Segurança Nacional. Gerações de Jones prestaram serviços no campo de batalha, das praias de Tarawa, na Segunda Guerra Mundial, até Foxtrot Ridge, no Vietnã. A Medalha de Prata de Jim faz parte do orgulho desse legado… Foi chefe de um pelotão no combate, comandante supremo das Forças Aliadas na época da guerra" (refere-se à OTAN e à Guerra do Golfo) "e trabalhou pela paz no Oriente Médio."

"Jim está concentrado nas ameaças de hoje e do futuro, pois compreende a ligação entre a energia e a segurança nacional, e trabalhou na primeira linha da instabilidade global, de Kosovo ao norte do Iraque e do Afeganistão.

"Ele vai-me assessorar sobre a maneira de usar com eficiência todos os elementos do poderio americano para derrotar as ameaças não convencionais e promover nossos valores.

"Confio em que esta é a equipe de que necessitamos para um novo começo na Segurança Nacional dos Estados Unidos."

Com Obama, pode-se conversar onde ele desejar, já que não somos apregoadores da violência e da guerra. Devemos recordar-lhe que a teoria da cenoura e do garrote não terá vigência em nosso país.

Nenhuma frase de seu último discurso responde às perguntas que formulei em 25 de maio passado, há apenas seis meses.

Agora não direi que Obama é menos inteligente; tudo o contrário, está demonstrando as faculdades que me permitiram ver e comparar sua capacidade com as do medíocre adversário John McCain, de quem, por pura tradição, a sociedade norte-americana esteve a ponto de premiar suas "façanhas". Sem crise econômica, sem televisão e sem internet, Obama não ganhava as eleições vencendo ao onipotente racismo. Tampouco, sem seus estudos, primeiro na Universidade de Columbia, onde se formou em Ciências Políticas, e depois na Universidade de Harvard, onde lhe foi conferido o diploma em direito, permitindo-lhe tornar-se um homem de classe modestamente rica com vários milhões de dólares. Certamente, não era Abraham Lincoln, nem esta época corresponde àquela, pois trata-se hoje de uma sociedade de consumo, onde o hábito de poupar já se perdeu e o de gastar já se multiplicou.

Alguém tinha que dar uma resposta calma e sossegada, que hoje deve navegar contra a poderosa maré de ilusões despertada por Obama na opinião pública internacional.

Apenas me faltam examinar os últimos telexes. Todos, com notícias novas procedentes de toda parte. Calculo que somente os Estados Unidos gastarão nesta crise econômica mais de 6 trilhões em moeda de papel, que só podem ser avaliados pelos outros povos do mundo com suor, fome, sofrimento e sangue.

Nossos princípios são os de Baraguá. O império deve saber que nossa Pátria pode ser coonvertida em pó, mas os direitos soberanos do povo cubano não são negociáveis.

Fidel Castro Ruz
4 de dezembro de 2008

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Elis Regina - Medley Milton Nascimento (Montreux Festival)

DITADURA MILITAR NO BRASIL


Muito interessante e sérias, as informações contidas na revista Caros Amigos, em suas edições especiais sobre a Ditadura militar no Brasil. Vale a pena ler e guardar para não esquecermos jamais esse período brutal e sangrento que vivenciamos e que até hoje os responsáveis não foram levados a julgamento.
Os links para a revista encontram-se no sitio do Ronaldo.


quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

terça-feira, 2 de dezembro de 2008

EM PORTUGAL O MAGISTÉRIO TAMBÉM SE MOBILIZA....

Em noticia publicada pelo sitio www.esquerda.net, dá-nos conta de que em Portugal o magistério e os trabalhadores em Educação também se mobilizam para trancar mudanças impetradas pelo governo federal de desqualificar a escola pública. Muito semelhante com o que ocorre hoje no estado do Rio Grande do Sul.

