sábado, 11 de dezembro de 2010

A construção do Socialismo na Bolívia (O necessário processo de retificações e precisões)


Marcos Domich*no Odiario.info
Marcos Domich
Homens inteligentes que não cometam erros não há nem pode haver. Inteligente é quem comete erros, mas sabe corrigi-los bem e depressa.
Lenine

Desde o 22 de Janeiro deste ano se colocou em cima da mesa da discussão política a construção do socialismo no nosso país. Os dois mais altos dirigentes do governo e do processo, Evo Morales Ayma e Álvaro García Linera, expuseram de forma cristalina essa perspectiva histórica. Além de ratificarem a linha anticapitalista e anti-imperialista, definiram a superação do capitalismo construindo o socialismo que muitas vezes se fez acompanhar do adjectivo comunitário. Álvaro Garcia encarregou-se de fundamentar teoricamente essa possibilidade, retomando posições marxistas.
Não obstante, para começar a caminhada nessa perspectiva histórica, há que ter em conta muitas premissas tanto de carácter objectivo, como subjectivo. Ao socialismo não se chega unicamente por um acto de vontade. Ao mesmo tempo que é certo que esta vontade, que é uma vontade específica – a vontade das massas trabalhadoras, sobretudo – tem de ser uma vontade adequada às condições objectivas.
O desenvolvimento dos processos sociais, económicos e políticos na Bolívia chegou a um ponto crucial. Esse ponto determina-se como o ponto de inflexão a partir do qual se abrem dois caminhos completamente distintos no seu significado e destino histórico. Um é o caminho da reforma social e o outro da revolução social. A via das reformas, sem dúvida pode melhorar a vida na sociedade, quando se destina a reparar a vida da gente que mais necessita. Mas as reformas não tocam nas bases do sistema social que está na origem das desigualdades sociais e na pauperização da maioria das pessoas, sobretudo dos pobres e explorados. A revolução, por outro lado, destrói as bases do regime antigo criando novas relações sociais de produção e liquidando a propriedade privada dos meios de produção. A revolução social não é senão um modo de transição de uma formação socioeconómica caduca para outra superior. Todavia a revolução, contrariamente a uma visão simplista e apressada, não se constrói da noite para o dia.
Até chegar às metas do que poderíamos denominar uma sociedade basicamente socialista, há um processo relativamente comprido, denominado de transição, que vai da velha sociedade caduca e injusta até à nova mais justa, equitativa e livre. A essência do período de transição é a execução das tarefas no campo da economia, fortalecendo as formas sociais de propriedade dos meios de produção e a adequação de essa economia a um novo regime político-jurídico. É um processo contínuo, de mudanças democráticas e revolucionárias que corresponde ao que os clássicos formularam no conceito de revolução permanente ou ininterrupta.
A revolução permanente, como a conceberam Marx e Engels e não em interpretações distorcidas, radica, em suas próprias palavras, é aquela em que: “… os nossos interesses e a nossa tarefa consiste em fazer a revolução ininterruptamente até que as classes – mais ou menos – dominantes sejam afastadas do poder; até que o proletariado conquiste o poder estatal.” Esta formulação atesta o dito: não é um processo rápido e a sua duração é difícil de prever. O que fica claro, aqui, é que se necessitará de um longo processo de educação das massas para manter o seu espírito revolucionário e o fortalecimento e alargamento do sector da propriedade social dos meios de produção. Em suma, manter o vigor da disposição de construir a nova ordem, vencendo o capitalismo na produção dos bens materiais e na forja de uma mente que supere os desequilíbrios do individualismo capitalista.
A primeira ruptura na etapa de transição do poder político do Estado, das mãos opressoras de antes, para as mãos emancipadoras do presente. Esta é a fase política da revolução. A fase social propriamente dita, consiste na mudança do sistema de propriedade dos meios de produção e, sobre esta base, o estabelecimento de novas relações de produção. Dito em outros termos, significa suprimir as causas da exploração do homem pelo homem.
A causa principal da exploração do homem é que os meios de produção (terra, instrumentos, máquinas, instalações, etc.) estão nas mãos dos outros homens. Enquanto uns os possuem outros não têm senão a sua força de trabalho (manual ou intelectual). Não é pura retórica o dito no Manifesto Comunista: os expropriados, os trabalhadores, não têm outra coisa a perder que não as suas correntes.
O poder económico gera poder político e é a propriedade dos meios de produção que outorga esse poder que, em princípio, pressupõe o poder de explorar o trabalho alheio. Implica também muitos outros efeitos; sobre esse poder económico surge toda uma estrutura que, passando pelo poder político, a formação jurídica, a textura moral social e individual, chega ao ideológico, ao psicológico, à esfera total da consciência social.
Em resumo, pode dizer-se que a relação de propriedade com os meios de produção imprime o seu selo até naquele espaço tão sublimado como o dos sentimentos e afectos e naquele que se conhece como a simbólica social; engendra toda uma afectividade de proprietário ou proprietarista. Na sociedade humana e sobretudo na dividida em classes, este afecto engendra a paixão que explica desde a ambição pela pequena posse de alguma propriedade até à busca de uma grande fortuna. Atribui-se ao sacerdote guerrilheiro colombiano Camilo Torres uma afirmação que explica a força deste afecto: “o rico, entre perder a vida ou a carteira, prefere perder a vida”.
Em redor do assunto da propriedade está o cerne das discussões e da confrontação na sociedade boliviana nestes dias. As classes e diversos sectores sociais e as nacionalidades e etnias, com uma ou outra simbologia, movem-se em torno da propriedade em geral, mas em particular em torno da propriedade dos meios de produção. Na sociedade capitalista, inclusive em âmbitos em que se pode imaginar que não há preconceitos ou temores sobre o seu destino, não deixam de se manifestar receios e dúvidas. Vivem dependentes de que não os despojem. É que até nos espaços de menor preconceito se desconhece que, no mais radical dos processos revolucionários, houve (e há) uma diferença entre a propriedade pessoal – ferramentas de trabalho pessoais; a casa e o carro (se o têm) e até a terra familiar ou particular – e a propriedade dos meios de produção, no sentido estritamente capitalista do termo.
Os receios dos menos preconceituosos, nos pouco informados politicamente, convertem-se em atormentadas predisposições e certezas de ameaças. Os meios de comunicação se encarregam de agigantá-los e gerar ondas de rumores que acabam por criar, pelo menos, uma oposição passiva contra o governo.
Não vamos examinar em detalhe os elementos que manobra e com os quais agita, a oposição das direitas, em “defesa da propriedade”. Só referimos alguns dos seus slogans: “Vão tirar as casas!”, “Vai tudo passar para o Estado!”, “Não haverá mais empresas privadas”, “Não haverá mais escolas nem universidades privadas!”, ”Vão encerrar os consultórios privados!”… “e as farmácias” … “o Estado é um mau administrador”, “a burocracia engole tudo”, “cresce a corrupção”, e assim até ao infinito.
Com formas completamente distintas, a extrema-esquerda radical tem os seus próprios slogans que, no fundo, levam a água ao mesmo moinho desestabilizador e reforçam os temores dos incautos que acreditam que de facto esses slogans podem concretizar-se. Os incautos, muitos e variados, não diferenciam o carácter deste governo e a realidade da extrema-esquerda. Esta lança apreciações e consignas da seguinte natureza: “este é um governo neoliberal”, “a nacionalização realizada é uma farsa”, “deve confiscar-se todos os bens aos ricos”, e assim por diante.
As disputas com as direitas e com as facções esquerdistas e a infinita batalha com os meios dominados pelo conservadorismo e as transnacionais da comunicação, se bem que têm importância, não são tão relevantes como as diferenças no seio do próprio governo e nos sectores sociais que se reclamam partidários da mudança. Há uma compreensão muito diversa sobre o assunto da essência e do alcance do tema da propriedade privada, sobretudo da dos meios de produção. Óbvio que esta falta de clareza cria confusão e impede uma concretização fluida das acções governamentais.
No governo, e isto estende-se ao partido governante, existem três correntes bastante distintas entre si; alguns analistas contabilizam até sete. Não entraremos em detalhe acerca da corrente que consideramos revolucionária e de opção nitidamente socialista. Esta corrente, geralmente, de inspiração marxista e marxista-leninista não é homogénea e não é a mais numerosa.
Outra corrente é a que podemos associar a uma concepção social-democrata e que manobra, precisamente, várias alavancas da economia e das finanças do país. Os seus partidários são muito cautelosos no que respeita às transformações verdadeiramente importantes na base económica. Tem-se a impressão que alguns deles prefeririam que as coisas, nesta matéria tão espinhosa, ficassem como estão. Têm um pânico em transtornar a economia ao tentar transformações estruturais. Sua acção económica baseia-se na protecção das suas reservas internacionais, nas exportações, antes de mais de matérias-primas; na poupança de despesa na administração estatal. Os preços altos das matérias-primas e a cotação estável da moeda norte-americana, serviu-lhes de confirmação do acerto da sua gestão económica. Igualmente podem gabar-se do notável aumento das reservas internacionais, de um crescimento positivo do PIB (com uma média de 5% durante os últimos 5 anos), do aumento da riqueza nacional, a diminuição dos índices de pobreza, particularmente rural; da estabilidade relativa dos preços ao consumidor.
A corrente mais caudalosa – que pode ser identificada e englobada, na generalidade, no indigenismo, sendo mais extensa e variada que a anterior – defende a expansão da propriedade, de toda a propriedade, incluindo a dos meios de produção, sempre e quando levem um selo indígena. Em alguns casos, este propósito manifestou-se na reivindicação imperativa de determinadas áreas de trabalho e de onde se cruzou com a presença de trabalhadores de outro sector social. Concretamente, algumas comunidades camponesas tentaram deslocar trabalhadores mineiros, em particular cooperativistas, de algumas minas. Fazem-no sobre o princípio de “terra-território” ou propriedade ancestral que compreende não só a superfície mas sim toda a riqueza que se pode encontrar no subsolo. Apoiam-se também numa interpretação ampla da nova Constituição Política do Estado. Esta estabelece a obrigatoriedade da consulta para a exploração de recursos que se encontrem em áreas que pertencem a povos originários (art. 316 inc. 1). Porém, neste caso, os trabalhos realizavam-se em conformidade com as antigas concessões entregues, habitualmente, a mineiros originários, com base nas disposições actuais. Por último, não têm faltado, nos sectores do indigenismo radical que, felizmente, estão fora do governo, posturas mais intransigentes como o direito, por exemplo, a negociar directamente a exploração de recursos naturais com empresas estrangeiras.
Esta política indigenista vem envolta com um conjunto de conceitos que, no melhor dos casos, não estão contra a perspectiva de um desenvolvimento em transição para um sistema socialista, mas é evidente também que não o tomam em conta como uma possibilidade certa. Mais exacto seria dizer: iludem-no. Substituem-no por uma visão idílica do trabalho, por agora impraticável. Transformam o desejável em utopia.
A concepção indigenista tem alguns pilares sobre os quais assenta e, em geral, estão divididos por todos os grupos que se reclamam originários puros. Não é objectivo desta apresentação analisar algo que é difícil resumir neste espaço. Haverá tempo para cerrar o dente neste problemático assunto. Mais assinalamos o que mais se adormece e é precisamente o mais necessário: a convergência e a unidade de todas as forças populares e de trabalhadores, na tarefa de afiançar e avançar o processo de mudança. A pedra angular das suas posições é de negação de todo o teórico ou instrumental-orgânico que, de alguma forma, provenha da Europa ou, de forma mais lata, do “ocidente”. Subtilmente assentaram-se ideias que não nasceram da criação teórica própria. Na realidade são ideias importadas ou introduzidas sobretudo por ONG’s.
