quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Consultor aponta interesses econômicos em ação para barrar avanço do Enem

Embora aponte desvirtuamento da fórmula original, o sociólogo Rudá Ricci acredita que exame de caráter nacional precisa ser preservado por ser instrumento de política educacional
 

 O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) sofre uma ofensiva de interesses, segundo o sociólogo e consultor na área de educação Rudá Ricci. Ele enumera grupos e setores do que chama de "indústria do vestibular", de cursos preparatórios a docentes encarregados de formular as provas. Para ele, há uma disputa de política educacional em curso, e é necessário preservar uma avaliação de caráter nacional.
"Uma prova nacional permite que o país trace objetivos de política educacional", esclarece. Um vestibular nacional do ponto de vista da aplicação e do conteúdo promove um impacto no ensino médio, de modo a reverter problemas dessa faixa da educação.
Para ele, os vestibulares descentralizados, feitos por cada universidade, provocam danos à educação, já que o ensino médio e mesmo o fundamental direcionam-se às provas, e não à formação em sentido mais amplo. "O ensino médio é o maior problema da educação no Brasil, é o primeiro da lista, com mais evasão, em uma profunda falência", sustenta.
"O Enem faz questões interdiciplinares, é absolutamente técnico, é super sofisticado", elogia. Os méritos estariam em privilegiar o raciocínio à memorização de conteúdos. Isso permitiria que o ensino aplicado nas escolas fosse além do preparo para enfrentar provas de uma ou outra universidade.
O Enem traz uma "profunda revolução", na visão de Rudá, "ao combater profundamente a concepção pedagógica e política de vestibulares por universidade". Ao se aproximar dessa concepção nacional – fato que aconteceu apenas nos últimos anos –, interesses de grupos educacionais foram colocados em xeque, o que desperta ações contrárias.
Entre os setores interessados economicamente, segundo ele, estão as próprias universidades, que arrecadam em matrículas, os professores que produzem questões fechadas e abertas, e os cursos preparatórios para o vetibular.

Controle social

Ricci critica a postura do ex-ministro da Educação, Paulo Renato, e da ex-secretária de Educação de São Paulo, Maria Helena Guimarães de Castro. O sociólogo taxa os comentários feitos pelos especialistas ligados ao PSDB como "oportunismo". Isso porque, segundo ele, o uso da prova como seleção e seu caráter nacional, hoje criticados pelos tucanos, foram objetivos perseguidos durante a gestão de Renato na pasta, de 1995 a 2002.
O que ele considera como mudança de postura é resultado da disputa política, que faz com que os estudantes passem a rejeitar o exame. "Os jovens não querem mais essa bagunça. E têm razão", pontua.
"Existe uma movimentação para politizar esse tema; vamos ter o avanço de uma oposição organizada, que junta as forças políticas que perderam a eleição nacional com  escolas particulares, cursinhos que têm muito interesse na manutenção do sistema de vestibular", avalia.
O sociólogo defende o modelo de exame nacional, mas acredita que a fórmula possa ser aprimorada, seja com mais dias de provas, seja com provas aplicadas a cada ano do ensino médio. Ele aponta ainda que houve um desvirtuamento da proposta interdisciplinar e sofisticada, empregada originalmente, em função da necessidade de expandir a prova. Em 2010, foram 4,6 milhões de inscritos.
Ele acredita que a postura de críticas deve-se às diferenças partidárias. "Estão politizando o Enem, politizando o ingresso na universidade e o conteúdo da prova", lamenta. "Seria interessante ter um órgão que execute o exame sob controle social, não de governo, nem de empresas", sugere.
"A solução é nós discurtirmos nacionalmente esse gerenciamento em um modelo como o americano para o vestibular nacional", defende. O SAT, usado como método de seleção nos Estados Unidos, é aplicado por agentes privados de modo controlado pelo departamento de educação federal. Além de poder ser aplicado em dias diferentes, cartas de recomendação de professores e outros instrumentos também são considerados na seleção por parte de universidades.

"A União Europeia decepcionou-me"

Aminetu Haidar esteve em Portugal nos dias do massacre da polícia marroquina ao acampamento de protesto sarahaui em El Aiún. Aminetu denunciou o silêncio da comunidade internacional e em particular o da UE.

Néstor Kirchner: legados e desafios

Escrito por Atilio Boron   no Correio da Cidadania
 
É indiscutível que a morte súbita e prematura de Nestor Kirchner terá um enorme impacto sobre a vida política argentina. Resumidamente, pode-se dizer, em primeiro lugar, que com ele desaparece o político mais influente da Argentina, e que marcou a agenda da discussão pública e o ritmo da vida política nacional.
 
Em segundo lugar, que durante sua gestão como presidente mudou o rumo em que vinha transitando a Argentina – muito especialmente em matéria de direitos humanos e política internacional, mas também com uma renovação exemplar do Supremo Tribunal Federal, reparando os abusos que nesta área, como em muitas outras, havia cometido o menemismo.
 
Terceiro: desaparece com sua morte o único que reunia as condições requeridas para conter, como ninguém mais, a completa e turbulenta realidade do peronismo, cujas lutas internas no passado mergulharam o país numa grave crise institucional. Este é talvez o desafio mais sério com que a presidente terá que lidar.
 
Em quarto lugar, sua morte a priva de uma companhia insubstituível: durante décadas, Néstor Kirchner não só fez campanha ao lado dela, como também era seu conselheiro, aliado e confidente.
 
Sua morte deixa uma grande lacuna na Casa Rosada. Mas, contrariamente às muito mal intencionadas especulações expressadas nessas horas, a presidente é uma política plena e de fato, e também uma mulher de muita personalidade, que seguramente saberá superar a imensa dor e honrar a memória do ex-presidente, mantendo com firmeza em suas mãos o comando do Estado e evitando que o interior do PJ desencadeie uma batalha feroz pela sucessão.
 
Não há razão para pensar em um paralelismo entre a situação de hoje e a de Isabel Martinez de Perón antes da morte de seu esposo, em 1974. Esta não reunia as menores condições para governar a Argentina, não tinha trajetória política alguma e no país se falava em uma situação incomparavelmente distinta da atual, onde a presença de militares fascistas era o fato mais significativo daquela conjuntura. A de hoje é completamente diferente em todas e em cada uma daquelas dimensões.
 
De qualquer maneira, para responder aos desafios do momento, Cristina Fernandez terá que contar com muito apoio, reforçar sua articulação com as classes e camadas populares mediante a rápida implementação de políticas sociais e econômicas mais efetivas (e, em alguns casos, largamente demoradas) e, sobretudo, manter a rédea dos que reivindicam uma representação popular, que na realidade não a têm e que podem interferir negativamente no último e crucial ano do seu mandato e em suas perspectivas eleitorais.
 
A Argentina se abre a uma nova fase caracterizada pela ausência do ex-presidente: o assassinato do trabalhador Mariano Ferreyra já havia iniciado este processo; a morte de Nestor Kirchner o acelera e aprofunda ainda mais.
 
Atilio A. Boron é diretor do PLED, Programa Latinoamericano de Educación a Distancia em Ciências Sociais, Buenos Aires, Argentina.
 
Traduzido por Daniela Mouro, Correio da Cidadania.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

TEN YEARS AFTER: BBC SESSIONS - 1967/1968



Tamanho: 171 MB
01. I'm Going Home
02. Don’t Want You Woman
03. Love Until I Die
04. I May Be Wrong, But I Won’t Be Wrong Always
05. Love Until I Die
06. Spoonful
07. Portable People
08. Rock Your Mama
09. Ain’t Seen No Whiskey
10. Woman Trouble
11. Woodchoppers Ball
12. No Time For The Blues
13. Hear Me Calling
14. Woman Trouble
15. Crossroads
16. Spider In My Web
17. I May Be Wrong, But I Won’t Be Wrong Always
18. Good Morning Little Schoolgirl
19. I’m Going Home

LINK

Elites controlam o sistema judicial, mostra pesquisa da USP

Tese conclui que elites jurídicas provêm das mesmas famílias, universidades e classe social
 


