quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Crise: não há apenas uma saída

José Paulo Gascão no Diario.Info
José Sócrates e Passos Coelho 
José Paulo Gascão denuncia neste texto uma das campanhas de desinformação em curso, a de que a única saída da crise é dentro do sistema capitalista. E depois de contactar que o capitalismo não é reformável, afirma: “Desenganem-se os que pensam que nos parlamentos se pode ir criando condições para reverter a situação. Particularmente com a ditadura mediática dos media apelidados de referência, os parlamentos são um instrumento do capital monopolista.”


«Hoje, Sócrates é já um cadáver político e muitos dos que estão calados apenas esperam que o desenvolvimento dos acontecimentos lhes diga o momento oportuno de reconhecer o óbito.
O cadáver político está aí, a família que o enterre.»
A frase em epígrafe, escrita em Fevereiro do ano passado, vinha ao arrepio das notícias e comentários dos media de referência. Então, os meios de comunicação ainda promoviam José Sócrates que, dando sequência ao trabalho iniciado por Mário Soares, completara já o processo de fusão ideológica do PS com a direita e consolidara a sua rendição incondicional ao capitalismo e ao neoliberalismo.
A profunda crise sistémica do capitalismo há muita prevista, uma crise económica, financeira, social, cultural e moral que varre o mundo, foi em Portugal agravada pelas consequências da adesão à União Europeia: destruição da agricultura e desmantelamento das pescas e da indústria transformadora…
A eleição em Março passado de Passos Coelho, tal como Sócrates um impreparado político, pouco culto, sem passado nem futuro políticos, não permitiu aos media começar de imediato a reflectir a retirada do apoio do grande capital a Sócrates. Era preciso que as medidas impostas pelos monopólios recaíssem sobre Sócrates, o chefe do turno cessante.
Ao reunir primeiro com Passos Coelho na sede do PSD, em 13 de Outubro último, seis meses e três PECs passados, e só no dia seguinte com Teixeira dos Santos (nestes casos nunca há dificuldades de agenda…), o grande capital quis dizer, inequivocamente, quem concitava agora seu apoio. A substituição de Sócrates pelo seu ministro das Finanças na reunião do dia seguinte foi o recurso diplomático para disfarçar o vexame.
Depois sim, a imprensa já podia dar continuidade à manobra. E deu: a maioria dos sábios económicos do costume que enxameavam a comunicação social foram substituídos, Sócrates deixou de ter os favores da imprensa que dele passou a fazer o retrato óbvio: o de um político impreparado, sem ideias nem convicções, que foi publicitariamente promovido como se de uma pasta dos dentes se tratasse. E muitos dos que ao longo dos últimos o incensaram passaram, sem pudor, a ser os seus mais cáusticos críticos.
A POLÍTICA EUROPEIA
PARA A RECUPERAÇÃO DO CAPITAL
O rebentar da crise e o seu desenvolvimento não destruiu apenas os mitos do desenvolvimento contínuo do capitalismo e o do seu benefício comum para o trabalho e o capital. Pôs também a nu que ela é uma consequência inevitável do próprio sistema capitalista, evidenciou as tensões entre os imperialismos norte-americano e europeu e evidenciou ainda a conflitualidade de interesses no seio da União Europeia.
No entanto, ainda não é claro para a uma parcela significativa da classe trabalhadora e do povo que a União Europeia, um instrumento do capital monopolista europeu, aproveita a crise do capitalismo para exigir aos governos uma redução drástica dos salários e dos direitos sociais conquistados ao longo de décadas. Como não está claro que o objectivo é a recuperação do capital fictício perdido com o rebentar da crise pela banca e por outros grupos monopolistas, à custa de um corte dos salários e pensões e uma diminuição crescente dos direitos sociais.
Para os grupos monopolistas e a União Europeia as medidas tomadas são ainda pouco. Se antes da aprovação do Orçamento de Estado (OE) na generalidade este era um «documento fundamental para acalmar os mercados», logo no dia seguinte á sua aprovação a Comissão Europeia, congratulou-se com a sua aprovação, mas não deixou de acrescentar que «era necessário uma redução do deficit mais rápida» e os juros da dívida pública começaram uma vez mais a subir.
Eram previsíveis estes comportamentos. Já no 1º dia de debate sobre o OE, na SIC notícias, Morais Sarmento (PSD) e Francisco Assis (PS) lamentavam o tom em que decorrera o debate, o que dificultava futuros acordos para novas medidas gravosas para a classe trabalhadora, tendo este último deixado escapar: «… até porque lá para Maio vamos ter que negociar outro PEC».
Antes mesmo do início da discussão do OE na Assembleia da República, à saída da reunião da Comissão Política onde Sócrates explicou o acordo PS/PSD Almeida Santos, presidente do PS, comentou: «Os sacrifícios que estão a ser exigidos ao povo não são sacrifícios incomportáveis. Oxalá que o país nunca tenha de enfrentar sacrifícios maiores. As crises não são só do governo, são do povo, e o povo tem que sofrer as crises como o governo as sofre»!
Michael Hudson, um insuspeito Professor da Universidade de Missouri, em 30 de Setembro resumia em New Economic Perspectives objectivo da UE nesta citação: «O objectivo é baixar os salários cerca de 30% ou mais, até níveis de depressão, pretendendo que isso “deixará mais excedentes” disponíveis para pagar o serviço da dívida. (…) Trata-se de um projecto de reversão da era das reformas democrático-sociais que a Europa conheceu no século passado».
—///—
Na sua queda, Sócrates arrasta o PS para uma derrota profunda e muitos do que estiveram anos calados acham que é este «… o momento oportuno de reconhecer o óbito» político do chefe até agora incontestado.
O governo dá crescentes provas de desagregação e até de desorientação: ministros e secretários de Estado desdobram-se em contradições, confrontos e disparates.
À classe trabalhadora e às restantes classes e camadas exploradas resta um caminho: lutar e aprender com a vida que o capitalismo não é reformável e nesta sua fase senil pode mesmo conduzir a Humanidade a uma nova barbárie.
Desenganem-se os que pensam que nos parlamentos se pode ir criando condições para reverter a situação. Particularmente com a ditadura mediática dos media apelidados de referência, os parlamentos são um instrumento do capital monopolista.
Como sem rebuço reconheceu o bilionário norte-americano Warren Buffet, numa frase que deve causar arrepios nos media portugueses, «Existe uma guerra de classes, é verdade, mas é a minha classe, a classe dos ricos, que está a fazer a guerra, e nós estamos a ganhá-la».
O caminho será provavelmente longo até que a classe trabalhadora inverta a situação e passe á ofensiva. No entanto, essa importantíssima alteração da correlação de forças só será possível quando, e enquanto, a luta e classes for conduzida nas suas três formas, teórica, política e económica, de forma coordenada e interligadas entre si.
Só assim poderá transformar-se a justa revolta de hoje contra a injustiça na luta pela transformação do país e do mundo.

Golpes e contragolpes na economia mundial

Existem temores de que se o caos monetário ou a guerra cambial não se solucionar, rapidamente o mundo deve enfrentar uma onda protecionista. O Instituto de Finanças Internacionais estima que cerca de 825 bilhões de dólares fluirão para os países em desenvolvimento este ano, um aumento de 42% em relação ao ano passado. Alguns países já introduziram mecanismos de controle de capitais. O Brasil triplicou o imposto aos estrangeiros que compram bônus locais. A Tailândia fixou um imposto de 15% sobre os juros e os rendimentos do capital em cima dos bônus tailandeses. A Coréia do Sul anunciou que estabelecerá novos limites no mercado futuro. O artigo é de Martin Khor, do South Center.

As últimas semanas viram o surgimento de um caos monetário que representa uma nova ameaça para as perspectivas de recuperação da economia mundial. Alguns dos países mais importantes estão tomando medidas para desvalorizar suas moedas a fim de obter vantagens comerciais. Se o valor da moeda de um país diminui, seus produtos de exportação ficam mais baratos e aumenta a demanda internacional. Por outro lado, as importações neste país ficarão mais caras, o que fomentará a produção local e melhorará a produção comercial. Mas os países que sofrem por causa destas políticas podem ir a forra, desvalorizando também suas moedas ou colocando barreiras ou altas tarifas alfandegárias em suas importações.

Isso pode levar a uma sucessão de desvalorizações competitivas como ocorreu nos anos 30, precipitando uma contração do comércio mundial e uma prolongada recessão. A situação atual é complexa e compreende ao menos três questões inter-relacionadas.

Em primeiro lugar, os Estados Unidos acusam a China de manter o yuan em um nível artificialmente baixo, o que – diz Washington – está causando seu enorme déficit comercial com a China. Um projeto de lei estadunidense está solicitando a aplicação de tarifas alfandegárias extras sobre os produtos chineses, enquanto a China assegura que isso vai contra as normas da Organização Mundial do Comércio (OMC) e que uma forte valorização do yuan seria desastrosa para sua economia e não contribuiria para corrigir o déficit estadunidense.

Em segundo, Washington está tratando de desvalorizar o dólar mediante uma nova rodada de “expansão quantitativa” nas qual o Banco Central gastará 600 bilhões de dólares para comprar bônus do governo e outras dívidas. Isso incrementará a liquidez no mercado, reduzindo as taxas de juro a longo prazo e, segundo se espera, contribuirá para a recuperação econômica.