Entre elas estão, por exemplo, o apartidarismo que se converteu em antipartidarismo generalizado e sem o menor objectivo de distinguir entre si quaisquer partidos políticos. A palavra de ordem nunca foi sempre lutar contra a “partidocracia”, colocando no mesmo saco todos os partidos. Desde essa posição não só negam a necessidade de partidos, sejam de esquerda, mas até dos sindicatos. Estes últimos, até contra a tradição de mais de meio século de organizações de trabalhadores agrícolas em sindicatos agrícolas, filiados na Central Obrera Boliviana. Alegam que tanto os partidos como os sindicatos são de “origem europeia”. É a primeira evidência do esquecimento ou da recusa do enfoque classista, pois, os partidos políticos representam, quase invariavelmente, os interesses das classes sociais e os sindicatos igualmente, mas de maneira mais específica, promovem os interesses concretos dos assalariados.
Começou a exaltar-se, em substituição dos partidos e dos sindicatos, as organizações sociais, categoria, obviamente, muito ampla. Nunca se negou a necessidade de trabalhar com elas. Assim se convergem na luta, mas é necessário dotá-las de uma organicidade mínima e sobretudo manter a tensão sobre a base de um programa com maior alcance histórico. Estamos de acordo com a necessidade de levar a fundo a origem destas correntes: “Com o falso pressuposto e o argumento enganoso de que os relatos pós-modernos e as metafísicas académicas pós-estruturalistas nascem… do solo indígena (?) e brotam… das culturas originárias (?) uma vez mais, como já ocorrera (antes) (…) se terminava adoptando como próprio um discurso teórico forjado exclusivamente a partir de uma experiência política distante, alheia: a de aquela geração europeia derrotada em 1968, desiludida durante toda a década de 70 e finalmente incorporada no sistema durante os anos 80”.
Vale a pena recordar algumas categorias na sua escala de prioridades. Para o indigenismo fortemente caracterizado como tal, a natureza e sobretudo a pachamama (mãe-terra) é mais importante que o homem. Este, ao fim e ao cabo, é um filho, mais um produto da terra. Concepção distinta aquela que defendemos: é a evolução social, a vida em sociedade, o trabalho, o que cria o homem social. Isto é o que o diferencia dos animais, inclusive daqueles que se encontrem no mais elevado nível da escala zoológica, a que pertencemos.
Num importante encontro (Cimeira sobre a Mudança Climática em Cochabamba, em Maio passado) – que teve muitos aspectos positivos e mobilizadores em defesa do meio ambiente e na condenação do capitalismo e a sua responsabilidade na mudança climática – o representante boliviano chegou a defender que os originários “vão mais além do capitalismo e do socialismo, já que estes eram igualmente predadores”. Não demonstrou um só dado que avalize esta comparação do socialismo ao capitalismo, mas a frase foi lançada e ali ficou como expoente de uma posição com pretensões de colocar-se acima do socialismo, particularmente do socialismo marxista.
É difícil sintetizar o conjunto de conceitos que desferem os teóricos da indigenidade que sem dizê-lo directamente, pretendem que a sua concepção de vida, do mundo e do homem, supera o que define o socialismo e muito particularmente o socialismo científico. Elegemos a apresentação aqui de um livro que refere a concepção de suma qamaña, como um resumo que nos dá uma ideia do emaranhado discursivo da “cosmovisão andina”: “A República da Bolívia não conseguiu constituir-se em Estado-nação no espaço-tempo da modernidade. E eis que a modernidade cessou e com ela a forma Estado-nação, o modo industrial de produzir, a visão mecanicista, atomista e redutora de interagir com a realidade. O próprio conceito de realidade se relativizou e tornou-se probabilístico e quântico. Portanto os mitos de Desenvolvimento e do Progresso também chegaram ao seu fim. Nesta transição de época, não obstante, coexistem revoltas, as inércias fantasmagóricas do passado e as virtudes, não reconhecidas como tais, do mundo que amanhece” E conclui: “É de vida ou morte que os bolivianos, na Assembleia Constituinte deram um passo adiante como vanguarda política da humanidade, dando-nos uma constituição que seja capaz de traduzir politicamente o novo paradigma científico técnico e a cosmovisão das Nações indígenas e originárias”.
Um dos traços centrais desta concepção é opor-se aos conceitos, definidos como exclusivamente ocidentais, de desenvolvimento e industrialização. Em algum outro momento Medina define que o modelo bíblico do Éden e da visão aristotélica da “Boa vida na cidade” separam, ambos, o homem e a natureza e conclui quase de modo polpotiano: “Não é a Cidade, mas a Chacra; não é a separação mas a simbiose com a natureza, o espaço-tempo da qualidade de vida”.
Como um resultado directo desta concepção, que pretende negar a ciência – e no fundo não está ganha para as perspectivas revolucionárias do processo de mudança – observa-se, na actual conjuntura, um risco de paralisação da actividade revolucionária das organizações sociais, de regresso às posições dos objectivos concretos, limitados, sectoriais, e do abandono de algo que caracterizou a resistência ao neoliberalismo: a defesa comprometida e prioritária dos interesses à escala nacional. É sem dúvida um processo de fetichização (ainda não insuperável), por trás do simbolismo andino, de linguagem, de ritos. A situação revolucionária que se concretizou em Outubro de 2003 é impensável sem a participação das organizações sociais. É necessário, pois, voltar a activar a efervescência revolucionária de tempos não muito distantes.
Não é a intenção polemizar agora nem com a social-democracia nem com o indigenismo, mas sublinhar como estas correntes podem desviar a atenção dos temas vitais, dos objectivos centrais do processo para este materialize as transformações que permitirão desabrochar o caminho até uma sociedade superior.
É imprescindível determinar, além do ponto de inflexão, em que nível de avanço do processo de transformação nos encontramos. Aprovou-se uma nova Constituição Política do Estado Plurinacional; conquistou-se uma sólida maioria parlamentar pela transformação; conquistou-se 6 em 9 governações; de ter uma presença maioritária na maioria das assembleias departamentais; de dominar mais de 220 das 312 autarquias que existem no País; de encaminhar-se uma renovação ambiciosa do órgão judicial e, o mais significativo, de ter derrotado politica e operativamente os intentos desestabilizadores e separatistas.
Este nível e simultaneamente ponto de inflexão, desde a nossa visão, assinala que praticamente se completou com êxito a fase política da revolução. O sintoma principal de essa mudança é que as velhas classes dominantes e exploradoras foram retiradas das principais estruturas de dominação política. Mas esta afirmação tem de ser relativizada. Não é o mesmo ocupar alguns centros altos da estrutura política e depurá-la de toda a herança da hermenêutica funcionária, dos hábitos e costumes da burocracia sobre tudo, e até da sua composição de pessoal. O velho persiste muito tempo na sociedade e o processo de decantação dura muito tempo e requer um trabalho como o de um mecanismo de relojoaria. Muita de esta gente é necessária para o processo de construção da nova ordem e a partir de certa ética e de certa disposição meramente patriótica convertem-se em necessários, ainda que nunca em imprescindíveis.
Tampouco entraremos na análise de outros aspectos do funcionamento da sociedade no processo de mudança. Em particular daqueles que se referem ao elemento humano, a sua psicologia e orientação ideológica, aos seus hábitos, à sua conduta quotidiana. Nem ao papel nefasto que joga o elemento adicionado à última hora e este processo de mudança; aqueles que saltaram cinicamente para o carro da vitória eleitoral. Nem tão-pouco à ampla capa não só de oportunistas políticos, de aqueles, até piores, em só pensam no seu benefício pessoal, não só ilícito como muitas vezes atinge proporções escandalosas. Quando se pensa neste conjunto de detalhes vemos quão distantes estamos do aparecimento do homem novo, não só individual, mas como sujeito colectivo.
Miguel Urbano abordou este tema do homem construtor do socialismo levantando profundas interrogações. Inferimos do seu trabalho que o que primeiro há a despejar são as ideias românticas e apressadas acerca do homem novo. Sua formação, como tal, exige muito tempo e sobretudo implica aquele ideal das sociedades socialistas avançadas: o paulatino desaparecimento das diferenças de classe. Chegar ao sonho da igualdade – uma das aspirações socialistas que se menciona pouco – se a intui como alta e difícil de alcançar, a partir do estado da pessoa actual e a partir sobretudo da sua consciência.
A observação, de Urbano, acerca de que passada a época gloriosa e romântica dos momentos estelares de uma revolução, as gerações que a conhecem pela história e às vezes a conhecem mal, não actuam como o prescreveria a sua pertença a uma sociedade em que vai desaparecendo a exploração do homem pelo homem e, objectivamente, se vive melhor que na sociedade capitalista, é difícil de responder. Atrevemo-nos a pensar que uma das alavancas para a alcançar é uma crescente democracia e a crescente participação pessoal no trabalho e nas decisões colectivas. Isso levará à forja quotidiana do homem novo, fenómeno que não se dá da noite para o dia e que tem de entender, por sua vez, que no próprio desenvolvimento vivencial, cultural, etário e biológico da personalidade em permanente dinâmica e mudança.
Para finalizar o caso boliviano, um aspecto que merece uma análise detalhada é a correlação e o estado das forças políticas. Na direita clássica e na neo-direita, sucedânea da neo-esquerda dos anos 70, houve grandes remodelações. Provocaram o virtual desaparecimento dos partidos, terríveis cisões e em geral o derrube do conjunto das suas ideias neo-liberais. Sobre isto, repetimos o que disse em seu tempo Almaraz: possuem “ideias (tão escassas) que cabiam numa casca de noz”. Porém o importante é examinar cuidadosamente os seus reagrupamentos e sobretudo as suas novas poses. Uma dirigente camponesa caricaturava a situação desta maneira: “a direita agora veste-se de ponchos e [ojotas]”.
Trespassando as trincheiras da direita é óbvio que não passamos por alto o que não é uma simples trincheira, mas sim uma fortaleza: a bateria dos meios de comunicação ao seu serviço e que trabalham a toda a força distorcendo a informação, desinformando, semeando estereótipos negativos, avivando preconceitos e incitando a manifestações e acções que deteriorem ou prejudiquem o processo. Infelizmente a resposta do governo e da esquerda é insuficiente e muitas vezes inadequada. Estas duas trincheiras citadas, há que o sublinhar, estão grandemente suportadas por ajudas estrangeiras milionárias. Como nunca se evidenciaram os movimentos de entidades como a USAID que opera através de milhares de tentáculos como as Organizações Não Governamentais.
Completa, na generalidade, a tarefa política chega a parte correspondente à mudança da própria estrutura da sociedade, da sua base. Sem a transformação necessária de esta estrutura, toda a mudança política pode dar em nada. Ainda mais, pode ser sucedida por um processo contra-revolucionário. A experiência internacional nesta matéria é muito amarga para os trabalhadores, para os povos que a sofreram. É sobre esta questão da proposta económica que deve haver a maior clareza, mais exactamente a maior lucidez de consciência política.
Nesta matéria não cabem as ambiguidades nem a substituição dos objectivos nem a mudança de uma planificação científica por ideias utópicas. O desenvolvimento nacional soberano, integrado na ALBA e em benefício dos trabalhadores e do povo boliviano é a meta inequívoca, o objectivo invariável do processo de mudança, se queremos converter este numa revolução verdadeira e não numa mera reforma progressista. Efectuar realmente o que chamamos o Resgate da Pátria, rumo ao Socialismo. Obviamente o processo de mudança não nos levará às metas fixadas num período curto. Há que despojar-se de todo o tempo de ilusões, de falsas ideias acerca da construção de uma nova sociedade. Ao socialismo chegaremos, só atravessando – com sabedoria, com flexibilidade, sem dogmatismos nem desvios, contemplando a própria realidade – é difícil, às vezes caminho tortuoso, da transição do capitalismo ao socialismo. Mas antes de mais necessitamos de unidade popular e organização.

