segunda-feira, 15 de março de 2010

O fim da dinastia midiática....

Dinastias Midiáticas

Emir Sader

Na imprensa brasileira mandam as dinastias estamentais. Os pais proprietários entregam a direção dos jornais, das revistas, das rádios e das televisões – das suas empresas – aos seus filhos, que repassam para os netos, perseverando todos no direito que se auto-atribuíram de decidir quem é e quem não é democrático, quem fala e quem não fala em nome da nação!

Assim tem sido ao longo de toda a história da imprensa no Brasil. No momento mais decisivo da história do século XX, em 1964, essas dinastias pregaram e apoiaram o golpe militar, assim como a instalação de uma longa ditadura, que mudou decisivamente os rumos do nosso país. Enquanto os militares intervinham nos poderes Judiciário e Legislativo, enquanto suspendiam todas as garantias constitucionais, enquanto fechavam todos órgãos de imprensa que discordaram do golpe e da ditadura, enquanto a maior repressão da nossa história recente se abatia sobre milhares de brasileiros presos, torturados, exilados e mortos, enquanto isso, as dinastias da imprensa mercantil se calaram sobre a repressão e apoiaram o regime militar!

Eram estes mesmos Mesquitas, Frias, Marinhos, Civitas, estes mesmos que transmitem por herança – como se fosse um bem privado – seu poder dinástico, transferindo-o para os seus filhos e netos. Os júlios, os otávios, os robertos, os victor, vão se sucedendo uns aos outros, a dinastia vai se perpetuando. Que se danem a democracia e o país, mas que se salvem as dinastias!

Mas, hoje, elas estão vendo seu poder se esvaindo pelos dedos. Conta-se que um desses herdeiros, rodando em torno da mesa da reunião do conselho editorial, herdada do pai, esbravejava irado: “onde foi que nós erramos? onde erramos?”. Estava desesperado porque a operação “mensalão” não conseguiu derrubar Lula elegendo o tucano, da sua preferência.

Se ele tivesse olhado os gráficos escondidos na sua sala, teria visto que, nos últimos dez anos, as tiragens dos jornais despencaram. A Folha de São Paulo, por exemplo, que é um dos de maior tiragem, perdeu em 10 anos, de 1997 a 2007, quase cinqüenta por cento dos seus leitores! Depois de quase ter atingido 600 mil leitores, vai fechar o ano de 2008 com menos de 300 mil! Uma queda ainda mais grave se considerarmos que, nesse período, houve crescimento demográfico, aumento do poder aquisitivo, maior interesse pela informação e elevação do índice de escolaridade dos brasileiros.

Os leitores deste jornal de direita estão entre os mais ricos da população. Noventa por cento dos seus menos de 300 mil exemplares são destinados aos leitores das classes A e B, as mesmas que não atingem dezoito por cento da população brasileira. Em outros termos, nove entre cada dez leitores do jornal pertencem aos setores de maior poder aquisitivo e suas condições de vida estão a léguas de distância das do nosso povo – esse povo que gosta do programa bolsa família, dos territórios de cidadania, da eletrificação rural, dos mini-créditos, do aumento real do salário mínimo, da elevação do emprego formal, etc.

A última e mais recente pesquisa sobre o apoio ao governo Lula, que a imprensa dinástica procurou esconder, realizada pela Sensus, revela que Lula é rejeitado por apenas treze por cento dos brasileiros! É essa ínfima minoria, cinco vezes menor do que aquela dos que apóiam o governo Lula, que povoa os editoriais dessa imprensa, suas colunas, seus painéis de cartas dos leitores! Esse é o índice da influência real que a mídia mercantil – juntando televisão, rádio, jornais, revistas, internets, blogs – tem! Apesar de todos os instrumentos monopólicos de que dispõem, apesar das campanhas diárias para dominar a opinião pública, não conseguem nada além desse pífio resultado dos treze por cento que representam!

As dinastias podem continuar a ter filhos, netos e bisnetos, mas é possível que já não dirijam jornais. Esta pode ser a última geração de jornalistas dinásticos que, talvez exatamente por isso, revelam diariamente o desespero da sua impotência, assumindo o mesmo papel que ocuparam nos anos prévios a 1964. É o mesmo desespero da direita diante da popularidade de um Getúlio e do governo Jango. Nos dois casos, só lhes restou apelar à intervenção das Forças Armadas e dos EUA, estes mesmos EUA que nunca fizeram autocrítica, nem desta nem de qualquer outra das suas intervenções contrárias à democracia da qual pretendem ser os arautos! Depois de terem pedido e apoiado o golpe militar, porque ainda acreditam que podem dizer quem é democrático e quem não é?

domingo, 14 de março de 2010

Pobre Grécia.....

Uma "Guernica económica" para a Grécia

por Joseph Halevi
Rua de Guernica após o bombardeamento. A Grécia enfrenta uma verdadeira Guernica económica, um massacre, face ao qual a esquerda europeia mostra uma passividade imperdoável. Aquilo que é imposto a Atenas é concebido como um exemplo, para criar horror na Espanha, Portugal e mesmo na Itália. Mas até a França, diante das directivas alemãs, entrou em colapso como num novo teste de Sedan, o qual é também económico.

No Verão passado, Angela Merkel permitiu que Berlim incorresse em défices, moderando o fanatismo protestante do então ministro das Finanças social-democrata. Agora, com Schäuble naquele ministério, estamos outra vez sob a total maldição bíblica.

De acordo com inquéritos, a opinião pública europeia tende a aceitar o argumento de os gastos deficitários serem equilibrados por cortes drásticos. Tal argumento é equivalente a igualar o estado a uma família que gasta mais do que ganha e é então forçada a reduzir o seu padrão de vida. O Estado podia encontrar-se nesta situação se se verificasse o pleno emprego como uma tendência natural. Ponde de lado tal quimera, o défice sempre pode ser financiado, desde que a autoridade que nele incida tenha controle tanto sobre a política monetária como fiscal, o que é impossível sob o euro.

O que
 os preocupa. Naturalmente, sob o euro, as relações capitalistas dentro da Europa são definidas de modo a que haja aqueles que podem e aqueles que não podem. Aparte o fanatismo ideológico, o rápido retorno de Berlim à ortodoxia financeira decorre de uma visão muito simples. Nós, dizem os dirigentes de Berlim, não daremos um dólar para a Europa (neste caso a Grécia e a península ibérica) porque nem meio tempo o nosso capitalismo saiu da crise graças às exportações líquidas. O congelamento de salários provocado pelo desemprego faz-nos confortáveis ao passo que os nossos mecanismos internos de subsídios, tanto ao nível federal como aos estaduais, facilita a reestruturação. Isto e a deflação salarial potenciarão a competitividade inter-capitalista da Alemanha.

Quem se importa com o cidadãos da Grécia e da península ibérica? A única preocupação é como proteger os valores financeiros dos bancos franceses e alemães que possuem títulos do governo emitidos por aqueles países. Vagos sinais de possíveis empréstimos para a Grécia são de facto destinados apenas para esse efeito. Os cortes impostos a Atenas deveriam tranquilizar os mercados, pois na verdade eles têm tido êxito, apesar da reviravolta que estão a provocar na economia do país. Assim chegou-se a um acordo extremamente duro entre Paris, Berlim, Frankfurt (sede do Bundesbank e o BCE seu aliado) com as agências de classificação, as quais avaliam a solvência dos emitentes de títulos, as próprias agências que até há poucos meses tanto a França como a Alemanha estavam a apontar o dedo como estando entre as principais culpadas pela crise financeira.

Os "mercados" estão a actuar como tubarões a rapinarem a Grécia com o apoio daqueles que primeiro os criticaram. O ano de 2008 nunca aconteceu, poderia dizer o falecido Jean Baudrillard. O populismo anti-financeiro de Merkel, Lagarde e Sarkozy (bem como de Tremonti) já mostrou o que vale. Produto temporário, é uma confusão entre a miopia da França com o capitalismo da Alemanha. Ao afundar a Grécia e forçar a Espanha e Portugal a segui-la, Frankfurt e Paris estão de facto a atacar um grupo de países que, na explosão da crise, isto é, até 2008, representavam mais de 9% das exportações italianas e mais de 10% das francesas, assim como 6% das alemãs.