Isso coloca os Estados Unidos na situação de ser acusado de provocar uma desvalorização competitiva. Além disso, essa nova liquidez se agregaria a uma onda de capitais que migram dos Estados Unidos, onde os rendimentos são muito baixos, para alguns países em desenvolvimento e emergentes. No passado, tais ondas de “dinheiro quente” foram bem recebidas pelos países receptores. Mas os países do Sur aprenderam com essas más experiências, quando repentinas entradas e saídas de capitais causaram sérios problemas como, por exemplo:

- A afluência de capital conduz a um excesso de dinheiro no país que o recebe, incrementando a pressão sobre os preços ao consumidor e alimentando as “bolhas de ativos” ou aumentos nos preços das casas e nas bolsas de valores. Essas bolhas cedo ou tarde explodirão, causando grande dano.

- A afluência de capitais estrangeiros fará com que a moeda do país receptor se valorize significativamente em relação a outras moedas. Nesse caso, as autoridades financeiras deveriam intervir no mercado para neutralizar essa valorização que encareceria as exportações nacionais.

- Os repentinos ingressos de capital também podem se converter em saídas repentinas de capital quando as condições globais mudam, como se viu na crise asiática de 1997. Isso pode causar uma desordem econômica, incluindo uma forte depreciação monetária, restrição de crédito, dificuldades na balança de pagamentos e recessão.

Recentemente o International Herald Tribune advertiu que Wall Street está comprando com avidez os ativos de economias emergentes e pediu as países em desenvolvimento que “prestassem muita atenção” e que “considerassem o controle de capitais para reduzir o ingresso desses capitais.

Em terceiro lugar, alguns países já introduziram mecanismos de controle de capitais. O Instituto de Finanças Internacionais estima que uma soma de 825 bilhões de dólares fluirá para os países em desenvolvimento este ano, um aumento de 42% em relação ao ano passado. O Brasil triplicou o imposto aos estrangeiros que compram bônus locais. A Tailândia fixou um imposto de 15% sobre os juros e os rendimentos do capital em cima dos bônus tailandeses. A Coréia do Sul anunciou que estabelecerá novos limites no mercado futuro e solicitou aos bancos que não outorguem empréstimos em moedas estrangeira.

Finalmente, existem temores de que se o caos monetário ou a guerra cambial não se solucionar, rapidamente o mundo deve enfrentar uma onda protecionista, seja elevando barreiras aduaneiras, seja mediante depreciações competitivas.

(*) Martin Khor é diretor executivo do South Center

Tradução: Katarina Peixoto

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Preconceitos e a juventude


Por Gregório Grisa, no Augere

Essa onda de atos preconceituosos e manifestações racistas e discriminatórias para com grupos sociais diversos dos últimos meses, nos mostra uma característica fundante da classe economicamente privilegiada do nosso país. Já ouvi falas do tipo “não se pode dizer mais nada que corremos o risco de virar debate na internet e na televisão” ou até mesmo pérolas como “estão exagerando com essa hipervisibilização de movimentos de homossexuais, quilombolas, negros, índios e minorias”.
Processos políticos que signifiquem a perda de privilégios reais ou simbólicos expõem uma conduta preconceituosa que antes não tinha razão de se mostrar. Causam uma sensação de sufoco na elite que a faz gritar “deu, chega desse papo”, e quando os intelectuais que passeiam nas televisões hegemônicas ainda não desenvolveram as perfumarias argumentativas ou os malabarismos de palavras para justificar esse grito, o que exala é mais a raiva instintiva da elite, fruto da sua formação, do que qualquer outra coisa.
Aqui no sul do país isso ficou claro; enquanto a raiva do comentarista Luiz Carlos Prates da RBS contra os “pobres que agora compram carros” se mostrava para todos, no horário do almoço dessas mesmas famílias, seu companheiro de empresa David Coimbra através do seu blog tentou, ao organizar sua perfumaria interpretativa, defender o colega relativizando sua fala carregada de preconceito. Esse é o exemplo típico do fenômeno que descrevi no parágrafo anterior.
A internet, os espaços de trabalho, as disputas nas universidades são os meios pelos quais desagua esse preconceito sem filtro da elite e ao perceberem-se ridiculamente dispostos em uma sociedade cada vez mais plural, alguns grupos, jovens em geral o que infelizmente surpreende, resolvem assumir essa postura retrograda e se unir para não ficar tão feio.
É o que vem ocorrendo nas eleições dos diretórios centrais dos estudantes da USP e da UFRGS, por exemplo, aonde algumas chapas saudosas de pensamentos conservadores, até certo ponto perigosos, vêm pautando a disputa política por valores religiosos, antidemocráticos, por inculcação de preconceitos que imaginávamos superados e por condutas que ferem o lento, mas fértil processo de avanços que o Brasil tem experimentado. Há uma chapa paulista contra o direito de greve inclusive.
Há uma guerra de posições instaurada entre aqueles que querem a promoção da igualdade entre negros, brancos e indígenas, entre gays e heterossexuais, nordestinos e sulistas e aqueles que resistem de várias formas a qualquer movimento de avanço ou políticas que valorizem grupos discriminados. Esses que resistem, que chamo aqui de elite, o fazem, às vezes, de modo desesperado e desarticulado como temos visto em manifestações absurdas nos meios digitais, mas também o fazem de forma bem organizada e articulada através do monopólio da comunicação por meio de personagens “bonzinhos”, “lidos”, “bem arrumadinhos” que superficialmente analisam a realidade e difundem essas interpretações como verdades.

PSOL quer regulamentar artigos da Constituição sobre comunicação


Petição inicial da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, ajuizada pelo jurista Fábio Konder Comparato (foto), requer ao STF que determine ao Congresso Nacional a regulamentação de matérias existentes em três artigos da Constituição Federal (220, 221 e 223), relativos à comunicação social. Entre as providências, está a criação de uma legislação específica sobre o direito de resposta, a proibição de monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação social e a produção e programação exibida pelos veículos.

No dia 10 de novembro, o PSOL propôs ao Supremo Tribunal Federal (STF) uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, ajuizada pelo jurista Fábio Konder Comparato. A petição inicial requer à Corte que determine ao Congresso Nacional a regulamentação de matérias existentes em três artigos da Constituição Federal (220, 221 e 223), relativos à comunicação social. Entre as providências, está a criação de uma legislação específica sobre o direito de resposta, a proibição de monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação social e a produção e programação exibida pelos veículos. De acordo com a petição, a Constituição Federal brasileira admite o cabimento da ação direta de inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional.

Uma ação com mesmo texto e objetivo foi protocolada pelo advogado no dia 18 de outubro, representando a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e a Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão (Fitert).

Embasamento jurídico

O direito de resposta - De acordo com o artigo 5°, inciso V, Capítulo I (Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos), Título II (Dos Direitos e Garantias Fundamentais), da Constituição Federal “é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem”.

Entretanto, a petição lembra que, em abril de 2009, o STF decidiu que a Lei de Imprensa, de 1967, havia sido revogada com a promulgação da Constituição Federal de 1988. Em função dessa interpretação, os juízes deixaram de contar com um parâmetro legal, embora o direito de resposta permaneça reconhecido no ordenamento jurídico.

Assim, Comparato pergunta “em quanto tempo está o veículo de comunicação social obrigado a divulgar a resposta do ofendido? Dez dias, um mês, três meses, um ano? É razoável que a determinação dessa circunstância seja deixada ao arbítrio do suposto ofensor?”

No caso dos jornais e periódicos, a ação questiona a publicação de respostas com letras menores do que aquelas que geraram a ofensa. No caso das emissoras de rádio e televisão, não há nenhum dispositivo que proíba a veiculação de resposta em programas diferentes ou em emissoras que pertençam a um mesmo grupo econômico.

A ação aponta também que até hoje não há regulação do direito de resposta na Internet e “quando muito, a Justiça Eleitoral procura, bem ou mal, remediar essa tremenda lacuna com a utilização dos parcos meios legais de bordo à sua disposição”.

Produção e programação – o segundo ponto de omissão legislativa que a petição cita é com relação aos princípios declarados no art. 221, no que concerne à produção e à programação das emissoras de rádio e televisão.

Para argumentar a necessidade da regulamentação, o jurista relembra que as emissoras de rádio e televisão servem-se, para as suas transmissões, de um espaço público. “Fica evidente, portanto, que os serviços de rádio e televisão não existem para a satisfação dos interesses próprios daqueles que os desempenham, governantes ou particulares, mas exclusivamente no interesse público; vale dizer, para a realização do bem comum do povo”.

Para cumprir essa função, o artigo 221 coloca os seguintes princípios para a produção e programação: I – preferência a finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas; II – promoção da cultura nacional e regional e estímulo à produção independente que objetive sua divulgação; III – regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentuais estabelecidos em lei, e IV – respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família.

Em seguida, o texto conclui que passadas mais de duas décadas da entrada em vigor da Constituição Federal, nenhuma lei foi editada especificamente para regulamentar artigo 221, presumivelmente sob pressão de grupos empresariais privados.

Monopólio ou oligopólio – o terceiro ponto de omissão legislativa que a petição cita é com relação à proibição de monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação social, disposta no artigo 220.