* Marcos Domich, Professor da Universidade de La Paz, é amigo e colaborador de odiario.info.

MANIFESTO DA VIA CAMPESINA EM CANCUN

Por Fausto Brignol em seu blog


A mídia dominante, que todos gostam de assistir, principalmente pelas novelas e pelo futebol, ou pela pouca importância que dá aos temas mais momentosos, tratando-os de maneira leve e fluida, como se todas as coisas se arranjassem sem luta, ou pela simples ação dos governantes do mundo, mais uma vez deu pouca importância à Conferência Climática de Cancun. Não devemos culpar os jornalistas que são apenas intermediários dos patrões que os mandam agir dessa maneira, longínqua em relação ao povo e aos problemas do nosso planeta. Eles são muito bem pagos, como os antigos mercenários, e agem como robôs. Na verdade, há uma possibilidade de que, às vezes, eles consigam raciocinar por si mesmos.

     Mas o povo estava alerta em Cancun. Abaixo, a minha tradução do manifesto da Via Campesina.


“MAIS VALE NENHUM ACORDO DO QUE UM MAU ACORDO”

     “Os membros da Via Campesina de mais de 30 países de todo o mundo unimos nossas lutas em Cancun para exigir da Cúpula sobre a Mudança Climática (COP 16), justiça ambiental e respeito à Mãe Terra, para denunciar as ambiciosas intenções dos governos, principalmente do Norte, de comercializar todos os elementos essenciais à vida em benefício das corporações transnacionais e para dar a conhecer as múltiplas soluções para melhorar o clima e frear a devastação ambiental que hoje ameaça muito seriamente a humanidade.

     “Tomando como principal espaço de mobilização o Foro Alternativo Global pela Vida, a Justiça Social e Ambiental, nós realizamos reuniões e assembléias com nossos aliados e uma ação global que denominamos “os milhares de Cancun”, que repercutiu por todo o planeta e até mesmo nas salas do Moon Palace da COP 16. Esta ação de 7 de dezembro teve como expressão de nossa luta uma marcha de milhares de membros da Via Campesina, acompanhada pelos indígenas Maias da península mexicana e nossos milhares de aliados de organizações nacionais e internacionais.

     “A mobilização até Cancun iniciou no dia 28 de novembro através de três caravanas que partiram desde San Luis Potosí, Guadalajara e Acapulco, que passaram pelos territórios mais simbólicos da devastação ambiental, apesar da resistência e das lutas das comunidades afetadas. O esforço das caravanas foi um trabalho conjunto com a Assembléia Nacional de Afetados Ambientais, o Movimento de Libertação Nacional, o Sindicato Mexicano de Eletricistas e centenas de pessoas que nos abriram as portas de sua generosidade e solidariedade. Em 30 de novembro chegamos com nossas caravanas à Cidade do México, celebramos um Foro Internacional e uma marcha, acompanhados de milhares de pessoas e centenas de organizações que também lutam pela justiça social e ambiental.

     “Em nossa jornada até Cancun, outras caravanas, uma de Chiapas, outra de Oaxaca e uma da Guatemala, depois de muitíssimas horas de viagem, uniram-se em Mérida, para celebrar uma cerimônia em Chichen Itzá e finalmente chegar a Cancun em 3 de dezembro para instalarmos o nosso acampamento pela Vida e a Justiça Social e Ambiental. No dia seguinte, 4 de dezembro, abrimos o nosso foro e assim demos inicio à nossa luta em Cancun.

     “Os atuais modelos de comércio e produção estão causando uma destruição no meio ambiente da qual os povos indígenas, camponesas e camponeses somos as principais vítimas. Assim, a nossa mobilização até Cancun e em Cancun foi para dizer aos povos do mundo que necessitamos de uma mudança de paradigma de desenvolvimento e economia.

     “É necessário transcender o pensamento antropocêntrico. Devemos reconstituir a cosmovisão dos nossos povos, que se baseia no pensamento holístico da relação com o cosmos, a mãe terra, o ar, a água e todos os seres viventes. O ser humano não é dono da natureza, mas uma parte do todo que tem vida. Ante esta necessidade de reconstituir o sistema, o clima da mãe terra, denunciamos

1. “Que os governos continuam indiferentes ante o aquecimento do planeta e em vez de debater sobre as mudanças de políticas necessárias para esfriá-lo, debatem sobre o negócio financeiro especulativo, a nova economia verde e a privatização dos bens comuns.

2. “As falsas soluções que o sistema capitalista neoliberal implementa, como a iniciativa REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação); o MDL (Mecanismo de Desenvolvimento Limpo), a geoengenharia, representam comercialização dos bens naturais, compra de permissão para contaminar os créditos de carbono, com a promessa de não destruir bosques e plantações no Sul.

3. “A imposição da agricultura industrial, através da implementação de produtos transgênicos, que atenta sobre a Soberania Alimentar.

4. “A energia nuclear, que é muito perigosa e de nenhuma maneira é uma solução.

5. “O Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional, a Organização Mundial do Comércio por facilitar a intervenção das grandes transnacionais em nossos países.

6. “Os impactos que provocam os tratados de livre comércio com os países do Norte e com a União Européia, que não são mais que acordos comerciais que abrem as portas de nossos países às empresas transnacionais para que se adonem dos nossos bens naturais.

7. “A exclusão dos camponeses e dos povos indígenas nas discussões dos temas transcendentais na vida da humanidade e da mãe terra.

8. “A expulsão de companheiras e companheiros do espaço oficial da COP 16 devido à sua oposição aos argumentos dos governos que apelam para um sistema depredador que acabará por exterminar a mãe terra e a humanidade.

     “Não estamos de acordo com a simples idéia de “mitigar” ou nos “adaptarmos” à mudança climática. Por isso, exigimos:

1. “Retomar os princípios do acordo de Cochabamba de 22 de abril de 2010 como um processo que realmente nos leve à redução de emissão de gases que provocam o efeito estufa e para conseguir a justiça social e ambiental.

2. “A Soberania alimentar com base na agricultura camponesa sustentável e agroecológica, posto que a crise alimentar e a crise climática são o mesmo, porque ambas são conseqüência do sistema capitalista.

3. “É necessário mudar os estilos de vida e as relações destrutivas do meio ambiente. Devemos reconstituir a cosmovisão dos nossos povos originários, que se baseia no pensamento holístico e na relação com o cosmos, a mãe terra, o ar, a água e todos os seres viventes.

     “A Via Campesina, como articulação que representa milhões e milhões de famílias camponesas de todo o mundo e preocupados pela recuperação do equilíbrio climático, chama a:

1. “Assumir a responsabilidade coletiva da mãe terra, mudando os padrões de desenvolvimento das estruturas econômicas e o fim das empresas transnacionais.

2. “Reconhecemos governos como o da Bolívia, Tuvalu e alguns mais que tem tido a coragem de resistir ante a imposição dos governos do Norte e das corporações transnacionais e fazemos um chamado para que outros governos se somem à resistência dos povos frente a crise climática.