Professores: greve nacional deve ser a maior de sempre



Deixem-nos ser professores. Foto de Paulete Matos
Os professores fazem amanhã uma greve nacional sob o lema "Vamos avaliar o Ministério de Educação fechando as escolas". A expectativa é que seja a maior e mais participada greve de professores de sempre. Sindicatos e movimentos divulgaram apelos para que a greve seja activa, e inúmeras concentrações estão a ser convocadas para a frente das escolas e para praças públicas.

Segundo a Fenprof, já são mais de 370 as escolas/agrupamentos que suspenderam o processo de avaliação de desempenho que o governo quer impor. As simplificações de última hora anunciadas pelo governo não tiveram qualquer efeito na mobilização docente, com os professores a argumentar que o processo está errado no seu todo e que só a suspensão da sua aplicação poderá permitir o reinício das negociações.

Para a Fenprof, o ME e o governo "não souberam interpretar, como deveriam, as evidências da indignação dos professores, como não souberam ou não quiseram escutar as suas propostas. Hoje o conflito está muito mais agravado e obriga o governo a criar condições para que se construa uma solução de consenso que tenha, como pressuposto, a suspensão do modelo de avaliação. A greve de 3 de Dezembro será um grande momento de protesto e confirmação das posições dos professores."

Após a greve, nos dias 4 e 5, os sindicatos organizam uma vigília dia e noite em frente ao Ministério da Educação. E no dia 6, os movimentos organizam em Leiria um encontro das escolas em luta.

Governos desesperados injetam dinheiro às cegas no mercado

Noticia veiculada no Diário Gauche


Nada garante que a medida será bem sucedida




O governo Bush, os países europeus e o Japão, principalmente, adotaram a tática meio cega de empanturrar os mercados com muita moeda líquida. Um empirismo desesperado para ver se estanca a corrida inabalável para o fundo do poço, cuja fundura ninguém sabe qual é.

Hoje, o Japão está injetando mais 32 bilhões de dólares para ver como a coisa fica. Uma temeridade. Trinta e dois bilhões de dólares de papel pintado, emitido pelos banqueiros norte-americanos, sem qualquer lastro na economia produtiva e criadora de riqueza. Papel de boa qualidade, com tinta de boa qualidade, nada mais que isso.

Dinheiro é o equivalente geral, a representação de valor por excelência. Nas hipertrofias do neoliberalismo, o dinheiro ascende à condição de mercadoria central e privilegiada do sistema, desbancando a mercadoria-trabalho, aviltada pelo crescente exército industrial de reserva, pelas mecanizações e tecnologias do trabalho-morto, etc.

Todas as demais mercadorias quiseram "imitar" a capacidade de valorização do dinheiro. Mas o papel-pintado é somente "a vida do que está morto [força de trabalho alienada na mercadoria, e esta transformada em moeda] se movendo em si mesma", na genial e primorosa síntese de Hegel.

Dias atrás, eu vi um dado que é estarrecedor: os Estados Unidos estão comprometendo em consumo cerca de 350% do seu PIB, hoje. Isso explica parcialmente o buraco no qual se meteram. Entre as décadas de 1950 e 1980, portanto, no período que precedeu a hipertrofia financeira, o comprometimento em consumo jamais passou de 180% do PIB. [Somente a título de curiosidade, hoje, o Brasil compromete em consumo cerca de 70% do PIB. Comércio de milhares de bugigangas, de automóveis de luxo a bolachinha recheada cancerígena, tudo embalado no papel-celofane dos juros para pagar os “sócios” da banca.]

A crise atual é como um trem-bala que viaja a 400 km por hora e breca bruscamente para velocidades bem menores, alguns vagões ficarão desgovernados e sairão dos trilhos rumo ao abismo, outros, muito poucos, conseguirão manter a linha, mas em deslocamento reduzido e sem saber que rumo tomar. Atulhar dinheiro nisso pode ser um erro do tamanho dos recursos que estão sendo injetados.

Coisas da vida.

