terça-feira, 7 de dezembro de 2010

No Brasil, de prisioneira a Presidente - Entrevista com Dilma Rousseff


Integra da entrevista de Dilma Rousseff ao Washington Post, com tradução de Paula Marcondes e Josi Paz, revisão de Idelber Avelar. Extraido do blog do Cadu


Ter sido uma presa política lhe dá mais empatia com outros presos políticos?

Sem dúvida. Por ter experimentado a condição de presa política, tenho um compromisso histórico com todos aqueles que foram ou são prisioneiros somente por expressarem suas visões, sua opinião pública, suas próprias opiniões.

Então, isso afetará sua política em relação ao Irã, por exemplo? Por que o Brasil apóia um país que permite o apedrejamento de pessoas, que prende jornalistas?

Acredito que é necessário fazermos uma diferenciação no [que queremos dizer quando nos referimos ao Irã]. Eu considero [importante] a estratégia de construir a paz no Oriente Médio. O que vemos no Oriente Médio é a falência de uma política – de uma política de guerra. Estamos falando do Afeganistão e do desastre que foi a invasão ao Iraque. Não conseguimos construir a paz, nem resolver os problemas do Iraque. Hoje, o Iraque está em guerra civil. Todos os dias, morrem soldados dos dois lados. Tentar trazer a paz e não entrar em guerra é o melhor caminho.

[Mas] eu não endosso o apedrejamento. Eu não concordo com práticas que possuem características medievais [quando se trata de] mulheres. Não há nuances; não faço concessões nesse assunto.

O Brasil se absteve em votar na recente resolução sobre os direitos humanos na ONU .

Eu não sou Presidente do Brasil [hoje], mas eu me sentiria desconfortável, como mulher eleita Presidente, não dizendo nada contra o apedrejamento. Minha posição não vai mudar quando eu assumir o cargo. Eu não concordo com a forma em que o Brasil votou. Não é minha posição.

Muitos norte-americanos sentiram empatia pelo povo iraquiano iraniano que se rebelou nas ruas. Por isso me pergunto se sua posição sobre o Irã seria diferente daquela do seu atual Presidente, que possui boa relação com o regime iraquiano iraniano.

O Presidente Lula tem seu próprio histórico. Ele é um presidente que defendeu os direitos humanos, um presidente que sempre apoiou a construção da paz.

Como a Sra. vê a relação do Brasil com os EUA? Como gostaria de vê-la evoluir?

Considero a relação com os EUA muito importante para o Brasil. Tentarei estreitar os laços. Eu admirei muito a eleição do Presidente Obama. Acredito que os EUA revelaram uma grande capacidade de mostrar que são uma grande nação, e isso surpreendeu o mundo. Pode ser muito difícil ser capaz de eleger um Presidente negro nos os EUA - como era muito difícil eleger uma mulher Presidente do Brasil.

Eu acredito que os EUA têm uma grande contribuição a dar ao mundo. E, acima de tudo, acredito que o Brasil e os EUA têm um papel a cumprir juntos no mundo. Por exemplo, temos um grande potencial para trabalhar juntos na África, porque na África podemos construir uma parceria para disponibilizar tecnologias agrícolas, produção de biocombustíveis e ajuda humanitária em todos os campos.

Também acredito que, neste momento de grande instabilidade por causa da crise global, é fundamental que encontremos formas que garantam a recuperação das economias dos países desenvolvidos, porque isso é fundamental para a estabilidade do mundo. Nenhum de nós no Brasil ficará confortável se os EUA mantiverem altos índices de desemprego. A recuperação dos EUA é importante para o Brasil porque os EUA têm um mercado consumidor fantástico. Hoje, o maior superávit comercial dos EUA é com o Brasil.

A Sra. culpa o afrouxamento monetário [quantitative easing] por isso?

O afrouxamento monetário é um fato que nos preocupa muito, porque significa uma política de desvalorização do dólar que tem efeitos sobre o nosso comércio exterior e também na desvalorização da nossas reservas de divisas, que são em dólares. Para nós, uma política de dólar fraco não é compatível com o papel que os EUA têm, já que a moeda dos EUA serve como reserva internacional. E uma política sistemática de desvalorização do dólar pode provocar reações de protecionismo, que nunca é uma boa política a ser seguida.

Quando a Sra. planeja visitar os EUA? Sei que foi convidada para antes de sua posse, em 1º de janeiro, mas não podia ir.

Eu não estou aceitando os convites que recebo. Não estou visitando países estrangeiros. Tenho que montar o meu governo. Tenho 37 ministros para nomear. Estou planejando visitar o Presidente Barack Obama nos primeiros dias após minha posse, se ele me receber.

Então a Sra. convidará o Presidente Obama para vir ao Brasil?

Nós já o convidamos informalmente, durante a reunião do G-20.

Há preocupações na comunidade empresarial dos EUA sobre se o Brasil continuará o caminho econômico definido pelo Presidente Lula.

Não há dúvida sobre isso. Por quê? Porque para nós foi uma grande conquista do nosso país. Não é uma conquista de uma única administração - é uma conquista do Estado brasileiro, do povo de nosso país. O fato de que conseguimos controlar a inflação, ter um regime de câmbio flexível e ter a consolidação fiscal de forma que, hoje, estamos entre os países com a menor relação dívida / PIB do mundo. Além disso, temos um déficit não muito significativo. Não quero me gabar, mas temos um déficit de 2,2 por cento. Pretendemos, nos próximos quatro anos, reduzir a proporção dívida / PIB para garantir essa estabilidade inflacionária.

A Sra. disse publicamente que gostaria de ver as taxas de juro caírem. A Sra. irá cortar o orçamento ou reduzir o aumento anual de gastos do governo?

Não há como cortar as taxas de juros a menos que você reduza seu déficit fiscal. Somos muito cautelosos. Temos um objetivo em mente: que as nossas taxas de juros sejam convergentes com as taxas de juros internacionais. Para conseguir chegar lá, um dos pontos mais importantes é a redução da dívida pública. Outra questão importante é melhorar a competitividade de nossos setores agrícola e de manufatura. Também é muito importante que o Brasil racionalize seu sistema fiscal.

Se a Sra. quer baixar as taxas de juros, a Sra. tem que cortar os gastos ou aumentar a economia doméstica.

Você não pode se esquecer do crescimento econômico. Você tem que combinar muitas coisas.

Qual é seu plano?

Meu plano é continuar a trajetória que seguimos até aqui. Conseguimos reduzir nossa dívida de 60% para 42%. Nosso objetivo é atingir 30% do PIB. Eu preciso racionalizar os meus gastos e, ao mesmo tempo, ter um aumento do PIB, que leve o país adiante.

Então o que a Sra. quer dizer com “racionalizar gastos”?

Não estamos em uma recessão aqui. Nós não temos que cortar os gastos do governo. Nós vamos cortar despesas, mas vamos continuar a crescer.

Estamos seguindo um caminho muito especial. Este é um momento no qual o país está crescendo. Temos estabilidade macroeconômica e, ao mesmo tempo, muito orgulho do fato de que conseguimos reduzir a extrema pobreza no Brasil.

Trouxemos 36 milhões de pessoas para a classe média. Tiramos 28 milhões da pobreza extrema. Como conseguimos isso? Políticas de transferência de renda. O Bolsa Família é um dos maiores exemplos.

Explique como funciona o Bolsa Família.

Pagamos um estipêndio, que é uma renda para os pobres. Eles recebem um cartão e sacam o dinheiro, mas têm duas obrigações a cumprir: colocar seus filhos na escola e provar que eles comparecem a 80% das aulas. Ao mesmo tempo, as crianças também devem receber todas as vacinas e passar por uma avaliação médica quando recebem as vacinas. Esse foi um fator, mas não foi o único.

Criamos 15 milhões de novos empregos durante a administração do Presidente Lula. Este ano, já criamos 2 milhões de novos empregos.

A Sra. é tão próxima do Presidente Lula. Será mesmo diferente ou apenas uma continuação da administração dele?

Eu acredito que minha administração será diferente da do Presidente Lula. O governo do Presidente Lula, do qual fiz parte, construiu uma base a partir da qual vou avançar. Não vou repetir a administração dele porque a situação no país hoje é muito melhor do que era em 2002.

Eu tenho os programas governamentais em andamento, que ajudei a desenvolver, como o chamado Minha Casa, Minha Vida, que é um programa de habitação.

Meus desafios são outros. Vou ter que solucionar questões como a qualidade da saúde pública no Brasil. Vou ter que criar soluções para problemas de segurança pública.

O Brasil passou por mais de 30 anos sem investir em infra-estrutura em uma quantidade suficiente. O governo do Presidente Lula começou a mudar isso. Eu tenho que resolver as questões rodoviárias no Brasil, as ferrovias, as estradas, os portos e os aeroportos.

Mas há uma boa notícia: descobrimos petróleo em águas profundas.

A Sra. está sugerindo que essa descoberta irá financiar a infra-estrutura?

Criamos um Fundo Social [no qual] alguns dos recursos do governo oriundos da descoberta do petróleo serão investidos em educação, saúde, ciência e tecnologia.

A Sra. tem que preparar o pais para a Copa do Mundo e para as Olimpíadas.