Sobre esse caso, a petição afirma que o abuso de poder econômico na comunicação social coloca em risco a democracia. “Na sociedade de massas contemporânea, a opinião pública não se forma, como no passado, sob o manto da tradição e pelo círculo fechado de inter-relações pessoais de indivíduos ou grupos. Ela é plasmada, em sua maior parte, sob a influência mental e emocional das transmissões efetuadas, de modo coletivo e unilateral, pelos meios de comunicação de massa”.

Comparato ressalta no texto que monopólio e oligopólio não são conceitos técnicos do Direito; são noções, mais ou menos imprecisas, da ciência econômica. Sendo assim, “pode haver um monopólio da produção, da distribuição, do fornecimento, ou da aquisição. Em matéria de oligopólio, então, a variedade das espécies é enorme, distribuindo-se entre os gêneros do controle e do conglomerado, e subdividindo-se em controle direto e indireto, controle de direito e controle de fato, conglomerado contratual (dito consórcio) e participação societária cruzada. E assim por diante.” A falta de uma lei definidora de cada um desses tipos, anulam o direito do povo e a segurança das próprias empresas de comunicação social.

Veja AQUI a ação na íntegra:

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Para relaxar......e pensar....

O hipocondríaco é, antes de tudo, um forte

Tudo é uma questão de ponto de vista.
A frase é extremamente idiota, eu sei. Mas dessas pequenas idiotices do dia-a-dia a gente consegue extrair verdadeiras lições – ou são os sábios que zelam por nós condensando em pílulas de conforto instantâneo grandes ensinamentos?
Vamos exemplificar o ditado. Meu ortopedista. Grande sujeito, pai de um amigo meu. Um dia, deu uma opinião reversa sobre o senso comum que rodeia o meu prontuário médico e disse algo do tipo: “você não é uma pessoa fraca, pelo contrário, é muito forte – caso contrário, já teria empacotado”.
Vamos aos fatos: devido ao jornalismo, peguei muita pereba nesta vida. De malária, foram duas, falciparum, uma em Timor Leste e outra em Angola, durante coberturas. Não digo isso com orgulho, pelo contrário. Jornalistas da antiga contam que mediam-se carreiras pelo número de doenças tropicais contraídas. Mas o tempo passou e a régua foi para a quantidade de textos censurados, depois para processos na Justiça e o número de discursos inflamados de congressistas indignados. Ou seja, pegar malária durante o exercício da profissão virou coisa demodê, quiçá despreparada para usar um repelente caro do exército norte-americano.
Dengue foi uma, no interior da Paraíba, doída – sem manchas, pelo menos. Teve uma mononucleose do Punjab paquistanês. Dizem que é chamada de “doença do beijo”, pela forma de transmissão – a explicação que eu trouxe para casa (e que colou, graças a Deus) foi de que em muitos vilarejos, durante as refeições, o uso do copo era coletivo (isso mesmo, “do”, artigo, definido, masculino, singular). Com o treco circulando pela boca e pela mão de todos, não deu outra.
Outra vez, alguma porcaria se alojou perto do meu coração, gerando uma pericardite – o que me deixou uma semana internado, comendo boa comida. Nessa, achei que ia empacotar, tamanha a dor no peito logo no começo. Foi um período bom para terminar o mestrado. Tranquilo, sem muita gente ligando, cobrando textos ou dívidas.
Viroses e afins não entraram na lista, mesmo que ferozes, porque aí teríamos uma capivara e não um post. Aliás, a virose é a “pescada” da medicina. É aquele peixe genérico, que muitas vezes nem o médico sabe o que é mas, pelos sintomas, recebe o tratamento básico – água, alimentação leve e repouso.
(Ter na conta também o fato de ser hipertenso, conviver com uma cardiopartia, dois discos mal colocados na coluna e uma artrose torna a vida mais divertida – para dizer o mínimo. E como jornalismo é uma profissão relaxante e o Brasil nem tem problemas na área de direitos humanos, tá tudo na santa paz.)
E retornando ao pensamento inicial: pegar todas essas perebas em um contexto como esse e estar de pé a ponto de ser um (péssimo) goleiro e com o fígado pronto para aguentar os benefícios de um chope no final do expediente não é para qualquer um, meu irmão.
Por que o texto? Uai, nada melhor do uma escrita hipocondríaca para passar o tempo na espera do hospital.
Tudo (realmente) é uma questão de ponto de vista.

Emílio Lopez: Buscando entender as raízes do ódio contra os pobres

por Emílio Carlos Rodriguez Lopez*no viomundo

A Frei Caneca, brasileiro e americano que lutou contra os privilégios da nobreza brasileira.

Este artigo não se destina a atacar a classe média paulista ou carioca. Ao contrário. O objetivo é entender os motivos de setores da elite e da classe média terem votado contra o PT e concordarem com uma campanha de claros contornos de extrema direita, que se aproximou perigosamente de setores religiosos, como a Opus Dei e TFP, claramente influenciados pelo fascismo.
Creio que dois fatores podem ajudar a entender melhor o que Chico Buarque, em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo, chamou de o crescente ódio das elites e das classes médias contra os pobres.
O primeiro fator leva em consideração a formação do estado nacional brasileiro, quando se refaz o conceito de nobreza (diferente do sentido e das práticas sociais do antigo regime português) e que se articula com o que Modesto Florenzano, ao analisar a Revolução Francesa, chamou de nobreza do capital. Em suma, um grupo dirigente que se via como nobre,  detentor de privilégios que os plebeus não poderiam almejar. Chamarei isto de se “sentir nobre”, portanto apartado do mundo dos pobres.
Nesse processo de formação história ainda presente em nosso cotidiano,  todos os que acham que têm um pouco de poder querem ser chamados de “doutor”.  Basta lembrar da frase dos jovens pobres agredidos na Avenida Paulista por membros da classe média em 14 de novembro de 2010, que afirmou indignado com a libertação rápida dos seus  agressores:
Se fosse eu que tivesse batido em um grupo de “filhinhos de papai” estaria preso até agora. Mas eles têm dinheiro para pagar advogado. O dinheiro que eu tenho é para ajudar a minha mãe.
Mas valeria perguntar, pela ótica desta classe média, o que fazem os pobres na Avenida Paulista? Como ousam invadir esse território sagrado da classe média paulista?
Exatamente este é o ponto: a classe média percebe que a ascensão dos pobres ameaça o que ela via como espaços exclusivos para “a nobreza”. O mesmo se dá nos aeroportos e muitos outros locais. A ascensão dos pobres no governo Lula é vista por estes setores como uma nova invasão de bárbaros contra o Império Romano. Deste modo, a elite e a classe média  sentem cada vez mais ameaçadas a sua identidade  como “nobreza”, além dos seus privilégios. Devemos lembrar, por exemplo, que daqui a 20 anos os pobres que ingressaram na Universidade pelo PROUNI e ENEM irão concorrer em condições mais igualitárias com os filhos da classe média e da elite.
O segundo ponto leva em consideração que a elite e classe média atual são marcadas por concepções neoliberais e de valorização do modo de vida (norte) americano. Espalhou-se que o individualismo, o consumismo e a mercantilização desenfreados são os novos valores que devem reger a sociedade. Muitos brasileiros se recusam a ver que esse modelo fracassou. A crise ecológica não permite mais ele se perpetuar, visto que os recursos naturais são finitos. E as bolhas econômicas destruíram a economia norte americana.
O modelo neoliberal aumentou as distâncias entre ricos e pobres. Além disso, pretendia a exclusão de milhares de pessoas e se baseava na separação física entre as classes sociais, demarcando territórios. Um bom exemplo são os condomínios fechados em São Paulo.
Neste contexto, as práticas sociais da elite e da classe média tenderam a uma radicalização, pois cada vez mais percebem que os seus “privilégios” e “lugares sagrados” são atacados e invadidos por outros grupos sociais.
Ainda chamo a atenção que muitos setores da classe média preferem um Brasil com Z. Por exemplo, adoram comemorar o Hallowen e não o dia do Saci. Identificam-se como norte- americanos e babam pelos valores difundidos pela industria cultural deste país.
Ironicamente, a crise econômica e a recessão impulsionaram os Estados Unidos e a Europa para a direita do espectro político e favoreceram o crescimento de movimentos xenófobos e de extrema direita. Já no Brasil o governo Lula vence a crise e o Brasil vive tempos de prosperidade econômica. Nunca a classe média e as elites ganharam tanto dinheiro, consumiram e viajaram tanto. Daí a pergunta, por que esta ingratidão com o PT e Lula, visto que preferiram um projeto de país marcado pela exclusão social?
Lembro ainda que o voto espelha uma identidade cultural e uma visão de mundo, pois, 70% dos bairros da elite e da classe média paulista ao votarem em Serra, reafirmaram convicções e valores que devem reger a sociedade. Como se vê há um grupo que defende um Brasil para poucos privilegiados, que se sentem nobres e se recusam a tolerar os pobres.
Por último, gostaria de lembrar a todos que depois de 300 anos de guerras religiosas e da Revolução Francesa não me parece cabível querer atacar um traço fundamental do Estado contemporâneo que está baseado na tolerância e no respeito à diferença de pensamentos e de modos de ser.
O Brasil necessita a radicalização da democracia e não do preconceito. A verdadeira radicalização democrática é ampliar os recursos, inclusive de mídia, para os trabalhadores e os mais pobres poderem democraticamente desfrutar das mesmas condições que a elite tem  para divulgar os seus pensamentos e sua visão de mundo.
 