São Paulo – Há, no sistema jurídico nacional, uma política entre grupos de juristas influentes para formar alianças e disputar espaço, cargos ou poder dentro da administração do sistema. Esta é a conclusão de um estudo do cientista político Frederico Normanha Ribeiro de Almeida sobre o judiciário brasileiro. O trabalho é considerado inovador porque constata um jogo político “difícil de entender em uma área em que as pessoas não são eleitas e, sim, sobem na carreira, a princípio, por mérito”.
Para sua tese de doutorado A nobreza togada: as elites jurídicas e a política da Justiça no Brasil, orientada pela professora Maria Tereza Aina Sadek, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, Almeida fez entrevistas, analisou currículos e biografias e fez uma análise documental da Reforma do Judiciário, avaliando as elites institucionais, profissionais e intelectuais.
Segundo ele, as elites institucionais são compostas por juristas que ocupam cargos chave das instituições da administração da Justiça estatal, como o Supremo Tribunal Federal (STF), Superior Tribunal de Justiça, tribunais estaduais, Ministério Público, Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Já as elites profissionais são caracterizadas por lideranças corporativas dos grupos de profissionais do Direito que atuam na administração da Justiça estatal, como a Associação dos Magistrados Brasileiros, OAB e a Confederação Nacional do Ministério Público.
O último grupo, das elites intelectuais, é formado por especialistas em temas relacionados à administração da Justiça estatal. Este grupo, apesar de não possuir uma posição formal de poder, tem influência nas discussões sobre o setor e em reformas políticas, como no caso dos especialistas em direito público e em direito processual.
No estudo, verificou-se que as três elites políticas identificadas têm em comum a origem social, as universidades e as trajetórias profissionais. Segundo Almeida, “todos os juristas que formam esses três grupos provêm da elite ou da classe média em ascensão e de faculdades de Direito tradicionais, como o Faculdade de Direito (FD) da USP, a Universidade Federal de Pernambuco e, em segundo plano, as Pontifícias Universidades Católicas (PUC’s) e as Universidades Federais e Estaduais da década de 60”.
Em relação às trajetórias profissionais dos juristas que pertencem a essa elite, Almeida aponta que a maioria já exerceu a advocacia, o que revela que a passagem por essa etapa "tende a ser mais relevante do que a magistratura”. Exemplo disso é a maior parte dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), indicados pelo Presidente da República, ser ou ter exercido advocacia em algum momento de sua carreira.
O cientista político também aponta que apesar de a carreira de um jurista ser definida com base no mérito, ou seja, via concursos, há um série de elementos que influenciam os resultados desta forma de avaliação. Segundo ele, critérios como porte e oratória favorecem indivíduos provenientes da classe média e da elite socioeconômica, enquanto a militância estudantil e a presença em nichos de poder são fatores diretamente ligados às relações construídas nas faculdades.
“No caso dos Tribunais Superiores, não há concursos. É exigido como requisito de seleção ‘notório saber jurídico’, o que, em outras palavras, significa ter cursado as mesmas faculdades tradicionais que as atuais elites políticas do Judiciário cursaram”, afirma o pesquisador.
Por fim, outro fator relevante constatado no levantamento é o que Almeida chama de “dinastias jurídicas”. Isto é, famílias presentes por várias gerações no cenário jurídico. “Notamos que o peso do sobrenome de famílias de juristas é outro fator que conta na escolha de um cargo-chave do STJ, por exemplo. Fatores como estes demonstram a existência de uma disputa política pelo controle da administração do sistema Judiciário brasileiro”, conclui Almeida.
Com informações da Agência USP

A vitória de Dilma Rousseff: uma crítica abaixo e por esquerda

Escrito por Bruno Lima Rocha no Correio da Cidadania  
 
No momento em que escrevo estas palavras, a economista Dilma Rousseff (PT) está matematicamente eleita como primeira mulher presidente do Brasil. A derrota da dobradinha "clássica" PSDB-DEM, José Serra e Índio da Costa, demonstra um novo arranjo político e de parcelas do poder no Brasil. Mas, a eleição da ex-ministra em chefe da Casa Civil não significa necessariamente um avanço por esquerda, longe disso. A coligação de dez legendas, tendo ao deputado federal pelo PMDB quercista de São Paulo Michel Temer como vice, representa por si só a ampla margem de negociação e desistência de perspectivas históricas do reformismo radical dos anos 80. E agora?
 
Para além do óbvio, analisando a vitoriosa composição de aliança política e de classes
 
O pensamento socializante brasileiro tem algumas constatações relevantes, para as quais aporto meu grão de areia nesta reflexão. Temos duas novidades neste pleito, duas dentre várias. Elegeu-se uma ex-guerrilheira e mulher (estando separada em sua vida conjugal) para chefiar o Poder Executivo da 5ª economia do mundo e o país líder latino-americano do G-20. Não é coisa de pouca monta. Ou não seria. Esta mesma operadora política, com grande capacidade de execução de agenda, viu-se obrigada (ou se obrigou dado o volume de compromissos) a abandonar temas de convicção consensual no que resta das esquerdas com perfil militante no Brasil. Em termos de reivindicação imediata, o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, peça esta que Lula não assinara, traçaria um senso comum daqueles que entendem – ainda que por dentro do aparelho de Estado - como prioridade a divisão de recursos e de poder. Pois bem, esta mesma peça consensual e imediata, foi refutada, negada, afastada, retirada de pauta, por parte da candidata. Na ponta do problema, o tema do aborto, entrando pela porta dos fundos através dos factóides políticos e dos poderes de veto do obscurantismo nacional.
 
Não ficou por aí. A aliança da legenda de Luiz Inácio teve a "sabedoria" eleitoral de costurar com aqueles que serviram, em sua própria iniciação da vida política, de objeto de ódio na figura do inimigo visível. Sei que é chato, mas é inevitável lembrar o apoio dos oligarcas como Sarney, Jucá, Calheiros, Geddel & Cia ou o reforço de opinião de operadores pró-ditadura como o ex-ministro Delfim Netto ou o ex-reitor da Universidade Mackenzie do CCC, Cláudio Lembo; de agentes econômicos como os líderes do mercado financeiro, materializado nos bancos (FEBRABAN), na indústria automobilística (ANFAVEA), das transnacionais e mega-conglomerados nacionais de telecomunicações (SINDITELEBRASIL) capitaneados no Brasil pela Telefônica de Espanha e na fusão absurda que dera na BROi e após na compra de uma parte da nova super-empresa por parte da Portugal Telecom (PT). Não parou por aí.
 
Na mídia, frente de batalha prioritária no embate político-eleitoral, abriu-se uma cunha entre os líderes do oligopólio nacional das comunicações. Se por um lado as famílias, Marinho (Globo), Mesquita (Estado de SP), Frias (Folha de SP) e Civitta (Abril-Naspers), de outro, grupos do porte da Rede Record, do portal Terra (Telefônica de Espanha), da estirpe da Carta Capital, no alinhamento recente do Grupo Três (Alzogaray, cujo veículo líder é a revista Istoé) e na posição rachada do empresariado dos radiodifusores entre a ABERT (liderada pela Globo), e a ABRA (liderada pela Rede Bandeirantes, da família Saad). Ressalto este aspecto, pois a luta política migrara para o espaço midiático (que de público pouco ou nada tem) e a coligação governista sabiamente (espertamente, pragmaticamente) optou pela solução Getúlio Vargas encontrando o seu – no caso, os seus – Samuel Weiner. Poderíamos seguir narrando as composições com agentes econômicos líderes dos respectivos oligopólios do capitalismo operando e existente no Brasil, mas basta com ressaltar o perfil agro-exportador do Brasil e a relação mais que promíscua entre o Ministério da Agricultura e o latifúndio.
 
Para além do sectarismo, porque estamos piores organizados?
 
O que me assusta é o lado de cá do balcão. Lula deixa o poder conseguindo uma proeza paradoxal. Seria leviano dizer que os brasileiros e brasileiras vivem em condições piores do que a oito anos atrás. Não seria correto. Ao mesmo tempo, seria tão ou mais leviano afirmar que as forças sociais, muitas delas ainda tributárias do mesmo processo de reivindicações e protagonismo de luta popular dos anos 80, a mesma matriz do PT e seu líder histórico, estão mais organizadas. Nossas entidades e movimentos populares estão piores organizados, mobilizam menos, milita-se menos, há um distanciamento muito maior entre dirigentes e bases, não têm uma entidade que seja transversal para os movimentos (como uma central ou confederação sindical mais à esquerda e livre das práticas do viciado aparelhismo e disputa sectária de correntes) e o próprio MST perde sua capacidade de liderança da luta popular uma vez que se esvai em posições tênues, abrandadas, e terminando por ir a reboque da União e do melhorismo. Para quem julga ser isto exagero deste analista, sugiro que leiam os embates na interna do jornal Brasil de Fato ou simplesmente converse com a militância detentora de algum nível de responsabilidade.
 