Sim, mas eu também tenho outro compromisso, que é acabar com a pobreza absoluta no Brasil. Nós ainda temos 14 milhões na pobreza. Esse é meu maior desafio.

Todos os empresários que conheci em São Paulo disseram que precisam estar muito preparados para as reuniões com a Sra., porque a Sra. conhece bem a maioria dos projetos.

Sim, é verdade. Eu acho que é uma característica feminina. Nós apreciamos os detalhes. Eles, não.

O que significa, para a Sra., ser a primeira mulher Presidente do Brasil?

Até eu acho incrível.

Quando a Sra. decidiu que queria ser Presidente?

Foi um processo. Não há uma data. Comecei a trabalhar com o Presidente Lula e ele começou a dar algumas dicas sobre eu vir a ser indicada à presidência, mas ele não foi claro no começo. Foi uma grande honra para mim, mas eu não estava esperando.

A partir do momento que ficou claro para mim que eu seria indicada, dois anos atrás, eu sabia que tínhamos criado as condições adequadas para tornar possível a vitória nas eleições. O Presidente Lula teve uma excelente administração e o povo brasileiro reconheceu e admitiu isso. Somos uma administração diferente - nós ouvimos o povo.

A Sra. recentemente lutou contra o câncer.

Sim, mas acredito que consegui lidar bem com isso. As pessoas têm que saber que o câncer pode ser curado. Quanto mais cedo você descobre, melhores suas possibilidades de cura. É por isso que a prevenção é importante. . . .

Acredito que o Brasil estava preparado para eleger uma mulher. Por quê? Porque as mulheres brasileiras conquistaram isso. Eu não cheguei aqui sozinha, só pelos meus méritos. Somos a maioria neste país.




Margem Esquerda n° 15 debate papel transformador do Estado



A edição n° 15 da revista Margem Esquerda (Boitempo Editorial) se propõe a discutir as possibilidades e os dilemas de transformação relacionados ao novo tipo de Estado da América Latina. O desenvolvimento criativo é irregular no continente. Desenvolvimento, democracia e bem-estar social convivem, sob tensão, nas propostas políticas de países como Bolívia, Brasil e Equador. O dossiê deste número, sobre teorias do Estado na América Latina hoje, apresenta visões distintas sobre o papel dos instrumentos de poder na economia e na política.

O papel transformador do Estado ressurge nas perspectivas de transformação social com experimentos institucionais democráticos na América Latina. Desenvolvimento, democracia e bem-estar social convivem, sob tensão, nas propostas políticas de países como Bolívia, Brasil e Equador. Na tradição marxista, as experiências latino-americanas viram as páginas do Estado mínimo neoliberal e do socialismo de Estado soviético. A Margem Esquerda se propõe a discutir as possibilidades e os dilemas de transformação relacionados ao novo tipo de Estado da América Latina.

O desenvolvimento criativo é irregular no continente. O dossiê deste número, sobre teorias do Estado na América Latina hoje, apresenta visões distintas sobre o papel dos instrumentos de poder na economia e na política. Traz a transcrição do discurso do vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, ao receber o título de doutor honoris causa na Universidade de Buenos Aires, que define as possibilidades de transformação social por meio de políticas estatais. Especialmente em países como Bolívia e Equador pretende-se refundar o Estado para construir instituições adequadas à representação da massa da população, especialmente a nativa, e não mais de elites minoritárias. O economista Marcio Pochmann coloca os desafios do Estado para corresponder aos projetos de desenvolvimento no Brasil, sobretudo no governo de Dilma Rousseff. A socióloga argentina Mabel Thwaites Rey monta uma síntese crítica das teorias marxistas clássicas e das novas contribuições dos processos inovadores na América Latina.

As ilustrações desta edição, de Regina Silveira – selecionadas pelo artista plástico Sérgio Romagnolo –, remetem aos novos rumos e desafios latino-americanos. Nascida em 1939, no Rio Grande do Sul, a artista se coaduna a uma redisposição das linhas modernistas, em assemblages aparentemente incoerentes. Em texto de 1997, o historiador e crítico de arte Walter Zanini afirmou que a obra de Regina Silveira lembra uma “geometria do absurdo”, com elementos de ordem emotiva e sensorial que parodiam as linhas fechadas.

Esta Margem Esquerda também conta com uma entrevista concedida por José Saramago – que morreu em junho deste ano em Lanzarote, nas Ilhas Canárias (Espanha), aos 87 anos – em junho de 1992, ano de lançamento do romance O Evangelho segundo Jesus Cristo.

A seção de artigos se inicia com reflexões de David Harvey e Michael Löwy, dois dos principais pensadores marxistas da atualidade. Harvey reconstrói a teoria da mudança social marxiana e discute a organização da transição anticapitalista. Salienta a dialética entre esferas do sistema de relações sociais, contradições fundamentais do capitalismo e campos de luta abertos para movimentos sociais e partidos de esquerda. Löwy reconstitui o pensamento de Rosa Luxemburgo, tomando como fio condutor a leitura do marxismo como filosofia da práxis, que percorre o conjunto da obra da revolucionária polonesa, em especial os textos redigidos após o advento da Primeira Guerra Mundial, como “A crise da social-democracia”.

Completam a seção textos de Anita Simis, sobre o impacto do celular na produção e difusão do entretenimento; de Sérgio de Souza Brasil, sobre a crítica do progresso de Walter Benjamin; e de Luiz Bernardo Pericás, sobre José Carlos Mariátegui e o México.

Margem Esquerda traz uma homenagem de Miguel Urbano Rodrigues ao marxista francês Georges Labica, recentemente falecido. Na seção “Comentário”, Nicolas Tertulian apresenta a correspondência de Ernst Bloch a diversos pensadores marxistas, especialmente Lukács. Este número traz ainda resenhas de Antonino Infranca, Mauro Iasi e Plínio de Arruda Sampaio Jr., tratando, respectivamente, dos fenômenos do stalinismo, do capital-imperialismo e da crise estrutural do capital. A revista fecha com uma poesia popular mexicana, “Corrido da morte de Zapata”, de Armando List Arzubide. Selecionado e traduzido por Flávio Aguiar, o poema é uma homenagem ao centenário da Revolução Mexicana.

Sumário

ENTREVISTA
José Saramago

IVANA JINKINGS

DOSSIÊ: TEORIAS DO ESTADO NA AMÉRICA LATINA HOJE

A construção do Estado - ÁLVARO GARCÍA LINERA

O Estado e seus desafios na construção do desenvolvimento brasileiro -
MARCIO POCHMANN

O Estado em debate: transições e contradições - MABEL THWAITES REY

ARTIGOS

Organizando para a transição anticapitalista - DAVID HARVEY

A centelha se acende na ação: a filosofia da práxis no pensamento de Rosa Luxemburgo - MICHAEL LÖWY

Celular móvel: outra morada de entretenimento - ANITA SIMIS

A barbárie como civilização: Walter Benjamin e a tragédia humana - SÉRGIO DE SOUZA BRASIL SILVA

José Carlos Mariátegui e o México - LUIZ BERNARDO PERICÁS

HOMENAGEM

Homenagem a Georges Labica na Universidade de Argel
MIGUEL URBANO RODRIGUES

COMENTÁRIO

Ernst Bloch e György Lukács, paradoxos de uma amizade
NICOLAS TERTULIAN

RESENHAS

Stalin e a ditadura sobre o proletariado
ANTONINO INFRANCA

A natureza da crise e os dilemas da revolução
PLÍNIO DE ARRUDA SAMPAIO JR.

O capital-imperialismo: determinações econômicas e formas políticas
MAURO LUIS IASI