* Emílio Carlos Rodriguez Lopez é mestre em História pela USP

Você tem que se decidir: a árvore ou o PIB?

Escrito por Eduardo Almeida no Correio da Cidadania  
 
O "Chomsky Verde" não poupa palavras para alertar sobre a crise invisível da fome. Claro e incisivo em suas opiniões, Devinder Sharma é o tipo de entrevistado que coloca o editor numa situação complicada. Pinçar o mais importante entre tantas colocações cruciais torna-se um desafio técnico.
 
Devinder Sharma, 55 anos, é jornalista, escrevendo e mantendo colunas em um punhado de jornais editados em diferentes línguas indianas – e freqüentemente é solicitado para foros de debate e entrevistas, inclusive pela rede americana CNN. Sharma mantém seu blog "Ground Reality", Realidade Nua e Crua, numa tradução livre, focado no debate sobre políticas para alimentação, agricultura e fome (http://devinder-sharma.blogspot.com/) - visitado por dezenas de milhares de internautas em todo o mundo, sobretudo formadores de opinião.

 
Sharma mora em Nova Deli, onde dirige uma iniciativa independente chamada Foro para a Biotecnologia e Segurança Alimentar. Autodefine-se como um "analista sobre políticas para alimentação e comércio". Tem formação agronômica, sendo reconhecido estudioso e pensador sobre o desenvolvimento, a sustentabilidade e a fome, tema de livros que tem publicado. Chomsky Verde foi o apelido que ganhou do semanário indiano The Week no ano passado pela similaridade de sua postura crítica ampla e aguda com a do famoso lingüista e pensador americano Noam Chomsky. Devinder Sharma ainda encontra tempo para constantes visitas e debates em comunidades rurais de seu país.
 
A passagem recente pelo Brasil aprofundou sua análise sobre o país. As conclusões são pouco lisonjeiras. Confessa-se "assombrado diante do modo como as empresas de agronegócio, incluindo gigantes internacionais, controlam a economia brasileira", sem entender como o Brasil, com todo o "vasto celeiro de biodiversidade e riqueza genética que possui", prefere um modelo de desenvolvimento rural que "marginaliza as comunidades rurais e deixa rastros profundos de destruição ecológica".
 
Em tempos de crise financeira mundial e emergências globais, Sharma denuncia o aumento da fome no mundo e acentua o protagonismo popular na superação das crises, lembrando Ghandi – "Ele nos disse que se faz necessário um sistema de produção pelas massas e não para as massas". Não faz por menos, detona em série com os modelos atuais de desenvolvimento – "a ‘economia do crescimento’ que as economias emergentes perseguem é, na realidade, nada mais que economia da violência"; com o endeusamento do PIB – "é uma cortina de fumaça para que o rico explore o pobre"; com o capitalismo wallstreetiano – "levará o mundo na direção da extinção da espécie humana"; com a democracia tal como se apresenta hoje no mundo, com a ONU, sobrando ainda para os economistas.
 
Apresentado por colega comum de rede de discussão ao jornalista free lancer baiano Eduardo Almeida, Sharma concedeu a entrevista pela internet.
 
O senhor esteve por sete dias no Brasil recentemente. Esse país tem estado em evidência em temas contraditórios que são objeto de suas preocupações: a luta contra a fome e o agronegócio de grande escala com elevado apetite por desmatamento e organismos geneticamente modificados (OGMs). O que mais lhe chamou a atenção no Brasil?
 
Devinder Sharma: Eu vim ao Brasil a convite da AS-PTA (Assessoria e Serviços a Projetos em Agricultura Alternativa, ONG brasileira dedicada à agroecologia e agricultura familiar) para participar de uma conferência internacional, no Rio de Janeiro, sobre alimentos e lavouras geneticamente modificados. A conferência congregou ativistas, especialistas, ONGs, representantes governamentais e de organizações de produtores da Índia, Brasil e África do Sul - nações que formam o IBSA –, além de outros países. Em certo sentido, o evento foi focado em fortalecer o movimento anti-transgênicos no Brasil. Sabendo que o Brasil vem adotando crescentemente lavouras geneticamente modificadas, e já tomou o lugar da Argentina como país com maior área de lavouras GM (geneticamente modificadas) na América do Sul, foi importante ter um uma compreensão, em primeira mão, das razões que estão por trás dessa crescente difusão das lavouras GM, e, ao mesmo tempo, conhecer a luta das pessoas contra esse tipo de agricultura.
 
Além disso, na semana em que estive no Brasil, busquei informações sobre duas outras áreas de meu interesse. Uma se relaciona ao Programa Fome Zero, que o presidente Lula lançou entre 2003 e 2004, e a outra diz respeito à formidável reviravolta que o Brasil realizou em desenvolver gado puro de algumas raças indianas e ainda se tornando importante exportador dessas raças para a América Latina, África e Ásia. Essas raças bovinas proporcionam rendimentos em leite comparáveis às raças Jersey e holandesa, enquanto suas primas pobres na Índia são tachadas de ‘improdutivas’, com capacidade de produção de leite muito baixa.
 
As crescentes ações do Brasil em outros países tropicais, especialmente da África e América Latina, difundem tecnologias para produções de grãos e carne em larga escala, ao estilo "revolução verde", em pacotes que freqüentemente incluem transgênicos, química pesada e pouco cuidado com o meio ambiente. O senhor acha que a dita "estória de sucesso do moderno agronegócio brasileiro" é um bom espelho para países tropicais em desenvolvimento?
 
Devinder Sharma: Este é um motivo para grave inquietação. A guinada deliberada do Brasil, de uma agricultura sustentável, utilizando o vasto celeiro de biodiversidade e riqueza genética que possui, para a agricultura industrial, que é ecologicamente destrutiva e leva ao aquecimento global, vem não apenas resultando na marginalização das comunidades rurais como também deixando rastros profundos de destruição ecológica, cujos custos serão assumidos pelas gerações futuras. A dívida ecológica que o Brasil tem criado no processo supera o ganho econômico de curto prazo que ele visa. Como não há jeito de medir o rastro de destruição ecológica em termos econômicos, o Brasil parece inteiramente despreocupado.
 
Eu fico assombrado diante do modo como as empresas de agronegócio, incluindo gigantes internacionais, controlam a economia brasileira. O agrobusiness prospera na destruição das florestas originais, no envenenamento dos solos, minando as águas subterrâneas e contaminando a cadeia alimentar. Estudos recentes evidenciam que os pequenos produtores são os mais atingidos, e acabam migrando em massa para as cidades. Não obstante, o ministro da Agricultura, assim como o (da Indústria e) do Comércio, parece simplesmente facilitar a encampação empresarial da agricultura e, assim, almejam políticas agrícolas e comerciais que não projetam nem protegem os interesses de produtores e do meio de vida, não apenas do Brasil, mas também de outros países em desenvolvimento.
 
Que papel o senhor espera que Estados Democráticos como a Índia e o Brasil podem desempenhar na construção de uma Nova Ordem Mundial livre da fome, com agricultura sustentável, respeito pela biodiversidade, com justiça social e comércio justo? Sendo o seu país considerado a maior democracia do Mundo e tendo o senhor uma abordagem crítica sobre a relutância do governo indiano em prevenir situações de opressão social, qual o problema com a Democracia? Falhando em garantir poder real ao povo em tantos países, deve a Democracia ser aprofundada e redesenhada?
 
Devinder Sharma: Houve um tempo em que Abraham Lincoln afirmou que "a democracia é do povo, pelo povo e para o povo". Hoje, as propaladas democracias ao redor do mundo, incluindo a Índia, o Brasil e os Estados Unidos, tornaram-se "da indústria, pela indústria e para a indústria". Gigantes democráticos do mundo em desenvolvimento – Brasil, Índia, África do Sul – estão ocupados criando uma nova ordem mundial onde o interesse empresarial reine supremo. Os governos em todos esses países perderam o contato com as massas e seguem um modelo econômico que não enxerga nada além de negócios, comércio e indústria.
 
Na Índia, que reivindica o título de maior democracia do mundo, não há justificativa plausível para o fato de que um terço da população de 1,2 bilhões de pessoas esteja vivendo com fome. Com quase 47% das crianças com idade inferior a seis anos subnutridas, e com 55% da população classificada pelo PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) como afetada pela pobreza, a Índia projeta-se a si mesma como uma superpotência emergente. Nos anos recentes, desde que a Índia se antecipou na liberalização econômica, as disparidades econômicas têm apenas aumentado. Os ricos se tornaram mais ricos e os pobres vêm sendo empurrados contra a parede. O gradual apossamento dos recursos naturais pela indústria tem criado um sentimento de desesperança entre as comunidades tribais. O aprofundamento da desconfiança, entre os mais pobres das regiões mais pobres do país, em relação às políticas de governo é de tal ordem que quase um terço do país, principalmente o rico cinturão mineral (estados do Nordeste e Centro-Norte da Índia), enfrenta rebeliões lideradas pelos maoístas.
 