Eleitoralmente, e esta não é a opção militante deste que escreve, os índices foram pífios. PSOL, PSTU, PCO e PCB não são a mesma coisa, tem diferenças de origens políticas (ressaltando-se este último) e tampouco representam alguma forma de consenso da esquerda que ainda crê na via eleitoral. Seus resultados sequer passam de 1% das intenções de voto e o escrutínio não veio acompanhado de um avançar de lutas sociais a ser galvanizada através da participação nas regras da democracia de tipo liberal e representativo. É difícil crescer eleitoralmente em conjunturas de pouca ou nenhuma mobilização e onde a tensão social está ausente da política.
 
Já da parte das organizações políticas que não optam pela via eleitoral por dentro do sistema – sendo esta a opção deste analista - o que se vê é uma grande chance de crescimento qualitativo, desde que seja explícito um projeto político para o curtíssimo e curto prazos (2 e 4 anos, respectivamente). Será necessária uma maturidade de outro tipo, quando as minorias ativas têm de compreender que a sensação popular é que suas vidas melhoraram, e ao mesmo tempo, os projetos de poder de transformação profunda estão mais distantes do que estavam no final dos anos ‘80 e, como um todo, o movimento popular brasileiro está muito mais confuso do que estava na segunda metade dos anos ’90, em pleno auge do neoliberalismo e da Era FHC.
 
Trata-se de um paradoxo de difícil compreensão para quem tem pressa – e é difícil fazer política apressadamente. De um lado a massificação reivindicativa se complica, uma vez que a sociedade como um todo (incluindo os setores de classe tradicionalmente organizados) está mais desorganizada, fragmentada e dispersa. De outro, o romper com as práticas viciadas e o manifestar de uma cultura política distinta pode e vem atraindo significativamente militantes com trajetória ilibada e que não concordam com as vias do legalismo-reformista (como a ilusão de fazer política radical através do Judiciário e do Ministério Público) e menos ainda com o compartilhamento de postos de poder tanto com inimigos históricos (como a leva de Arenistas presentes nos oito anos de Lula) e menos ainda com o espaço enorme dado e garantido a setores pelegos oriundos do sistema corporativo (como a Força Sindical, a CGTB e a recalcitrante UGT). O racha sindical que leva a construir a CTB é declaradamente uma peleia por recursos derivados da legalização das centrais sindicais e reflete também uma aproximação – em função de clivagem eleitoral – de PC do B e PSB. Romper com estas práticas é algo muito factível. A luta sindical abre um oceano de perspectivas de crescimento com qualidade da militância recrutada e é possível fazer desta uma via que dê oxigênio para as agrupações mais à esquerda e programaticamente distantes das urnas.
 
Apontando conclusões
 
É duro admitir que a guerrilheira que caiu de pé e não cantou sob tortura, resistindo com dignidade aos suplícios da Operação Bandeirantes e da estrutura do DOI-CODI do II Exército em São Paulo, não representa sequer um projeto reformista. É mais duro ainda admitir que esta mesma pessoa, uma mulher, representa de por si uma quebra de paradigma. E, por fim, o mais duro de tudo é perceber a forma como se governou nos últimos oito anos e quanto esta prática política está distante da tensão social necessária para aumentar os níveis de organização popular para poder, de fato, acumular forças rumo a um câmbio profundo. Lula tem mais de 80% de aprovação e isto não implica (e nem poderia implicar) uma guinada à esquerda do povo brasileiro. Repito, é hora de refletir e buscar a consistência através de um crescimento qualitativo, rompendo com a cultura política viciada e dirigista.
 
Entender este momento e fazer política para ele é uma atitude construtiva. É diferente de afirmar que o melhorismo da coligação de centro-esquerda é idêntico à histeria de tipo udenista da coligação de centro-direita. Afirmar isso seria leviano e absurdo. Os projetos que chegaram ao segundo turno não são idênticos. Mas, mesmo que através de Dilma as políticas sociais permaneçam, é preciso ter a firmeza e a maturidade para assumir que há governos de turno que melhoram a vida das maiorias e não constroem projetos de poder para estas mesmas maiorias serem donas de seus destinos. Este é o caso brasileiro e continuará sendo nos próximos quatro anos.
 
Se o objetivo determina o método segundo as condicionalidades, os sessenta dias restantes do ano servem para gerar a reflexão necessária a respeito das condições de existência e expansão da proposta que visa organizar desde abaixo, acumulando forças – através da luta popular em sua forma direta - no sentido da radicalização da democracia através de sua forma direta e participativa, socializando recursos e poder entre as maiorias. Há muito trabalho pela frente.
 
Bruno Lima Rocha é doutor e mestre em Ciência Política pela UFRGS e jornalista graduado na UFRJ; é docente de comunicação social e pesquisador 1 da Unisinos, vinculado ao Grupo Cepos/PPG Com; concentra seus trabalhos analíticos no portal Estratégia & Análise, do qual é o editor.
 

Saiba mais sobre a Russia....

Esse blog, da Milu, tem uma enorme gama de informações culturais sobre a Russia e sua história. Estamos recomendando pois temos a certeza de que aqueles que o visitarem terão acesso a informações diversificadas e nem sempre encontradas na grande mídia.Tomei a liberdade e vou colocar aqui o perfil da Milu, que encontra-se disponível em seu blog. O link para o sitio está AQUI

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Claro que Aksínia não é meu verdadeiro nome, mas foi o escolhido por ser este o nome de uma das minhas personagens favoritas na literatura,construída por Mikháil Chólokhov em "O Don Silencioso", bem como o nome de um grande amor de Liev Tolstoi... Será este o tema de meu primeiro post no blog. Adotei este nick, em parte, para homenagear estes dois grandes autores e não para preservar minha identidade, uma vez que coloquei meu album de fotos neste blog, o que me tornará facilmente identificável a muitos que já conhecem minhas atividades de "blogueira".
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Comunicação deve ser área estratégica para governo Dilma



Em seminário em Brasília, organizado para discutir experiências internacionais de regulação da mídia, o ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação da Presidência, deixou clara a urgência de um novo marco regulatório para o setor no país, que deve ser construído num debate público e transparente com toda a sociedade, deixando “fantasmas no porão”. Para Unesco, a legislação da radiodifusão brasileira é atrasada e pouco sustentada no interesse público.

Num processo que envolveu mais de 30 mil pessoas em todo o país, a I Conferência Nacional de Comunicação teve como uma de suas principais resoluções, aprovada por representantes do governo, da sociedade civil e do empresariado, a necessidade da construção de um novo marco regulatório para o país. Ultrapassada – da década de 60 – e pouco democrática, a legislação que hoje rege o setor tem se mostrado um entrave não apenas para o desenvolvimento da própria mídia no país como também um obstáculo considerável para a consolidação da democracia brasileira. A um mês de completar o aniversário de um ano da I Confecom, o governo Lula dá um passo significativo para transformar essa realidade e sinaliza: o governo Dilma deve tratar as mudanças nessa área como prioritárias.

Foi este o tom do discurso, corajoso, do ministro Franklin Martins, da Secretaria de Comunicação da Presidência da República, nesta terça (09) durante a abertura do Seminário Internacional Comunicações Eletrônicas e Convergência de Mídias, em Brasília. Para uma platéia repleta de empresários, organizações da sociedade civil, acadêmicos e convidados estrangeiros, Franklin colocou o dedo numa ferida que, pelo menos publicamente, já tinha sido reconhecida pelo Executivo Federal desde a Confecom, mas que até este momento deixava dúvidas sobre quando e o quanto seria de fato enfrentada. Depois de viajar por diversos países para conhecer como outras democracias estão lidando com o processo de convergência tecnológica, foi hora de trazer especialistas internacionais para Brasília e dar o pontapé público neste debate, “olhando pra frente”, como ele deixou claro.

“Cada vez mais as fronteiras entre radiodifusão e telecomunicação vão se diluindo. Em pouco tempo, para o cidadão será indiferente se o sinal que recebe no celular ou no computador vem da radiodifusão ou das teles. A convergência de mídia é um processo que está em curso e ninguém vai detê-lo. Por isso é bom olhar pra frente, este é o futuro. E regular esta questão será um desafio, porque sem isso não há segurança jurídica nem como a sociedade produzir um ambiente onde o interesse público prevaleça sobre os demais”, afirmou.

O governo reconheceu que, aqui, o desafio se mostra maior do que em outros países, porque, além da legislação atrasada, “acumularam-se problemas imensos, que foram sendo encostado ao longo do tempo”. Para o ministro, a legislação brasileira é um cipoal de gambiarras, que não enfrenta as questões de fundo, e que inclusive não responde aos princípios estabelecidos pela própria Constituição Federal.