POESIA

Corrido da morte de Zapata
ARMANDO LIST ARZUBIDE

APRESENTAÇÃO DAS IMAGENS

Quebra-cabeça da América Latina (continua...)
REGINA SILVEIRA

Fotos: Divulgação

Ano novo, mais mercado, mesmo trabalho

Vai chegando o final do ano, vão aparecendo os textos reflexivos na internet. Bem, pelo menos ainda não chegou a época das restrospectivas… Mas é importante levantar este debate, tendo em vista que o pessoal esquece que a integração plena ao maravilhoso mundo novo do mercado global pode ser bom para alguns, mas não para todos.
A reestruturação dos processos de produção mundiais provocou mudanças significativas na forma como as empresas organizam as suas operações e relações comerciais. Desde os anos 1970, a geografia da produção foi transformada de acordo com a atuação das empresas líderes que têm cada vez mais terceirizado grande parte do processo de produção para fornecedores de economias em desenvolvimento e emergentes, formando cada vez mais complexas redes de produção global (RPGs) e estimulando a expansão da produção das indústrias agroalimentares e de serviços nesses setores da economia global. Os setores mais importantes de economias emergentes e mais pobres também têm se tornado mais integrados em RPGs, impulsionados por estratégias de desenvolvimento destinadas a promover essa integração, e transformadas, neste contexto, pela dinâmica da concorrência e pelas exigências da competitividade global. Em ambos os processos, a evolução das redes de produção globais tem simultaneamente resultado e facilitado uma profunda reestruturação nos mercados de trabalho que os sustentam, juntamente com os padrões associados a tipos de emprego e de trabalho. Tenho realizado um extenso estudo em parceria com Nicola Phillips, do Centro de Estudos em Pobreza Crônica, da Universidade de Manchester sobre o tema, do qual trago algumas rápidas colocações a pedido de alguns leitores.
A forma na qual os produtores mais pobres e os trabalhadores têm ampliado sua participação nas RPGs está atraindo uma atenção crescente. Uma grande parte da teoria clássica e contemporânea, associada principalmente ao trabalho e o legado de Joseph Schumpeter e Karl Marx, estabeleceu que o desenvolvimento capitalista puxa para direções diferentes e gera um processo intrínseco de desenvolvimento desigual. O funcionamento e o impacto da RPGs contemporâneas revelam a mesma dinâmica de crescimento e de desenvolvimento desiguais. A modernização econômica seletiva é propelida por algumas partes da economia e para alguns grupos de trabalhadores enquanto formas que poderiam ser chamadas de “degradação” são empurradas para dentro e para outros grupos. Os impactos diferenciais são muitas vezes sentidos por grupos de trabalhadores do mesmo setor ou indústria, já que o desenvolvimento capitalista produz uma segmentação do mercado de trabalho e se baseia em um aumento de demarcação entre os segmentos primários e secundários da força de trabalho.
O cada vez mais complexo processo de expansão das RPGs pode gerar novas oportunidades de emprego para trabalhadores, oferecendo novas fontes de renda para famílias. Mas, enquanto alguns trabalhadores se beneficiam de maiores salários e proteção social e trabalhista em processo de melhora, para a maioria que está nos mercados de trabalho associados com RPGs, este padrão está relacionado a uma “incorporação adversa”, caracterizada por formas de exploração do trabalho e do emprego inseguro e desprotegido. Há dados que indicam um crescimento substancial neste tipo de emprego “precário” e nos números de trabalhadores altamente vulneráveis na economia global, sobretudo porque o uso de trabalho pouco qualificado, mal remunerado, migrante e por empreita tornou-se progressivamente central para a atividade econômica em redes de produção.
Em outras palavras, a participação em redes de produção globais pode proporcionar oportunidades de emprego e renda para parte dos mais pobres, sob algumas condições e em alguns contextos, mas em outros (que acredito, pelos dados, ser a maior parte dos casos) as condições de pobreza são exploradas e as relações de pobreza são reforçadas, levando a uma reprodução de vulnerabilidade, privação e marginalização. Temos visto que os trabalhadores mais vulneráveis no Brasil e, especificamente, aqueles classificados como trabalhadores escravos no setor da pecuária, por exemplo, representam um exemplo de incorporação adversa em que a dinâmica deste processo agrava as condições de necessidade crônica e priva o trabalhador de um controle de curto e longo prazo sobre seus bens (incluindo o trunfo do trabalho) e renda. Nesse caso, a perda de controle que uma pessoa experimenta devido à pobreza ou à indigência é reforçada pelo capital na sua criação e/ou apropriação de um grande conjunto de excedente de trabalho vulnerável e informal e, por sua vez, esta perda de controle é reforçada pela forma de incorporação adversa, inclusive – no extremo – do trabalho escravo.
Temos visto que existem várias dimensões a esta dinâmica circular. Como em todas as RPGs, o último elo na cadeia de valor do gado não é relacionado com o produtor, mas sim com o trabalho utilizado por ele. As pressões comerciais inerentes nas cadeias de valor, especialmente para a redução de preço são, finalmente, transferidas para os trabalhadores rurais. Em outras palavras, o conflito e a concorrência entre facções de capital são expressas através de relações de trabalho. Isto se manifesta em diferentes formas de exploração, incluindo as formas extremas como trabalho escravo ou infantil. Estes tipos de exploração por sua vez atuam de maneiras variadas para manter os padrões de pobreza crônica nas regiões-chave da oferta de trabalho e entre os próprios trabalhadores. O dinheiro que teria sido dividido em salários e outros benefícios aos trabalhadores no âmbito das relações de trabalho fica para os produtores rurais e/ou flui à cadeia de valor na qual a fazenda está conectada. Condições voláteis de negócios e comércio em RPGs, juntamente com os padrões de flutuação da demanda, no sentido de reforçar as formas altamente flexíveis, precárias e inseguras de emprego, por sua vez reforçam as condições de necessidade crônica que modelam as estratégias de emprego e as decisões dos trabalhadores.
A pobreza não pode ser entendida exclusivamente com referência a uma medida estatística de renda, por razões de natureza multifacetada da pobreza que estão bem estabelecidas na literatura acadêmica e porque, no caso brasileiro, as práticas de trabalho escravo podem implicar uma remuneração, mesmo quando as condições de trabalho e de existência humana envolvidas neste tipo de relação são degradantes, desumanas e altamente abusivas. A chave nesses casos é que a extensão de insegurança e instabilidade de emprego e renda limitam profundamente as possibilidades de acumulação por parte do trabalhador e, conseqüentemente, são fundamentais na constituição das formas de vulnerabilidade que estamos discutindo. Esta situação de trabalho precário e intermitente expressa como as formas de inclusão e exclusão podem atuar em conjunto para produzir impotência e vulnerabilidade e reforçar as relações de trabalho altamente exploradoras.
Por fim, formas de exploração não-contratual extrema como o trabalho escravo não pode ser visto como uma aberração ou desvio do normal funcionamento do capitalismo em geral e das RPGs em particular, rejeitando a tendência presente em muitas partes dos debates acadêmicos e políticos de imaginar que uma separação precisa ser estabelecida entre estas práticas e outras formas de exploração do trabalho “normal”. Pelo contrário, esses fenômenos complexos devem ser conceituados como associados ao funcionamento normal dos mercados em questão e responde ao mesmo conjunto de pressões de mercado e de forças (com diferentes níveis e tipos de exploração) presentes ao longo da cadeia de valor. Eles representam uma manifestação extrema e uma forma de incorporação adversa, mas mesmo assim permanece em evidência em toda a economia global.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Liberdade de expressão: uma armadilha para pegar quem?



Por Elaine Tavares na Caros Amigos

O velho Marx já ensinou há muitos anos sobre o que é a ideologia. É o encobrimento da verdade. Assim, tudo aquilo que esconde, vela, obscurece, tapa, encobre, engana, é ideologia. É dentro deste espectro que podemos colocar o debate que se faz hoje no Brasil, na Venezuela, no Equador e na Bolívia sobre o binômio “liberdade de expressão X censura”. Para discutir esse tema é preciso antes de mais nada observar de onde partem os gritos de “censura, censura”, porque na sociedade capitalista toda e qualquer questão precisa ser analisada sob o aspecto de classe.  A tal da “democracia”, tão bendita por toda a gente, precisa ela mesma de um adjetivo, como bem já ensinou Lênin. “Democracia para quem? Para que classe?”.

Na Venezuela a questão da liberdade de expressão entrou com mais força no imaginário das gentes quando o governo decidiu cassar a outorga de uma emissora de televisão, a RCTV, por esta se negar terminantemente a cumprir a lei, discutida e votada democraticamente pela população e pela Assembléia Nacional. “Censura, cerceamento da liberdade de expressão” foram os conceitos usados pelos donos da emissora para “denunciar” a ação governamental. Os empresários eram entrevistados pela CNN e suas emissoras amigas, de toda América Latina, iam reproduzindo a fala dos poderosos donos da RCTV. Transformados em vítimas da censura, eles foram inclusive convidados para palestras e outros quetais aqui nas terras tupiniquins.

Lá na Venezuela os organismos de classe dos jornalistas, totalmente submetidos à razão empresarial, também gritavam “censura, censura” e faziam coro com as entidades de donos de empresas de comunicação internacionais sobre o “absurdo” de haver um governo que fazia cumprir a lei. Claro que pouquíssimos jornais e jornalistas conseguiram passar a informação correta sobre o caso, explicando a lei, e mostrando que os que se faziam de vítima, na verdade eram os que burlavam as regras e não respeitavam a vontade popular e política. Ou seja, os arautos da “democracia liberal” não queriam respeitar as instituições da sua democracia.  O que significa que quando a democracia que eles desenham se volta contra eles, já não é mais democracia. Aí é ditadura e cerceamento da liberdade de expressão.

No Brasil, a questão da censura voltou à baila agora com o debate sobre os Conselhos de Comunicação. Mesma coisa. A “democracia liberal” consente que existam conselhos de saúde, de educação, de segurança, etc... Mas, de comunicação não pode. Por quê? Porque cerceia a liberdade de expressão. Cabe perguntar. De quem?  Os grandes meios de comunicação comercial no Brasil praticam a censura, todos os dias, sistematicamente. Eles escondem os fatos relacionados a movimentos sociais, lutas populares, povos indígenas, enfim, as maiorias exploradas. Estas só aparecem nas páginas dos jornais ou na TV na seção de polícia ou quando são vítimas de alguma tragédia. No demais são esquecidas, escondidas, impedidas de dizerem a sua palavra criadora. E quando a sociedade organizada quer discutir sobre o que sai na TV, que é uma concessão pública, aí essa atitude “absurda” vira um grande risco de censura e de acabar com a liberdade de expressão. Bueno, ao povo que não consegue se informar pelos meios, porque estes censuram as visões diferentes das suas, basta observar quem está falando, quem é contra os conselhos. De que classe eles são. Do grupo dos dominantes, ou dos dominados?