E agora a crise de novas escapatórias, não percebida, assoma no horizonte, devido ao crescimento da China como um exportador líquido para a Europa. Enquanto isso, a Grécia continua a ser uma área de reciclagem para a indústria militar alemã: a aquisição de 150 tanques Leopard, concluída em Outubro último, não foi suspensa, mesmo no momento em que pensões e salários estão a ser cortados.
O original, "Una 'Guernica economica' per la Grecia", foi publicado em Il Manifesto de 09/Março/2010.   A versão em inglês encontra-se em http://mrzine.monthlyreview.org/2010/halevi110310.html

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

E a Islândia disse, NÃO.....

VITÓRIA ESMAGADORA DO POVO ISLANDÊS
 
Numa vitória esmagadora, 93% dos eleitores da Islândia disseram "Não" ao pagamento de prejuízos provocados pela falência de um banco privado. O referendo foi realizado no sábado, 6, e é o segundo da história do país. O povo islandês rejeitou assim as pressões impostas pelos governos britânico e holandês, bem como a atitude servil do seu governo e do seu parlamento que em Dezembro último assinaram um acordo comprometendo-se a pagar 3,9 mil milhões de euros aos credores do banco falido. Assim, a falência da ideologia neoliberal concretiza-se também no terreno prático. A pequena Islândia dá um exemplo a todos os países do mundo submetidos à extorsão. As vítimas da sanha do capital financeiro e imperialista começam a reagir.
Ver "O esquema de reembolso é chantagem"

sábado, 13 de março de 2010

A doença dos USA...




Os EUA estão doentes

Os EUA são o único país do mundo desenvolvido em que a saúde foi transformada em mercadoria e o seu provimento entregue ao mercado privado das seguradoras. Os resultados são assustadores. 49 milhões de cidadãos não têm seguro de saúde e 45 mil morrem por ano por falta dele.

Em sentido metafórico, a sociedade norte-americana está doente por muitas razões. Há mais de trinta de anos passo alguns meses por ano nos EUA e tenho observado uma acumulação progressiva de "doenças", mas não é delas que quero escrever hoje. Hoje escrevo sobre doença no sentido literal e faço-o a propósito da reforma do sistema de saúde em discussão final no Congresso. As lições desta reforma para o nosso país são evidentes. Os EUA são o único país do mundo desenvolvido em que a saúde foi transformada em mercadoria e o seu provimento entregue ao mercado privado das seguradoras. Os resultados são assustadores. Gastam por ano duas vezes mais em despesas de saúde que qualquer outro país desenvolvido e, apesar disso, 49 milhões de cidadãos não têm qualquer seguro de saúde e 45 mil morrem por ano por falta dele. Mais, a cada passo surgem notícias aterradoras de pessoas com doenças graves a quem as seguradoras cancelam os seguros, a quem recusam pagar tratamentos que lhes poderiam salvar a vida ou a quem recusam vender o seguro por serem conhecidas as suas — condições pré-existentes“, ou seja, a probabilidade de virem necessitar de cuidados de saúde dispendiosos no futuro.

A perversidade do sistema reside em que os lucros das seguradoras são tanto maiores quanto mais gente da classe média baixa ou trabalhadores de pequenas e médias empresas são excluídos, ou seja, grupos sociais que não aguentam constantes aumentos dos prémios de seguro que nada têm a ver com a inflação. No meio de uma grave crise econômica e alta taxa de desemprego, a seguradora Anthem Blue Cross - que no ano passado declarou um aumento de 56% nos seus lucros - anunciou há semanas uma alta de 39% nos preços na Califórnia, o que provocaria a perda do seguro para 800.000 pessoas. A medida foi considerada criminosa e escandalosa por alguns membros do Congresso.

Por todas estas razões, há um consenso nos EUA de que é preciso reformar o sistema de saúde, e essa foi uma das promessas centrais da campanha de Barack Obama. A sua proposta assentava em duas medidas principais:criar um sistema público, financiado pelo Estado, que, ainda que residual, pudesse dar uma opção aos que não conseguem pagar os seguros; regular o sector de modo que os aumentos dos planos não pudessem ser decididos unilateralmente pelas seguradoras. Há um ano que a proposta de lei tramita no Congresso e não é seguro que a lei seja aprovada até à Páscoa, como pede o Presidente. Mas a lei que será aprovada não contém nenhuma das propostas iniciais de Obama. Pela simples razão de que o lobby das seguradoras gastou 300 milhões de euros para pagar aos congressistas encarregados de elaborar a lei (para as suas campanhas, para as suas causas e, afinal, para os seus bolsos). Há seis lobistas da área de saúde registrados por cada membro do Congresso. Lobby é a forma legal do que no resto do mundo se chama corrupção. A proposta, a ser aprovada, está de tal modo desfigurada que muitos setores progressistas (ou seja, setores um pouco menos conservadores) pensam que seria melhor não promulgar a lei. Entre outras coisas, a leib "entrega" às seguradoras cerca de 30 milhões de novos clientes sem qualquer controle sobre o montante dos planos. Os EUA estão doentes porque a democracia norte-americana está doente.

Que lições? Primeiro, é um crime social transformar a saúde em mercadoria. Segundo, uma vez dominantes no mercado, as seguradoras mostram uma irresponsabilidade social assustadora. São responsáveis perante os acionistas, não perante os cidadãos. Terceiro, têm armas poderosas para dominar os governos e a opinião pública. Em Portugal, convém-lhes demonizar o SNS só até ao ponto de retirar dele a classe média, mais sensível à falta de qualidade, mas nunca ao ponto de o eliminar pois, doutro modo, deixariam de ter o "caixote do lixo" para onde atirar os doentes que não querem.Os mais ingênuos ficam perplexos perante os prejuízos dos hospitais públicos e os lucros dos privados. Não se deram conta de que os prejuízos dos hospitais públicos, por mais eficientes que sejam, serão sempre a causa dos lucros dos hospitais privados.

Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).

sexta-feira, 12 de março de 2010

Irã, a bola da vez????

Irã: EUA miram no programa nuclear para alvejar o regime

  Luiz Eça - Correio da Cidadania   
 
Os recentes desenvolvimentos da questão nuclear iraniana fazem crer que o objetivo dos EUA e seguidores europeus não seria apenas impedir que o Irã possa produzir armas atômicas.
 
Basta analisar os argumentos contra o Irã e as declarações dos líderes americanos. Alega-se que um Irã atômico seria uma ameaça terrível aos países próximos, particularmente Israel, e à própria humanidade, pois se trata de um "país irresponsável (rogue state)".
 
Embasando esta afirmação estariam as declarações de Ahmadinejad: "Israel será varrido do mapa". Seria um risco desmedido consentir que alguém com objetivos tão enlouquecidos contasse com armas atômicas para realizá-los. Especialmente porque ele certamente não ficaria nisso. Países sunitas (o Irã é xiita) como a Arábia Saudita, o Egito e o Kuwait estariam sob ameaça de ataques estilo Hiroshima, caso não se submetessem ao governo dos aiatolás.
 
Esta aterradora perspectiva peca porque sua premissa fundamental é absolutamente questionável.
 
Segundo Juan Cole, professor de História do Oriente Médio e da Ásia do Sul, da Universidade de Michigan, Ahmadinejad não foi corretamente traduzido. O que ele disse teria sido um apelo para o fim do regime sionista de Israel, mas não a remoção do povo judeu da Palestina...
 
Autoridades em língua farsi como Arash Nouruz, do The Mossadegh Project, e especialistas do Middle East Media Research confirmam essa correção. A qual, aliás, foi repetida pelo próprio Ahmadinejad que acrescentou: "O Irã não pretende atacar Israel; o regime sionista cairá sozinho".
 
A mídia internacional e os líderes políticos ocidentais e israelenses ignoraram completamente esses desmentidos. E vêm repetindo a tradução errada da frase de Ahmadinejad como artigo de fé, que marcaria o Irã irremediavelmente como "país irresponsável", portanto, capaz de lançar bombas atômicas a seu bel prazer.
 
Sendo objetivo, Israel tem muito mais direito àquele adjetivo do que o Irã. Afinal, enquanto o governo de Teerã envolveu-se apenas em uma guerra, esta defensiva contra o Iraque de Saddam Hussein, os israelenses têm um currículo invejável nessa área: invadiram e ocuparam o Líbano várias vezes; atacaram e destruíram Gaza, praticando crimes contra os direitos humanos e até contra a humanidade, conforme inquérito da ONU; nos últimos anos vêm ameaçando repetidamente o Irã de bombardeios.
 
Os EUA não concordam com esse raciocínio. George Bush condenou a política nuclear iraniana e deixou claro que poderia haver "opções militares" contra ela, ignorando o próprio serviço secreto dos EUA, que havia informado que o Irã tinha, desde 2003, abandonado o projeto de armas nucleares. Graças a seu empenho, conseguiu da ONU duas rodadas de sanções contra Teerã.
 