3. “Obrigar a todos os que contaminam o ambiente a prestar contas pelos desastres e delitos cometidos contra a mãe Natureza. Da mesma forma, obrigá-los a reduzir as emissões de gases no lugar onde são gerados. O que contamina deve deixar de contaminar.

4. “Alertamos aos movimentos sociais do mundo sobre o que acontece no planeta para defender a vida da mãe terra, porque estamos definindo o que será o modelo das próximas gerações.

5. “A ação e a mobilização social das organizações urbanas e camponesas, a inovação, a recuperação das formas ancestrais de vida, devem fazer parte de uma grande luta para salvarmos a mãe terra, que é a casa de todos, contra o grande capital e os maus governantes – esta é a nossa responsabilidade histórica.

6. “Que as políticas de proteção à biodiversidade, soberania alimentar, manejo e administração da água se baseiem nas experiências e administração plena das próprias comunidades.

7. “A uma consulta global aos povos para decidir as políticas e as ações globais para deter a crise climática.

     “Hoje, agora mesmo chamamos a humanidade para atuar imediatamente pela reconstituição da vida de toda a mãe natureza, recorrendo à aplicação do “cosmoviver”.

     “Por isto, desde as quatro esquinas do planeta nos levantamos para dizer:

“- Nenhum dano mais à nossa Mãe Terra!

“- Fim à destruição do planeta!

“- Respeito aos nossos territórios!

“- Nenhuma morte mais aos filhos e filhas da Mãe Terra!

“- Não à criminalização das nossas lutas!

     “Não ao entendimento de Copenhagen. Sim aos princípios de Cochabamba.

     “REDD não! Cochabamba sim!

     “A TERRA NÃO SE VENDE, SE RECUPERA E SE DEFENDE!

     “GLOBALIZEMOS A LUTA, GLOBALIZEMOS A ESPERANÇA.

“Delegação da Via Campesina em Cancun, em 9 de dezembro de 2010.”

Número de casas vazias supera déficit habitacional brasileiro, indica Censo 2010

Vinicius Konchinski, da Agência Brasil

São Paulo – Os primeiros dados do Censo 2010 divulgados pelo Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que o número de domicílios vagos no país é maior que o déficit habitacional brasileiro.
Existem hoje no Brasil, segundo o censo, pouco mais de 6,07 milhões de domicílios vagos, incluindo os que estão em construção. O número não leva em conta as moradias de ocupação ocasional (de veraneio, por exemplo), nem casas cujos moradores estavam temporariamente ausentes durante a pesquisa.
Mesmo assim, essa quantidade supera em cerca de 200 mil o número de habitações que precisariam ser construídas para que todas as famílias brasileiras vivessem em locais considerados adequados: 5,8 milhões.
Esse déficit habitacional foi calculado pelo Sindicato da Indústria da Construção Civil do Estado de São Paulo (Sinduscon-SP) com base em outro levantamento do IBGE, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad).
O déficit soma a quantidade de famílias que declaram não ter um teto, que habitam locais inadequados ou que compartilham uma mesma moradia e pretendem se mudar. Não leva em conta as famílias que vivem em casas adequadas de aluguel.
O censo mostrou que São Paulo é o estado com o maior número de domicílios vagos. O número de moradias vazias chega a 1,112 milhão. Já de acordo com o Sinduscon-SP, são 1,127 milhão de famílias sem teto ou sem uma casa adequada. Portanto, na hipótese de que essas casas vagas fossem ocupadas por uma família, só 15 mil moradias precisariam ser construídas para solucionar o déficit habitacional do estado.
Minas Gerais é o segundo estado com o maior número de habitações vazias. São cerca de 689 mil, segundo o censo. Se todas as 444 mil famílias que compõem o déficit habitacional de Minas estimado pelo Sinduscon-SP mudassem para uma das moradias vagas, ainda sobrariam 245 mil domicílios desocupados.
Para o arquiteto e urbanista Jorge Wilheim, ex-secretário de Planejamento da cidade e do estado de São Paulo, os números do censo e do déficit habitacional indicam uma incoerência. Para ele, a quantidade domicílios vazios reforça a teoria de mau aproveitamento deles.
Em entrevista à Agência Brasil, Wilheim lembrou, porém, que não se pode afirmar que todas essas casas poderiam ser habitadas já. Destacou que os domicílios vazios têm diferentes características, que ainda não foram divulgadas pelo IBGE. Muitas casas, inclusive, são propriedades cujo valor não é compatível para atender à demanda das famílias que compõem o déficit habitacional.
De acordo com o Sinduscon-SP, 77% das famílias sem teto ou que vivem em locais inadequados têm renda mensal de até três salários mínimos (R$ 1.530 atualmente). Já 62% das famílias que dividem uma mesma moradia e desejam mudar estão na mesma faixa de renda.
Devido a isso, Wilheim entende que para resolver o problema de habitação do país são necessárias políticas públicas. Para ele, essas políticas poderiam estimular a reocupação de moradias vazias e, principalmente, as que estão abandonadas há anos.
“Precisamos de uma intervenção do Poder Público para desatar este nó [o déficit habitacional]”, disse. “Tem que haver uma intervenção para desapropriar os imóveis que estão abandonados há muito tempo para sua reposição no mercado”, completou.
O coordenador da Secretaria Executiva da Rede Nossa São Paulo, Maurício Broinizi Pereira, também considera o número de domicílios vagos paradoxal. Ele ressaltou que, seguramente, muitas dessas moradias não serviriam para acabar com o déficit habitacional do país até porque estão vazias temporariamente, à espera de um inquilino ou comprador. Entretanto, defende que medidas como a taxação progressiva de imóveis desocupados poderia minimizar a situação.
Pereira lembrou ainda o exemplo da cidade de São Paulo, que passa a cobrar o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) de imóveis considerados ociosos progressivamente a partir do ano que vem. O imposto desses imóveis, que hoje varia entre 0,8% e 1,8% do seu valor, pode chegar a 15% com o passar dos anos.
“Isso vai inibir a manutenção do imóvel vazio”, explicou, lembrando que só na capital paulista o número desses imóveis chega a 290 mil. “O dinheiro arrecadado com o aumento de imposto deve ser usado para construção de novas casas que atendam a população incluída no déficit habitacional da cidade.”
O Ministério da Cidades, responsável pelas políticas de habitação do país, informou em nota que o governo federal criou no ano passado o programa Minha Casa, Minha Vida visando a reduzir o déficit habitacional brasileiro em 1 milhão de unidades.
O órgão não comentou a diferença entre o número de imóveis vazios e a demanda por moradia no país. Afirmou, porém, que a construção de 816 mil casas já foi contratada. Dessas, 40% serão destinadas a famílias com renda mensal até R$ 1.395.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Entrevista com futuro Secretário da Educação do RS

José Clóvis de Azevedo: “Não é necessário mexer no plano de carreira do magistério”