Agora, na Bolívia, ocorre a mesma coisa com relação à recém aprovada lei anti-racista. Basta uma olhada rápida nos grandes jornais de La Paz e lá está a elite branca a gritar: “censura, censura”. A Sociedade Interamericana de Imprensa, que representa os empresários, fala em cerceamento da liberdade de expressão.   Os grêmios de jornalistas, também alinhados com os patrões falam a mesma coisa, assim como as entidades que representam o poder branco, colonial e racista. Estes mesmos atores sociais que ao longo de 500 anos censuraram a voz e a realidade indígena e negra nos seus veículos de comunicação, agora vem falar de censura. E clamam contra suas próprias instituições. A lei anti-racista prevê que os meios de comunicação que incentivarem pensamentos  e ações racistas poderão ser multados ou fechados. Onde está o “absurdo” aí? Qual é o cerceamento da liberdade de expressão se a própria idéia de liberdade, tão cara aos liberais, se remete à máxima: “a minha liberdade vai até onde começa a do outro”? Então, como podem achar que é cerceamento da liberdade de expressão usar do famoso “contrato social” que garante respeito às diferenças?

Ora, toda essa gritaria dos grandes empresários da comunicação e seus capachos nada mais é do que o profundo medo que todos têm da opinião pública esclarecida. Eles querem o direito de continuar a vomitar ideologia nos seus veículos, escondendo a voz das maiorias, obscurecendo a realidade, tapando a verdade. Eles querem ter o exclusivo direito de decidir quem aparece na televisão e qual o discurso é válido. Eles querem manter intacto seu poder escravista, racista e colonial que continua se expressando como se não tivessem passado 500 anos e a democracia avançado nas suas adjetivações. Hoje, na América Latina, já não há apenas a democracia liberal, há a democracia participativa, protagônica, o nacionalismo popular. As coisas estão mudando e as elites necrosadas se recusam a ver.

O racismo é construção de quem domina
Discursos como esses, das elites latino-americanas e seus capachos, podem muito bem ser explicados pela história. Os componentes de racismo, discriminação e medo da opinião pública esclarecida têm suas raízes na dominação de classe. Para pensar essa nossa América Latina um bom trabalho é o do escritor Eric Williams, nascido e criado na ilha caribenha de Trinidad Tobago, epicentro da escravidão desde a invasão destas terras orientais pelos europeus. No seu livro Capitalismo e Escravidão, ele mostra claramente que o processo de escravidão não esteve restrito apenas ao negro. Tão logo os europeus chegaram ao que chamaram de Índias Orientais, os primeiros braços que trataram de escravizar foram os dos índios.

Os europeus buscavam as Índias e encontraram uma terra nova. Não entendiam a língua, não queriam saber de colonização. Tudo o que buscavam era o ouro. Foi fácil então usar da legitimação filosófica do velho conceito grego que ensinava ser apenas “o igual”, “o mesmo”, aquele que devia ser respeitado. Se a gente originária não era igual à européia, logo, não tinha alma, era uma coisa, e podia ser usada como mão de obra escrava para encontrar as riquezas com as quais sonhavam. Simples assim. Essa foi a ideologia que comandou a invasão e seguiu se sustentando ao longo destes 500 anos. Por isso é tão difícil ao branco boliviano aceitar que os povos originários possam ter direitos. Daí essa perplexidade diante do fato de que, agora, por conta de uma lei, eles não poderão mais expressar sua ideologia racista, que nada mais fez e ainda faz, que sustentar um sistema de produção baseado na exploração daquele que não é igual.

Eric Williams vai contar ainda como a Inglaterra construiu sua riqueza a partir do tráfico de gente branca e negra, para as novas terras, a serem usadas como braço forte na produção do açúcar, do tabaco, do algodão e do café. Como o índio não se prestou ao jogo da escravidão, lutando, fugindo, morrendo por conta das doenças e até se matando, o sistema capitalista emergente precisava inventar uma saída para a exploração da vastidão que havia encontrado. A escravidão foi uma instituição econômica criada para produzir a riqueza da Inglaterra e, de quebra, dos demais países coloniais. Só ela seria capaz de dar conta da produção em grande escala, em grandes extensões de terra. Não estava em questão se o negro era inferior ou superior. Eram braços, e não eram iguais, logo, passíveis de dominação. Eles foram roubados da África para trabalhar a terra roubada dos originários de Abya Yala.

Também os brancos pobres dos países europeus vieram para as Américas como servos sob contrato, o que era, na prática, escravidão. Segundo Williams, de 1654 a 1685, mais de 10 mil pessoas nestas condições partiram somente da cidade de Bristol, na Inglaterra, para servir a algum senhor no Caribe. Conta ainda que na civilizada terra dos lordes também eram comuns os raptos de mulheres, crianças e jovens, depois vendidos como servos. Uma fonte segura de dinheiro. De qualquer forma, estas ações não davam conta do trabalho gigantesco que estava por ser feito no novo mundo, e é aí que entra a África. Para os negociantes de gente, a África era terra sem lei e lá haveria de ter milhões de braços para serem roubados sem que alguém se importasse. E assim foi. Milhões vieram para a América Latina e foram esses, juntamente com os índios e os brancos pobres, que ergueram o modo de produção capitalista, garantiram a acumulação do capital e produziram a riqueza dos que hoje são chamados de “países ricos”.

E justamente porque essa gente foi a responsável pela acumulação de riqueza de alguns que era preciso consolidar uma ideologia de discriminação, para que se mantivesse sob controle a dominação. Daí o discurso – sistematicamente repetido na escola, na família, nos meios de comunicação – de que o índio é preguiçoso, o negro é inferior e o pobre é incapaz. Assim, se isso começa a mudar, a elite opressora sabe que o seu mundo pode ruir.

Liberdade de expressão
É por conta da necessidade de manter forte a ideologia que garante a dominação que as elites latino-americanas tremem de medo quando a “liberdade de expressão” se volta contra elas. Esse conceito liberal só tem valor se for exercido pelos que mandam e aí voltamos àquilo que já escrevi lá em cima. Quando aqueles que os dominadores consideram “não-seres” -  os pobres, os negros, os índios – começam a se unir e a construir outro conceito de direito, de modo de organizar a vida, de comunicação, então se pode ouvir os gritos de “censura, censura, censura” e a ladainha do risco de se extinguir a liberdade de expressão.

O que precisa ficar bem claro a todas as gentes é de que está em andamento na América Latina uma transformação. Por aqui, os povos originários, os movimentos populares organizados, estão constituindo outras formas de viver, para além dos velhos conceitos europeus que dominaram as mentes até então. Depois de 500 anos amordaçados pela “censura” dos dominadores, os oprimidos começam a conhecer sua própria história, descobrir seus heróis, destapar sua caminhada de valentia e resistência. Nomes como Tupac Amaru, Juana Azurduy, Zumbi dos Palmares, Guaicapuru, Bartolina Sisa, Tupac Catari, Sepé Tiaraju, Dandara, Artigas, Chica Pelega, assomam, ocupam seu espaço no imaginário popular e provocam a mudança necessária.

Conceitos como Sumak kawsay, dos Quíchua equatorianos, ou o Teko Porã, dos Guarani,  traduzem um jeito de viver que é bem diferente do modo de produção capitalista baseado na exploração, na competição, no individualismo. O chamado “bem viver” pressupõe uma relação verdadeiramente harmônica e equilibrada com a natureza, está sustentado na cooperação e na proposta coletiva de organização da vida. Estes são conceitos poderosos e “perigosos”. Por isso, os meios de comunicação não podem ficar à mercê dos desejos populares. Essas idéias “perigosas” poderiam começar a aparecer num espaço onde elas estão terminantemente proibidas. É esse modo de pensar que tem sido sistematicamente censurado pelos meios de comunicação. Porque as elites sabem que destruída e ideologia da discriminação contra o diferente e esclarecida a opinião pública, o mundo que construíram pode começar a ruir. A verdadeira liberdade de expressão é coisa que precisa ficar bem escondida, por isso são tão altos os gritos que dizem que ela pode se acabar se as gentes começarem a “meter o bedelho” neste negócio que prospera há 500 anos.

Basta de bobagens
É neste contexto histórico, econômico e político que deveriam ser analisados os fatos que ocorrem hoje na Venezuela, no Equador, na Bolívia e na Argentina. O Brasil deveria, não copiar o que lá as gentes construíram na sua caminhada histórica, mas compreender e perceber que é possível estabelecer aqui também um processo de mudança.  Neste mês de novembro o Ministério das Comunicações chamou um seminário para discutir uma possível lei de regulamentação da mídia brasileira. Não foi sem razão que os convidados eram de Portugal, Espanha e Estados Unidos. Exemplos de um mundo distante, envelhecido, necrosado, representantes de um capitalismo moribundo. As revolucionárias, criativas e inovadoras contribuições dos países vizinhos não foram mencionadas. A Venezuela tem uma das leis mais interessantes de regulamentação da rádio e TV, a Argentina deu um passo adiante com a contribuição do movimento popular, a Bolívia avança contra o racismo, o Equador inova na sua Constituição, e por aqui tudo é silêncio. Censura?

Os governantes insistem em buscar luz onde reina a obscuridade. E, ainda assim pode-se ouvir o grito dos empresários a dizer: censura, censura, censura. O atraso brasileiro é tão grande que mesmo as liberais regulamentações européias são avançadas demais. Enquanto isso Abya Yala caminha, rasgando os véus..