Embora sem negar o caráter suspeito do programa nuclear iraniano, Obama tinha idéias diferentes. No vídeo, enviado ao povo iraniano em 21 de março, ele afirmava: "Este processo não avançará com ameaças. Em vez disso, buscamos acordos honestos e baseados em respeito mútuo".
 
Mas logo em julho, quando a repressão violenta dos manifestantes contrários à reeleição de Ahmadinejad indignava o povo americano, ele cedeu à pressão da opinião pública. Condenou pesadamente o governo iraniano que respondeu no mesmo tom. E o "respeito mútuo" foi para o espaço.
 
Embora a brutalidade da polícia e das milícias contra os opositores do governo dos aiatolás fosse condenável, a verdade é que se tratava de uma questão distinta do problema nuclear. Não deveria contaminar o encaminhamento de uma solução diplomática.
 
Assim não entendeu o povo americano, cooptado por uma propaganda do governo, que Larry Chin, do New York Times, considerou "estritamente semelhante à da campanha de Hitler contra a Polônia".
 
Em situação semelhante, Nelson Mandela, recém-empossado na presidência da União Sul-Africana, declarou que, se não fosse capaz de contestar posições erradas da população, não mereceria governar.
 
Obama não foi capaz. Pensando em sua imagem e em futuras eleições, misturou as coisas e trocou sua postura conciliadora face ao problema nuclear do Irã pelas ameaças do governo Bush.
 
Já a partir desse mês, a atitude do governo Obama mudou. Ele soltou Hillary Clinton pelo mundo para garantir que em hipótese nenhuma os EUA deixariam o Irã possuir armas nucleares. Que sequer permitiriam que os iranianos enriquecessem urânio mesmo sob supervisão total do AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica).
 
Apesar do clima tempestuoso, surgiu uma oportunidade de acordo em reunião em Viena: o Irã enviaria seu urânio de baixo enriquecimento para a França e a Rússia, onde ele seria enriquecido em grau maior para uso pacífico. Mas, em outubro, o Irã acabou recusando. Não confiava na França. Além de Sarkozy ter se mostrado um feroz inimigo, após a revolução islâmica os franceses tinham se recusado a entregar urânio já pago pelo governo anterior.
 
Aceitaria fazer a troca proposta, desde que fosse simultânea e em território do Irã ou da Turquia.
 
Apesar de a Turquia guardar neutralidade entre as partes, EUA e seguidores recusaram esta nova idéia in limine. Seria como eles queriam ou nada feito.
 
De lá para cá, Obama, Hillary Clinton e outros menos votados vêm cabalando votos no Conselho de Segurança da ONU para aprovar novas e mais duras sanções. Repetem exaustivamente que Obama durante muito tempo apelou para uma solução diplomática enquanto o Irã permaneceu indiferente e irredutível. Agora, seria a hora das sanções.
 
Desta vez, destrutivas. Só para dar uma idéia: todos os países seriam proibidos de vender gasolina ao Irã, que, apesar de grande produtor de petróleo, precisa importar 40% para atender a suas necessidades.
 
Quanto à apregoada boa vontade do presidente americano, Wu, representante chinês no Oriente Médio, observou que Obama deveria apresentar medidas concretas em vez de limitar-se à retórica. O que não deixa de ser verdade.
 
A objeção do presidente dos EUA à última proposta iraniana mostra que ele mudou de novo. Voltou a pensar como seu antecessor. Bush se atinha à lógica imperial. Não era aceitável a existência de uma potência no Oriente Médio, rica em petróleo, bem armada e nada amigável, que contestasse a hegemonia americana na região.
 
Já dissera Nicholas Burns, subsecretário de Estado, ao International Herald Tribune, comentando o fornecimento de armas aos amigos da região: "Este pacote de armas diz aos iranianos que os Estados Unidos são o poder maior no Oriente Médio, continuarão a ser e não irão embora".
 
Em tempos de Bush, foi criado um programa que concedia 75 milhões de dólares anuais a grupos oposicionistas iranianos. Inclusive ao movimento terrorista Jundallah, segundo o respeitado cronista Seymour Hersh (New Yorker, julho de 2008). Os repórteres investigativos Flynt e Hillary Leverett afirmam que Obama nada fez para interromper estas ligações perigosas.
 
Somente nos últimos anos, o Jundallah tem uma folha corrida de respeito: ataque contra a comitiva do presidente Ahmadinejad; ataque a um ônibus, matando 18 membros da Guarda Revolucionária; rapto e execução de 16 policiais, em 2007; explosão de carro bomba que matou quatro pessoas, em 2008; emboscada em 2009, que matou 12 policiais; no mesmo ano, ataque a mesquita, com a morte de 25 pessoas; em outubro de 2009, ataque suicida com homem bomba, matando 42 pessoas.
 
Continuando em sua cruzada, a Casa Branca pressionou os russos para adiarem "sine die" a entrega de um sistema de defesa antimíssil (já pronto), que tornaria suas instalações nucleares e cidades bastante bem protegidas.
 
Só se pode entender esta atitude como uma precaução para enfraquecer as defesas do Irã diante de futuros ataques aéreos dos EUA e/ou Israel.
 
Esta ação para deixar o Irã mais fácil de ser derrotado soma-se à intolerância em aceitar qualquer outra proposta que não a de outubro, ao apoio ao terrorismo do Jundallah, às repetidas declarações agressivas de membros do governo e generais americanos e ao enorme esforço para aprovar sanções desta vez capazes de causar danos realmente severos na economia iraniana.
 
É certo que a China vetará estas sanções. No entanto, o Senado americano já está cuidando de aprovar projetos proibindo os EUA de negociarem com qualquer empresa americana ou estrangeira que mantenham laços econômicos com o Irã.
 
Como nada demoverá o governo de Teerã de continuar seu programa nuclear, seus adversários contam com as sanções para destruir a economia do país e criar condições para uma revolta popular. Ou, em último caso, como "todas as opções continuam sobre a mesa", um ataque israelense-americano, talvez com participação européia, resolveria o problema. Como foi feito no Iraque, resultaria na ocupação do país e, posteriormente, na formação de um governo amigo.
 
Tal seria o projeto de Bush. Há indícios que poderia ser também o de Obama...
 
Luiz Eça é jornalista.

Direitos das mulheres no Uruguai......


Mais de 70% das pessoas que vivem em situação de pobreza são mulheres






Karol Assunção *Adital 



A Anistia Internacional do Uruguai aproveita o mês dedicado às lutas das mulheres de todo o mundo para apresentar, hoje (12), na Biblioteca Nacional, em Montevideu, o relatório "A armadilha do gênero - Mulheres, violência e pobreza".


Na oportunidade, ainda serão discutidas as atividades realizadas nos seis anos da campanha "Não mais violência contra as mulheres" e divulgada a nova ação: "Exige Dignidade". Segundo informações do relatório "A armadilha do gênero", dados da Organização das Nações Unidas (ONU) revelam que mais de 70% das pessoas que vivem em situação de pobreza são mulheres. "Por que mais de dois terços das pessoas pobres do mundo são mulheres, se estas constituem somente a metade da população mundial?", questiona.
A resposta é encontrada no próprio relatório: discriminação. Segundo a Anistia, este é um dos principais fatores que explicam a pobreza feminina. "Em alguns países, a discriminação contra as mulheres impregna na legislação e, em outros, esta discriminação persiste apesar da adoção de leis de igualdade", afirma. Isso pode ser constatado com uma simples comparação entre os benefícios que os homens e as mulheres recebem. De acordo com o estudo da Anistia, o acesso a recursos e meios de produção como terra, crédito e herança, por exemplo, não é igual para os dois sexos.
Da mesma forma, em média, as mulheres recebem salários mais baixos e, muitas vezes, o trabalho nem sequer é remunerado. "As mulheres, com frequencia, trabalham em atividades informais, sem segurança de emprego nem proteção social. Ao mesmo tempo, seguem responsabilizando-as do cuidado da família e do lar", lembra.
Vale ressaltar que as mulheres não sofrem apenas com pobreza e discriminação. Segundo o documento da Anistia, elas ainda são as mais afetadas pela violência, pela degradação do meio ambiente, pelas enfermidades e até mesmo pelos conflitos armados.
De acordo com a organização, apesar de algumas conquistas e avanços nas garantias de direitos das mulheres - por exemplo, o reconhecimento de que os direitos delas são direitos humanos -, ainda há muito que ser feito. Para Anistia, o reconhecimento dos direitos das mulheres apenas melhorou a vida de algumas. Por conta disso, considera que os Estados e as instituições internacionais devem ter mais vontade política para garantir tais direitos e para assegurar a igualdade.
Além disso, a organização acredita que as demandas das mulheres precisam ser ouvidas e respeitadas. "A voz das mulheres deve ser escutada. Suas contribuições devem ser reconhecidas e alentadas. A participação ativa das pessoas que se veem afetadas é um elemento essencial de qualquer estratégia de luta contra a pobreza", afirma.
O relatório "A armadilha do gênero" completo está disponível em: http://www.amnesty.org/ar/library/asset/ACT77/009/2009/ar/b2f94dc6-69e2-4c83-9310-c892bdd03c8c/act770092009spa.pdf