“Criou-se, na área de comunicação, uma terra de ninguém. Todos sabemos, por exemplo, que deputados e senadores não podem ter concessões de rádio e TV. Mas todos sabemos que eles tem, através de subterfúgios, e ninguém faz nada. A discussão foi sendo evitada. E a oportunidade é discutir tudo isso agora, legislando de uma forma mais permanente, integradora, cidadã e democrática”, disse Franklin Martins.

Fantasmas no sótão
A pretensão do governo é fazer as mudanças no marco regulatório através de um processo público, aberto e transparente, para que a sociedade brasileira como um todo – e não apenas um grupo ou outro – decida seu caminho. Até o final da gestão Lula, um ante-projeto de lei, que vem sendo elaborado por um grupo de trabalho interministerial, será apresentado à equipe da presidente eleita Dilma Rousseff, que então decidirá quando e como apresentá-lo ao Congresso Nacional. É neste debate público que o grupo de trabalho deve basear suas proposições.

Um dos maiores desafios nessa jornada, no entanto, parece ir além da própria convergência tecnológica e suas inúmeras inovações. Trata-se de, exatamente, criar as condições para que o debate público de fato aconteça, de forma plural e participativa. Foi este o desejo da I Conferência de Comunicação, que agora parece contar com a vontade política do governo Lula para ser colocado em marcha.

“O problema é grande. Os fantasmas passeiam por aí arrastando correntes, impedindo que a gente ouça o que tem que ouvir. Se formos capazes de nos livrar dos fantasmas e não os deixarmos controlar nossa discussão, avançaremos. Isso interessa à sociedade como um todo, não é uma discussão apenas econômica. A comunicação diz respeito à cidadania, à participação política e à produção cultural, e por isso a sociedade deve participar diretamente”, afirmou Franklin Martins. E deu o recado: “convido a todos então a deixar seus fantasmas no sótão, que é onde eles se sentem melhor. Vamos nos desarmar dos preconceitos. Essa agenda está na mesa e será realizada, num clima de entendimento ou de enfrentamento”.

Dentre os fantasmas que precisam ser deixados no porão está a tese – tão difundida pelos grandes meios de comunicação – de que regulação é sinônimo de censura à imprensa. Na abertura do seminário internacional, foi necessário afirmar mais uma vez, para quem já deveria estar convencido disso, que o Brasil goza de absoluta liberdade de imprensa.

“Essa história de que a liberdade de imprensa está ameaça é uma bobagem, um truque, isso não está em jogo. A liberdade de imprensa significa a liberdade de imprimir, divulgar, de publicar. A essa não deve, não pode e não haverá qualquer tipo de restrição. Isso não significa que não pode haver regulação do setor. Vocês verão relatos neste evento de diversas democracias, e verão que em todas elas há regulação, o que não significa nada que haja censura”, repetiu.

Sem explicitar, o governo Lula acabou admitindo que deixou a desejar no campo das comunicações. E para os participantes da sociedade civil que vieram a Brasília conhecer as experiências de outros países, talvez esta tenha sido a mensagem mais alentadora: esta área deve ser tratada com prioridade no governo Dilma.

“Estou convencido de que a área de comunicação terá, no próximo governo, o mesmo tratamento que teve a energia no governo Lula. Algo estratégico para o crescimento. Ou se produz um novo marco regulatório ou vamos perder o bonde. Em 2008, a radiodifusão faturou R$ 11,5 bilhões; e as empresas de telecomunicações, R$ 130 bilhões. Em 2009, os números foram R$ 13 bilhões e R$ 180 bilhões respectivamente. É evidente que, se não houver regulação, a radiodifusão será atropelada por uma jamanta. E se não houver o debate, quem vai regular é o mercado. E quando o mercado regula, quem ganha é o mais forte”, avisou Franklin.
“É necessário regular, criar políticas públicas e gerar um ambiente para que a sociedade se sinta não só usuária dos serviços de comunicação, mas cidadã. Se formos capazes de entender isso, teremos mais vozes falando, mais opiniões se expressando no debate público. É “mais” e não “menos” o que está em jogo neste processo”, concluiu.

Mais interesse público
Também em sintonia com o que apontou a I Confecom e com a linha política manifestada pela Secretaria de Comunicação, uma das primeiras participações internacionais no seminário expôs objetivamente os pontos nevrálgicos da legislação brasileira que precisam avançar para que o setor, de fato, permita a expressão dessa multiplicidade de vozes. O canadense Toby Mendel, diretor executivo do Centro de Direito e Democracia, organização internacional de direitos humanos com foco no conhecimento legal sobre direitos fundamentais para a democracia, incluindo o direito à informação, a liberdade de expressão e o direito de participação, apresentou o resultado de um estudo encomendado pela Unesco sobre o marco regulatório em 10 grandes democracias, incluindo o Brasil. E, a partir de padrões internacionais, fez recomendações para o processo que se inicia em território nacional.

Uma delas é a de ampliar a transparência e garantir o interesse público nos processos de renovação das concessões de rádio e TV. “Em muitos países, este momento é uma oportunidade para avaliar mudanças que precisam ser feitas pelo concessionário, para apontar eventuais regras que não tenham sido respeitadas. No Brasil, esta avaliação não acontece”, disse Toby Mendel.

A prática reforça outros problemas da legislação não enfrentados pelo Estado brasileiro: a regulação da propriedade privada dos meios – com medidas como a proibição da propriedade cruzada – e a garantia da liberdade de expressão.

“A liberdade de expressão vai além do direito do emissor dizer o que pensa. É também o direito do receptor, do telespectador, do leitor, receber uma variedade de informações e de pontos de vista. Se a propriedade dos meios não é regulada, isso pode até ser ok do ponto de vista do emissor, mas o direito do receptor de receber idéias plurais começa a ser reduzido. Ou seja, o Estado não pode simplesmente deixar o mercado agir”, afirmou o consultor da Unesco.

Na mesma linha, Mendel apontou a importância de regras para a difusão de conteúdo na radiodifusão, como a proteção de crianças, o combate a discursos que violem os direitos humanos e a promoção do jornalismo imparcial. É preciso ainda regulamentar o artigo da Constituição que garante percentuais para a difusão de conteúdos regionais e independentes nas emissoras de rádio e TV e garantir o direito de resposta.

“Tudo isso está na Constituição, mas não é cumprido. Também é preciso haver um sistema que receba queixas neste sentido, um órgão regulador independente que pode aplicar sanções diante do descumprimento dessas regras”, explicou Mendel, que defendeu ainda a importância do fortalecimento do sistema público de comunicação e da comunicação comunitária brasileira.

A lista é grande, e foi sendo recheada com outras sugestões vindas dos representantes dos demais países presentes ao seminário – o que apenas reforça e confirma o tamanho do desafio que o Brasil tem pela frente se quiser mesmo mexer neste vespeiro.


Fotos: Antonio Cruz/Abr

terça-feira, 9 de novembro de 2010

As falhas no Enem e os interesses que se movem nos bastidores


“Prova do Enem é tecnicamente sustentável sob todos os pontos de vista”