O CONDOR SEGUE VOANDO



Por Elaine Tavares - jornalista


Martin Almada não consegue passar despercebido, ainda que esteja no meio de uma multidão. Brilha nele um sorriso que tem um quê de menino, uma inocência, uma coisa pura, que sobressai e impressiona. Sabe-se lá de onde esse homem, que já viveu tanta dor, tira tamanha doçura. O certo é que ela ali está e se derrama, mesmo quando ele conta das horas mais amargas, da prisão, da tortura e da morte da primeira mulher.

O dono desta ternura abissal é paraguaio, nascido no ano de 1937, em Puerto Sastre, região do Chaco, e é referência mundial na luta pelos Direitos Humanos, tanto que, em 2002, foi o vencedor do prêmio Nobel da Paz Alternativo, oferecido pelo parlamento sueco. Foi ele quem encontrou os documentos que trouxeram à luz toda a podridão e o terror da Operação Condor, responsável pela morte de milhares de pessoas em toda a América Latina, no que as ditaduras militares chamavam de luta contra a subversão. Hoje, ele segue sua luta incansável para colocar na cadeia cada um dos que levaram a cabo a operação, e mantém firme a conduta de defensor dos ativistas populares que enfrentam a prisão ou o desaparecimento, pois como bem assinala: o condor segue voando.

Quando a América Latina foi tomada pelas ditaduras militares nos anos 60, Martin Almada era apenas um jovem professor que dirigia um colégio. Não tinha nenhuma compreensão do que era a luta de classes e tudo o que fazia era repetir os ensinamentos de cunho eurocêntrico que havia recebido. Até que um dia todo o seu mundo desmanchou-se no ar. Por acaso, encontrou um livro do educador brasileiro Paulo Freire e desde aí sua existência mudou radicalmente. Aplicar a idéia freiriana de transformação foi seu primeiro pecado durante a ditadura de Alfredo Stroessner. Depois, envolveu-se na luta social, dirigindo o sindicato dos professores. Naquele período teve ainda a ousadia de propor uma cooperativa de construção de casas, viabilizando o sonho de moradia própria dos educadores paraguaios. Era seu segundo pecado, mas ele nem sonhava que aquilo estaria voltando os olhares da repressão para sua pessoa.

Tempos depois partiu para a cidade de La Plata, na Argentina, onde faria seu doutorado discutindo educação e dependência. Já estava totalmente alfabetizado nas lutas sociais que pululavam no continente e tinha clareza de que a educação, tal como se aplicava, só beneficiava a classe dominante e que, esta, estava a serviço do subdesenvolvimento e da dependência. E foram essas idéias que chamaram a atenção do poder. Assim, tão logo colocou os pés no Paraguai, em 1974, retornando do doutorado, Martin foi seqüestrado de sua casa e preso, sendo submetido a um tribunal militar. Seu trabalho produzido na Argentina foi considerado pela ditadura como terrorismo intelectual, e aí começou seu calvário.

Seguindo o manual da malfadada Escola das Américas, os policias paraguaios iniciaram um período de violentas torturas. Por 10 dias seguidos, um coronel chileno e um chefe policial argentino infligiram os mais torpes sofrimentos ao educador. No mesmo período, a mulher de Martin - Celestina - também foi presa, e a tortura a que a submetiam era a de escutar, pelo telefone, as torturas sofridas pelo marido. Passados 90 dias da prisão de Martin, os torturadores cometeram mais uma vileza. Mandaram para a casa do professor, endereçada à sua mulher, que já estava livre, a roupa ensangüentada do marido, seguida de um telefonema: Venha buscar o cadáver. Golpeada pela dor, Celestina não resistiu e teve um infarto fulminante. Morreu sem saber que aquilo era só mais um momento de tortura. Essa morte marcou minha vida pra sempre. Até hoje meus filhos me culpam por isso.