Eu me admiro como a Índia pode ser uma orgulhosa democracia se sucessivos governos têm falhado em satisfazer as aspirações da maioria da população. Como fome e pobreza podem existir em escala tão dramática numa democracia? A projeção do crescimento econômico, onde se reivindica ter a segunda maior taxa de crescimento econômico, pouco se espelha nas realidades. Os governos perderam o contato com as massas e o poder real está nas mãos do empresariado. Tanto é assim que a maioria dos representantes populares eleitos para o Parlamento agora são milionários. Você não pode vencer uma eleição se não for rico. A verdadeira essência da democracia, conseqüentemente, se perdeu. A democracia se tornou uma ‘Empresariocracia’. Acredito fortemente que é chegado o tempo de uma revisão sobre o significado de democracia.
 
Na medida em que se submetem ao controle empresarial, as democracias perdem essência e comprometem o papel para o qual foram concebidas por nossos antepassados. Quero dizer, o mundo dos negócios, certamente, não vai nos propiciar equidade e justiça.
 
O senhor tem sustentado que os mercados de capitais são os principais protagonistas do esgotamento dos recursos naturais em escala planetária e na manutenção da fome e da injustiça. O neoliberalismo disseminou a idéia de que o capitalismo ainda é o grande propulsor do desenvolvimento e, de fato, países emergentes, como Índia, China e Brasil, têm crescido a altas taxas em parte devido a grandes influxos de capital. Acredita em caminhos alternativos ao desenvolvimento que beneficiem as maiorias e minorias excluídas de modos social e ambientalmente sustentáveis?
 
Devinder Sharma: Não há outra inovação – se você não gosta do termo invenção – nos tempos recentes que não apenas influenciou, mas acelerou o processo do consumo desenfreado do que a emergência de Wall Street. De fato, os economistas podem se recusar a aceitar isso agora e por razões óbvias, mas os mercados de capitais levarão o mundo na direção da extinção da espécie humana, como nos alertou o cientista australiano Frank Fenner.
 
Eu fico impressionado com a maneira como opera o mercado de capitais. Esses mercados transformaram tudo em commodity. Grande parte dos males ambientais do mundo é conseqüência direta do mercado de capitais. Os mercados de capitais sugarão cada gota d’água – ou outro recurso natural – do planeta. Há um preço para tudo, incluindo o ar que você respira.
 
A ‘economia do crescimento’ que as economias emergentes perseguem é, na realidade, nada mais que economia da violência. Ela desencadeia violência contra os recursos naturais, contra o clima, contra a natureza e também contra o próximo, o ser humano. Ela retira os recursos naturais, físicos e também financeiros das mãos dos pobres para os bolsos dos ricos e das elites. Dizem-nos freqüentemente que os 20% de providos da população mundial controlam e usam os recursos dos 80% dos desprovidos. A globalização reforça ainda mais esse monopólio e amplia as disparidades já existentes. Tira recursos das mãos dos pobres para adicionar à fortuna dos ricos.
 
Muitos pensadores e economistas de sensibilidade social têm argumentado que é inevitável primeiro alavancar o PIB por todos os meios e somente depois implementar políticas de distribuição de rendas. Como o senhor concebe o desenvolvimento no quadro internacional atual?
 
Devinder Sharma: Os economistas são uma raça esperta. Eles conceberam o PIB como um indicador de crescimento. Eles o moldaram com tanta destreza que nós aceitamos um indicador de riqueza pessoal como um ponteiro para o desenvolvimento nacional.
 
Quanta ilusão de crescimento eles criaram. Eles fizeram com que tudo, incluindo o clima global, se pareça com uma commodity a ser vendida e explorada. Quanto mais você explora, mais o PIB sobe. Você pode destruir um país numa guerra, e então você o reconstrói e o PIB se eleva. Isso é o que aconteceu com o Iraque.
 
O PIB, para o leigo, significa o montante de dinheiro que troca de mãos. Se você compra um carro, o PIB sobe. Se você corta uma árvore, o PIB sobe. Mas se você preserva a árvore, o PIB pode não crescer. Agora você tem que decidir se precisa da árvore ou do PIB.
 
Se você visualizar globalmente, o aumento no PIB não tem levado a desenvolvimento integral. Mesmo nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo, a fome quebrou um recorde de 14 anos. Hoje, uma em cada 10 pessoas passa fome. A menos que a gente reverta essa prescrição deformada de crescimento econômico, nós nunca teremos a renda sendo distribuída razoavelmente em qualquer população. Vale lembrar, o PIB não é a pedra de toque do desenvolvimento. Ele é uma cortina de fumaça para que o rico explore o pobre.
 
No contexto da atual crise econômica e seu impacto sobre a agricultura e a segurança alimentar, que diretrizes e abordagens, em sua opinião, devem ser adotadas por países em desenvolvimento no sentido de prevenir desastres e retomar o desenvolvimento social sustentável?
 
Devinder Sharma: O colapso econômico atual trouxe globalmente US$ 20 trilhões em pacotes de ajuda. Esses pacotes beneficiaram bancos e firmas de investimento que, na verdade, deveriam ter sido penalizadas por levar a economia mundial à beira do precipício. Ao invés disso, eles receberam aplausos e honrarias pelo crime econômico que cometeram com toda impunidade.
 
A questão que precisa ser colocada é: por que o mundo injetou tanto dinheiro em bancos e empresas de investimento? A resposta é que o objetivo é manter o fluxo financeiro, que permitirá aos governos manter o ritmo do crescimento econômico. Eu tenho perguntado constantemente onde está o objetivo subjacente dessa generosidade. A resposta que obtenho é de que o objetivo é reduzir a fome e a pobreza ao proporcionar oportunidade de renda e meios de vida. Se não há crescimento não haverá oportunidades para criação de meios de vida. Isso é certamente divertido, com jeito de arrogância intelectual beirando a estupidez.
 
O que está sendo camuflado é que o mundo necessita apenas de US$ 1 trilhão para eliminar a fome, doenças e pobreza da face do planeta. Nós não temos dinheiro para isso. Mas nós temos US$ 20 trilhões para socorrer os corruptos e escroques dos negócios e da indústria.
 
Superar as barreiras políticas, econômicas e ideológicas estruturais ao desenvolvimento social e sustentável, incluindo zerar a fome, certamente não é tarefa fácil. Como poderemos lidar, nessa luta, com os desafios extras representados pelas chamadas emergências globais, como aquecimento global, mudanças climáticas, perda de biodiversidade e crise energética?
 
Devinder Sharma: As barreiras estruturais ao desenvolvimento social e sustentável, incluindo combater a fome, estão, na verdade, entremeadas nas políticas neoliberais equivocadas. Os desafios extras das mudanças climáticas, aquecimento global, perda de biodiversidade e da sempre crescente crise energética são também resultados do paradigma do crescimento.
 
Deixe-me fazer uma pergunta. Se a prescrição econômica para a economia global que o mundo vem seguindo é tão boa, por favor, me diga por que o mundo chegou a essa beira de precipício? Por que os recursos naturais do planeta foram poluídos e pilhados? Por que os rios estão fluindo sujos, e por que as fontes de água limpa estão todas secando?
 
Por que a biodiversidade tem desaparecido a um ritmo tão alarmante, trazendo o mundo mais próximo da extinção? Por que motivo o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, promovido pela ONU) chega ao ponto de nos alertar que, se não procedermos a uma mudança radical no modo em que o mundo progride, não haverá tempo suficiente para evitar um colapso da população humana? Essa é uma clara denúncia das políticas econômicas que o mundo foi levado a seguir. As emergências que você menciona são o resultado de um pensamento econômico grosseiramente falho.
 
A resposta está no que Mahatma Gandhi nos falou. Ele disse que a Terra tem o suficiente para a necessidade de cada um, mas não para a ganância. Ele também nos disse que se faz necessário um sistema de produção pelas massas e não para as massas. Esse, em essência, é o fundamento do conceito de soberania alimentar de que a sociedade civil fala. Ao invés de fomentar o livre comércio, usando a OMC (Organização Mundial do Comércio) como agente policial para basicamente disponibilizar mercado à produção agrícola altamente subsidiada dos países da OCDE (Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico, ou "Clube dos Países Ricos"), o mundo deve voltar-se ao atendimento da auto-suficiência alimentar. Tornar os países dependentes de importações de alimentos é uma receita para o desastre, mas certamente soma para o PIB e, o que não é dito, quanto mais comércio, mais aquecimento global.
 
Contudo, você se surpreenderá em saber que nos últimos 30 e poucos anos, desde que o Banco Mundial e o FMI começaram os programas de ajustes estruturais, 105 dos 149 países do Terceiro Mundo se tornaram importadores de alimentos. Se a Rodada de Doha, da forma como tem sido concebida, chegar a uma conclusão em breve, escreva o que estou dizendo, o restante dos países do Terceiro Mundo também se tornará importador de alimentos a qualquer momento. E não se esqueça: importar alimentos é como importar desemprego. Os alimentos se tornarão, então, a mais forte das armas políticas.
 
Como o senhor avalia o papel exercido pelas Nações Unidas e seu Sistema (PNUD, FAO e outras) no esforço para enfrentar os principais problemas da Humanidade? A ONU estabeleceu os Objetivos do Milênio (ODM) a serem atingidos em 2015. Isso irá funcionar?
 