do blog do Planalto

O governo não pretende anular o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2010, realizado no último sábado (6/11), e nem refazer as provas para todos os inscritos, afirmou o ministro da Educação, Fernando Haddad, em entrevista coletiva à imprensa concedida nesta segunda-feira (8/11), em Brasília (DF). Segundo Haddad, os alunos prejudicados por falhas na impressão em alguns lotes poderão, após a devida apuração por parte do Ministério da Educação (MEC), refazer a prova, sem que haja a necessidade do cancelamento da mesma, uma vez que o princípio da isonomia não foi comprometido.
O Ministro disse ainda que o MEC irá tentar reverter a decisão da 7ª Vara Federal do Ceará de suspender, em caráter liminar, o Enem. O Ministério irá explicar que o uso da Teoria de Resposta ao Item permite a comparabilidade de provas distintas, possibilitando a realização de um novo exame com “questões de mesmo peso”. De acordo com o Ministro, caso a Justiça Federal do Ceará mantenha a decisão, o MEC irá recorrer em instâncias superiores, pois há, por parte do governo, a segurança de que a prova é tecnicamente sustentável.
A prova será reaplicada para quem foi prejudicado. A grande vantagem que nós temos é que, como o Enem, desde o ano passado, responde pela Teoria de Resposta ao Item, essas provas são rigorosamente comparáveis e não é necessário anular o exame como um todo… Em um exame com quase 5 milhões de inscritos, se você não adota esse sistema, compromete-se a isonomia da prova.
Questionado sobre eventuais impactos dos erros de impressão na credibilidade do Enem, Haddad afirmou que a julgar pelo relato de reitores e o aumento em 10% no número de inscritos com relação a 2009, não há razões para acreditar na perda de credibilidade do Enem, que é “irreversível, um caminho sem volta”. O Ministro informou ainda que não há uma data precisa para a reaplicação do teste para os estudantes que foram comprovadamente prejudicados.
Para definir a data temos que observar o calendário universitário e, segundo, verificar quantos estudantes efetivamente terão que refazer. No ano passado, marcamos para cerca de um mês depois. Essa é a previsão.
Sobre os custos para a realização de uma nova prova, Haddad explicou que todas as despesas ficarão a cargo da gráfica que realizou a impressão e que há, ainda, previsão contratual para a cobrança de multa.
PS do Viomundo: As falhas no Enem são lamentáveis. É prato cheio para a oposição, já que estamos falando de milhões de futuros eleitores. Dito isso, é preciso ter em conta os interesses que se movem nos bastidores. São os interesses dos que defendem a perpetuação dos cursinhos e que, em São Paulo, fizeram da Secretaria da Educação um canal de financiamento da grande mídia, como está exposto aqui.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

O Colonialismo Português na Guiné: Os crimes de uma Guerra perdida

Carlos Lopes Pereira


«Desde o tempo das chamadas descobertas ou achamentos até ao tempo do comércio de escravos e crimes da escravatura; desde as guerras de conquista colonial até à época de ouro do colonialismo; das primeiras “reformas” ultramarinas até às guerras coloniais de genocídio dos nossos dias, os colonialistas portugueses deram sempre provas de uma mentalidade supersticiosa e dum racismo primitivo em relação ao homem africano, que consideravam e consideram como naturalmente inferior, incapaz de organizar a sua vida e defender os seus interesses, fácil de enganar, sem cultura e sem civilização».

Amílcar Cabral, 1971

Ao longo da guerra de libertação nacional, o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) e o seu líder, Amílcar Cabral, denunciaram repetidas vezes – em declarações públicas, em mensagens, em relatórios, em comunicados de imprensa, em documentos apresentados à Organização das Nações Unidas e à Organização da Unidade Africana – aquilo que consideravam ser crimes cometidos pelos colonialistas portugueses na Guiné. E não se limitaram a denunciar, apresentaram provas: recolheram declarações de vítimas de torturas e ferimentos, mostraram fragmentos de bombas «napalm», promoveram testemunhos de jornalistas, cineastas, escritores, delegações de organizações e países e outros observadores insuspeitos.
Com base na leitura de documentos publicados pelo PAIGC, sobretudo intervenções de Amílcar Cabral, para o caso da Guiné, são inúmeros os exemplos desses crimes atribuídos ao colonialismo português.

«O “apartheid” à portuguesa» 

Em Junho de 1960, numa brochura publicada em Londres, intitulada «The facts about Portugal’s african colonies», com prefácio do jornalista e historiador Basil Davidson, Abel Djassi, pseudónimo de Amílcar Cabral, explicava à opinião pública europeia a situação dos 11 milhões de africanos submetidos à dominação colonial portuguesa. Afirmava que apesar das riquezas naturais existentes em Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, «os africanos têm um nível de vida inferior ao mínimo vital» e «a sua situação é de servos no seu próprio país». Lembrava que depois do tráfico de escravos, a conquista pelas armas e as guerras coloniais «de pacificação», veio a destruição completa das estruturas económicas e sociais da sociedade africana. Seguiu-se a fase de ocupação europeia e o povoamento crescente, a partir de finais do século XIX e, no caso da Guiné, até 1936, quando terminaram as guerras de «pacificação»: as terras e os haveres dos africanos foram pilhados, os portugueses impuseram a «taxa de soberania» e tornaram obrigatória a cultura de certos géneros (na Guiné, através da Companhia União Fabril (CUF), foi imposta a cultura da mancarra); instituíram o trabalho forçado e organizaram a deportação de trabalhadores, os «contratados».

Denunciando a ideologia racista do estatuto indígena 

imposto no início da década de 30 do século XX por Salazar e só formalmente abolido em 1961, por Adriano Moreira, então ministro do Ultramar do regime fascista – Cabral ridicularizava «a ideia de criar uma “sociedade multirracial” nas colónias, baseada legalmente no estatuto indígena», «na realidade o “apartheid” à portuguesa». E comentava: «99,7% da população africana de Angola, Guiné e Moçambique é considerada “não civilizada” pelas leis coloniais portuguesas e 0,3% é considerada assimilada. Para que uma pessoa “não civilizada” obtenha o estatuto de “assimilada”, tem de fazer prova de estabilidade económica e gozar de um nível de vida mais elevado do que a maior parte da população de Portugal. Tem de viver à “europeia”, pagar impostos, cumprir o serviço militar e saber ler e escrever correctamente o português. Se os portugueses tivessem de preencher estas condições, mais de 50% da população não teria direito ao estatuto de “civilizado” ou de “assimilado”»1…

Onda de repressão e terror 

Nesse ano de 1960, já em Conakry, na República da Guiné – onde instalou o secretariado-geral do PAIGC e obteve apoios do Partido Democrático da Guiné (PDG) e do presidente Sékou Touré –, Amílcar Cabral enviou, em panfletos, mensagens aos funcionários públicos e empregados comerciais guineenses e cabo-verdianos, aos militares guineenses e cabo-verdianos (oficiais sargentos e soldados obrigados a servir no exército colonial português), aos jovens da Guiné e Cabo Verde e até aos colonos portugueses nos dois territórios, convidando-os a juntarem-se à luta de libertação nacional, denunciando os colonialistas que «perseguem, prendem, torturam, massacram, reforçam cada vez mais as suas forças armadas e preparam-se cinicamente para continuar a afogar em sangue todas as tentativas de libertação por parte dos nossos povos»2.
A 1 de Dezembro de 1960, o PAIGC dirigiu um memorando ao governo português propondo o «reconhecimento solene e imediato dos direitos dos povos guineense e cabo-verdiano à autodeterminação» (uma solução política, como alternativa à guerra, foi sempre defendida pelo partido até à vitória). Nesse documento, Amílcar Cabral lembrava que «depois do massacre do cais de Pidjiguiti (Bissau, 3 de Agosto de 1959), no qual militares e civis portugueses mataram a tiro dezenas de trabalhadores guineenses em greve, uma onda de repressão e terror, planeada e comandada pela PIDE, veio tornar mais dura a vida e a luta do povo da Guiné». E denunciava que, «a par disso, a administração colonial conseguiu, com o aumento da exportação do arroz [a base da alimentação dos guineenses], criar mais uma arma de opressão – a fome –, que castiga actualmente uma grande parte do povo guineense»3.
A 3 de Agosto de 1961, o PAIGC proclama a passagem da «revolução nacional» na Guiné «da fase da luta política à da insurreição nacional, à acção directa contra as forças colonialistas», embora reiterando ainda, três meses depois, numa nota aberta ao governo de Lisboa, a proposta de aceitação por Portugal do princípio de autodeterminação dos povos da Guiné e Cabo Verde – nota a que Salazar nem se dignou responder.
«Napalm» sobre as tabancas – Num relatório de finais de 1963, de balanço da luta armada, entretanto desencadeada na Guiné em Janeiro desse ano, o PAIGC retoma a denúncia dos crimes dos colonialistas: «Alarmadas perante a intensificação da nossa acção, as forças portuguesas desencadearam em todo o país, mas sobretudo no Sul, a mais violenta repressão militar e policial contra as nossas populações, principalmente contra todos os suspeitos de pertencerem ao nosso Partido. Aprisionaram, torturaram e assassinaram patriotas, massacraram populações sem defesa e incendiaram as tabancas [aldeias]». E mais: «Desesperados perante as vitórias alcançadas pelo nosso povo tanto no interior do país como no plano exterior, os colonialistas portugueses enviaram para a Guiné grandes reforços de material de guerra e de soldados, cujos efectivos são actualmente da ordem dos 18 a 20.000 homens (cerca de 1.000 em 1959, 5.000 em 1961, 10.000 em 1962). Recorreram então intensivamente aos únicos meios ao seu alcance para tentar deter a nossa luta: os bombardeamentos massivos das nossas tabancas e das nossas populações, sobretudo com as bombas “napalm”, e as tentativas de ataques às nossas posições, a partir de unidades navais colocadas nos braços de mar e nos rios das regiões litorais. Mais de uma centena de tabancas foram destruídas (total ou parcialmente) pelos bombardeamentos aéreos que fizeram vítimas inocentes, de que a maioria é constituída por velhos, mulheres e crianças»4.
Mas nem só destas acções se fazia a guerra: «Por outro lado, os colonialistas portugueses, enquanto gastam somas fabulosas para subornar alguns chefes tradicionais e para conservar a colaboração de um número cada vez mais reduzido de mercenários e traidores, procedeu à difusão aérea de panfletos nos quais as ameaças de destruição total das nossas populações e dos nossos bens materiais pelo bombardeamento e pelo fogo se sucedem às frases de adulação (…)»5.