A morte de Celestina levou Martin a uma greve de fome e em todo país começou um movimento - liderado pela igreja - pela sua libertação. Finalmente, em 1978, o professor, chamado de terrorista intelectual saiu da cadeia, exilado para o Panamá, onde o presidente era Omar Torrijo, um militar progressista. Lá, conhecido por sua conduta transformadora na educação, caiu nas graças do presidente que o convidou para assumir um cargo em Paris. E foi na França que Martin Almada viveu por mais de 15 anos, tendo sido inclusive consultor da UNESCO para assuntos de educação. Foi um período difícil, longe da minha terra e convivendo com o ódio surdo dos filhos, pois, haviam repetido os militares, incessantemente, que eu havia matado minha mulher. Esta é uma chaga que ainda não foi cicatrizada. Hoje os filhos conseguem perceber melhor tudo que aconteceu, mas ainda não conseguimos superar, diz, com os olhos marejados. O silêncio que se segue dá testemunho do tamanho da dor.

Há uma vontade férrea por trás do sorriso doce de Martin Almada. Ele nunca perdoou a ditadura de Stroessner por todo o terror que infligiu ao povo do Paraguai. Para além da sua tragédia pessoal, Martin não deu descanso aos que comandaram a tortura e a morte de milhares de outros homens e mulheres. Assim, tão logo pode voltar para o país, depois da morte do ditador, ele iniciou a cruzada que o levaria a descoberta de toda a documentação da Operação Condor, responsável pelo assassinato de mais de 100 mil pessoas na América Latina.

De volta ao Paraguai a primeira ação de Martin foi entrar na Justiça para saber os motivos de sua prisão, que tanta dor trouxe a ele e aos seus. Queria que o Estado respondesse o que vinha a ser um terrorista intelectual. Surpreso, descobriu que, para a polícia, ele nunca havia sido preso. Não havia arquivo algum que comprovasse. Ele não sossegou, insistiu na busca dos documentos. Impossível não existirem. Em algum lugar estariam. Um telefonema anônimo informou: Estão fora do país. Esse monstro é maior do que pensas. Martin continuou brigando na Justiça até que, em 22 de dezembro de 1992, encontrou. Eram milhares de documentos que comprovavam os convênios do terror que estabeleciam os países entre si. As ditaduras do Chile, da Argentina e até do Brasil celebravam contratos que garantiam préstimos na chamada luta anticomunista. No que ficou conhecido como Operação Condor só na Argentina milhares de pessoas foram jogadas, com vida, no mar - mais de 100 mil pessoas entre estudantes, intelectuais, dirigentes sindicais, camponeses e lideranças indígenas foram assassinadas. Praticamente toda a classe pensante da América latina foi eliminada com essa operação, orientada pelos Estados Unidos e levada a cabo pelos governos ditatoriais.

Hoje, Martin Almada atua como advogado no pequeno Paraguai. Ali, apesar de ter se acabado a ditadura, a luta dos empobrecidos segue dura e toda a reivindicação por direitos é criminalizada. No Paraguai estão em luta os povos originários, os camponeses sem-terra, os desempregados. Eu sempre pensei que a educação mudaria o mundo, mas, aqui no Paraguai, vejo que, hoje, ser advogado é mais importante do que ser professor. Os pobres são largados a própria sorte na mão da Justiça, não têm ninguém por eles. Então, decidi que tinha de atuar por eles. Por sua luta pelos Direitos Humanos foi condecorado pelo governo Francês,Argentina, premiado no Brasil e recebeu o Nobel Alternativo no Parlamento Sueco. 2002-.

Marcado pela dor, mas sem jamais se deixar vencer por ela, Martin segue a vida, defendendo os empobrecidos nas lutas judiciais e denunciando as arbitrariedades que se cometem, todos os dias, contra os que lutam por vida digna. Vigilante, ele mantém os olhos e a mente fixos nas asas do Condor. Não aquele, bicho, que embeleza o céu dos Andes, mas a lúgubre operação de assassinatos e desaparições que ainda segue sendo praticada nas entranhas de toda a América Latina.

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PELA VIDA, PELA PAZ/ TORTURA NUNCA MAIS