Copas na Rússia e Catar são o ápice da mercantilização do futebol

  Gabriel Brito, da Redação   do Correio da Cidadania
 
Na tarde de 2 dezembro, noite em Zurique, a FIFA elegeu as sedes das duas Copas do Mundo que serão jogadas após a edição em terras brasileiras. Para 2018, deu Rússia, que deixou para trás Inglaterra, Holanda/Bélgica e Espanha/Portugal. Quatro anos depois, a Copa irá pela primeira vez ao Oriente Médio, mais precisamente à ilha da fantasia chamada Catar, que bateu EUA, Coréia do Sul, Japão e Austrália.
 
Para os incautos, é possível ver surpresa nas escolhas, especialmente a segunda. No entanto, a eleição dos dois únicos países da concorrência ditos em desenvolvimento apenas confirma tendência que a entidade máxima do futebol inaugurou no novo século, muito bem conectada com os movimentos da economia e geopolítica globais. "Ambos possuem em comum o futebol em desenvolvimento e fortunas a serem investidas", publicou o Diário Lance.
 
Fora o abismo entre a tradição russa e catariana no esporte, o diagnóstico é preciso. As escolhas recentes de África do Sul e Brasil atestam o fato, assim como as Olimpíadas de Pequim (2008) e as Olimpíadas de Inverno em Sochi, Rússia, em 2012. Tanto FIFA como COI mostraram suas verdadeiras faces nos últimos anos, atrelando escolhas a interesses econômicos, sob justificativa de desenvolver novos pólos, o que vem sendo crescentemente desmascarado.
 
O real objetivo é a expansão de mercados, o que tem sentido teoricamente, porém, não da forma que temos visto. Além do mais, o processo de escolha foi recheado de escândalos. Uma equipe de reportagem do Sunday Times mostrou, novamente, a fragilidade ética dos membros do Comitê Executivo da FIFA. Passando-se por empresários americanos, os jornalistas insinuaram pagar propina para que dois delegados votassem na candidatura ianque, ‘acordo’ que acabou selado e prontamente divulgado ao mundo. A FIFA afastou ambos temporariamente, deu punições brandas e tocou o barco.
 
Para muitos, foi exatamente esse furo que minou a candidatura inglesa, a que dispunha de maior infra-estrutura já construída, enorme tradição e fanatismo pelo jogo e, já que a FIFA ama tanto dinheiro, trata-se do centro futebolístico mais rico do mundo - é certo que de forma mais que questionável, com ricaços se apoderando cada vez mais dos times e ofendendo tradições, mas nada incômodo para os padrões da entidade.
 
Exatamente por isso, os ingleses são os mais inconformados. Mas não são os únicos. O diário alemão Bild ironizou as escolhas: "Katarstrophe" era sua manchete, em alusão ao oásis financeiro do oriente. Portugueses e espanhóis também estão em fúria, acusando sem meias palavras que a Rússia, liderada por Putin, maior representante da postulação, comprou a vitória.
 
Essa é a atual realidade do futebol: a mercantilização do esporte vive seu auge e poderosos agentes econômicos, de diversos setores, perceberam esse excelente filão, muito atraente para seus empreendimentos e sob forte chancela oficial, dos governos/contratantes, aliados de primeira hora dos mercados e também ávidos pelos negócios que tais eventos proporcionam.
 
Para alimentar essa ciranda, até conseguiram popularizar a falácia de que uma Copa ou Olimpíada pode trazer enormes dividendos futuros para os anfitriões, impulsionando inclusive o crescimento nacional. Tal artimanha já foi desvendada por estudos de diversos economistas, aclarando que nem no melhor dos casos a economia sofre pulsações muito visíveis. Pelo contrário, a conta costuma fechar é no vermelho; o ‘capital’ moral e espiritual da população local, além da notoriedade do momento, seriam os efeitos mais verdadeiros.
 
2010 e 2014 desnudam verdadeiras intenções
 
Em alguns casos, nem isso. A África do Sul já provou o quanto esse modelo é cercado de embustes. Sua Copa custou caríssimo, a população pobre e negra foi segregada do torneio, trabalhadores locais que pretendiam capitalizar com o evento foram esmagados pela blindagem aos patrocinadores oficiais e os funcionários contratados para trabalhar no mundial foram constantemente enganados. Além de o governo ter bancando sozinho os 8 bilhões de reais que custaram a festa.
 
No Brasil, que ainda falaremos muito em outras ocasiões, a coisa já anda muito preocupante. Diversas licitações foram feitas nas coxas, as principais obras em estádios (hiper-inflacionadas desde a saída, pois pretendem atender a um modelo de estádio-shopping elitizador) já estão loteadas entre as mais famosas e insuspeitas empreiteiras e Ricardo Teixeira está envolvido em diversas falcatruas, como sempre na verdade.
 
A mesma imprensa inglesa que ‘corrompeu’ dois delegados da FIFA, neste caso através da BBC, publicou matéria em que denunciava a ISL (empresa de marketing da FIFA, falida em 2001 por inúmeras maracutaias, mas que enriqueceu muitos amigos da entidade) de pagar, durante 10 anos, propinas para dirigentes, entre eles o nosso ilustre Teixeira, que teria recebido 17 milhões de reais no período. Outros delegados sul-americanos da FIFA também aparecem. Por fim, a entidade acabou de pagar US$ 5,5 milhões para arquivar um processo de corrupção na corte de Zurique, o que mostra a grande utilidade na neutralidade deste pequeno e pacato país.
 
Além disso, o Diário Lance descobriu o golpe que o cartola máximo de nosso país pode dar com a Copa. Presidente da CBF e do Comitê Organizador Local (COL), constituiu sociedade para administrar os lucros da Copa. De um lado a CBF, com 99,9%; de outro Teixeira, auto-incluído, com 0,01%. Note-se que ele está nos dois lados do balcão. Por fim, pequeno contrabando no texto do contrato social do COL permite ao seu presidente (Teixeira!) destinar os lucros para onde bem entender, sem respeitar qualquer proporcionalidade. Ou seja, pode simplesmente embolsar a montanha de grana que virá.
 
Isso porque na época da candidatura brasileira tal sociedade foi constituída sem fins lucrativos. Após a vitória, mudou-se seu caráter. Não é preciso dizer nada mais, até porque os demais integrantes da equipe organizadora são da mesma estirpe: filha do João Havelange, advogado do Daniel Dantas...
 
Homens de visão
 
Voltando ao ponto central, o Correio publicou matérias e artigos corroborando a noção de que tais eventos têm sido direcionados a locais com mais campo aberto para os negócios. Note-se que os dois eleitos possuem muito mais necessidade de obras de infra-estrutura que os demais, nos quais muito pouco teria de ser construído ou reformado.
 
E mais, são exatamente os dois mais frágeis em termos institucionais. Como mencionou o célebre Wikileaks, através das palavras de um diplomata americano, no melhor folhetim de fofocas da ‘alta sociedade’ de todos os tempos, a Rússia é um Estado-máfia. Pura verdade. Foi a alta burocracia do antigo regime que se apropriou das principais riquezas e meios produtivos do país, configurando uma plutocracia com negócios pelo mundo inteiro, vários com condenações internacionais.
 
Quanto ao Catar, não dá nem pra dizer que possui alguma institucionalidade. Seus ‘donos’ fazem o que querem com a renda do petróleo, criam cidades-cenários cheias de ostentação, ao passo que controlam seu povo na mão de ferro. Regime despótico como os dos vizinhos Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita, que, aliás, nunca sensibilizarão a nossa mídia, ao menos enquanto não contrariarem algum interesse-chave dos EUA.
 
Dessa forma, a velha lógica de maximização dos lucros, tão em voga, toma conta do futebol. Como disse Patrick Bond, professor e economista da universidade de Kwa-Zulu Natal, na África do Sul, "o problema é que se hipoteca grande parte do orçamento público em infra-estruturas que reforçam o modelo de desenvolvimento neoliberal, em vez de se concentrarem em uma aposta social e sustentável".
 
Bom, é sabido que desde 2008 tal modelo de ‘desenvolvimento’ está completamente em xeque e, assim como outros momentos do capitalismo, essa fase será suplantada por outros processos. A chamada Era de Ouro, após a crise de 29, durou seus 40, 45 anos. A era neoliberal, inaugurada nos 80, terá seus estertores e atingirá mais ou menos a mesma duração.
 
Se os homens da FIFA têm alguma noção de mundo, e sua esperteza mostra que têm de sobra, devem estar calculando que tal modelo de luxo, modernidade e altos custos para eventos esportivos também irá se esgotar, principalmente após sucessivos golpes e frustrações nacionais com as falsas promessas. Logo, nada melhor do que radicalizar tal lógica, no que servem perfeitamente os dois países escolhidos, de modo que o canto do cisne seja o mais rentável possível.
 
Para os torcedores, ficam as lamentações de ver o evento esportivo mais festejado do mundo ser dominado pelos mesmos abutres que já nos infernizam em todas as demais esferas da vida. E mais a vergonha de ver uma paixão tão popular servir de ponte para diversas roubalheiras e enriquecimento de gente espúria, como é o caso dos homens que integram os principais cargos da FIFA, federações continentais, nacionais, estaduais...
 