Devinder Sharma: Os Objetivos do Milênio não vão dar certo. Lembro que quando a Cúpula Mundial sobre Alimentação, em 1996 (em Roma), anunciou que é criminoso observar 24.000 pessoas sucumbindo ante a fome todos os dias e os dirigentes internacionais manifestavam urgência no enfrentamento da fome, prometendo reduzir em 50% as estimadas 842 milhões de pessoas famintas até 2015, eu reagi com choque e desgosto. Disse, então, que isso é um caso clássico de desonestidade política.
 
Pelo tempo que o mundo promete reduzir à metade o número de famintos, considerando que 24.000 pessoas morrem de fome todos os dias em algum lugar, 128 milhões de pessoas podem ter sucumbido apenas pela fome. Como isso pode ser classificado como emergência? Não seria isso um crime contra a Humanidade?
 
Os ODM meramente reiteraram a promessa da Cúpula Mundial sobre a Alimentação. E, como sabemos hoje, o número de famintos na verdade aumentou: de 842 milhões em 1996 para 1,1 bilhão em 2010. A ONU pode com certeza se vangloriar, se mostrar satisfeita com sua ‘grande’ missão humanitária. Mas a realidade é que a ONU não é nada melhor que o Banco Mundial. A linha fronteiriça entre a ONU e o Banco Mundial foi borrada com o passar dos anos.
 
Quais as suas visões sobre Cooperação Sul-Sul? Países como Índia e Brasil compartilham condições similares em muitos aspectos, mas continuam mantendo relativamente fracos comércio e intercâmbio técnico-científico. Velhos vínculos Norte-Sul, heranças estruturais do colonialismo, parecem colidir com a perspectiva de os países do Terceiro Mundo se associarem no enfrentamento de desafios comuns. O que o senhor acha que Índia e Brasil poderiam fazer em conjunto pelo avanço da luta contra a fome e pelo desenvolvimento sustentável em seus respectivos países e em outros?
 
Devinder Sharma: Cooperação Sul-Sul soa agradável. Os acadêmicos têm usado isso em resposta ao "fator NHA" (não há alternativa). Eu sempre acho graça quando ouço falar em cooperação Sul-Sul. Eu não conheço nenhum país do Sul que não almeje imitar o Norte. O que quer que os líderes políticos possam dizer, eles se sentem honrados quando convidados a se alinhar para a foto nas cúpulas do G20. Os acadêmicos fazem o mesmo; os economistas, claro, extrapolam. Se você observa os currículos, lá está a menção orgulhosa de universidades do Norte que eles visitaram ou onde realizaram trabalhos.
 
Mesmo quando o presidente Lula e o primeiro-ministro Manmohan Singh falam em colaboração bilateral, no mais das vezes é para promover o mesmo sistema que eles tomam emprestado dos países ocidentais. Na verdade, a cooperação Sul-Sul, quando existe, é construída sobre os mesmos princípios de exploração. O ‘big brother’ faz exatamente o mesmo, com seu primo menor, que os Estados Unidos fazem com a Índia e o Brasil.
 
Isso não significa que a cooperação Sul-Sul não seja possível. Tudo que ela precisa como ponto de partida é confiança e respeito. Isso só é possível se o líder do país mais desenvolvido exibe estadismo político e se abstém do papel de peixe grande que come o peixe menor. Tenhamos esperança de que, algum dia, alguém mostre sagacidade política e uma nova ordem possa então surgir.
 
A título de exemplo, está sendo anunciado na África um programa ambicioso, o AGRA – Aliança para a Revolução Verde na África (Alliance for Green Revolution in África) -, com o objetivo de incrementar a produção agrícola. Kofi Annan (ex-Secretário Geral da ONU) está à frente desta iniciativa. Lamentavelmente, esse programa é baseado em agricultura industrial e incentiva o domínio empresarial da agricultura.
 
A AGRA não é o que a África precisa. Nesse caso, melhor teria sido a África buscar cooperação Sul-Sul com países em desenvolvimento, apostando em sistemas agrícolas que não matam os agricultores. A África precisaria aprender as lições do fiasco da revolução verde na Índia. Mais de 200 mil camponeses cometeram suicídio nos últimos 15 anos na Índia, essencialmente porque a equação da revolução verde deu errado.
 
Estou certo de que os líderes africanos não desejam que seus camponeses morram. Portanto a África não precisa da AGRA, mas sim da ‘SAGRA’ - Agricultura Sustentável para a África (Sustainable Agriculture for Africa).
 
No começo de setembro, Moçambique foi palco de agitações populares. Sete pessoas foram mortas quando manifestantes se mostraram inconformados com o aumento do preço do pão. O senhor acha que isso pode indicar uma nova crise de alimentos mundial como se esboçou em 2007-2008? 
 
Devinder Sharma: As manifestações por comida em Moçambique e as crescentes tensões no Paquistão, Egito e Rússia siberiana por causa da espiral altista de preços de alimentos evidenciam a crise mundial de alimentos e suas vulnerabilidades. Apesar de a FAO-ONU mostrar preocupações – mas não o receio de repetição da crise de 2007-2008 –, não se vê nenhuma iniciativa em superar os desequilíbrios do sistema de gerenciamento dos alimentos que ocasionam a crise. Enquanto o mundo assiste a agitações populares por alimentos em 37 países, os estoques de grãos de empresas multinacionais e de tradings deram um salto.
 
Não se vê nenhum aprendizado com a débâcle que aconteceu em 2007-2008. Na verdade, o G-20 tem encorajado uma repetição do problema. Ele tem orientado seus países membros a remover tudo que impeça investimentos estrangeiros diretos em varejo de alimentos e, ao mesmo tempo, pressiona agressivamente os países em desenvolvimento a removerem todas as barreiras comerciais nos Acordos de Livre Comércio e outros tratados regionais. Os países em desenvolvimento, portanto, têm se tornado cada vez mais importadores de alimentos. Observemos que Moçambique teve suas manifestações populares quando a Rússia impôs proibição à exportação de trigo por mais um ano após uma seca severa e incêndios no campo.
 
O que aconteceu em Moçambique nesse setembro é algo que pode se repetir em qualquer lugar nos anos vindouros. A menos que o mundo incentive os países em desenvolvimento e os menos desenvolvidos a se tornarem auto-suficientes em grãos alimentares, a ameaça iminente de distúrbios continuará sobre a cabeça das nações como espadas de Dâmocles. Entretanto, como o assunto afeta os interesses dos gigantes do agronegócio, o G-20 prefere encarar de outra maneira.
 
Eduardo Almeida é jornalista.

Crise social em Portugal...

1/5 dos que recebem apoio social não tem o que comer

Existem quase cinco mil pessoas na fila de espera e a maioria esmagadora das 200 mil que recorrem ao Banco Alimentar são mulheres. Metade dos que procuram comida ganha menos de 250 euros.
1/5 das pessoas ajudadas por instituições de apoio social não tem o que comer. Existem quase cinco mil pessoas na fila de espera e a maioria esmagadora das 200 mil que recorrem ao Banco Alimentar é de mulheres. Metade dos que procuram comida ganha menos de 250 euros. Foto Paulete Matos
Foto Paulete Matos.

Mais de um quinto das pessoas que procuram instituições de solidariedade sente falta de alimentos pelo menos uma vez por semana, segundo um inquérito realizado pela Universidade Católica, em parceria com o Banco Alimentar e a Associação Entreajuda.
Do universo de 4691 usuários de mais de 500 instituições que responderam aos questionários, 27 por cento mencionaram estar um dia inteiro sem comer algumas vezes por semana ou pelo menos uma vez.
“Vinte por cento diz não ter comida até ao final do mês, 32 por cento diz que tal acontece às vezes e 49 por cento diz ter sempre comida até ao fim do mês”, refere ainda o estudo divulgado este domingo.
Sessenta e seis mil famílias recorrem à rede do Banco Alimentar Contra a Fome (BACF) o que corresponde a mais de 200 mil pessoas, segundo a análise da Universidade Católica. Na amostra recolhida para o estudo há 75 por cento de mulheres, o que “pode dever-se ao fato de serem elas que, dentro do agregado familiar, mais se dirigirem às instituições a pedir ajuda”.
No que respeita ao apoio em medicamentos, pode concluir-se que atualmente são 6600 as famílias ajudadas, num total de quase 16 mil pessoas. Estima-se ainda que as instituições que pertencem à rede do BACF dão igualmente apoio monetário a 5700 famílias e 11 968 pessoas.
Numa análise mais detalhada por faixa etária, o questionário mostra que são pelo menos 74 mil as crianças que recebem apoio alimentar da rede do BACF, número que o próprio estudo admite estar aquém da realidade.
Nos últimos três anos, mais de 70 por cento das instituições de solidariedade social registaram mais pedidos de apoio para alimentação, situação atribuída sobretudo pelo aumento do desemprego. É a vulnerabilidade econômica decorrente quer do aumento do desemprego, quer das baixas reformas, que, a par de rupturas familiares, estão na base do aumento da procura alimentar”, conclui a análise.
O inquérito do Centro de Estudos e Sondagens da Católica foi respondido por 1500 organizações de solidariedade que integram a rede do Banco Alimentar, num universo de mais de 3200 instituições.
 