Bruno Alencastro/Sul21
José Clóvis de Azevedo | Foto: Bruno Alencastro/Sul21

Igor Natusch no Sul21

Nos últimos anos, a Secretaria de Educação transformou-se em uma das maiores dores de cabeça do governo gaúcho. Com um número crescente de aposentados, escolas em situação cada vez mais precária e clima de guerra declarada com o sindicato da categoria (Cpers), a pasta é tão problemática que mesmo partidos como o PDT, que tem na educação uma de suas principais bandeiras, declinaram de indicar nomes durante a divisão de secretarias entre a base aliada de Tarso Genro (PT). No fim das contas, caberá a José Clóvis de Azevedo, identificado com a corrente Democracia Socialista, desatar os nós que limitam as ações em um setor fundamental para o futuro do Rio Grande do Sul.
José Clóvis de Azevedo tem uma trajetória significativa dentro da educação gaúcha. Formado em História pela UFRGS, o professor foi secretário-geral do Cpers e atuou como Secretário de Educação de Porto Alegre, durante o governo de Raul Pont (PT). O pesquisador, que atualmente exerce atividades no Centro Universitário Metodista IPA, teve participação na elaboração do plano de governo do então candidato Tarso Genro – e foi essa participação que motivou o convite para ocupar a Secretaria de Educação no mandato que se inicia em 1º de janeiro de 2011.
Em conversa com o Sul21, o professor José Clóvis discutiu abertamente várias das questões que fazem da pasta uma das mais delicadas para o futuro governo. Falou sobre infraestrutura das escolas, evasão escolar, capacitação profissional dos docentes, salários e gratificações. Garantiu que não pensa em mexer no plano de carreira do magistério, e deixou claro que não pretende usar gratificações ao mérito, como o 14º salário aplicado por Eduardo Campos (PSB) em Pernambuco. Disse que a escola precisa ser um ambiente integrado à realidade cultural dos alunos, oferecendo a eles “carinho e acolhimento” quando necessário. E manifestou o interesse de abrir conversações imediatas com o Cpers, bem como de convocar concurso público ainda nos primeiros meses de governo.
“Então, a dificuldade é a de pegar uma curva descendente, que vem de 30 anos pelo menos, e reverter esse sentido, transformando-a em uma curva ascendente.”
Sul21 – Muito foi dito, nos dias anteriores à confirmação de seu nome, sobre como a Secretaria de Educação é uma pasta difícil, minada pelo relacionamento conflituoso com o Cpers e cheia de problemas na administração de recursos. Mais do que um desafio, ocupá-la seria a quase certeza de virar vidraça. O senhor já formou uma opinião sobre as dificuldades que envolvem administrar a educação no RS? Qual a sua visão sobre o assunto, faltando poucos dias para a posse?
José Clóvis de Azevedo - De fato, é uma pasta complexa. Nós tivemos, nos últimos 30 anos, um processo de empobrecimento da rede, por falta de investimento. Isso nos levou a uma crise generalizada. Não se fala muito em crise, é mais comum falar de problemas específicos, mas eu acredito que vivemos uma crise. E essa crise se manifesta em vários níveis, como na baixa autoestima entre os professores, nas dificuldades vividas pelos alunos, nas escolas fisicamente pauperizadas e mal cuidadas… Nós temos escolas com bibliotecas fechadas porque têm vazamento de água, ginásios de esportes fechados porque não apresentam condições de uso, refeitórios que não funcionam, salas de aula bloqueadas… Infelizmente, esses casos não são exceção, é um percentual significativo. Soma-se, então, um ambiente de trabalho precarizado a uma situação de queda de poder aquisitivo dos professores, de perdas salariais ao longo de trinta anos. O profissional não sente que está tendo sua dignidade respeitada, e muitas vezes acaba por não se sentir estimulado para realizar um trabalho de qualidade. Temos a questão dos limites materiais e a questão do estado de espírito também.
Então, a dificuldade é a de pegar uma curva descendente, que vem de 30 anos pelo menos, e reverter esse sentido, transformando-a em uma curva ascendente. Mesmo que seja uma mudança gradativa, degrau por degrau, essa é a nossa tarefa, de fazer um resgate geral da rede. Até porque é difícil cuidar de tudo de uma vez. Não apenas pelo vulto das obras que precisam ser feitas, mas também pelos próprios limites do estado, de finanças, processos licitatórios e coisas assim. Não basta só a nossa decisão, a vontade política de uma recuperação. Algumas dificuldades estão fora da esfera da educação. O próprio aparelho de estado, no RS, está muito prejudicado. Nós tivemos muitos governos com essa concepção de estado mínimo, que não chega a desmontar o estado propriamente, mas que não recupera as coisas na medida em que elas vão se esgotando. Temos várias estruturas de suporte que estão desaparelhadas e desestruturadas. Então, são desafios que estão colocados, dos quais temos conhecimento, e faremos um grande esforço para avançar na direção de soluções.
Sul21 – Nesse sentido, o noticiário informou nessa semana que as “escolas de lata” adotadas no governo Yeda só serão plenamente desativadas já em 2011. Isso provoca uma inevitável discussão sobre a situação das instituições de ensino no RS. Como melhorar a infraestrutura das escolas, não apenas nos imóveis em si, mas no fornecimento de material para o dia-a-dia de alunos, professores e funcionários?
JCA - Como eu disse, trabalharemos dentro de limitações, mas queremos promover um mutirão em Porto Alegre e na Grande Porto Alegre no sentido de melhorar a estrutura das escolas. Queremos concentrar nossa atenção na recuperação física dos edifícios, priorizando essa região, porque é onde os problemas são mais graves. Não quer dizer que não haja problemas no interior, mas há uma concentração maior aqui (na Grande Porto Alegre), por uma série de razões. Nas cidades de tamanho pequeno e médio do interior, praticamente não existe escola privada. Então, a escola pública é muito apreciada, tem um grande valor junto a essas comunidades. O diretor é uma figura destacada, e a própria escola é um espaço respeitado e até mesmo sustentado materialmente, de forma que independe do governo estadual. Isso faz com que as escolas do interior estejam, de modo geral, em melhor condição, além de que a própria vida do professor é menos atribulada e dispendiosa. Mesmo com um salário igual ao dos professores da capital, eles acabam almoçando em casa, não tem tantos gastos com transporte, as dificuldades não têm a mesma dimensão das que um assalariado do magistério vive em Porto Alegre. Então, nós faremos essa concentração de esforços para começar uma recuperação mais intensa das escolas da Grande Porto Alegre, onde já detectamos que o problema é mais grave. É claro que isso requer investimentos, requer um esforço de todo o governo, não só da educação. Precisaremos de uma decisão política do governador e do empenho de todos os órgãos – Fazenda, Administração, Secretaria de Obras – para que esses objetivos se cumpram.
Sul21 – Haverá construção de novas escolas, para atender a demanda por vagas?
JCA – Na verdade, nós temos uma situação nova na sociedade brasileira, que é a mudança do perfil etário de nossa população. A população jovem está diminuindo. Em vinte anos, nós seremos um dos países mais velhos do mundo. Então, isso muda também a demanda. Em Porto Alegre, já temos algumas escolas estaduais, especialmente em áreas centrais, que estão em condição de ociosidade, enquanto na periferia há falta de escolas de ensino médio. No Brasil, nos praticamente já resolvemos a questão do ensino fundamental. Não faltam vagas (nessa faixa de ensino). O que temos de problemas, no ensino fundamental, é relacionado com as famílias desses alunos, que vivem uma situação social tão grave que as crianças acabam não indo ou não permanecendo na escola. Isso tem melhorado com o Bolsa Família. A carência maior, então, é no ensino médio. Ou seja, não temos grandes problemas de espaço físico, de falta de escolas. A questão é melhorar os espaços que já existem e, quem sabe, de criar um sistema de transporte escolar, das periferias para o centro, onde estão concentradas as escolas ociosas. Isso é uma coisa que não está definida ainda, mas é uma possibilidade que estamos estudando: de ampliar as vagas de ensino médio nas grandes escolas do centro, algumas delas já com uma grande ociosidade, e trazermos as crianças da periferia para estudarem lá, com subsídio de transporte. Sem ignorar, é claro, o ensino infantil, mesmo que ele seja responsabilidade principal das prefeituras.
“… precisamos, (…) de um projeto de formação de professores, que coloque à disposição deles uma discussão teórica, uma formação atualizada, uma discussão das correntes pedagógicas, uma apropriação dos achados que a ciência tem hoje sobre o funcionamento da mente humana e os processos de aprendizado.”
Bruno Alencastro/Sul21
José Clóvis de Azevedo | Foto: Bruno Alencastro/Sul21
Sul21 – Um ponto bastante importante no programa de governo de Tarso Genro trata da necessidade de manter os alunos na escola, incentivando o aprendizado e trazendo a realidade cultural do aluno para a sala de aula. É um tema complexo. Como o senhor pretende abordá-lo?
JCA – Temos, nesse ponto, um grande desafio. Para avançarmos, precisamos, antes de tudo, de um projeto de formação de professores, que coloque à disposição deles uma discussão teórica, uma formação atualizada, uma discussão das correntes pedagógicas, uma apropriação dos achados que a ciência tem hoje sobre o funcionamento da mente humana e os processos de aprendizado. Queremos fazer um convênio, que o governador Tarso tem chamado de Pacto pela Educação, envolvendo universidades públicas e comunitárias de todo o estado, para a formação de professores. Não só daqueles que ainda não possuem ensino superior, mas também dos que são formados, com a possibilidade de cursos de pós-graduação e da segunda licenciatura. Também queremos trabalhar a questão da formação permanente em serviço, atuando em cima das próprias questões que surgem no dia-a-dia da escola. Desta forma, tu tens um aporte das universidades para a discussão de como lidar com o aprendizado em determinados casos ou situações mais desafiadoras. Queremos uma grande mobilização que mude a cultura da escola, reforçando, por exemplo, a compreensão de que a responsabilidade de aprender não é só do aluno. É uma responsabilidade compartilhada por aluno, família, professor e escola, como instituição.
Sul21 – A relação de alunos e professores é proposta de forma equivocada, então?
JCA – Eu acho que nós temos que ter muito claro que, quando o aluno não aprende, o resultado do trabalho não está acontecendo, o trabalho está sendo ineficiente. E aí não é questão de culpar A ou B, e sim de assumirmos todas as dimensões de aprendizagem. Quando a criança tem uma família socialmente desestruturada, por exemplo, ela se encontra em uma situação de vulnerabilidade social. Então, a responsabilidade maior é da escola, porque a criança só tem a escola para atendê-la. A escola tem que assumir esse dever e fazer alguma coisa por essa criança. Mas, para que isso seja possível, temos que mudar essa cultura. Atualmente, a ideia dominante é de que, quando o aluno não aprende, é porque ele não estudou, é um vagabundo, então o problema é dele. Mas não: o aluno pode ser tudo isso, mas a primeira responsabilidade continua sendo da escola. Porque a escola é a instituição especializada em ensinar, e se ela não estar ensinando, então o fracasso é dela. Se o aluno é irresponsável ou pouco estudioso, pode ser porque a escola não encontrou os caminhos, não estimula, talvez não tenha feito nenhum esforço de integração desta criança ou adolescente com o processo educativo. Mas é algo que precisa ser construído, o professor precisa de muito estudo para chegar até essa compreensão.
“Muitas crianças não confiam na escola, outros nem sabem bem no que a escola pode ajudá-los. Não há, na casa deles, qualquer tipo de debate sobre o que é a escola, sobre a importância de educar.”