"Talvez o Blatter, de 74 anos, não viva para ver sua obra concluída. Trata-se do coveiro do futebol", vaticina Mauro Cezar Pereira, da ESPN Brasil, emissora quase solitária no combate aos desmandos que já ocorrem em torno dos eventos marcados para o Brasil.
 
Busca-se dinheiro e mais nada. Não se respeita a liturgia do jogo, os estádios são cada vez mais modernos e sem alma, os anunciantes cada vez mais protagonistas. Não os conhecemos, não os queremos, muito menos os elegemos, mas essa pequena camarilha pode tudo com o esporte mais popular do mundo. A escolha de Rússia e Catar para sediar as Copas de 2018 e 2022 não surpreende. Apenas escancara que o futebol, lamentavelmente, está na mão de mafiosos.

Campanha espanhola cria polêmica ao relacionar camisinha à hóstia

A campanha foi lançada na semana da luta contra a aids

Uma campanha do governo espanhol para incentivar o uso de preservativos vem causando polêmica no país ao relacionar as imagens de camisinha com as de uma hóstia.
Divulgada em cartazes, vídeos e outdoors, a campanha repete uma mesma foto de um sacerdote segurando primeiro uma hóstia e depois uma camisinha.
A iniciativa do setor jovem do partido socialista que governa o país foi lançada durante a semana internacional de luta contra a aids.
Mas as peças foram acusadas de ser um ataque contra os cristãos
"Bendita camisinha que tira a Aids do mundo" é o título oficial da campanha.

Blasfêmia

Diversas associações religiosas consideraram a campanha "blasfema".
A propaganda vai de encontro às recomendações do Vaticano que não aprova o uso de camisinhas.
O vídeo diz que "a Igreja nos diz que os preservativos, em vez de combater a doença, ajudam a expandi-la".
O anúncio cita que mais de 25 milhões de pessoas já morreram vítimas da Aids até 2009.
A campanha confronta as orientações da Igreja colocando a pergunta, "são estes realmente os que dizem que nos amam? Que não te enganem", prossegue o audio da peça.
Para Rafael Lozano, porta-voz do grupo católico Forum da Família, o objetivo "é aproveitar a ocasião para atacar toda a comunidade cristã".
"Uma grande ofensa aos sentimentos religiosos de quem professa esta fé", disse ele.
O porta-voz das Juventudes Socialistas Juan Carlos Ruiz explicou no site do partido que "a Igreja Católica insiste em confundir os cidadãos" e "que a campanha pretende apenas reafirmar o compromisso com a luta contra a Aids".

Violência faz parte da vida de transexuais e travestis, diz pesquisador



Violência faz parte da vida de transexuais e travestis, diz pesquisador
Livro conta histórias de vida e aborda problemas e necessidades de transexuais e travestis (Foto: Osmar Bustos/Reprodução)
São Paulo - Os recentes casos de violência por suposta motivação homofóbica, como os que envolveram jovens na avenida Paulista, em São Paulo, em novembro passado, não são novidade na vida de travestis e transexuais, afirma o pesquisador e jornalista, Aureliano Biancarelli. Autor do livro "A Diversidade Revelada", que narra o dia a dia de transexuais e travestis, ele relata que a violência contra essas pessoas começa cedo, já na infância, e no interior da própria família e se repete na escola e ao longo de toda a vida.
"A violência é uma constância na vida delas. Começa com uma violência que é menos visível, mas mais danosa para a pessoa que é a violência dentro de casa", pontua. Nem sempre travestis e transexuais sofrem violencia física, mas em geral passam pela exclusão familiar. "Ou você se enquadra no sexo que nasceu ou vai ser expulso de casa", acentua Biancarelli.

Em entrevista à Rede Brasil Atual, o jornalista explicou que a violência doméstica, física ou psicológica, acaba levando transexuais e travestis às ruas e à marginalidade. "Se vai para rua e é um travesti, um homossexual que quer viver como travesti, vai acabar caindo na marginalidade. A única coisa que vai encontrar no mercado de trabalho é a prostituição ou, raramente, vai encontrar trabalho como cabeleireiro", analisa.
De acordo com definições médicas citadas pelo antropólogo e pesquisador Bruno Cesar Barbosa em entrevista à Agência USP de Notícias, uma ou um travesti seria aquele que se comporta e se veste como o outro gênero, mas não quer a cirurgia para mudar seu órgão sexual. Já os/as transexuais, sentem a necessidade de fazer a cirurgia, pois se sentem do outro gênero desde o nascimento.
As transexuais consideram que nasceram com o corpo errado. A mente age como se fosse de um sexo e o corpo é de outro, por isso desejam fazer a operação que recolocaria o corpo no lugar que deveria estar, diz Biancarelli.

As mulheres trans nasceram com corpo de homem e se sentem mulheres.

Os homens trans conservam os órgãos femininos, mas pensam e agem como homens.
Segundo o pesquisador, uma ínfima porcentagem de famílias compreendem e aceitam familiares transexuais ou travestis. Motivo que leva muitas pessoas a viverem escondidas ou se relacionarem apenas dentro do mesmo grupo.
Como exemplo do medo que ronda a vida dessa população, Biancarelli cita a história de um homem trans, com corpo feminino, que perto de se casar, prefere esconder da família da noiva sua condição de transexual. Ou a história do professor de inglês, homem trans, que tem uma vida em comum com uma professora da mesma área,  mas vive sempre no "limiar do risco", com receio de que colegas e familiares descubram a transexualidade.
A rejeição social também impacta no estilo de vida de trans e travestis."Eles têm medo do dia. Têm uma vida na escuridão", comenta. "Quando escurece, aí se travestem, se enfeitam, mas durante o dia saem o mínimo possível de casa. Elas não têm coragem de tomar Metrô, ou ônibus, por exemplo", acrescenta em relação às travestis.

Discriminação

Biancarelli detectou que transexuais e travestis sofrem preconceito e humilhação em ações simples do dia a dia, como ir ao banheiro ou procurar um médico.

"Homem e mulher trans, como se vestem de mulher, utilizam banheiros femininos e todas elas relatam violência nessas situações porque mulheres reclamam se descobrem ou sabem. Da mesma forma não seriam aceitas com roupa de mulher em banheiro de homem",  alega Biancarelli. Há casos de profissionais demitidos ou que tiveram de se submeter a usar "o banheiro dos fundos" para permanecer na empresa, informa o jornalista.

Ir ao médico é outra questão complicada para essa população. Primeiro, a transexual ou travesti é chamada pelo nome de homem, mas quem levanta e vai ao encontro do médico ou da enfermeira é uma mulher. Depois, os trans homens não têm ginecologista para atendê-los. "Não tem como ir a um ginecologista vestida de homem", argumenta o jornalista. Da mesma forma, é difícil para uma trans mulher ir ao proctologista. "Como iam procurar hormônio?", indaga o pesquisador.

Saúde

Segundo o jornalista, travestis e transexuais têm a saúde muito precária. Entrevistas realizadas com a população mais jovem aponta que apesar de não procurarem cuidados médicos há vários anos, em geral ainda não manifestaram problemas.  Entretanto, a faixa etária mais velha sofre com graves problemas de saúde.
"Já esperava ouvir relatos de humilhações e maus-tratos sofridos pela população LGBT... Só não esperava que o amor e o companheirismo sobrevivessem com tanta força entre esses personagens", diz Biancarelli.
Da população que procura o centro de acolhimento do Centro de Referência da Diversidade  (CRD) na rua Major Sertório, centro da capital paulista, quase metade estava infectada e outra metade nunca havia feito exames, por isso não sabe seu estado de saúde real.

Biancarelli diz que as travestis acabam bebendo muito e usando drogas diariamente para aguentar a precariedade em que vivem. "Na noite você as vê cheirando cocaína, às 21 horas. Uma das coisas que o hotel ou boate condiciona é que ela incentive o cliente a beber e o cliente quer que ela beba também", conta.

Também é frequente que clientes queiram que a prostituta use drogas com ele. "Eles estão usando crack, então elas acabam caindo no crack rapidamente", elucida. "Elas precisam de mais serviços de saúde", afirma o jornalista. 

Amor

Ao acompanhar o dia a dia do Centro de Referência da Diversidade, o pesquisador diz que se surpreendeu com as inúmeras histórias de amor vividas por transexuais e travestis. A maioria das mulheres e homens transexuais sonha com casamento, família e quer a mudança de sexo.
"Elas querem uma vida mais regrada, recolhida", esclarece. "Vi vários casos de trans casadas, estabelecidas. Impressionou o número de trans que tinham relacionamentos", enfoca. O jornalista também encontrou muitas travestis casadas ou namorando transexuais, michês, cafetões.
"Já esperava ouvir relatos de humilhações e maus-tratos sofridos pela população LGBT... Só não esperava que o amor e o companheirismo sobrevivessem com tanta força entre esses personagens. No Centro de Referência da Diversidade é comum ver casais de mãos dadas, ela travesti, ele heterossexual, os dois morando na rua. Em todos os relatos, em meio a histórias de maus-tratos, abandono e discriminação, há sempre uma história de amor", revela em trecho do livro "A Diversidade Revelada".
Na publicação, Biancarelli acentua que "respeito e os cuidados psicológicos e médicos a essa população dependem de um amadurecimento da sociedade. Vai do conhecimento e da atenção médica, que inclui cirurgias complexas e reordenações do serviço público, aos avanços em termos da legislação e até mesmo às interpretações do Judiciário", sublinha.