Em 1964 

ano do I Congresso do PAIGC em Cassacá, nas regiões libertadas do Sul, ano da Batalha do Como (até então «a mais dura derrota da história colonial portuguesa e as [suas] mais pesadas baixas em vidas humanas»), ano da criação das Forças Armadas Revolucionárias do Povo –, um relatório sobre o desenvolvimento da luta armada dá conta da «liquidação das manobras do inimigo tendentes a dividir e desmobilizar o nosso povo pela criação de movimentos fantoches»6, uma prática que os colonialistas vão repetir posteriormente.

Afinal, quem eram os terroristas? 

Em 7 de Dezembro de 1966, um relatório da luta do PAIGC apresenta mais novidades. Os colonialistas nomearam um novo governador, o general Schultz, ido de Angola, «o sexto chefe do estado-maior português [na Guiné] depois do desencadear da luta armada»7, e as tropas portuguesas totalizavam já 25.000 homens (tropas de terra, mar e ar, polícia e corpos armados especiais), um aumento de 25 vezes em relação ao número de soldados estacionados no início da década, num território com 36.000 quilómetros quadrados e 800.000 habitantes.
Amílcar Cabral denuncia manobras políticas dos colonialistas «visando desmobilizar os patriotas e enganar a opinião africana e mundial promulgando falsas “reformas” administrativas»8, acusa os colonialistas de criarem «pretensos movimentos autonomistas» e constata a intensificação da «repressão policial que presentemente atinge não só os patriotas mas também pessoas que eram consideradas favoráveis ao regime colonial»8.
Em 1967 – o exército colonial atingia já os «35.000 militares das diversas armas» –, os colonialistas «intensificaram os bombardeamentos e o tiroteio criminosos contra as populações e tabancas das regiões libertadas utilizando bombas de fragmentação, de napalm e fósforo branco» e, por outro lado, «fizeram tentativas desesperadas a fim de aterrorizar as populações e reocupar certas posições estratégicas importantes das regiões libertadas mediante operações combinadas de grande envergadura e “golpes de mão” por tropas hélio-transportadas»9, segundo um relatório do PAIGC de Março de 1968. O mesmo documento sublinha que nos bombardeamentos aéreos, diários e repetidos, visando sobretudo as populações e tabancas das regiões libertadas, «o inimigo utilizou maciçamente bombas de fragmentação, de napalm e, pela primeira vez, bombas de fósforo branco»10, fornecidas por alguns dos seus aliados da OTAN.
A par destes «bombardeamentos selvagens» e de outras operações (como “golpes de mão” contra as regiões libertadas, com tropas hélio-transportadas, algumas vezes apoiadas por desembarques de fuzileiros navais, «com o fim de aterrorizar as populações, queimar as nossas culturas agrícolas e destruir as nossas bases»11), o relatório refere as acções de propaganda das forças coloniais: «uma intensa propaganda falsa, sobretudo na rádio [de Bissau], tendente a desacreditar a direcção e os objectivos do nosso Partido, a criar a confusão entre as populações, a dividir as forças nacionalistas, a desmobilizar os combatentes, a minar a unidade da nossa organização e a provar a imaturidade da África para a independência»12.

A política do sorriso e do sangue 

A partir da mudança de governador da Guiné, em Maio de 1968 – o general Arnaldo Schultz é substituído pelo general António de Spínola, «militar formado na repressão em Portugal e em Angola»13 –, a estratégia colonialista sofre alterações de forma. Um relatório do PAIGC, de Janeiro de 1970, caracteriza esta «política de duas faces, de sorriso e sangue», a política spinolista da «Guiné melhor à sombra da bandeira portuguesa»: por um lado, «por actos de falsas gentilezas e atenções para com as populações das zonas e centros urbanos ainda ocupados, de concessões nos planos social e religioso com a construção activa de escolas, de postos sanitários e de mesquitas, assim como na organização de viagens a Portugal, atribuição de bolsas de estudo, etc.». Por outro lado, «o inimigo envia todas as semanas novos contingentes de tropas para o nosso país, intensifica os bombardeamentos criminosos e os assaltos terroristas contra as populações das regiões libertadas, queima as colheitas, mata o gado e, sempre que pode, massacra civis, nomeadamente velhos, mulheres e crianças»14. O relatório dá um exemplo concreto destes «assaltos terroristas»: «Quando o inimigo, com a sua falsa política tenta desmobilizar o nosso povo por meio de falsas promessas da sua “campanha psicossocial”, bem como por meio do espantalho neocolonialista de uma “Guiné melhor”, os seus agentes armados tentam, através dos poucos meios aos quais podem ainda recorrer (principalmente através dos bombardeamentos aéreos), prejudicar o mais possível as nossas populações e os nossos combatentes. Chegaram a queimar uma parte das nossas colheitas em Como, Corubal, Quínara e Tombali, com o fim de reduzir as populações à fome e, deste modo, impedir a nossa luta. Aquando de algumas incursões e acções combinadas, chegaram ao ponto de não apenas raptar ou matar vários elementos da população, mas também de roubar arroz, gado e fruta para alimentação das suas tropas, cercadas nos acampamentos»15.
O oitavo ano da luta armada de libertação nacional, 1970, foi «muito rico em acontecimentos de uma grande importância» para o PAIGC, assinala o relatório do partido de Janeiro de 1971. «O sinistro general Spínola (antigo comandante da Guarda Nacional Republicana, o principal instrumento da repressão armada fascista em Portugal; antigo comandante de cavalaria motorizada em Angola), que substituiu o general Arnaldo Schultz, transferido após quatro anos de vãs tentativas criminosas para parar a marcha da nossa luta, chegara à nossa terra com a pretensão de pôr fim à nossa luta durante o ano de 1969», regista o documento. E sublinha: «Tendo sido forçado a constatar o tremendo fracasso dos seus planos de guerra a todo o custo e seguindo possivelmente directrizes do novo chefe do Governo português, Marcello Caetano, o novo governador militar inaugurou a política do sorriso e do sangue, de concessões e crimes abomináveis, de manobras de toda a espécie visando alimentar a guerra pela guerra e desmobilizar a população e os combatentes, para destruir as bases principais do nosso movimento». Mas esta política não deu os resultados esperados por Spínola – apesar dos «actos criminosos dos colonialistas, que reforçaram os bombardeamentos com “napalm” e os assaltos terroristas contra as populações», referindo o PAIGC que, por outro lado, «a liquidação de três comandantes do estado-maior e a morte por crise cardíaca do comandante militar (…) privaram o governador dos seus principais colaboradores, os quais eram os cabecilhas da guerra psico-social»16.