quinta-feira, 11 de março de 2010

O Chile nas mãos de Piñera


O Chile nas mãos de Piñera

O que significa Sebastián Piñera para o Chile? Neoliberalismo na economia, gerencialismo na administração pública, tentativa de esvaziamento da"Concertación", diplomacia orientada para o dólar e o euro e polarização de posições ideológicas. Um presidente que pode ser aclamado pelo clube dos adeptos do Sr. Scrooge (o personagem de Dickens), que hoje em dia é assombrado pelo espírito de Milton Friedman. A análise é de Antonio Lassance.
O que significa Sebastián Piñera para o Chile?

Na economia, neoliberalismo. É certo que boa parte das "tarefas" neoliberais executadas no Chile o foram durante o Governo Pinochet - a propósito, um mestre em execuções. O ditador era adepto do fundamentalismo econômico liberal de Milton Friedman, da Universidade de Chicago. Friedman visitou e colaborou ativamente com o ditador e deu-lhe o gosto pelos "Chicago Boys" (os "garotos de Chicago"), alunos ou adeptos de Friedman e que olhavam para o departamento de Economia desta universidade como a uma Meca. A afinidade com este "espírito do capitalismo" levaria o ditador a tornar-se fã e amigo de Margareth Tatcher, figura imbatível como garota-propaganda do neoliberalismo, autora do bordão "não existe essa coisa de sociedade, o que existe são os indivíduos".

O gosto pelos "Chicago Boys" está de volta. A equipe do governo Piñera foi antecipadamente anunciada em fevereiro. Dos 22 ministros, 13 não têm filiação partidária, o que desagradou até a "Renovación Nacional" (partido do próprio Piñera) e a "Unión Demócrata Independiente" (UDI, de extrema-direita). Ambos têm apenas 4 representantes cada, o que pode ser um ingrediente futuro de tensão, sobretudo com a UDI. Os títulos de PhD que os ministros não partidários ostentam é mera perfumaria diante do essencial em seu currículo: a relação umbilical com os grandes grupos econômicos chilenos (ou baseados no Chile).

A vitória de Piñera, "strictu sensu", se explica pelo desgaste do modelo da Concertación, que tem como centro dois partidos: o Socialista (PS) e o Democrata-Cristão (DC). Ambos governaram o Chile desde os anos 90. Mas a indiferença à política de quase 30% dos chilenos (aquela idéia do "tanto faz se um ou outro") em relação ao processo eleitoral pesou decisivamente - em favor de Piñera. Havia também um cansaço diante do candidato Eduardo Frey, que sequer era mais do mesmo, e sim o mesmo do mesmo, tendo em vista já ter sido presidente. De modo mais amplo, porém, a vitória se explica pela permanência histórica do projeto pinochetista, que conseguiu criar as condições e os atores (extremamente ricos) interessados em uma "economia liberal, uma sociedade hierarquizada e uma cultura conservadora", como definiu o historiador Cristián Gazmuri ("El lugar de Pinochet en la historia. Una interpretación política de la experiencia autoritaria - 1973 a 1990").

O padrão de autoritarismo tecnocrático pode dar fôlego à estratégia de Piñera, apesar da parca experiência política dos "Chicago boys". Primeiro, pelo fato de reviver o padrão pinochetista, ao qual parte dos chilenos está acostumada e do qual uma parcela é fervorosa adepta. Em segundo, é preciso levar em conta que o terremoto dá a Piñera o seu "11 de setembro": o tema da agenda que tende a ocupar espaço central em todo o seu mandato. Ele mesmo já disse que vai refazer seu programa para se adequar ao pós-terremoto. O resto pode ser embalado pela lógica de reconstruir o país sob novas bases. Assim, muitos dos aspectos negativos do que vier a ser implementado poderá justificar-se como efeito colateral do esforço de reconstrução.

Na administração pública, Piñera é a reedição do gerencialismo, adaptação do neoliberalismo à administração pública. Sua orientação pode seguir a linha agressiva do tatcherismo, significando: a) a substituição de serviços públicos pela gestão privada; b) o abuso do modelo de relação custo-benefício como critério de eficiência (reconhecidamente, um modelo limitado de gestão de políticas públicas e que, em várias áreas, produz resultados notória e comprovadamente perversos); c) a limitação do rol de direitos e sua transposição para a lista de oportunidades de exploração econômica empresarial. O jornal argentino "El Clarín" (14/2/2010) fez um detalhado "quem é quem" dos indicados e de suas ligações empresariais, o que emoldura o comentário do colunista deste jornal, Rafael Gumucio, de que o presidente "governará da única forma que a direita chilena sabe fazer: concebendo o país como a uma empresa", o que é uma definição sintética e precisa do gerencialismo. O detalhe é que, ao contrário de Tatcher ou Reagan, que eram políticos profissionais, Piñera é empresário profissional e político "por tabela", o que já o coloca na mira dos críticos que pretendem tipificar suas possíveis reformas econômicas como eivadas de conflitos de interesse. É o que dá razão à análise do professor Emir Sader, publicada em Carta Maior, comparando Piñera a Berlusconi (O Berlusconi chileno).

Na política, sua prioridade vem sendo a de desmantelar a Concertação. A tentativa de atrair políticos do atual governo para a sua futura equipe acirrou os ânimos e levou o PS e a DC a acusar de traição os que aceitassem o convite, além de ameaçar com a sumária expulsão dos quadros partidários. O fato sinaliza que a Concertação, apostando ou não no fracasso de Piñera, deve radicalizar suas posições, até como estratégia de sobrevivência. O aprendizado da derrota também se constitui em forte estímulo para que se delimite melhor as diferenças. A sucessão de Bachelet não teve características plebiscitárias, aspecto decisivo para a interrupção dos sucessivos mandatos da coalizão. Na diplomacia, o Chile deve continuar com sua política orientada pelo dólare pelo euro. Recentemente, foi aceito na OCDE (Organização para a Cooperaçãoe Desenvolvimento Econômico), "clube" dos países ricos, desenvolvidos e industrializados. O feito, conseguido no governo Bachelet, inclui, entre suas exigências, a de estabelecer penas para pessoas jurídicas que cometam crimes como lavagem de dinheiro.

Nas Américas, Piñera desenhou um eixo que divide o Continente e inclui, apenas, além do Chile, a Colômbia, de Álvaro Uribe, o Peru, de Alan García, e o México, de Felipe Calderón. Mas seu foco é menos o desse círculo restrito das Américas e mais o seleto grupo conservador europeu. Piñera deve figurar como parceiro privilegiado da ultradireita européia, que aguarda ansiosamente a vitória dos conservadores no Reino Unido para contarem com um possível porta-voz oficial do tatcherismo: David Cameron, do Partido Conservador, líder nas pesquisas de opinião, até o momento.