A pobreza que vem com a sobrevivência e não com o luxo

Segundo o estudo, cerca de um terço dos inquiridos contraiu empréstimos, a esmagadora maioria para a compra de casa, mas so menos de metade dizem pagar sempre as mensalidades.
Além da compra de casa (53 por cento), o carro (19 por cento) e os electrodomésticos (16 por cento) são os bens que mais frequentemente são comprados a crédito. Apenas seis por cento diz ter recorrido a crédito para adquirir um televisor, verificando-se a mesma percentagem para consolas de jogos.
Da análise resulta ainda que quatro em cada dez pessoas só compram os medicamentos quando têm dinheiro ou optam pelos mais baratos, não conseguindo adquirir sempre os remédios que são receitados pelo médico.
Numa auto-avaliação à sua situação económica, 72 por cento dos inquiridos sentem-se pobres, com uma larga maioria a atribuir a culpa da sua situação à própria sociedade (situações de desemprego ou rendimentos baixos).
 
Fonte: EsquerdaNet

A crítica para além do voto: ilusões perigosas

Israel Dutra  
Jornal Brasil de FatoAs eleições terminaram com o previsível: venceu Dilma, candidata da situação.  Dentro da esquerda, diferentes posturas nas eleições levarão a diferentes posturas ante o novo governo.
O MST é, sem lugar a dúvidas, um dos principais movimentos sociais no país. Sua combatividade, capacidade de articulação e presença nacional o colocam como um dos principais atores de qualquer mapa político e social. Em suma, o MST é um patrimônio para a esquerda brasileira.  Ao redor do MST, agrupam-se dinâmicos setores: Via campesina, movimentos rurais e comunitários, pastorais ecumênicas e ativistas da esquerda católica, bem como núcleos urbanos e juvenis , intelectuais com ativa participação acadêmica e universitária. O jornal Brasil de Fato é a expressão política da convergência destes setores. O jBF dá unidade política em sua linha editorial. No segundo turno das eleições presidenciais, foi através do jBF que a direção do MST anunciou a sua orientação política.
Neste caso, nossa crítica se direciona ao apoio à Dilma. Não se trata apenas do voto. Sabemos que um voto é tático. Não se questiona o voto Dilma, muitos setores, o fizeram, sem semear ilusões. A decisão do PSOL, aprovada pela  sua executiva, dialogava com esses setores, como se verifica em artigo de Pedro Fuentes, secretário de relações internacionais do PSOL: "A resolução reconhece que os governos de Dilma e Serra terão posturas contrárias aos trabalhadores e ao povo. Por esta razão, Plínio de Arruda Sampaio já declarou que votará nulo, e um grande setor do partido seguirá esse caminho. Mas, também compreende que os candidatos não expressam exatamente a mesma coisa, sobretudo em sua relação com os movimentos de massas. Por isso, levando em conta o diálogo estabelecido pelo PSOL com um setor de massas que ainda acredita em Dilma, foi resolvido o veto a Serra" . Uma coisa é votar. Outra, bem diferente, é depositar confiança no governo eleito.
O mais grave foram os motivos que levaram a esta postura explicitada pelo jBF. Tais motivos, somando-se a forma como se apresentou este apoio militante, geram um precedente complicado, uma sinalização perigosa.
Uma posição grave, que geraria a ruptura de um dos principais articulistas até então deste setor, o jornalista Arbex Jr. Em carta aberta, Arbex fez o seguinte diagnóstico:" A situação agora é qualitativamente nova. O jornal Brasil de Fato transformou-se num planfletão lulista, e isso marca - na minha opinião, obviamente - reflexo de um processo de desmantelamento histórico do MST e de ruptura de uma boa parte da esquerda com sua própria história e princípios éticos. Trata-se de uma debandada tão grande e imunda que permite, entre outras coisas, que lideranças da "esquerda" declarem sem ruborizar o seu apoio ao agronegócio, à aliança com os neocompanheiros José Sarney e Michel Temer e o acobertamento cúmplice e conivente de manobras sórdidas nos corredores palacianos."
A posição  do jBF é sustentada com base a um provérbio chinês. Segundo o Editorial do nº 398 "como ensina a velha sabedoria chinesa, quem não sabe contra quem luta, jamais poderá vencer". Eis a questão. Como enfrentar os desafios do novo governo? Contra quem e pelo que lutamos? Para orientar um roteiro de debate que encare tais problemas candentes, temos que identificar onde está o "núcleo" da posição do MST/Brasil de Fato. Tal postura, que pode acabar como correia de transmissão do Planalto, se sustentava em três pilares : a identificação de Serra com o fascismo, a polarização programática no segundo turno e a possibilidade de um "retrocesso".
Os riscos são altos. Por conta disso, a polêmica se faz mais do que necessária.
Três hipóteses equivocadas
O editorial do jBF apostou suas fichas nas três hipóteses.
Hipótese um: Serra é fascista. Durante todo o segundo turno, o jornal retratou, com alta dose de sensacionalismo, o candidato do PSDB como expressão orgânica do fascismo no Brasil. Chegando a afirmar[  Editorial n° 399] que a campanha de Serra orbitava no eixo da extrema direita, conduzido por "membros do comitê de campanha do candidato da aliança DEM-Tucanos- TFP-CCC-Integralistas-Monarquistas,."  Que Serra é de direita, apoiado em setores conservadores, isso é óbvio. É um exagero, porém, construir um sinal de igual entre o programa, o partido, a trajetória de Serra e a extrema direita. Se Serra fosse fascista, certamente, com 45% dos votos, representaria um perigo de golpe imediato para as instituições. Os "setores populares" deveriam, assim, encabeçar uma campanha para que Dilma pudesse assumir, constitucionalmente, o governo.  Nada mais falso. Utilizando iniciativas pontuais, de setores marginais do conservadorismo, declarações do vice Índio da Costa, o jBF engrossou a fileira dos órgãos lulistas que invertiam a realidade. Serra representa interesses da burguesia, sobretudo paulistana, e da grande mídia. Seu partido é o carro chefe da oposição de direita, mas, passa longe de uma caracterização de fascista. O fato de setores fundamentalistas religiosos e organizações mais à direita votarem Serra não transformam os tucanos num partido fascista. Dilma era apoiada pelo PP, de Bolsonaro e outros resquícios da ditadura. Seria leviano acusá-la de fascista por conta de seu pragmatismo. Levantar o cadáver do fascismo, como forma de promover a campanha Dilma nas camadas mais à esquerda foi um golpe baixo orquestrado pelo petismo, lamentavelmente tendo no jBF sua linha auxiliar.
Hipótese dois: a polarização, no segundo turno, levaria Dilma à esquerda. Segundo este raciocínio, a contragosto da direção do PT, a candidata iria se aproximar de seus "aliados verdadeiros", numa campanha muito mais politizada e "programática". O que se viu no mês de outubro  foi uma realidade distante da paisagem idealista pintada pelos articulistas do jornal. As duas principais pautas do segundo turno foram o aborto e o caso da "Bolinha de papel". Incrível. A grande polarização esperada se resumiu a estes dois elementos. Dilma se apressou em dissociar-se da luta pela descriminalização do aborto, frustrando expectativas em relação à causa feminista. Nem havia ganho a eleição, a primeira mulher presidente já sacrificava uma pauta histórica, que vem recebendo apoio em vários lugares do mundo. Noutro caso de incoerência, Dilma contestou as privatizações tucana s, mas, sequer tocou nas privatizações lulistas. Nenhuma palavra sobre a Vale do Rio Doce e sobre o limite da propriedade agrária, acreditem, as duas principais pautas que os setores referenciados no jBF construíram nos últimos dois anos. A suposta esquerdização de Dilma se esvaiu ao longo do segundo turno.
Hipótese três: no caso de uma vitória tucana, assistiríamos um retrocesso, nas relações com os movimentos sociais e no âmbito da política internacional. Este argumento era  o que, de fato, tinha mais sentido. A política externa brasileira teve méritos nos últimos anos. Contudo,  o discurso de que o Brasil iria mergulhar numa "noite política",  com o novo governo se alinhando diretamente a Colômbia é frágil.  O Chile transitou de um governo social-liberal para um governo conservador e não se verificou grandes sobressaltos. Em relação aos movimentos sociais e criminalização da pobreza, o que dizer dos governos Paes/Cabral com sua política de "choque de ordem".?
Ou ainda, como os camponeses do Pará enxergam o governo Ana Júlia, vanguarda na repressão aos movimentos sociais e populares?
Uma política externa mais independente, operada pelo governo Lula, não pode custar o apoio dos movimentos sociais a um projeto comprometido com o grande capital.
O que se pode esperar do novo governo?
A principal tarefa da esquerda socialista no presente momento é explicar para os milhões que votaram em Dilma com expectativas de melhorias em sua vida, o que pode esperar do novo governo. A propaganda governamental, a novidade de uma mulher assumir a presidência da república leva a uma euforia. O Brasil de Lula, o Brasil de Dilma, da copa de 2014 vai, finalmente, "andar para frente"?
Para responder a esta dúvida, precisamos olhar os aliados e propostas do governo. O bloco PT/PMDB/PSB e aliados governa  15 estados, com ampla maioria nas duas Câmaras. A popularidade de Lula é recorde.  O Brasil, aproveitando da crise econômica mundial, com uma política de expansão de mercados, optou por firmar seu perfil social-liberal. Ou seja, uma visão mais estatista, subordinando países menores da América Latina. Com essa operação, em estreita aliança com construtoras, empreiteiras e outros grandes capitalistas, o Estado brasileiro ajudou a "aquecer" a economia. O maior investimento em assistência social foi utilizado para credencia a imagem de "popular". Este modelo potencializou como nunca o lucro dos bancos, do agronegócio e dos setores produtivos e rentistas do capital. Para o jBF, Serra era o candidato dos "ricos" e Dilma, das "demandas populares". Pensando na agenda do novo governo, concluímos, tragicamente, que tal imagem é falsa. Apesar de celebrar uma derrota da "direita"- o que é verdade, do ponto de vista dos partidos tradicionais da oposição direitista, DEM e PSDB- teremos um receituário amargo.
O governo Dilma terá que lidar com temas como a Terceira reforma da previdência, fator previdenciário, reforma agrária, verbas para a educação pública, descriminalização do aborto, abertura dos arquivos da ditadura militar. Suas primeiras declarações caminham no sentido da continuidade do modelo lulista. Dizemos, este é o governo dos latifundiários, do agronegócio, e do grande capital. É o governo de confiança das confederações industriais, das burocracias sindicais. Este não é nosso governo.
A independência é uma questão central
CUT, UNE, Força Sindical já mostraram de que lado vão estar . Cabe ao MST pensar como se localizar. Quando Lula venceu a eleição de 2002, setores levantaram a consigna de "governo em disputa". Os acontecimentos posteriores, como a votação de reformas anti-povo, alianças pragmática, escândalos de corrupção, expulsão dos radicais do PT, ampliação à direita da coalizão de governo sepultaram esta tese. Será que ela vai reaparecer, mesmo que surrada?
Se Lula, com uma popularidade gigantesca não "ousou" realizar as reformas populares e enfrentar  o "pólo atrasado" do governo, porque Dilma o faria.
O jBF, que apresenta o balanço do segundo turno, segue identificando Dilma e o novo governo como algo mais avançado do que Lula:" A presidenta eleita assegurou, durante a campanha, que a reserva petrolífera do pré-sal pertence ao povo brasileiro e a riqueza gerada será utilizada para erradicar a miséria e em investimentos nas áreas sociais da saúde, educação e saneamento básico.(Editorial  do nº 401)".A melhor forma de acompanhar as expectativas que o movimento de massas tem em Dilma é mantendo a independência das organizações, como sindicatos, associações, diretórios, federações entre outros movimentos sociais.
O dirigente mais importante do MST, João Pedro Stédile afirmou que o próximo governo pode ir mais à esquerda, prolongando a tese da polarização do segundo turno. Stédile, antes cedo que tarde, vai encontrar uma encruzilhada: qual o preço político que está disposto a pagar para sustentar as medidas do governo Dilma?
O jBF  indica uma rota de apoio inicial à Dilma(Ed.401):"A presidenta Dilma Rousseff, cumprindo sua promessa eleitoral, terá uma oportunidade histórica para derrotar esses setores entreguistas das nossas riquezas e assegurar ao povo brasileiro o pagamento de uma dívida social que perdura há cinco séculos."
A questão da unidade
O período de experiência é sempre contraditório. Os tempos em política se encontram e desencontram. O antídoto para os desencontros é a unidade em torno da luta, concreta, sensível, imediata. E é a unidade que devemos propor entre os setores populares. Uma ampla unidade em torno de pontos concretos: por exemplo, existe uma forte pressão da burguesia e do Banco Mundial para a realização de uma nova reforma na previdência. A chamada terceira reforma poderá vir a cortar ainda mais direitos, bem como aumentar a idade mínima para a aposentadoria. Qual a política mais correta para enfrentar este problema?
O que farão os setores vinculados ao jBF, os deputados eleitos com votos nos assentamentos, dirigidos por setores do MST? A esquerda social, os jovens que impulsionam coletivos de apoio a reforma agrária, a vanguarda lutadora?
Para além da abstração, temos exemplos concretos do que está por vir. O exemplo da França, lutando contra a reforma previdenciária deve ser uma referência, independente do partido que governa. A classe trabalhadora francesa, em unidade com a juventude, está nos dando inúmeras lições.
Outros temas concretos vão levar a choques com o governo: a postura em relação ao agronegócio, a polêmica sobre a Usina de Belo Monte, o desmatamento da Amazônia.
De nossa parte, com modéstia, fazemos um chamado à unir forças na oposição de esquerda, ainda minoritária, mas com espaço para crescimento. Os eleitores de Marina Silva, das candidaturas da esquerda, mesmo aqueles que votaram em Dilma com toda desconfiança. São esses setores que podem vir a compor um bloco alternativo, na política e  na sociedade brasileira. Este desafio é do PSOL e do conjunto da esquerda. Não sucumbir. As pressões serão enormes. Nossas responsabilidades também. Para concluir no terreno do orientalismo, resgatado pelos camaradas do MST/Brasil de Fato podemos recordar outro provérbio chinês: "Há três coisas na vida que nunca voltam atrás: a flecha lançada, a palavra pronunciada e a oportunidade perdida."