«Nós não estamos à venda» 

A liquidação pelo PAIGC de três majores do exército colonial é amplamente explicada no relatório datado de Janeiro de 1971 e redigido por Amílcar Cabral, num ponto sobre «as manobras políticas dos colonialistas portugueses: a guerra psico-social». Escreve o líder guineense-caboverdeano: «Depois de terem sido forçados a reconhecer, pela voz dos seus chefes principais, que não podem fazer parar a nossa luta nem ganhar a sua suja guerra colonial contra o nosso povo e a África, os criminosos colonialistas portugueses adoptaram novas tácticas para tentar destruir o nosso Partido. Começaram a empregar os métodos mais desprezíveis, os mais vis, no âmbito de uma política que deixa ver claramente, cada dia mais, que os colonialistas portugueses são verdadeiros “gangsters” ou bandidos sem o menor escrúpulo, capazes de cometer os crimes mais bárbaros e de utilizar as mentiras mais desavergonhadas. Tendo fracassado na tentativa de criar a confusão na nossa luta, vendendo, pelo preço da traição, a liberdade condicionada a um certo número de compatriotas presos, os colonialistas portugueses recorreram a outros meios. Inventaram mentiras a respeito de divisões no seio do Partido; escreveram cartas a alguns dirigentes, prometendo-lhes dinheiro em quantidade, boa vida e honras; tentaram explorar o oportunismo, a ambição e os baixos sentimentos, convencidos de que os militantes e dirigentes do nosso Partido são como os que os servem. Mas enganaram-se. As suas tentativas não tiveram por resposta mais do que o desprezo e a repulsa por parte dos nossos camaradas. (…) Então, na frente de Canchungo (centro-Oeste do país), os colonialistas portugueses puseram em acção alguns dos seus principais quadros militares especialistas da guerra psicológica, para tentarem comprar alguns responsáveis dessa frente. Depois de terem estabelecido alguns contactos, escrito cartas ridículas, dado presentes e feito promessas de toda a espécie, os colonialistas sofreram uma derrota vergonhosa: os nossos combatentes liquidaram os comandantes e outros oficiais e soldados que pensavam poder comprar-nos. Este facto prova uma vez mais que sabemos bem o que queremos e somos patriotas. Nós não estamos à venda»17.
O relatório denuncia também outra táctica a que os colonialistas recorreram para tentarem parar a luta de libertação: «dividir o nosso povo e levar os africanos a lutarem contra os africanos», uma táctica «velha e muito usada não só pelos colonialistas mas também pelas guerras coloniais imperialistas»18. São apontados dois exemplos: os «congressos de etnias» para «atiçar de novo os sentimentos tribais que já extinguimos» e a campanha racista contra os cabo-verdianos, desenvolvida através Rádio de Bissau.
Nesse balanço de 1970 sobre a luta na Guiné, é destacada ainda a audiência que o Papa Paulo VI concedeu em Roma a Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos, dirigentes do PAIGC, do MPLA e da Frelimo, e é referida a morte de quatro deputados portugueses «que tinham vindo “visitar” o que resta ainda da colónia que era o nosso país» e cujo helicóptero foi abatido pelos combatentes da liberdade.

Assassinar Amílcar Cabral e Sékou Touré 

O relatório do PAIGC de Janeiro de 1971 dá grande relevo à «agressão imperialo-portuguesa» contra a República da Guiné, que Amílcar Cabral classifica como «uma vitória para o nosso povo e o nosso Partido e uma das mais vergonhosas se não a mais vergonhosa derrota do colonialismo português ao longo da sua história». Isto, reconhecendo que «apesar de estarmos habituados aos actos de desespero e banditismo, aos crimes mais abomináveis da parte dos colonialistas portugueses, não deixou de ser para nós uma certa surpresa a agressão caracterizada que eles planearam, organizaram e executaram contra a capital da República da Guiné» [Conakry]. E mais: «É certo que os colonialistas portugueses já tinham feito muitas provocações e agressões contra os povos irmãos das repúblicas da Guiné e do Senegal. Cometeram inúmeros crimes contra as populações pacíficas das fronteiras desses países, bombardearam e incendiaram aldeias, roubaram e pilharam, a coberto da mentira de que temos bases nos territórios vizinhos (…). Mas não resta dúvida de ultrapassaram tudo isso ao perpetrarem a agressão de 22 de Novembro [de 1970] contra Conakry, para a qual tiveram de utilizar os seus próprios barcos e aviões, os seus oficiais e soldados, embora pintados de preto e diluídos em algumas dezenas de mercenários africanos do exército colonial e de renegados e criminosos originários da República da Guiné. Mostraram, sim, mais claramente do que nunca, até onde vai o desprezo pelas leis e pela moral internacionais do nosso tempo. Revelaram de maneira categórica, à África e ao mundo, a natureza tresloucada e criminosa do colonialismo português»19.
Amílcar Cabral revelou todos os pormenores da agressão militar (cuja responsabilidade o governo fascista português negou veementemente…):
– A operação «Mar Verde» foi previamente autorizada por Marcello Caetano e «seguramente, teve o consentimento dos aliados do Portugal colonialista»;
– O general Spínola e o seu estado-maior, em especial o comodoro Luciano Bastos, comandante da Marinha, elaboraram em pormenor os planos da operação;
– «Estes planos foram submetidos pelo próprio governador militar à aprovação do chefe do governo colonial português, a quem foi dada garantia do sucesso da empresa;
– Marcello Caetano recebeu, duas semanas antes da operação, o comodoro Luciano Bastos e o capitão Alpoim Galvão, «que foi designado para comandar a agressão contra Conakry»;
– Foram empregados na acção cerca de 350 homens, entre fuzileiros especiais, tropas de elite, «comandos africanos» e algumas dezenas de originários da República da Guiné;
– As forças de agressão partiram da ilha de Soga, nos Bijagós, «onde tinham sido treinados, durante vários meses, os renegados da República da Guiné» e onde antes da partida receberam a visita de Spínola. Foram transportadas em seis unidades navais da Marinha portuguesa. Estavam prontos para intervir, se a operação tivesse tido êxito, caças-bombardeiros do tipo Fiat G-91, aviões de transporte de pára-quedistas e helicópteros Alouett III.
Os objectivos principais do desembarque em Conakry eram os seguintes: assassinar o presidente Sékou Touré e outros dirigentes do PDG e derrubar o regime guineense, colocando no poder «os renegados da República da Guiné, alguns dos quais estavam aguardando nos barcos, ao largo da capital, e outros nas prisões políticas»; assassinar o líder do PAIGC e, eventualmente, outros dirigentes do partido; destruir todas as instalações do PAIGC; e, subsidiariamente, libertar os prisioneiros de guerra portugueses.

A agressão falhou

– as forças do PAIGC estacionadas em Conakry, sobretudo, e as tropas guineenses leais a Sékou Touré resistiram e rechaçaram os invasores.
Amílcar Cabral escreveu a propósito: «Já estamos habituados às manobras e mentiras dos colonialistas portugueses, particularmente do seu representante actual na nossa terra [Spínola]. Mas devemos confessar que, no caso da agressão contra a República da Guiné, ultrapassaram tudo quanto antes tinham inventado, para mentir descaradamente. Desgraçado povo, o de Portugal, que tem dirigentes capazes de mentir tanto, que são tão cobardes para tentarem, pelos meios mais baixos, negar a sua responsabilidade provada numa acção que planearam minuciosamente, organizaram e executaram. Mesmo em relação aos prisioneiros, único resultado “positivo” da operação, inventaram toda uma história para tentarem fugir à responsabilidade»20.

A cobra nunca deixa de ser cobra… 

Os documentos do PAIGC nos anos seguintes repetem as denúncias dos crimes do colonialismo português. Num relatório de Setembro de 1971, Amílcar Cabral escreveu: «Na Guiné, o inimigo prossegue a sua política de mentiras, de concessões demagógicas, de promessas de promoção dos africanos, até mesmo duma “revolução social” (sic) que se fosse posta em prática não apenas realizaria o programa socioeconómico do nosso Partido mas ainda daria ao nosso povo um nível de vida bastante mais elevado do que o do povo de Portugal. Para completar a farsa, o actual chefe dos colonialistas portugueses – o sinistro general Spínola – promete agora “levar o povo à autodeterminação sob a bandeira portuguesa”. Adepto fervoroso das teorias do general Kaúlza de Arriaga, que considera o negro com um ser não inteligente, o governador militar da Guiné quer viver a fábula do homem do homem astuto que tinha prometido ao rei ser capaz de ensinar um burro a ler. Tal como o homem da fábula, está sem dúvida convencido de que com o passar do tempo ou o burro morrerá, ou morrerá o rei, ou ele mesmo»21.
O relatório retoma a denúncia de «numerosas agressões contra as populações de Casamance (Senegal) e da zona fronteiriça da República da Guiné», pelas tropas coloniais portuguesas, e a acusação de que «os colonialistas tentam, por todos os meios ao seu alcance, perpetrar os crimes mais bárbaros contra as nossas populações, matar o nosso gado, queimar as nossas colheitas, em resumo, desenvolver e intensificar a sua actividade criminosa e terrorista que é o grande desmentido das suas pretensões de promoção económico-social e política do nosso povo». São referidos, uma vez mais, «intensos e contínuos bombardeamentos aéreos, nomeadamente com “napalm”» e «assaltos com tropas hélio-transportadas com o fim de destruir aldeias, queimar as colheitas e matar o gado»22.
Na sua mensagem de Ano Novo de Janeiro de 1972, Amílcar Cabral referiu-se de novo à política da «Guiné melhor» de Spínola e à natureza racista do colonialismo: «Os esforços tão desesperados quanto vãos que faz o actual chefe dos colonialistas portugueses na Guiné, no sentido de destruir o nosso Partido para liquidar a nossa luta, são a prova mais clara de que os colonialistas portugueses não conhecem nem nunca conhecerão a África, não compreendem nem podem compreender o sentido da História e continuam convencidos da sua capacidade de, como dizem, “enganar o preto”. Essa ignorância, incapacidade e convicção racista caracterizaram sempre a acção dos colonialistas portugueses em África, explicam todos os crimes que praticaram e praticam contra os povos africanos, são a causa subjectiva das actuais guerras coloniais e vão seguramente provocar a perda de Portugal, com graves consequências para o povo português»23.
Ainda nesse ano de 1972, a 19 de Setembro, poucos meses antes de ser assassinado, o líder do PAIGC dirigiu uma mensagem por ocasião do 16.º aniversário do partido, na qual voltou a denunciar o «racismo primitivo e doentio» dos colonialistas portugueses e do seu chefe, que falam da «Guiné melhor» e prometem a «autodeterminação sob a bandeira portuguesa», concessões ilusórias que «só enganam os tolos ou os traidores»24. A cobra, por mais que mude de pele, não deixa de ser cobra, adverte…