O clube do Sr. Scrooge (o célebre personagem de Charles Dickens, inspiração,entre outros, do Tio Patinhas) precisa incessantemente de exemplos de "casos de sucesso", mesmo que sucesso controvertido, como aqueles campeonatos ganhos com gol de mão. O Chile tende a ser de novo colocado neste pedestal. Quiçá, até tomar o lugar da Universidade de Chicago como Meca do neoliberalismo. Por isso, o governo Piñera pode ter relevância para muito além das fronteiras deste país e de nosso continente. Exemplo recente do que pode acontecer foi a polêmica travada pela socióloga Naomi Klein contra o articulista do Wall Street Journal, Bret Stephens. Stephens havia dito, poucos dias após o terremoto, que "o espírito de Milton Friedman salvou o Chile" ("How Milton Friedman Saved Chile"). Por causa dele, as pessoas no Chile moravam em casas de tijolo, enquanto no Haiti se vivia ainda em casas de madeira, fáceis de serem derrubadas pelo lobo. Klein ("Milton Friedman did not save Chile": "Milton Friedman não salvou o Chile") respondeu a esta fábula lembrando que as principais diferenças entre o Chile e o Haiti eram, primeiro, em termos de desenvolvimento. O Chile já exibia um padrão socioeconômico muito superior não só ao do Haiti, mas ao dos demais países latinoamericanos, já nas décadas de 50 e 60. A segunda diferença, o rigoroso código de edificações chileno, exemplo básico da atividade de controle exercida pelo Estado, é obra do Governo Allende. O código é de 1972. A lógica impede que este fato seja atribuído a Pinochet, cujo governo é posterior (1973-1990). O irmão de Sebastián Piñera, José Piñera, que foi ministro do ditador, escreveu "Milton Friedman y sus Recomendaciones a Chile". Lá mesmo podemos ver que Friedman só começou a trabalhar para Pinochet a partir de 1975. A não ser que alguma coisa tenha mudado e ainda não tenhamos sido informados, algo que vem depois não pode ser causa de algo que vem antes.

Mais do que prosaico, o embate contra Bret Stephens demonstra o quanto o Clube Fundamentalista do Senhor Scrooge (CFSS) preparou-se, com artilharia pesada e desfaçatez, para criar uma mitologia a respeito do Chile. Uma mitologia que, mais uma vez, deforma sua história e não guarda o mínimo respeito a qualquer racionalidade que não seja a da maximização dos ganhos. Custe o que custar, ou, como dizia um ex-presidente daqui, "duela a quien duela".

Antonio Lassance, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), professor de Ciência Política e assessor da Presidência da República. É um dos autores do livro “Tecnologia social: uma estratégia para o desenvolvimento”.

quarta-feira, 10 de março de 2010

e ainda falam mal de Cuba...

O acirramento do confronto ideológico em torno de Cuba
Escrito por Gabriel Brito - Correio da Cidadania  
 
Nas últimas semanas, todos os antagonismos ideológicos exaltados a partir do modo de vida cubano voltaram a ocupar grande parte do debate público. Abordada com ênfase pela grande mídia, a morte de Orlando Zapata Tamayo por conta de sua greve de fome num presídio de Havana acirrou a guerra de informações a respeito do que se passa na Ilha. Ainda mais porque se consumou exatamente no dia em que uma comitiva brasileira, comandada pelo próprio presidente Lula, chegara ao país.
 
Como se sabe, Zapata Tamayo foi apresentado à opinião pública como dissidente perseguido politicamente, o que é veementemente negado pelas fontes locais, além de nebuloso, de acordo com o que informam órgãos internacionais. Assim, puderam voltar a execrar a ‘ditadura’ que vigora há mais de 50 anos e silenciaria todo desejo de mudança ansiado pela população.
 
Como exemplo da indignação com o perecimento do preso, o implacável editorial de 27 de fevereiro da Folha de S. Paulo, cujo início lamenta que, "pela quarta vez em seu mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva se dispôs a endossar, entre sessões de fotos, tapinhas nas costas e desconversas macunaímicas, o mais ditatorial regime do hemisfério americano".
 
Para os mais desavisados, parece que a onda de violência política em Cuba atinge os mais descontrolados e alarmantes índices, sendo o povo local completamente impedido de qualquer participação e decisão em seu cotidiano. Não é bem assim. Como destacou o jornalista Breno Altman, do Opera Mundi, a população tem participação regular e constante nos processos decisórios. "A Constituição de 1976, reformada em 1992, estabeleceu o ordenamento jurídico do modelo. Um dos principais ingredientes foi a criação do Poder Popular, com suas assembléias locais, municipais, provinciais e nacional", aclara.
 
E ao contrário do que se pode pensar, não é um processo tão dessemelhante ao da nossa chamada democracia participativa, pois os representantes dessas instâncias, que não aceitam indicações de possíveis nomes por parte do PC, são escolhidos pelo voto. Aliás, o próprio regime teve sua orientação base, o socialismo, referendado pela população, como conta Altman.
 
"A Constituição prevê mecanismos de consulta popular. Dispondo desse direito, o dissidente Oswaldo Payá, líder do Movimento Cristão de Libertação, reapresentou à Assembléia Nacional do Poder Popular, em 2002, uma petição com 10 mil assinaturas para que fosse organizado referendo que modificasse o sistema político e econômico na ilha. O governo reuniu 800 mil registros para propor outro plebiscito, que tornava o socialismo cláusula pétrea da Constituição. Por causa da quantidade de assinaturas, teve preferência. Cerca de 7,5 milhões de cubanos (65% do eleitorado), apesar de o voto em referendo ser facultativo, votaram pela proposta defendida por Fidel Castro".
 
Ou seja, o povo cubano pode ter dúzias de críticas ao funcionamento de sua nação, mas não há nenhuma intenção da maioria em retornar ao capitalismo, o que é, obviamente, o cerne do debate e alvo oculto de uma mídia que, lembremos, é comercial e busca o lucro em seus negócios.
 
Humanistas
 
No entanto, as paixões que o assunto desperta de lado a lado não deixam a contenda ideológica arrefecer tão facilmente. "Nada disso se confunde com a revoltante ‘ternura’, para lembrar o célebre dito de Che Guevara, que o governo Lula ‘não perde jamais’ quando se trata de emprestar apoio a um regime decrépito, ditatorial e homicida", completa em tom histérico a Folha, não sem antes lamentar a ‘placidez’ com que o ministro das relações exteriores, Marco Aurélio Garcia, tratou dos problemas de direitos humanos na ilha.
 
É de se reconhecer neste ponto um paradoxo monumental na mídia brasileira (destacando que outros como Globo e Estadão engrossaram as críticas no mesmo tom). Os mesmos veículos indignados com dita tirania do governo de Raul Castro promoveram enorme grita contra o Plano Nacional de Direitos Humanos, que visa criar instrumentos de aprofundamento de nossa democracia (como controle social na mídia), mas que foi tratado pelos mesmos como stalinista, totalitário e por aí afora.
 
De quebra, a Folha e seus articulistas aproveitam o ensejo para minimizar conhecidas atrocidades do que entendem por democracia nos EUA, quando esta também foi questionada por Garcia ("Há problemas de direitos humanos no mundo inteiro"), apontando para as mundialmente famosas violências e ilegalidades em Guantánamo.
 
"É o clássico expediente de voltar contra outro país as acusações que se referem, especificamente, à tirania que se quer apoiar. É inegável que Bush maculou as tradições democráticas de seu país a pretexto da ‘guerra contra o terror’. É também evidente que nunca faltou, nos EUA, liberdade para protestos contra o governo - coisa impensável sob o sistema castrista". Além de ser questionável o fato de haver espaço para contestações num país cujos sindicatos são nulos, não há margem alguma para comparações do que também parecem ataques aos direitos humanos por parte dos EUA.
 
A própria imprensa comercial vive noticiando mortes de civis em ofensivas do exército norte-americano em localidades como Paquistão, Afeganistão e Iraque, sendo, aliás, os dois últimos países ocupados militarmente. A unilateralidade da potência também se viu em Copenhagen, quando sua delegação simplesmente se recusou a quaisquer conversas prévias acerca de diminuição de emissões de gases estufa, quando o mundo clama por mudanças de paradigma em favor do meio-ambiente.
 
São muito fortes as evidências que levam a crer que Zapata Tamayo não era um ‘preso de consciência’, como se difunde incessantemente. De acordo com o pesquisador e ensaísta Enrique Ubieta Gomez (diretor da revista La Calle Del Medio), por exemplo, "era um preso comum, cujos problemas com a justiça começaram em 1988, ou seja, quinze anos antes da confecção da lista (de presos políticos da Anistia Internacional, de 2003). Em sua larga carreira delitiva foi processado por "violação de domicílio", ‘lesões menos graves’, ‘furto’, ‘lesões e porte de arma branca’, ‘perturbação da ordem’ e ‘desordens públicas’", informa. Muito contrastante com o que escreveu Janio de Freitas, tratando Tamayo como "um operário que aderiu à militância política contra o regime".
 
Tal informação, mesmo tendo aparência contundente, pode ser, de fato, contestável, ainda mais sabida a considerável impenetrabilidade da vida cotidiana na ilha. Mas ainda assim há elementos de sobra, como a ausência de seu nome nas listas internacionais, que ao menos podiam fazer tal versão de sua vasta folha corrida ser investigada a fundo.
 
Até porque qualquer analista sério sabe que existe, e sempre existiu, sabotagem política liderada pelos Estados Unidos, cujos planos de destruição da Revolução local sempre foram famosos, além de até hoje manterem o embargo e a declaração de guerra contra os cubanos.
 