Sul21 – Ou seja, para que o aluno se sinta mais estimulado a permanecer na escola, é necessário que o tratamento que ele recebe do professor e da escola seja diferente do que tem sido.
JCA – Exatamente. E precisamos levar em conta outra questão também. Quando eu era estudante, quem ia para escola eram os filhos das classes mais altas, ou de famílias humildes que tinham que se esforçar muito para que seus filhos pudessem frequentar as aulas. O Julinho (Colégio Estadual Júlio de Castilhos, em Porto Alegre), por exemplo, mesmo sendo uma escola pública, era onde estudavam os filhos da elite gaúcha. A realidade, hoje, é outra – a escola se abriu, democratizou-se o acesso ao ensino. Com a Constituição de 1988, a educação passou a ser um direito, e não mais um privilégio. No momento em que a educação passou a ser um direito, aquelas camadas sociais que estavam historicamente alijadas do acesso à escola, passaram a ter acesso. Mas a escola não foi preparada para recebê-las. A escola foi estruturada para nós, de classe média, classe alta. Ela carrega os nossos códigos, nossos discursos. Queremos impor nossos códigos a essas pessoas (das classes mais baixas), e é isso que gera os conflitos. Muitas crianças não confiam na escola, outros nem sabem bem no que a escola pode ajudá-los. Não há, na casa deles, qualquer tipo de debate sobre o que é a escola, sobre a importância de educar. Além disso, costumamos avaliar as crianças pelo seu desempenho na matemática ou português. E uma pessoa não é só isso, uma pessoa é um conjunto de sensibilidades dos mais variados tipos. É sensibilidade linguística, lógico-matemática, histórico-social, artística… Se você avalia apenas matemática e português, pega apenas uma dimensão de todo esse espectro.
Bruno Alencastro/Sul21
José Clóvis de Azevedo | Foto: Bruno Alencastro/Sul21
Sul21 – E como a escola pode ajudar a mudar essa situação social?
JCA – É uma questão delicada, porque a situação é muito mais precária do que a gente pensa. Nós temos 90 milhões de pobres no Brasil, e 40 milhões abaixo da linha da pobreza. As crianças que vêm desse universo de 40 milhões chegam na escola com marcas de violência, abuso sexual, alcoolismo, inexistência de figura paterna, moradia precária… E a escola ainda não se deu conta disso, de que ela tem outra população chegando até as instituições de ensino. É aí que entra a educação popular, essa questão de compreender o contexto cultural e absorver esse contexto no currículo. Construir uma linguagem a partir desse conhecimento, que motive as crianças a permanecer na aula. E aí precisa de outras coisas, precisa de carinho, de cuidado, de acolhimento. Elas precisam ser conquistadas, até porque essas crianças já são culturalmente violentas. Elas estão acostumadas a apanhar e a bater, e o jeito que eles se tratam dentro da escola reflete essa vivência. Então, tu tens que reverter isso, tens que ensinar a criança a interagir, a usar um banheiro, tens que fazer demonstrações de carinho. E essas crianças, quando tem acesso a um computador, por exemplo, em dois dias já estão “bombando”, como se diz por aí. É um grande desafio, que está ligado a oportunidades e qualidade de vida.
“Antigamente, quando um professor era contratado, era um contrato de 12 horas, em uma escola só. Agora, nós temos contratos de 12 ou 14 horas, com professores trabalhando em três ou quatro escolas diferentes.”
Sul21 – Outra questão preocupante é referente à falta de professores. Muitas turmas acabam não tendo aulas de determinadas matérias, por falta de quem possa ministrá-las. A defasagem que isso provoca no aprendizado é indiscutível. Como encarar essa carência de profissionais?
JCA - Isso não se resolve a curto prazo, mas temos que iniciar a solução desses problemas. Temos que voltar a fazer concurso para professores, que é algo que queremos encaminhar logo em seguida à posse. Eu fui sindicalista até 1990 e, quando deixei as atividades do sindicato, nós tínhamos uma situação trabalhista estabilizada. Praticamente não tínhamos contratos na rede (de ensino), eram contratos residuais. No entanto, eu chego agora na Secretaria de Educação com quase 30 mil contratados, contando funcionários. Quase a metade dos professores do RS são contratados, e com critérios que eu considero muito problemáticos. Antigamente, quando um professor era contratado, era um contrato de 12 horas, em uma escola só. Agora, nós temos contratos de 12 ou 14 horas, com professores trabalhando em três ou quatro escolas diferentes. Esses contratados acabam não tendo raízes com a escola; eles vão lá dar suas aulas rapidamente e se retiram em seguida. Nem eles conhecem a escola, nem a escola os conhece.
É claro que não estamos combatendo os contratados. Nós queremos criar condições para que se faça concurso, que sejam aprovados e nomeados, para regularizar sua situação. Então, nos já queremos anunciar, assim que assumirmos, um concurso público para o mais breve possível. E também estabelecer um banco de nomeados, para que não falte professores. Mas nós também temos alguns problemas que vão além disso, como a falta de professores formados em algumas áreas, em especial para matemática, física e biologia. Esses programas de formação, dos quais queremos lançar mão, devem ajudar a preencher com qualidade essas áreas específicas. Essas coisas precisam de tempo para ser resolvidas. Não estou aqui com um discurso escapista, e sim realista. Todos os esforços que faremos serão para dar início a uma solução para problemas estruturais do nosso ensino, que precisam de um esforço duradouro para ser resolvidos.
Sul21 – Qual a sua opinião a respeito da meritocracia?
JCA – Sinceramente, eu não assumo essa pauta. A minha pauta é essa que estou conversando contigo: como fazer para manter a garantia permanente do aluno na escola, para melhorar a qualidade de formação do professor, para atender essa população toda que entrou agora na escola…
“Quando se fala em meritocracia em um sentido de valorizar o mérito, nós estamos de acordo. Agora, quando a meritocracia vem acompanhada do valor competição, prêmio ou castigo, aí não é nossa pauta.”
Sul21 – Mas trata-se de uma questão que foi muito discutida durante a eleição. O governo de Pernambuco, que está na mão de um partido aliado (Eduardo Campos, do PSB) e é citado como exemplo de sucesso na administração da educação, adota um 14º salário como meio de incentivar os professores a buscar metas mais altas em termos de ensino. Como o governo Tarso vai lidar com essa questão?
JCA - O mérito nós temos que valorizar. Criar um método de formação dos professores pelo qual ele possa melhorar sua titulação, o que irá valorizá-lo no plano de carreira e qualificá-lo para participação em novos projetos: isso tudo é valorizar o mérito. O que nós não achamos interessante é estabelecer um processo de competição entre os professores ou entre as escolas. Temos tantos problemas com excluídos, e vamos criar outro mecanismo de exclusão, dentro das próprias escolas? Porque perder, em uma competição dessas, acaba sendo equivalente a uma exclusão. Quando se fala em meritocracia em um sentido de valorizar o mérito, nós estamos de acordo. Agora, quando a meritocracia vem acompanhada do valor competição, prêmio ou castigo, aí não é nossa pauta.
Bruno Alencastro/Sul21
José Clóvis de Azevedo | Foto: Bruno Alencastro/Sul21
Sul21 – E quanto ao plano de carreira do magistério? Vai haver alguma mudança? Isso vai ser discutido?
JCA – Não é necessário mexer no plano de carreira. Mexer ou não mexer no plano de carreira, na verdade, está muito mais ligado a uma questão ideológica do que uma necessidade. Existe uma cultura muito forte, incutida pelo neoliberalismo, que acha que todos os problemas se resolvem atacando o funcionalismo público. Eu penso que é o contrário, ou seja, que nós temos é que melhorar o setor público, aumentar sua autoconfiança. Os professores consideram seu plano de carreira uma conquista histórica, é o pouco que eles têm. Não temos necessidade de mexer no plano de carreira. Isso só poderia acontecer quando outras coisas se resolvessem, e os próprios professores chegassem à conclusão de que coisas poderiam ser mudadas ou melhoradas. Hoje, quando se fala em mexer no plano de carreira, geralmente se quer achatar os níveis. Eu até ouvi esses dias a governadora Yeda dizer algo do tipo: “nós queremos pagar bem para quem ganha pouco, mas os que ganham muito não querem deixar”. Na verdade, quem ganha “muito” no magistério está na minha situação – e eu, que me aposentei depois de 35 anos no ensino estadual, com pós-graduação e todas as produções possíveis, recebo 3 mil reais. Eu sou a elite, e ganho esse valor como aposentadoria. Então, não é o plano de carreira o problema. Geralmente, se fala em plano de carreira no sentido de nivelar por baixo, aumentando o salário para quem ganha 600 reais por mês para 1.500 reais, por exemplo, mas achatando os salários de quem ganha mais. Claro que esses professores (que ganham menos) merecem ganhar 1.500 reais ou até mais, mas a verdade é que todos merecem melhores salários. Não vamos entrar nesse debate com o magistério, não vamos mexer no plano. Queremos outros resultados, que eles sejam protagonistas, junto conosco, das melhoras no ensino, sem atacá-los.
“Acho que é possível conseguir uma melhora gradativa nos salários dos professores, mantendo o plano de carreira.”
Sul21 – Mas alguns especialistas argumentam que, do jeito que está, o plano de carreira criará uma situação impossível de administrar. Que, se os benefícios continuarem sendo incorporados ao salário do professor aposentado, podemos chegar a um ponto onde será impossível pagar a todos.
JCA – Eu acho que isso é uma falácia. Isso não é verdadeiro. Acho que é possível conseguir uma melhora gradativa nos salários dos professores, mantendo o plano de carreira. Claro que não temos muita margem de manobra dentro do orçamento do estado. Penso que vivemos um período de vinte anos de recessão, onde o estado teve graves dificuldades para se financiar, além de políticas fiscais muito abertas, privilegiando alguns grupos empresariais, o que também dificultou o financiamento do estado. Mas hoje nós estamos vivendo em outra situação, com a economia crescendo 7% ao ano e o RS crescendo acima do PIB nacional. Evidente que isso reflete nos cofres públicos, no aumento da capacidade de investimento do estado. Então, os 35% que o estado deve destinar para a educação, que nunca foram de fato executados, passam a ser um volume maior, graças à arrecadação. Isso não permite que se resolva todos os problemas, mas nos leva a acreditar que podemos reverter a curva.
Sul21 – A relação da entidade de classe dos professores gaúchos (Cpers) e o governo estadual sempre teve conflitos, mas as divergências se intensificaram nos últimos quatro anos. Restabelecer um diálogo construtivo com o Cpers é visto como um dos maiores desafios do governo Tarso. Como o senhor pretende conduzir as negociações com o Cpers?
JCA – A primeira coisa que vamos fazer é estabelecer uma mesa de negociação. Vamos dialogar com o Cpers em todos os níveis, porque queremos o protagonismo do Cpers na construção do nosso modelo pedagógico. Não queremos discutir só salário, queremos discutir questão pedagógica, o plano de reforma das escolas, a política de formação de professores… Queremos que eles digam o que pensam dessas coisas, e que nos apresentem as suas demandas. Pretendemos ter um diálogo muito amplo com a entidade de classe, e é claro que nenhum diálogo vai para frente se ele não tiver concretude, se ele não remeter a coisas concretas. Nenhum diálogo se sustenta em cima de promessas, queremos dialogar sempre no sentido de concretizar coisas. Isso não quer dizer que não haja conflitos. O sindicato tem suas demandas, a sua dinâmica, e o estado tem a sua. Mas é importante deixar claro que não vamos sempre valorizar o diálogo, em busca de soluções negociadas para as divergências que surgirem.