O maior crime dos colonialistas 

Num relatório dirigido à OUA e cuja primeira redacção Amílcar Cabral concluiu poucas horas antes do seu assassinato por agentes do colonialismo português, a 20 de Janeiro de 1973, o líder do PAIGC abordou a situação da luta na Guiné e em Cabo Verde. Escreveu: «A acção militar dos colonialistas, que fazem esforços desesperados para levar os africanos a baterem-se contra os africanos, caracteriza-se principalmente por bombardeamentos aéreos intensos e por assaltos terroristas contra as regiões libertadas. O massacre das populações (quando podem fazê-lo), a utilização do “napalm”, a destruição das aldeias, do gado e das colheitas são as acções principais do inimigo, que desenvolve planos para a utilização de produtos tóxicos, herbicidas, desfolhantes, contra os nossos campos de cultura e as nossas florestas25».
Dias antes, na sua mensagem de Ano Novo de Janeiro de 1973, considerado o seu «testamento político», Amílcar Cabral anunciava já a preparação da eleição da Assembleia Nacional Popular visando a proclamação da existência do Estado da Guiné-Bissau, a criação de um executivo para esse Estado e a promulgação da sua primeira Constituição: «Da situação de colónia que dispõe de um movimento de libertação e cujo povo já libertou em 10 anos de luta armada a maior parte do seu território nacional, vamos passar à situação de um país que dispõe do seu Estado e que tem uma parte do seu território nacional ocupado por forças armadas estrageiras26».
De forma quase premonitória, o líder do PAIGC advertia que, apesar de todos os avanços da luta, «não podemos esquecer nem um só momento que estamos em guerra e que o inimigo principal do nosso povo e da África – os colonialistas fascistas portugueses – alimentam ainda, com o sacrifício e a miséria do seu povo e por meio de manobras as mais pérfidas e de actos os mais bárbaros, a criminosa intenção e a vã esperança de destruir o nosso Partido, liquidar a nossa luta e recolonizar o nosso povo». Ainda que, assegurava, «nenhum crime, nenhuma força, nenhuma manobra ou demagogia dos criminosos agressores colonialistas portugueses será capaz de parar a marcha da História, a marcha irreversível do nosso povo africano da Guiné e Cabo Verde para a independência, a paz e o progresso verdadeiro a que tem direito»27.
Na verdade, esse «inimigo bárbaro que não tem o menor escrúpulo nas suas acções criminosas» – o colonialismo português – assassinou Amílcar Cabral nos primeiros dias de 1973, utilizando traidores africanos, a soldo da PIDE, infiltrados no PAIGC.
Luís Cabral, irmão de Amílcar, um dos fundadores e principais dirigentes do PAIGC – não se encontrava em Conakry na noite do crime e da prisão de Aristides Pereira e outros dirigentes do partido –, num testemunho oral publicado em 1995, confirmou aspectos principais sobre o assassinato e a continuação da luta até à proclamação da independência da Guiné-Bissau e ao derrubamento do fascismo em Portugal.
Recordou que os colonialistas portugueses fizeram várias tentativas para destruir o PAIGC, até chegar ao ataque a Conakry, em Novembro de 1970, «operação de um comando especial orientado directamente pelo general Spínola para atacar a capital de um país estrangeiro, derrubar o governo e destruir o PAIGC», considerando que, depois do fracasso da agressão, «a tentativa seguinte seria tentar destruir o PAIGC por dentro»28.
De acordo com Luís Cabral, foi o que aconteceu: «Os homens que assassinaram o Amílcar tiveram coragem de o fazer porque tinham o apoio da PIDE. A luta chegou a um ponto em que o grande objectivo em Bissau, das forças especiais, era destruir a unidade Guiné-Cabo Verde. E, então, indivíduos que estiveram ligados ao partido, e até à sua direcção, e estiveram presos uma data de tempo, como Inocêncio Kani, Aristides Barbosa, foram postos em liberdade e depois mobilizados e mandados para Conakry, já ligados à PIDE. O objectivo deles era mobilizar gente contra a direcção do PAIGC, dizendo que o Governo português estava disposto a conversar com os guineenses, que era uma decisão que estava tomada, mas para isso os guinenses tinham que se separar dos cabo-verdianos, porque com Cabo Verde não se podia fazer nada, a NATO não ia aceitar que o PAIGC estivesse em Cabo Verde (…)»29.
Os homens que assassinaram Amílcar Cabral «foram quase todos fuzilados». Esses homens «foram mandados pela PIDE, eles disseram isso»30, confirmou Luís Cabral, referindo também cumplicidades de certos dirigentes da República da Guiné com os criminosos.
Depois do assassinato de Amílcar Cabral – os colonialistas chegaram então a proclamar o fim da guerra na Guiné –, o PAIGC intensificou a luta armada em todas as frentes, equipou-se com novas armas (mandou formar pilotos de «Mig» na União Soviética e recebeu mísseis Strela, de fabrico soviético, entregues pela URSS ainda em Janeiro de 1973, que puseram fim à impunidade aérea dos colonialistas), realizou o seu II Congresso nas regiões libertadas do Leste, elegeu por unanimidade Aristides Pereira como secretário-geral, e, a 24 de Setembro de 1973, reuniu no Boé a primeira Assembleia Nacional Popular da história do país e proclamou o Estado da Guiné-Bissau, reconhecido de imediato por cerca de 80 países. Em 25 de Abril de 1974 o Movimento das Forças Armadas derrubou o regime fascista em Portugal, entre Maio e Agosto realizaram-se conversações em Londres e Argel entre delegações do PAIGC e do novo Governo de Lisboa e a 10 de Setembro a independência de jure da Guiné-Bissau foi reconhecida por Portugal.
Não é necessário esperar que um dia o WikiLeaks divulgue documentos secretos da guerra que Portugal travou em Angola, Guiné e Moçambique entre 1961 e 1974 para se conhecer melhor as barbaridades do colonialismo português.
Para o caso da Guiné-Bissau, basta recorrer a textos da autoria de Amílcar Cabral (haverá imensos outros documentos interessantes espalhados pelos arquivos e fundações portuguesas…), muitos deles publicados, para se conhecer a impressionante lista de crimes que o PAIGC atribuiu, durante 11 anos da sua luta armada de libertação nacional (1963-1974), ao colonialismo português – discriminação racial, fomento do racismo e do tribalismo, prisões e torturas, massacres, bombardeamentos massivos de populações civis (com bombas de fragmentação, «napalm» e fósforo branco), utilização de desfolhantes e herbicidas, destruição de colheitas, roubo de gado e, claro, agressão militar a um país soberano e assassinato de dirigentes políticos.
E foram crimes em vão. Portugal foi derrotado militarmente na Guiné. Os guerrilheiros do «mato» acabaram por vencer os generais formados nas academias ocidentais, mais as suas numerosas tropas bem equipadas com aviões, tanques e canhões fornecidos pelos aliados da NATO.
Apesar dos indescritíveis sacrifícios da guerra, guineenses e cabo-verdianos que lutaram nas fileiras do PAIGC podem hoje orgulhar-se não só da conquista da independência nacional das suas pátrias mas também de terem contribuído decisivamente, com a sua luta, para a liquidação do colonial-fascismo de Salazar/Caetano e a libertação do povo português.