Como escreveu no Observatório da Imprensa o advogado Fabio de Oliveira Ribeiro, é impossível não tratar a abordagem do episódio como ‘propaganda política’ por parte dos detratores e inimigos do regime cubano, o que é o caso da grande mídia nacional e internacional e seus governos volúveis na compreensão de atentados aos direitos humanos.
 
1 vale mais do que 2000?
 
E para comprovar o interesse político, e possíveis ardis, em torno do desfecho da vida de Tamayo, é necessário comparar a repercussão e indignação nos meios de comunicação com a revelação de que na Colômbia se encontrou uma fossa comum com 2000 corpos, enterrados por paramilitares e soldados do exército local nos últimos cinco anos.
 
Trata-se de um fato infinita e indiscutivelmente mais brutal. Nessa década, cerca de 14 mil pessoas foram assassinadas pelas forças oficiais e os ‘paras’. E quase todos por serem líderes comunitários, sindicais ou representantes populares. De quebra, relatório recente da Coalizão Colombiana Contra a Tortura apontou que o Estado é o responsável pela maior quantidade dos casos de torturas e outras violações aos direitos humanos que correm a solta por lá. E nunca se viu a nossa mídia denunciar o regime de Uribe - muito menos a potência do hemisfério norte - de ‘homicida’ ou algo que o valha.
 
"A Anistia Internacional não menciona em nenhum momento as supostas atividades políticas que o levaram a prisão. A razão é relativamente simples: Zapata nunca realizou atividades anti-governamentais antes de seu encarceramento. Pelo contrário, a organização reconhece que foi condenado em maio de 2004 a três anos de prisão por ‘desacato, alteração da ordem pública e resistência’. Essa sanção é relativamente leve se comparada com a dos 75 opositores condenados em março de 2003 a penas que vão até 28 anos de cadeia ‘por terem recebido fundos ou materiais do governo estadunidense para realizar atividades que as autoridades consideram subversivas e prejudiciais a Cuba’, como reconhece a AI, o que constitui um grave delito em Cuba – e também em qualquer país do mundo", escreveu Salim Lamrani, do Le Monde Diplomatique.
 
"Aqui, a AI não pode escapar de uma evidente contradição: por um lado qualifica essas pessoas de ‘prisioneiras de consciência’, e por outro admite que cometeram um grave delito de aceitar ‘fundos ou materiais do governo estadunidense’", completa.
 
Outros que não desfrutaram da mesma sensibilidade da opinião pública foram os hondurenhos. Recém assaltados em sua democracia pelo golpe de Estado comandado pelas oligarquias locais, mais de cem daqueles que poderiam também ser qualificados de ‘dissidentes’ foram executados. No entanto, não tiveram a mesma visibilidade. Além disso, o pleito que ‘legitimou’ Porfírio Lobo como novo presidente foi assistido por escassos 13% de eleitores, outra ignorada evidência de desaprovação ao golpe.
 
"Na França em 2010, até 24 de fevereiro, houve 22 suicídios nas cadeias; em 2009, foram 122 suicídios nas prisões francesas; em 2008, 115", conta Lamrani, conformando outro exemplo que não causa a mesma comoção.
 
Em tempos de crise, divergência ideológica acirrada
 
Enfim, como diz o ministro Marco Aurélio Garcia, há problemas de direitos humanos em todo o mundo. Cuba não escapa a tal lógica, por certo. Porém, como citado por diversos de seus defensores, "não mantém centros de tortura ou realiza prisões e execuções extrajudiciais", não está em guerra alguma e oferece condições de emancipação individual - através, por exemplo, de sua saúde e ensino reconhecidamente qualificados e universalizados - em níveis bem maiores do que praticamente todas as ditas democracias.
 
Debater os processos cubanos é importante, até porque a crise do capital faz o mundo indagar se o atual modelo de economia e desenvolvimento se sustenta; e nisso os cubanos oferecem um ótimo elemento de reflexão, que é o questionamento ao sistema que tem exaurido as riquezas do planeta e comprometido de forma cada vez mais temerária seu ambiente.
 
Cuba, com todos os seus defeitos e lentidões para promover mudanças e evoluir o regime, oferece uma outra visão de mundo e sugere outra partilha de riquezas. É isso que causa ojeriza nas potências que afundaram Copenhagen, lideradas pelo seu mais inacessível interlocutor (EUA), precisando sufocar e denegrir ao máximo a pequena ilha que não abre mão de sua opção anticapitalista.
 
Só assim para começar a compreender porque num mundo de 6 bilhões de habitantes e 4 bilhões de miseráveis as polêmicas e o cotidiano de apenas 13 milhões de pessoas centralizam tantas atenções e ‘indignações’.
 
Gabriel Brito é jornalista.

Os atos terroristas da Mossad

O alcance assassino da Mossad:
As maiores questões políticas

James Petras*
James 
Petras 
A invasão do Afeganistão e do Iraque tiveram como justificação (falsa, como a vida já demonstrou) o combate ao terrorismo. Há dias, o líder palestino Mahmoud al Mabhouh foi assassinado por um comando terrorista israelense numa evidência de terrorismo de Estado e de um Estado terrorista, useiro e vezeiro neste tipo de crimes. A imprensa israelense rejubilou com o crime, a imprensa do mundo alcunhado de livre não condenou, os EUA guardam silêncio, a servil União Europeia e o presidente da Comissão, Durão Barroso, assobiam para o lado…
No dia 19 de Janeiro, a polícia secreta internacional de Israel. Mossad, enviou um esquadrão da morte de dezoito membros a Dubai com passaportes europeus, supostamente «roubados» a cidadãos de Israel com dupla nacionalidade e alterados com retratos falsos e assinaturas falsas, a fim de assassinar o líder palestiniano Mahmoud al Mabhouh.
As provas são esmagadoras. A apresentação pela polícia de Dubai de vídeos pormenorizados de segurança dos assassinos foi corroborada pelo testemunho de peritos em segurança israelitas e aplaudida pelos principais órgãos de informação de Israel e por colunistas. A Mossad, declarou abertamente que Mabhouh era um alvo prioritário que tinha sobrevivido a três tentativas prévias de assassínio. Israel nem mesmo se incomodou a negar o crime. Para além disso, o sofisticado sistema de comunicação utilizado pelos assassinos, a logística e o planeamento à volta das suas entradas e saídas de Dubai e a dimensão e escala da operação, possuíam todas as características duma operação nacional de alto nível. Ademais, só a Mossad teria acesso aos passaportes europeus dos seus cidadãos de dupla nacionalidade. Só a Mossad teria a capacidade, motivação, intenção declarada e vontade expressa para provocar uma questão diplomática com os seus aliados europeus, sabendo muito bem que a irritação dos governos ocidentais europeus se apagaria devido às suas ligações profundas com Israel. Depois de uma investigação meticulosa e a interrogação de dois colaboradores palestinianos da Mossad capturados, o chefe da polícia do Dubai declarou que tinha a certeza que a Mossad estava por detrás do crime.
AS MAIORES QUESTÕES POLÍTICAS

A política de Israel de assassínios fora do seu território levanta questões profundas que ameaçam a essência de um estado moderno: soberania, regra legal e segurança nacional e pessoal.
Israel tem um política publicamente declarada de violar a soberania de qualquer ou de todos os países, para matar ou raptar os seus oponentes. Em ambas, proclamação e prática real, a lei de Israel decreta e as actuações no estrangeiro ultrapassam as leis e as agências de cumprimento das leis de qualquer outro país. Se a ordem política de Israel se converte em prática normal em todo o mundo, entraríamos numa selva hobbesiana*, onde os indivíduos ficariam sujeitos às intenções criminosas de esquadrões estrangeiros de assassinos, impunes a qualquer lei ou à prestação de contas a qualquer autoridade nacional. Todos os países poderiam impor as suas próprias leis e atravessar fronteiras nacionais para matar, com toda a impunidade, cidadãos ou residentes desses países. Os assassínios extra-territoriais de Israel fazem troça da noção de soberania nacional. A eliminação extra-territorial de oponentes pela polícia secreta era uma prática comum da Gestapo nazi, da GPU estalinista e da DINA de Pinochet e tornou-se agora prática sancionada das “Forças Especiais” dos EUA e da divisão clandestina da CIA. Tais políticas são a marca de estados totalitários, ditatoriais e imperialistas que, sistematicamente, pisam os direitos de soberania dos povos
A prática de Israel pelos crimes extra-julgamentos, extra-territoriais, exemplificada pelo recente assassínio de Mahmoud al Mabhouh num quarto de hotel de Mubai, viola todos os preceitos fundamentais da lei. Matanças extra-judiciais ordenadas por um estado, significam que a sua própria polícia secreta é juiz, júri, acusador e executor, irreprimível pela soberania, lei e do dever das nações de proteger os seus cidadãos e visitantes. Provas, procedimentos legais, defesa e interrogatórios são retirados do processo. Assassínios extra-judiciais protegidos pelo estado destroem completamente o processo devido. A liquidação de oponentes no estrangeiro é o próximo passo lógico depois dos espectáculos dos julgamentos nacionais, baseados na aplicação das suas leis racistas e decretos de detenção administrativos, que desalojaram o povo palestiniano e violaram as leis internacionais.
Os esquadrões da morte da Mossad operam directamente às ordens do Primeiro Ministro (que aprovou pessoalmente o assassínio recente). A grande maioria dos israelitas apoia orgulhosamente estes assassínios, especialmente quando os assassinos escapam detenção e captura. A operação livre dos esquadrões da morte estrangeiros apoiados pelo estado, praticando assassínios extra-judiciais com impunidade, é uma grave ameaça para qualquer crítico, escritor, líder político e activista cívico que se atreva criticar Israel.

OS ASSASSÍNIOS DA MOSSAD – FOGO SIONISTA
O precedente de Israel matar os seus adversários no estrangeiro, estabelece as fronteiras exteriores da repressão pelos seus apoiantes no estrangeiro nas organizações sionistas, a maioria das quais têm no presente como no passado apoiado a violação da soberania nacional por Israel através de mortes extra-judiciais. Se Israel elimina fisicamente os seus oponentes e críticos, as 51 mais importantes organizações americanas-judaicas reprimem os críticos de Israel nos EUA. Pressionam activamente patrões, presidentes de universidades e dirigentes públicos para despedir empregados, professores e funcionários públicos que se atrevem a falar ou a escrever contra a tortura em Israel, assassínios e a despovoação sistemática de palestinianos.
Até agora, os comentários mais críticos, em Israel e noutras partes do mundo, do assassínio recente da Mossad no Dubai assinala a “incompetência” dos agentes, que inclui terem permitido que os seus rostos fossem apanhados por numerosas câmaras de segurança quando, desastradamente, retiraram as suas perucas e fatos sob os olhares da câmaras. Outros críticos queixam-se de que fazer mal a Israel é “manchar a imagem de Israel” como estado democrático e fornecer munições aos anti-semitas. Nenhum destes criticismos superficiais têm sido repetidos pelo Congresso dos EUA, pela Casa Branca ou pelos Presidentes das principais organizações amercanas-judaicas, onde a regra mafiosa do Omerga, ou silêncio, reina, e a cumplicidade criminosa é a lei

CONCLUSÃO
Enquanto os críticos lastimam o desastrado trabalho da Mossad, tornando mais difícil às potências ocidentais conceder cobertura diplomática para as suas operações no estrangeiro, a questão fundamental não é tratada. A aquisição pela Mossad, e a alteração de passaportes oficiais britânicos, franceses, alemães e irlandeses de cidadãos israelitas com dupla nacionalidade, sublinha a natureza cínica e sinistra da exploração por Israel dos seus cidadãos com dupla nacionalidade na procura dos seus próprios objectivos sangrentos de política estrangeira. A utilização pela Mossad de passaportes genuínos emitidos por quatro nações europeias soberanas em nome dos seus cidadãos, para matar um palestiniano num quarto de hotel em Dubai, levanta a questão de quais cidadãos israelitas, com dupla nacionalidade, realmente obrigam à sua fidelidade, e até que ponto estão dispostos a ir em defesa ou na promoção dos assassínios de Israel no estrangeiro.
Graças à utilização de passaportes britânicos por Israel para entrar em Dubai e assassinar um adversário, qualquer homem de negócios britânico ou turista que viage pelo Médio Oriente será suspeito de ter ligações aos esquadrões da morte israelitas. Com eleições este ano, e os Partidos Trabalhista e Conservador a contarem fortemente nos sionistas milionários para a campanha de fundos, ficamos para ver se o Primeiro Ministro Gordon Brown fará mais do que lamuriar-se e rebaixar-se..

NOTA DO TRADUTOR:
 
“hobbesiana” de Thomas Hobbes (1588-1679) filósofo inglês, autor de Leviatã, onde defendia uma sociedade humana dirigida por um poder absoluto e centralizado)
* James Petras, Professor da Universidade de Nova Iorque, é amigo e colaborador de odiario.info.
Tradução de João Manuel Pinheiro

terça-feira, 9 de março de 2010

A imprensa burguesa na visão de Marx, Lenin e Gramsci...

NADA MAIS ATUAL - MARX, LENIN, GRAMSCI E A IMPRENSA BURGUESA

Altamiro Borges

Diante do poder alcançado pela mídia hegemônica e das ilusões ainda existentes sobre seu papel, revisitar as idéias de intelectuais marxistas sobre o tema é da maior importância e causam surpresa por sua enorme atualidade. Marx, Lênin e Gramsci, entre outros pensadores revolucionários, sempre destacaram o papel dos meios de comunicação. Exatamente por entenderem a importância da luta de idéias, do fator subjetivo na transformação da sociedade, fizeram questão de desmascarar o que chamavam, sem meias palavras, de “imprensa burguesa” e de realçar a necessidade da construção de veículos alternativos dos trabalhadores.

Estes dois elementos, a denúncia do caráter de classe da imprensa capitalista e a defesa dos instrumentos próprios dos explorados, são as marcas principais destes intelectuais marxistas. Marx, Lênin e Gramsci dedicaram enorme energia ao trabalho jornalístico, escrevendo centenas de artigos e ajudando a construir vários jornais democráticos e proletários. Foram jornalistas de mão-cheia, produzindo textos que entraram para a história. Sempre estiveram sintonizados com o seu tempo, pulsando a evolução da luta de classes; nunca se descuidaram da forma, da linguagem, para melhor difundir os seus conteúdos revolucionários.

Defesa da liberdade de expressão

Vítimas da violenta perseguição das classes dominantes, os revolucionários nunca toleraram a censura dos opressores e foram os maiores defensores da verdadeira liberdade de expressão. A própria ampliação da democracia foi decorrência das lutas dos trabalhadores, já que nunca interessou à reacionária burguesia. Mas os revolucionários nunca confundiram esta exigência democrática com a proclamada “liberdade de imprensa”, tão alardeada pela burguesia que controla os meios de produção e usa todos os recursos, legais e ilegais, ardilosos e cruéis, para castrar a própria democracia e o avanço das lutas emancipadoras.

Numa fase ainda embrionária do movimento operário-socialista, Karl Marx logo se envolveu na atividade jornalística. Após concluir seu doutorado em filosofia, em 1841, ele pretendia seguir a carreira acadêmica e ingressar na Universidade de Bonn, mas a brutal repressão do governo prussiano inviabilizou tal projeto e o jovem filósofo alemão manteve seu sustento através do jornalismo. Em 1842, ingressou na equipe do jornal Gazeta Renana e virou o seu redator-chefe. Sob sua direção, este periódico democrático triplicou o número de assinantes e ganhou prestígio, mas durou poucos meses e foi fechado pela ditadura prussiana.
Sem ilusões na imprensa burguesa
Na seqüência, entre 1848/49, passou a escrever no jornal Nova Gazeta Renana, que se transformou numa trincheira de resistência ao regime autoritário. Em menos de dois anos, Marx escreveu mais de 500 textos e tornou-se um articulista de sucesso. O combate ao código de censura do governo prussiano resultou na proibição do jornal. Marx ainda escreveu para o Die Press e o New York Tribune sobre política, economia e história. “Era um jornalismo que revelava a minuciosa leitura de Marx, seu alto grau de informação não apenas sobre os fatos e conflitos, como também sobre os atores individuais e a própria imprensa”, relata José Onofre, na apresentação do livro recém-lançado “Karl Marx e a liberdade de imprensa”.

Em sua defesa da liberdade de expressão, ele nunca vacilou na denúncia da ditadura burguesa. Para ele, o jornal deveria ser uma arma de combate à opressão e à exploração e não um veículo neutro. “A função da imprensa é ser o cão-de-guarda, o denunciador incansável dos opressores, o olho onipresente e a boca onipresente do espírito do povo que guarda com ciúme sua liberdade”. Em outro texto, afirma: “O dever da imprensa é tomar a palavra em favor dos oprimidos a sua volta. O primeiro dever da imprensa é minar todas as bases do sistema político existente”. Por estas idéias libertárias, ele foi processado e perseguido.

Poder do capital sobre a imprensa

Outro que nunca se iludiu foi Vladimir Lênin. Atuando num período da ascensão revolucionária, ele foi ainda mais duro no combate aos jornais burgueses. Num texto intitulado “a liberdade de imprensa do capitalismo”, ele desnuda esta falácia. “A ‘liberdade de imprensa’ é também uma das principais palavras de ordem da ‘democracia pura’. Os operários sabem e os socialistas de todos os países reconheceram-no milhares de vezes que esta liberdade é um engano enquanto as melhores impressoras e os estoques de papel forem açambarcados pelos capitalistas, e enquanto subsistir o poder do capital sobre a imprensa”.

“Com vista a conquistar a igualdade efetiva e a verdadeira democracia para os trabalhadores, é preciso começar por privar o capital da possibilidade de alugar escritores, de comprar editoriais e de subornar jornais, mas para isso é necessário destruir o jugo do capital... Os capitalistas chamam sempre ‘liberdade’ à liberdade para os ricos de manterem seus lucros e liberdade para os operários de morrerem à fome. Os capitalistas denominam de liberdade de imprensa a liberdade de suborno da imprensa pelos ricos, a liberdade de usar a riqueza para forjar e falsear a chamada opinião pública”. Nada mais atual!

Numa outra fase histórica, em que o setor da comunicação ainda não era um poderoso ramo da economia, Lênin chegou a se contrapor à participação dos comunistas na imprensa burguesa. “Poder-se-á admitir que colaborem nos jornais burgueses? Não. A semelhante colaboração se opõe tanto as razões teóricas como a linha política e a prática da social-democracia... Dir-nos-ão que não há regra sem exceção. O que é indiscutível. Não se pode condenar o camarada que, vivendo no exílio, escreve num jornal qualquer. É por vezes difícil criticar um social-democrata que, para ganhar a vida, colabora numa seção secundária de um jornal burguês”. Mas, para ele, tais casos deveriam ser encarados como exceção e com princípios.

“Boicote, boicote, boicote”
Para encerrar este bloco, que evidencia que os marxistas nunca nutriram ilusões sobre o caráter de classe da imprensa burguesa e nem se embasbacaram com o seu poder de sedução, vale reproduzir uma longa citação de Antonio Gramsci, o revolucionário italiano de padeceu onze anos nos cárceres. No texto “Os jornais e os operários”, escrito em 1916, ele faz uma conclamação aos trabalhadores que bem poderia servir para uma campanha contra a revista Veja e outros veículos da mídia brasileira na atualidade:

Para ele, a assinatura de jornal burguês “é uma escolha cheia de insídias e de perigos que deveria ser feita com consciência, com critério e depois de amadurecida reflexão. Antes de mais, o operário deve negar decididamente qualquer solidariedade com o jornal burguês. Deveria recordar-se sempre, sempre, sempre, que o jornal burguês (qualquer que seja sua cor) é um instrumento de luta movido por idéias e interesses que estão em contraste com os seus. Tudo o que se publica é constantemente influenciado por uma idéia: servir à classe dominante, o que se traduz sem dúvida num fato: combater a classe trabalhadora. E, de fato, da primeira à última linha, o jornal burguês sente e revela esta preocupação”.

“Todos os dias, pois, sucede a este mesmo operário a possibilidade de poder constatar pessoalmente que os jornais burgueses apresentam os fatos, mesmo os mais simples, de modo a favorecer a classe burguesa e a política burguesa em prejuízo da política e da classe operária. Rebenta uma greve! Para o jornal burguês os operários nunca têm razão. Há uma manifestação! Os manifestantes, apenas porque são operários, são sempre tumultuosos e malfeitores. E não falemos daqueles casos em que o jornal burguês ou cala, ou deturpa, ou falsifica para enganar, iludir e manter na ignorância o público trabalhador. Apesar disso, a aquiescência culposa do operário em relação ao jornal burguês é sem limites”.

“É preciso reagir contra ela e despertar o operário para a exata avaliação da realidade. É preciso dizer e repetir que a moeda atirada distraidamente é um projétil oferecido ao jornal burguês que o lançará depois, no momento oportuno, contra a massa operária. Se os operários se persuadirem desta elementar verdade, aprenderiam a boicotar a imprensa burguesa, em bloco e com a mesma disciplina com que a burguesia boicota os jornais operários, isto é, a imprensa socialista. Não contribuam com dinheiro para a imprensa burguesa que vos é adversária: eis qual deve ser o nosso grito de guerra neste momento, caracterizado pela campanha de assinatura de todos os jornais burgueses: Boicotem, boicotem, boicotem!”.

Construtores da Imprensa Revolucionária
Exatamente por não nutrirem ilusões na imprensa burguesa, Marx, Lênin e Gramsci sempre investiram na construção de instrumentos próprios das forças contrárias à lógica do capital. Segundo o biógrafo David Riazanov, “a Nova Gazeta Renana tratava de todas as questões importantes, de sorte que o jornal pode ser considerado um modelo de periódico revolucionário. Nenhum outro periódico russo nem europeu chegou à altura da Nova Gazeta... Seus artigos não perderam nada de sua atualidade, de seu ardor revolucionário, de sua agudeza na análise dos acontecimentos. Ao lê-los, sobretudo os de Marx, acreditamos assistir à história da revolução alemã e da revolução francesa, tão vivo é o estilo, como profundo é o sentido”.

Já Lênin, que viveu numa fase de efervescência revolucionária, dedicou boa parte das suas energias para construção de jornais socialistas – dos mais diferentes tipos, sempre sintonizados com a evolução da luta de classes. Iskra, Vperiod, Pravda, Proletari, Rabotchaia Pravda, Nievskaia Svesdá, entre outros jornais organizados e dirigidos por ele, servirão para agregar as forças de esquerda, fazer agitação nas fábricas, aprofundar os debates ideológicos e construir o partido. Na sua mais célebre definição, Lênin sintetizou:

“O jornal não é apenas um propagandista coletivo e um agitador coletivo. Ele é, também, um organizador coletivo. Neste último sentido, ele pode ser comparado com os andaimes que são levantados ao redor de um edifício em construção, que assinala os contornos, facilitam as relações entre os diferentes pedreiros, ajudam-lhes a distribuírem tarefas e a observar os resultados gerais alcançados pelo trabalho organizado”. A reacionária burguesia russa logo entendeu o perigo representado por estes jornais, tanto que os reprimiu ferozmente. No caso do Pravda, de um total de 270 edições, 110 foram objeto de ações judiciais e os seus redatores foram condenados a um total de 472 anos de prisão. Mas isto não abrandou o seu vigor!

Atualidade das noções marxistas
No caso de Gramsci, o longo período de cárcere dificultou a sua atividade jornalística e castrou seu desejo de organizar a imprensa operária. Antes da prisão, ele editou vários jornais de fábrica e empenhou-se na difusão do Ordine Nuovo. Na sua rica elaboração sobre o papel dos intelectuais e a luta pela hegemonia, ele chega a afirmar que, em momentos de crise, o jornal pode funcionar como partido político, ajudando a desnudar a ideologia dominante e a construir a ação contra-hegemônica do proletariado. Para ele, o momento da desconstrução do velho é, ao mesmo tempo, o da construção do novo.

As contribuições de Gramsci servem para desmistificar o papel da mídia hoje, mantendo impressionante atualidade. Para ele, a imprensa burguesa é um “aparelho privado de hegemonia”, capaz de disputar os rumos da sociedade por meio de uma verdadeira guerra de posições em todas as “trincheiras ideológicas”. Através da imprensa privada e mercantil, que objetiva o lucro e que faz da notícia uma mera mercadoria, a burguesia tenta se aparentar como representante da esfera pública. Além disso, em momentos de crise da ideologia dominante e de fratura dos partidos burgueses, a imprensa se apresenta como “o partido do capital”, que organiza e amalgama os interesses das várias frações de classe da burguesia.

Nota:

Exposição apresentada durante o 12º Curso Anual do Núcleo Piratininga de Comunicação (CNC), em 02 de dezembro, no Rio de Janeiro.

Por Altamiro Borges, jornalista, Secretário de Comunicação do Comitê Central do PCdoB, editor da revista Debate Sindical e autor do livro "As encruzilhadas do sindicalismo" (Editora Anita Garibaldi, 2ª edição)