Encontro denuncia ameaça dos transgênicos e mineração



Por Helen Borborema e Helen Santa Rosa
De Rio Pardo de Minas (MG)


O 5º Encontro Norte Mineiro de Agrobiodiversidade reuniu no município de Rio Pardo de Minas, entre os dias 2 e 4 de dezembro, cerca de 300 participantes, incluindo representantes indígenas Xakriabá, quilombolas, geraizeiros, caatingueiros, vazanteiros, agroextrativistas, acampados, assentados,  pesquisadores, professores universitários, militantes dos movimentos sociais e eclesiais, procedentes de 27 municípios do Norte de Minas.
A programação incluiu debates e oficinas acerca da relação da agrobiodiversidade com os territórios das comunidades tradicionais, com as políticas públicas para a soberania e segurança alimentar, e o Tratado Internacional sobre os Recursos Fitogenéticos para Alimentação e Agricultura.

O primeiro dia foi dedicado à reflexão e debate do temário central, intitulado “Agrobiodiversidade: abordagens para a retomada dos territórios tradicionais", com a participação de agricultores familiares, representantes do Ministério do Meio  Ambiente, da Comissão Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais, pesquisadores da
Embrapa e professores universitários. Já na sexta feira, foram realizadas visitas de intercâmbios de experiências. Os participantes conheceram experiências de luta pela
reapropriação de territórios, reconversão agroecológica e sistemas agroflorestais, pesquisas e desenvolvimento da agricultura familiar, políticas públicas de abastecimento e organização da produção; reserva extrativista; uso indiscriminado dos agrotóxico e transgênicos e mulheres e agrobiodiversidade.

Ainda na sexta-feira, durante a noite cultural, os povos e comunidades tradicionais apresentaram suas manifestações culturais. Os quilombolas de Brejo dos Crioulos e
Gurutuba  e os índios Xakriabá apresentaram suas danças tradicionais, herdadas por seus ancestrais. Os geraizeiros cantaram Folia de Reis, danças de roda e catira. O
grupo teatral Pirraça em Praça do município de Fruta de Leite apresentou um espetáculo sobre a história de Zumbi dos Palmares e a criação dos quilombos. O
Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas – CAA/NM, por ocasião dos seus 25 anos de história, homenageou os guardiões da agrobiodiversidade e parceiros,
entregando uma placa comemorativa.

Para Antônia Antunes, quilombola do Gurutuba, o encontro foi uma rica oportunidade de fortalecer a luta das comunidades tradicionais. “Ficou mais forte que a nossa
luta é uma só, que a gente luta pelo território, que é onde a gente planta pra sobreviver e onde a gente mantém viva a nossa cultura”, relata. Edson Lucas Quintiliano, jovem diretor do STR de Porteirinha, avalia que o encontro contribuiu na articulação da juventude e na motivação para inserir de forma mais articulada no debate regional. “ A participação dos jovens num encontro como esse faz com que eles reflitam sobre a realidade do mundo, e se sintam peças importantes para atuar e serem ativos nas lutas em que os movimentos sociais estão inseridos (desmatamentos, trangênicos, eucalipto, mineradoras)” reforça.

Carta de Rio Pardo de Minas


No sábado, o evento foi finalizado com a realização da 5ª Feira da Agrobiodiversidade onde os agricultores e agricultoras trocaram sementes e produtos. No encerramento, foi lida a Carta de Rio Pardo de Minas, que aborda as preocupações, denúncias e propostas dos participantes, dentre elas, as novas tecnologias do agronegócio. Segundo a Carta, essas tecnologias associadas ao uso desenfreado de monoculturas, agroquímicos (venenos), maquinaria pesada, e agora, com o ufanismo pela chegada de empresas mineradoras, comprometem irremediavelmente os ecossistemas regionais e os recursos hídricos.

Os participantes também denunciaram a irresponsabilidade dos governantes. Atendendo a interesses de empresas e grandes conglomerados econômicos, o uso de sementes transgênicas avança no Norte de Minas, onde hoje já é fácil encontrar sementes de milho transgênico ou do algodão transgênico em diversas lojas e mercados de Montes Claros, Porteirinha, Jaíba e Janaúba.
Muitas famílias de agricultores estão sendo seduzidas e incentivadas a utilizarem essas sementes com promessas de alta produtividade e resistência ao ataque de pragas. O uso dessas sementes podem comprometer a qualidade de variedades tradicionais de sementes de milho e algodão, muitas delas com uma longa história de adaptação ao clima, solos, e diversas formas de estresses ambientais.

O V Encontro Norte Mineiro da Agrobiodiversidade foi coordenado pelo Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas – CAA/NM e pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Rio Pardo de Minas e realizado com o apoio da Rede Norte-Mineira de Sementes Crioulas.

Helen Borborema é comunicadora Popular da ASA/MG e STR de Porteirinha e  Helen Santa Rosa é comunicadora Popular do CAA/NM.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Educar para um novo poder


Marilza de Melo Foucher

O poder existe desde que o planeta Terra foi habitado. E é exercido em todos os tipos de organização social, em toda a relação humana. Não existe sociedade sem poder, mesmo nas formas que a antropologia política chama de primitivas. As relações de poder nascem naturalmente dentro de toda sociedade. O poder político vai surgir de modo universal com o nascimento do Estado, e ele terá a responsabilidade de definir as regras sociais que estabelecem as relações entre os concidadãos. Ele repousa na vontade de organizar, proteger e assegurar a vida em sociedade. Anteriormente, o poder pertencia exclusivamente a alguns homens. Com o Estado, nascem as instituições e os regimes políticos modernos que, por princípio, foram criados para por fim ao sistema de poder pessoal.
 
O poder é uma palavra completamente rebelde para se definir, ela pode se apresentar como um nome comum que se esconde atrás de um nome próprio PODER. O Poder designa uma capacidade de agir direta e indiretamente sobre as coisas ou sobre as pessoas, sobre objetos, sobre as vontades. O Poder de ter a capacidade de fazer alguma coisa, o Poder de como fazer. O filósofo e psicólogo francês Michel Paul Focault, foi quem melhor analisou como os mecanismos de poder operam na sociedade. Sua reflexão sobre o poder vai muito mais além da esfera publica e política, ele aprofunda a discussão sobre o poder em outros âmbitos da vida social, seja na família, na vida de um casal, na relação com os companheiros (as), nos distintos espaços da vida como no trabalho, no partido político, numa organização social, enfim em qualquer espaço de interação sócio-individual. Para resumir, segundo Foucault o poder estar na base de todas as nossas práticas sociais.
 
O poder não é algo que possuímos, é uma relação entre duas ou mais pessoas. Logo que as relações se estabelecem – por exemplo, entre dois pareceiros – as forças de que cada um dispõe geram um campo de poder, que pode ser exercido por meio do enfrentamento ou do diálogo, criando-se uma correlação de forças. O poder está presente numa multitude de relações microsociais e jamais será exercido sem resistência. Mas o poder obedece também a regras sociais, umas são institucionais outras sócio-culturais e por vezes interiorizadas pelos indivíduos. Daí certos comportamentos podem ser adotados espontaneamente pela sociedade que passa a julgar normal, por exemplo, certo abuso do poder. O Brasil está cheio de exemplos!
 
O poder político no Brasil
 
A sociedade brasileira já foi caracterizada como uma estrutura autoritária de poder. Durante séculos, os governantes bloquearam a participação e criação de direitos. A burocracia brasileira nunca foi uma forma de organização no sentido de agilizar o funcionamento da maquina estatal. Ao contrário, ela instala uma forma de poder altamente hierarquizado. Tal como uma cadeia de comando, quem está no nível superior detém os conhecimentos – que devem permanecer ocultos para seus subordinados, que também têm seus subalternos. Privados de conhecimentos, eles não inovam e nem fazem uso de criatividade, tendo em vista que foram contratados para obedecer às ordens dos escalões superiores. Assim se caracterizou o poder dos altos funcionários públicos, na lógica de que quem detém o saber detém o poder. Quanto mais ignorante é o povo, mas fácil será de manipulá-lo.
 
O poder burocrático exercido pela hierarquia é dificilmente assimilado com o poder democratizado, no qual, o cidadão funcionário age em função da igualdade dos direitos e se torna um defensor do bom funcionamento da máquina estatal. Infelizmente, essa concepção de burocracia como forma de poder vai se instalar também em alguns partidos políticos.
 
O poder na historia política do Brasil vai ser praticado como uma forma de tutela e de favor, sem mediações políticas e sociais. O governante é sempre aquele que detém o poder, o saber sobre a lei e sobre o social, privando os governados dos conhecimentos, criando-se assim uma relação clientelista e de favor.
 
Essa prática de poder vai contribuir para propagação do vírus da corrupção em todos os níveis de poder. Infelizmente, no imaginário popular o poder político vai ser assimilado como sinônimo de corrupção. O abuso de uso da máquina pública faliu o Estado Brasileiro. Há muitos anos, tenta-se restaurar um verdadeiro Estado democrático e cidadão. Este é ainda o maior desafio para a República Brasileira.
 
Relação de poder
 
A questão é de saber o que queremos fazer com o poder que cada um de nós pode exercer sobre o outro(a). Como cada um de nós se relaciona com o poder. Hoje, já existem vários estudos sobre como aprofundar o sistema democrático no Brasil. Entretanto, não se analisa como o poder é distribuído na sociedade. As desigualdades sociais expressam também desigualdades de poder.
 
Conquistamos cidadania civil (direito de votar), mas a cidadania política ainda é restrita. Se ampliarmos os espaços para exercer nossa cidadania, estaremos contribuindo para a emergência de uma sociedade civil mais organizada e combativa. Com isto, teríamos a capacidade de um maior controle social sobre o Estado. Este poder dos cidadãos organizados e legitimamente representados na esfera publica pode ser fértil para o fortalecimento da democracia e quem sabe pode nos educar para mudar nossa relação com o poder e para o seu exercício. Eleger alguém quer dizer exercer um poder de escolher os ocupantes temporários do governo. Entretanto, não devemos esquecer que a democracia é fundada na noção dos direitos entre governados e governantes. Daí a exigência de vigilância do poder político.
 
O papel preponderante da educação
 
Vale relembrar o que o filósofo e psicólogo Foucault dizia: “Todo lugar de exercício do poder é ao mesmo tempo um lugar de formação do saber”. A construção do poder democrático e ético no Brasil é um desafio a ser vencido e deveria ser ensinado como educação cívica nas escolas públicas (do ensino fundamental até o ensino médio), para que desde cedo nossos jovens possam aprender o que é o Poder, qual a função do poder político, quais são as qualidades necessárias para o exercício do poder político. Se não somos educados para lidar com o poder, podemos ser facilmente contaminados pelo vírus da corrupção.
 