Serviço:
Em São Paulo, funciona desde 2009 o primeiro ambulatório de saúde exclusivo a travestis e transexuais, junto ao Núcleo de DST do CRT/Aids. O local conta com atendimento especializado em urologia, proctologia e endocrinologia (terapia hormonal), avaliação e encaminhamento para implante de próteses de silicone e cirurgia para redesignação sexual. De segunda a sexta, das 14h às 20h. Rua Santa Cruz, nº 81, na Vila Mariana, São Paulo.

Também na capital paulista funciona o Centro de Referência da Diversidade (CRD), administrado pelo Grupo pela Vidda/SP, em parceria com a prefeitura. O CRD oferece assistência, capacitação, geração de renda, convivência e cultura para profissionais do sexo, gays, lésbicas, travestis, transexuais e pessoas que vivem com HIV e aids em situação de vulnerabilidade e risco social. Fica na rua Major Sertório, 292/294, República. Telefone: 3151-5786. E-mail: crdiversidade@uol.com.br

Juremir Machado no correio do povo de hoje


LEIS ABSURDAS
 
Há leis, no Brasil, que não pegam. Não são cumpridas. Nem aplicadas. Há outras piores, absurdas. Melhor seria quem não pegassem. A legislação eleitoral, por exemplo, é pródiga em monstrengos. A deputada federal Luciana Genro (PSOL) foi atingida de uma vez só por duas dessas melancias jurídicas. Apesar de ter feito quase 130 mil votos na eleição de outubro, ela ficou de fora. Perdeu até para quem não chegou a 30 mil votos. É a tal lei da proporcionalidade, do coeficiente eleitoral. A Câmara dos Deputados perdeu uma das pessoas mais combativas, coerentes e competentes da política nacional. De quebra, com a eleição de Tarso Genro, pai de Luciana, para o governo do Rio Grande do Sul, ela está inelegível no Estado. Só pode concorrer à Presidência da República.
Eu tenho as minhas leis: numa democracia, nenhuma lei pode restringir meus direitos políticos individuais se eu não tiver cometido qualquer irregularidade. Ninguém poderia ter sua liberdade de ser candidato limitada pelo fato de seu pai já ter cargo eletivo. A medida existe para impedir o uso da máquina em favor do familiar? Remédio ridículo. Mata-se o paciente para impedir que ele seja auxiliado. Que se criem mecanismos para impedir ou punir o uso da máquina pública em favor de parentes. Luciana Genro faz oposição ao partido do seu pai. Sempre teve voo próprio. Foi expulsa do PT. Não é filhinha de papai. Enquanto isso, no Maranhão, toda a família Sarney se elege debochando das leis com subterfúgios baratos. José Sarney concorre pelo Amapá. Só há uma lei boa na democracia no que se refere à escolha dos representantes: o povo decide. Cada cabeça, um voto. Deve ganhar quem somar mais votos, sendo filho, irmão, marido ou amante.
Hoje, na Faculdade de Direito da Ufrgs, às 18h30, acontecerá um evento em favor da possibilidade de Luciana Genro ser candidata à vereança em Porto Alegre. Grandes figuras de vários partidos prometem estar lá: Sérgio Zambiazi, Ana Amélia Lemos, Pedro Simon, José Fortunati e o governador eleito Tarso Genro. A relação de Tarso e Luciana é muito bonita. Demonstram muito carinho na relação pai e filha, respeitam-se como adversários políticos e comportam-se, um em relação ao outro, na esfera pública, com uma elegância extraordinária. O legislador brasileiro precisa acordar para coisas simples: nada pode cercear o direito individual de participação no espaço público. Ser parente não pode virar privilégio. Nem ônus. Temos muitas leis burras.
Só deveria ser dividido com outros candidato o voto na legenda. Voto nominal pertence ao indivíduo votado. Quem fizer mais, deve ganhar. Sem formulismos. A lei da fidelidade partidária é suficiente para impedir que o individuo eleito vá embora com seus votos. É outra conversa. Certo é que Porto Alegre não pode prescindir da oportunidade de ter Luciana Genro como vereadora. O meio jurídico sabe que essa legislação precisa mudar. Ou a interpretação do texto legal. A vida costuma ser mais complexa do que certas leis aprovadas para corrigir distorções, criando novos defeitos e metástases legais.

Caça ao "terrorista" anti-imperialista

Julian Assange: Procurado pelo império, morto ou vivo

por Alexander Cockburn [*]
Julian Assange. As ondas hertzianas americanas vibram com os berros de assassinos vocais que uivam pela cabeça de Julian Assange. Jonah Goldberg, colaborador da National Review, pede na sua coluna publicada numa rede de jornais: "Por que Assange não foi estrangulado no seu quarto de hotel anos atrás?" Sarah Palin quer que seja perseguido e trazido à justiça, dizendo: "Ele é um operacional anti-americano com sangue nas suas mãos".

Assange pode sobreviver a estas ameaças teatrais. Uma questão mais difícil é como é que conseguirá arranjar-se nas mãos do governo estado-unidense, o qual está louco furioso. O procurador-geral, Eric Holder, anunciou que o Departamento da Justiça e o Pentágono conduzem "uma activa investigação criminal agora em curso" quanto à mais recente fuga de documentos publicados por Assange sob a Lei de Espionagem de Washington.

Perguntado sobre como os EUA podiam processar Assange, um cidadão não americano, Holder declarou: "Deixe-me ser claro. Isto não é preparação para combate" e prometeu "fechar rapidamente as lacunas na actual legislação dos EUA..."

Por outras palavras, o estatuto da espionagem está a ser reescrito para atingir Assange e a curto prazo, se não já, o presidente Obama – o qual como candidato pregou "transparência" no governo – assinará uma ordem dando sinal verde para a captura de Assange e o seu transporte para a jurisdição estado-unidense. Entregar primeiro, combater as acções de habeas corpus depois.

A Interpol, o braço investigatória do Tribunal Penal Internacional de Haia, emitiu uma nota fugaz para Assange. Ele é procurado na Suécia para investigação de dois alegados assaltos sexuais, um dos quais parece reduzir-se a uma acusação de sexo inseguro e deixar de telefonar ao seu par do dia seguinte.

Esta acusadora primária, Anna Ardin, contou Israel Shamir em CounterPunch, "tem ligações com grupos anti-Castro e anti-comunistas financiados pelos EUA. Ela publicou diatribes anti-Castro na publicação sueca Revista de Asignaturas Cubanas publicada por Misceláneas de Cuba… Note-se que Ardin foi deportada de Cuba por actividades subversivas".

Certamente não é conspiracionismo suspeitar que a CIA esteve a trabalhar para fomentar estas acusações suecas. Como informa Shamir: "No momento em que Julian pediu a protecção da lei sueca dos media, a CIA imediatamente ameaçou descontinuar a partilha de inteligência com o SEPO, o Serviço Secreto Sueco".

A CIA sem dúvida ponderou a possibilidade de empurrar Assange pela borda fora de uma ponte ou de uma janela alta (modo de assassinato preferido pela Agência nos últimos tempos) e concluiu tristemente que é demasiado tarde para esta espécie de solução executiva.

A ironia é que as milhares de comunicações diplomáticas divulgadas pelo WikiLeaks não contêm revelações que minem a segurança do império americano. O grosso delas simplesmente ilustra o facto bem conhecido de que em toda capital do mundo há um edifício conhecido como a Embaixada dos EUA, habitado por pessoas cuja função primária é avaliar as condições locais. Tais pessoas estão carregadas com a ignorância e os preconceitos transmitidos pela educação superior dos EUA – cujas elites governantes actuais são mais ignorantes daquilo que realmente acontece no mundo exterior do que em qualquer outra época da história do país.

As informações na imprensa oficial sugerem que fiquemos estupefactos com a notícia que o rei da Arábia Saudita deseja que o Irão seja varrido do mapa, que os EUA utilizam diplomatas como espiões, que o Afeganistão é corrupto e também que a corrupção não é desconhecida na Rússia! Estas notícias da imprensa promovem a ilusão de que as embaixadas dos EUA seriam habitadas por observadores inteligentes que enviam com entusiasmo informação utilizável aos seus superiores em Washington DC. Ao contrário, diplomatas – assumindo que tenham a mais ligeira capacidade para a observação e análise inteligente – aprendem longo a avançar suas carreiras enviando para Foggy Bottom [1] relatórios cuidadosamente sintonizados com os preconceitos da hierarquia do Departamento de Estado e da Casa Branca, dos membros poderosos do Congresso e dos actores principais das burocracias. Recordar que quando a União Soviética deslizava rumo à extinção, a Embaixada dos EUA em Moscovo mantinha-se teimosamente a fornecer relatos trémulos de um poderoso Império do Mal ainda a meditar acerca de uma invasão da Europa Ocidental!

Isto não significa subestimar a grande importância da última fornada do WikLeaks. Milhões na América e no mundo passaram a entender melhor as relações internacionais e as verdadeiras artes da diplomacia – não a prosa de terceira classe, de mexericos, com as quais após a aposentadoria os diplomatas tentam imitar os escritos dos clássicos romanos.