Israel Dutra é professor de sociologia e membro do Diretório Nacional do PSOL

Che pedagogo


Augusto César Petta * no portal vermelho


Fui a Cuba, pela primeira vez, em 1997, juntamente com outros companheiros e companheiras do movimento sindical brasileiro. Naquele momento, os cubanos passavam pelo que denominavam de “período especial”. Além da continuidade do violento bloqueio econômico imposto pelas elites estadunidenses, havia acontecido a queda da experiência socialista na União Soviética. E, claro, como decorrência, o afastamento das relações econômicas da Rússia com Cuba, o que afetava significativamente a qualidade de vida do povo cubano.

Em novembro de 2010, voltei, juntamente com o Secretário-Adjunto de Relações Internacionais da CTB João Batista Lemos, para participar de uma reunião de Centrais Sindicais componentes do Encontro Sindical Nossa América – ESNA e de Centros de Formação Sindical e de Investigação, com o objetivo de definir um programa de formação e investigação na América. Em outro artigo que irei escrever, pretendo transmitir aos leitores, as decisões tomadas na reunião e que se constituem no programa de atividades a serem desenvolvidas.

Nessa viagem, tive contato com um livro denominado “Del pensamiento pedagógico de Ernesto Che Guevara”, escrito pela professora cubana Lidia Turner Martí, doutora em Ciências Pedagógicas, Filosofia e Letras. Acostumado com a observação de que Che foi um grande revolucionário, despojado, capaz de dar sua própria vida para contribuir na luta pela libertação dos povos, não me ocorria que pudesse ter qualidades tais, que permitissem contribuir, de forma significativa, para a pedagogia cubana. Lídia Marti afirma que “o estudo e análise da obra de Che nos leva a afirmar que fez aportes notáveis à pedagogia cubana..... Suas idéias, colocadas em discursos, ensaios, cartas, e até nos diários de campanha, encerram profundas análises da essência do homem, dos métodos para sua formação e da relação estreita entre educação e desenvolvimento econômico e social”. O próprio autor do prólogo do livro, Justo A.C. Rodriguez, confessa que mesmo sendo um leitor entusiasta da obra de Che, não havia reparado na direção pedagógica do seu pensamento.

Para Che é importante que haja uma correspondência entre personalidade individual e pessoa pública, estabelecendo-se uma relação dialética entre o individual e o social. É nessa unidade dialética que se situam as bases para as idéias de Che sobre educação e sobre a formação do homem novo.

Lídia Martí destaca dois elementos que considera fundamentais na obra de Che: a formação de qualidades e valores no homem que constrói uma nova sociedade e a consideração da Pedagogia como uma ciência necessária no processo cubano.

Guevara disse que precisamos formar a juventude, principalmente com as seguintes qualidades: sensibilidade diante dos problemas humanos, amor ao estudo, modéstia, simplicidade, solidariedade, inconformidade diante do mal-feito, intransigência diante da injustiça e do formalismo. Afirma que “neste processo de construção do socialismo podemos ver o homem novo que vai nascendo. Sua imagem não está, todavia, acabada; não poderia estar nunca, já que o processo marcha paralelo ao desenvolvimento das forças econômicas novas...”. Para Che, o coletivismo – que se desenvolve no trabalho grupal - deve ser uma qualidade importantíssima na construção da personalidade do homem socialista. Nesse sentido, ele se opõe ao individualismo que chega a ser exacerbado nas sociedades capitalistas. Nelas, principalmente nas classes dominantes, prevalecem valores opostos aos que Che defende para o novo homem socialista.

Com a prevalência dos valores socialistas, Che sintetiza sua preocupação pedagógica: “A sociedade em seu conjunto deve converter-se numa grande escola”.

Nessa segunda viagem a Cuba, 13 anos depois da primeira, pude verificar que os valores para um novo tipo de ser humano - solidário e inconformado diante das injustiças - continuam sendo construídos pelo povo cubano.
* Professor, sociólogo, Coordenador Técnico do Centro de Estudos Sindicais (CES), membro da Comissão Sindical Nacional do PCdoB, ex- Presidente do SINPRO-Campinas e região, ex-Presidente da CONTEE.