Daí a necessidade de os jovens brasileiros aprenderem o que representa o Estado, essa abstração teórica criada pela inteligência humana. O que é um Bem Público, qual a finalidade dos serviços públicos, e, como cidadão ou cidadã, quais são os deveres e obrigações frente à República e como exigir seus direitos. Apreender que é o Estado e sua relação com a sociedade civil é fundamental para construir um poder político democrático. O cidadão não é um consumidor dos serviços prestados pelo Estado, é um sujeito com direitos e deveres. Como concidadãos, eles devem pagar os impostos corretamente, e devem exigir que o orçamento público oriundo dos impostos possa ser aplicado com critérios e honestidade. Os governantes devem ser cobrados se as metas programadas nos planos não forem cumpridas, tendo em vista as verbas alocadas. A constituição brasileira assegura ao contribuinte-cidadão o direito de exigir transparência dos gastos públicos no plano municipal. “As contas dos municípios ficarão, durante sessenta dias, anualmente à disposição de qualquer contribuinte, para exame e apreciação, o qual poderá questionar-lhes a legitimidade, nos termos da lei”.
 
Enquanto cidadãos (ãs), devemos guardar a capacidade de nos revoltar, de nos indignar frente ao poder corrompido e às injustiças ligadas ao modo de lidar com o poder. Educar-se para o exercício do poder é uma tarefa prioritária para todos que exercem, na esfera publica ou privada, algum poder. E para o cidadão e cidadã, uma boa formação de educação cívica para entender o poder político e a coisa pública passa a ser urgente e prioritário. Para poder decifrar a realidade em que ele vive, saber exercer seus direitos e cumprir com as obrigações face ao Estado democrático.
 
A verdadeira revolução é aquela que tem um papel construtivo e educador. As reformas não reformam quando os atores do desenvolvimento não estão preparados ao exercício da cidadania e do poder. Nesse sentido, o futuro governo de Dilma, deveria tirar aprendizado da metodologia de educação popular do saudoso Paulo Freire. A educação popular fornece instrumentos pedagógicos para que seja possível codificar e decodificar a realidade brasileira. A luta contra a exclusão começa quando o excluído vira sujeito-cidadão e acaba participando ativamente no processo coletivo de mudanças.

Homossexuais são da Terra

Por Urariano Motta no Direto da Redação
 
As recentes e documentadas agressões a homossexuais em São Paulo me obrigam a refletir, ainda que breve e superficial, sobre o tema. Mais de uma vez, homossexuais, travestis, têm cruzado o meu caminho no trabalho de repórter, de escritor ou como amigo.
Lembro de uma entrevista que fiz no V Encontro de Travestis e Transexuais do Nordeste, em 2008. À minha pergunta de se, num mundo ideal, Flávia Desirée seria travesti, ela assim me respondeu:  
- Não. Eu mesma já disse à minha mãe: “quando um dia eu morrer, eu não quero reencarnar no corpo de uma travesti mais não. Porque eu não aguento mais”.
Em outra oportunidade, um funcionário do Ministério da Cultura me contou, numa mesa de bar, a história de Dona Maria, uma senhora prostituta que, na altura dos 84 anos, era cuidada por um casal de gays. E sobre o seu relato, assim escrevi:
Dona Maria é cuidada, penteada, lavada e medicada hoje por um casal de homens. José e Jeová, a quem chamaremos assim, em respeito à liturgia do nome da única mulher a quem se devotam, têm os ofícios de advogado e de enfermeiro. Jeová cuida dos assuntos mais altos, dos papéis, documentos e males gerais da vida exterior, pública, de Dona Maria.   José, cuida de sua vida mais privada, pois lhe dá remédios, arruma, lava e espana os móveis, e tem uma paciência infinda em tratar da erisipela, que hoje teima em marcar a mulher, a ‘ex-prostituta’, como corre na boca das mais virtuosas famílias do Edifício Califórnia...
 O funcionário conta a história até o ponto em que alguém na mesa, de forma elogiosa, afirma que somente um gay poderia despir, dar banho em uma mulher. E com um tom cínico, o elogiador completa:
- Só um gay poderia dizer pra ela, ‘abra as pernas’, sem nada sentir.
O morador do Califórnia, que conta o caso, a isso não responde. Ele olha de lado, como se procurasse algo mais concreto para além da mesa, em outro lugar, em outra terra, que expressasse um sentimento. Algo como, por que dividir assim a humanidade? Por que não ver nesse carinho a expressão de uma esperança? Por que não ver nisto algo tão simples quanto um afeto, afeto sem adjetivo, afeto, afeto, simplesmente? As pessoas na mesa riem diante do ‘abra as pernas’, mas o contador da história, não”.
Em outro dia, em uma entrevista com a escritora espanhola Rosa Regàs, ela me surpreendeu neste passo, quando lhe perguntei :
“- O que Proust escreveu sobre a homossexualidade, pra você, não foi uma revelação, uma descoberta?
- Não, não foi uma revelação nem uma anormalidade. Durante minha infância, à época do ditador Franco, quando reinava na Espanha a moral da Igreja Católica, minha mãe viveu com uma mulher uma bela história de amor. Isso durou cinquenta anos, até que ambas morreram, com meses de diferença, em 1999”.
E Rosa Regàs me surpreendeu de tal modo, que achei fosse erro de minha filha, que sabe espanhol e me ajudava na tradução. Ao que ela me respondeu: “Pai, se for erro, é do gravador. Escute”. Mas eu escutava e não entendia, até o momento em que a escritora me confirmou por email o que dissera.
E no entanto, eu não precisava ir tão longe. Todos os meus amigos no Recife lembram do nosso amigo mais brilhante, sobre quem soubemos da homossexualidade muitos anos depois da sua morte. Somente hoje sabemos: ele atravessou, naqueles anos difíceis da ditadura, além do terror que atravessamos, também a angústia de não nos revelar de quem gostava, mesmo nas maiores bebedeiras. É que esse grande companheiro possuía vergonha do próprio ser, porque todos nós teríamos tido vergonha dele também, se soubéssemos.
Na esquerda recifense da época,  ser homossexual era algo tão grave quanto entregar um companheiro à repressão. Como era difícil, para a nossa “dialética” nos anos 70, assimilar, por exemplo,  que Pasolini era comunista e gay. Isso era tão absurdo, que um dos nossos, mais exaltado, protestava: “Se ele é comunista, não é gay. Mas se for mesmo gay, então Pasolini é... uma parcela avançada”.
Essas lembranças nos vêm quando vemos jovens na televisão, tidos como normais, agredindo outros jovens tidos como anormais, apenas porque as vítimas se mostravam pouco viris. O quanto ainda temos por crescer, como homens e gente. Se houvesse um castigo que redimisse tal violência, creio que os agressores deveriam ler até o fim dos seus dias, como uma tarefa de casa, até que a evidência lhes entrasse no cérebro:
Homossexuais podem ser seus filhos, irmãos, tios ou pais, meninos. Homossexuais podem ser até vocês, que punem com fúria a diferença que não aceitam em sua própria pessoa. Homossexuais não são de Marte nem de Vênus, boys. Homossexuais são da Terra, feras. Não sabíamos que homossexuais, por essa condição, não poderiam ser de direita ou de esquerda,  assim como ninguém é comunista ou fascista por ter nascido homem ou mulher, ou por se chamar Antonio ou Elenice.

Comunidades Negras Rurais e o Direito ao Território Étnico

As comunidades formadas pelos escravos que fugiram do regime escravista ultramarino e resistiram à recaptura, enquanto construção e realidades simbólica e histórica, estão presentes nas diversas regiões do Novo Mundo em que tal regime foi implementado.

Após décadas de esquecimento, as comunidades quilombolas passaram, no período da redemocratização do país, na década de 1980, por um processo de afirmação de sua identidade e etnicidade. O auto-reconhecimento da condição de quilombola asseverou uma etnogênese ressaltada no vínculo visceral entre a identidade étnica e o território. Esse processo revestiu-se no pleito pelo reconhecimento oficial de seus liames de ancestralidade e mais precisamente pelo direito ao território étnico, que tradicionalmente ocupavam. Nesse contexto, o termo “Quilombo” foi ressemantizado, transcendendo o viés limitadamente historicista, de forma a abarcar outras territorialidades específicas, não mais voltadas para o passado, mas ressaltadas na perspectiva presente.

A Constituição de 1988, sob os marcos da plurietnicidade e multiculturalidade, garantiu no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias aos remanescentes das comunidades dos quilombos a propriedade definitiva de seu território, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos, e caracterizando-os enquanto sujeitos coletivos de direitos. O reconhecimento oficial da legitimidade dos territórios quilombolas foi firmado não apenas pelo art. 68 do ADCT, mas também por outros dispositivos e Tratados Internacionais, como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que preconizam esse direito e que já foram incorporados ao ordenamento jurídico brasileiro.

Porém, a despeito das garantias constitucionais de preservação dos modos peculiares de criar, fazer e viver dessas comunidades e conseqüentemente de preservação dos seus territórios, são pouquíssimos os territórios quilombolas que já foram regularizados. Tendo em vista esse baixo número de titulações desde promulgada a Constituição, faz-se necessário identificar as dificuldades legais, operacionais e burocrático-administrativas no acesso ao território, bem como é necessário avaliar se as políticas públicas de titulação têm sido eficazes para cumprir com aquilo a que se destinam.

O direito humano ao território é condição imprescindível de povos tradicionais, como as comunidades quilombolas no Brasil, para consecução de seus demais direitos humanos. As comunidades formadas pelos escravos que fugiram do regime escravista ultramarino e resistiram à recaptura, enquanto construção e realidades simbólica e histórica, estão presentes nas diversas regiões do Novo Mundo em que tal regime foi implementado. São os quilombos no Brasil; palenques na Colômbia; comunidades de cimarrones, em diversas partes da América Espanhola. Em alguns desses países, acordos de paz foram firmados com os negros libertos e foram garantidas conquistas políticas e territoriais. No Brasil, apenas na Constituição Federal de 1988 a plurietnicidade do estado nacional viu-se refletida, bem como a garantia de povos tradicionais, dentre elas as comunidades negras rurais descendentes dos antigos escravos, dos seus modos peculiares de criar, fazer e viver e principalmente seus territórios étnicos, o que faz da articulação dessas comunidades, aqui, um fenômeno relativamente recente.

Advogada da Terra de Direitos – Organização de Direitos Humanos.