Anos atrás Rebecca West, no seu romance The Thinking Reed, acerca de um diplomata britânico, escrevia: "mesmo quando espreitava os seios no decote de uma mulher conseguia parecer que pensava acerca da Índia". Na versão actualizada, dadas as ordens de Hillary Clinton ao Departamento de Estado, o representante dos EUA, ao fingir admirar a figura de uma encantadora adida cultural francesa, estaria realmente a pensar em como roubar-lhe o número do seu cartão de crédito, conseguir um scan da sua retina, a password do seu email e o número de passageiro frequente na sua companhia de aviação.

Também há revelações genuínas de grande interesse, algumas delas longe de louváveis para imprensa "de referência" dos EUA. No CounterPunch da semana passada Gareth Porter identificou um telegrama diplomático de Fevereiro último divulgado pelo WikiLeaks que apresenta um relato pormenorizado de como especialistas russos no programa de mísseis balísticos iranianos refutaram a sugestão dos EUA de que o Irão dispõe de mísseis capazes de alvejar capitais europeias ou que pretende desenvolver tal capacidade. Porter destaca que:

"Os leitores dos dois principais jornais dos EUA nunca souberam aqueles factos chave acerca do documento. O New York Post e o Washington Post informaram apenas que os Estados Unidos acreditavam que o Irão havia adquirido tais mísseis – supostamente chamados BM-25 – à Coreia do Norte. Nenhum dos dois jornais informou a pormenorizada refutação russa do ponto de vista americano sobre a questão ou a falta de prova concreta dos BM-25 por parte dos EUA.

"The Times, que segundo o Washington Post de segunda-feira obteve os telegramas diplomáticos não do WikiLeaks mas sim do Guardian, não publicou o texto do telegrama. A notícia em The Times dizia que jornal tomara a decisão de não publicar 'a pedido da administração Obama'. Isso significa que os seus leitores não poderiam comparar a informação altamente distorcida do documento na notícia do Times com o documento original sem pesquisar o sítio web do WikiLeaks".

A aversão ao WikiLeaks na imprensa "oficial" dos EUA ficou bem patente já na primeira das duas grandes divulgações de documentos relativos às guerras no Iraque e no Afeganistão. O New York Times conseguiu o feito pouco elegante de publicar algumas das fugas enquanto simultaneamente afectava uma atitude arrogante e dava uma machadada maldosa em Assange escrita pelo seu repórter John F. Burns, homem com um registo brilhante de colaboração com várias agendas do governo estado-unidense.

Tem havido aplausos a Assange e ao WikiLeaks por parte de denunciantes famosos como Daniel Ellsberg [2] , mas alguém excitar-se com o que vê na televisão é escutar a espécie de fúria que Lord Haw-Haw [3] – também conhecido como o irlandês William Joyce, que fazia propaganda por rádio a partir de Berlim – costumava provocar na Grã-Bretanha durante a II Guerra Mundial. Como escreveu Glenn Greenwald na sua coluna no sítio Salon:
"Na CNN, Wolf Blitzer estava quase raivoso com o facto de o governo dos EUA ter fracassado em manter todas estas coisas secretas em relação a si... Então – como bom jornalista que é – Blitzer pedia garantias de que o governo havia tomado as medidas necessárias para impedir a ele, à generalidade dos media e aos cidadãos de descobrirem quaisquer outros segredos: 'Será que já sabemos se eles repararam aquilo? Por outras palavras, alguém neste exacto momento que tenha uma licença (clearance) top secret ou secret security já não pode mais descarregar informação para dentro de um CD ou uma pen drive? Será que isso já foi reparado?' A preocupação central de Blitzer – um dos 'jornalistas' mais homenageados do país – é assegurar que ninguém saiba o que o governo dos EUA está a tramar".
Os ficheiros mais recentes do WikiLeaks contem cerca de 261 milhões de palavras – cerca de 3000 livros. Elas mostram as entranhas do Império Americano. Como escreveu aqui Israel Shamir na semana passada: "Os ficheiros mostram a infiltração política dos EUA em praticamente todos os países, mesmo em estados supostamente neutros como a Suécia e a Suíça. As embaixadas dos EUA mantêm um olhar vigilante sobre os seus hospedeiros. Elas penetraram os media, os negócios, o petróleo, a inteligência e fazem lobby para por companhias estado-unidenses em primeiro plano".

Será que este registo vivo do envolvimento imperial no princípio do século XXI será logo esquecido? Não se algum escritor competente apresentar um texto claro e politicamente vivo. Mas uma advertência: em Novembro de 1979 estudantes iranianos capturaram um arquivo inteiro do Departamento de Estado, da CIA e da Defense Intelligence Agency (DIA) na embaixada americana em Teerão. Muitos documentos rasgados foram laboriosamente reconstituídos.

Estes segredos referiam-se a muito mais do que o Irão. A embaixada em Teerão servia como base regional da CIA, mantinha registos envolvendo operações secretas em muitos países, nomeadamente Israel, União Soviética, Turquia, Paquistão, Arábia Saudita, Kuwait, Iraque e Afeganistão.

A partir de 1982, os iranianos publicaram uns 60 volumes destes relatórios da CIA e de outros documentos do arquivo de Teerão do governo dos EUA, intitulados colectivamente Documentos do covil da espionagem estado-unidense (Documents From the US Espionage Den). Como escreveu anos atrás Edward Jay Epstein, historiador de agências de inteligência dos EUA: "Sem dúvida, estes registos capturados representam a mais vasta perda de dados secretos que alguma super-potência sofreu desde o fim da Segunda Guerra Mundial".

O arquivo de Teerão foi um golpe realmente devastador para a segurança nacional dos EUA. Ele continha retratos realistas de operações e técnicas de inteligência, a cumplicidade de jornalistas dos EUA com agências do governo estado-unidense, os meandros da diplomacia do petróleo. Os volumes estão em algumas universidades aqui. São lidos? Só por um punhado de especialistas. As verdades inconvenientes foram rapidamente enterradas – e talvez os ficheiros do WikiLeaks em breve também se desvaneçam da memória, juntando-se ao inspirador arquivo histórico de golpes de inteligência da esquerda.

Eu deveria homenagear aqui "Spies for Peace" – o grupo de acção directa de anarquistas britânicos e radicais afins associados à Campanha pelo Desarmamento Nuclear e ao Comité dos 100 de Bertrand Russell que em 1963 irrompeu dentro de um bunker secreto do governo, o Regional Seat of Government Number 6 (RSG-6) em Warren Row, próximo de Reading, onde fotografaram e copiaram documentos, mostrando preparativos secretos do governo para o domínio após uma guerra nuclear. Eles distribuíram à imprensa um panfleto juntamente com cópias de documentos relevantes, estigmatizando o "pequeno grupo de pessoas que havia aceite a guerra termonuclear como uma probabilidade e que estava conscienciosa e cuidadosamente a planear para ela. ... Elas estão tranquilamente à espera do dia em que as bombas caiam, pois será o dia em que tomarão o comando". Houve um grande alvoroço e então o governo conservador do momento emitiu uma D-notice [4] proibindo qualquer nova cobertura na imprensa. Os polícias e serviços de inteligência perseguiram arduamente e por muito tempo os espiões a favor da paz e nunca apanharam um.

E Assange? Esperançosamente ele terá um longo adiamento do seu enterro prematuro. O Equador ofereceu-lhe santuário até que a Embaixada dos EUA em Quito deu ao presidente uma ordem imediata e o convite foi cancelado. Suíça? Istambul? Hummm. Como se observou acima, ele deveria, pelo menos, encarar com cautela mulheres a convidá-lo ansiosamente para os seus braços e certamente permanecer longe de pontes, viadutos e janelas abertas.

Em 1953 a CIA distribuiu aos seus agentes e operacionais um manual de treino para assassinar (tornado público em 1997) cheio de conselhos práticos :
"O acidente mais eficiente, no assassínio simples, é uma queda de 75 pés [23 metros] ou mais sobre uma superfície dura. Poços de elevador, porões de escada, janelas abertas e pontes servirão... O acto pode ser executado repentinamente por [indivíduos] com tornozelos vigorosos, inclinando o sujeito sobre a borda. Se o assassínio provocar um alvoroço imediato, desempenhar o papel da 'testemunha horrorizada', não é preciso qualquer álibi ou retirada discreta".
[1] Foggy Bottom: bairro em Washington
[2] Ver Carta aberta de Daniel Ellsberg apelando ao boicote à Amazon . Resistir.info rompeu o seu acordo de parceria com a Amazon.fr.
[3] Lord Haw-Haw: alcunha de vários locutores do programa em inglês Germany Calling, da rádio nazi alemã destinada ao público da Grã-Bretanha e EUA. O programa principiou em 18/Setembro/1939 e perdurou até 20/Abril/1945. A alcunha refere-se mais concretamente a William Joyce, que era o locutor mais conhecido.
[4] D-Notice (ou DA-Notice): Na Grã-Bretanha é um pedido oficial a editores de notícias para não publicar dados sobre assuntos específicos, por razões de segurança nacional. O sistema foi instituído em 1912 e perdura até hoje.


[*] alexandercockburn@asis.com

O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/cockburn12032010.html

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .