segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Usinas Hidrelétricas aceleram ‘territorialização corporativa’ da Amazônia

Escrito por Luis Fernando Novoa Garzon no Correio da Cidadania  
 
A análise e o acompanhamento das transformações observáveis ao longo da implementação do Complexo Hidrelétrico do rio Madeira (RO) são cruciais no sentido de testar as metodologias, procedimentos e indicadores que têm sido apresentados como um "novo paradigma" de construção de grandes UHEs na Amazônia, que irá nortear a expansão da fronteira elétrica na região. Durante a fase prévia do licenciamento dos empreendimentos, o conjunto de incertezas, técnica e socialmente identificadas, para a população e o meio ambiente, foi certificado como válido e passível de monitoramento.
 
Na fase de instalação, subseqüentemente, os consórcios obtiveram plena discricionariedade para impor seus cronogramas físico-financeiros, independentemente da execução plena e prévia dos programas compensatórios e mitigatórios.
 
Na região do município de Porto Velho (RO) e adjacências, configurou-se, a partir do início das obras das Usinas Hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio no rio Madeira, a partir de 2008, uma dinâmica social de novo tipo, com descontinuidades intensificadas no espaço e no tempo, com efeitos assimétricos sobre os grupos sociais afetados. Esses efeitos são desproporcionais e diferenciados segundo a posição e o lugar relativo dos grupos sociais em relação à intervenção referida. Quanto mais vinculados ao ciclo do rio e de suas margens, maior a perda e dissipação de poder material e simbólico. Quanto mais instrumentalizados forem em função dos requisitos e do cronograma das duas obras, maior a invisibilidade e descartabilidade dos mesmos, incluindo a força de trabalho direta e indiretamente mobilizada pelas obras, bem como a população que vai engrossando as áreas peri-urbanizadas da cidade anfitriã dos dois mega-projetos.
 
Os danos sócio-econômicos, culturais e ambientais já consubstanciados na instalação do Complexo Hidrelétrico do rio Madeira constituiriam motivo suficiente, houvesse rigor proporcional na aplicação da legislação ambiental ao nível de classificação de risco dos empreendimentos, para a paralisação das obras e a subseqüente revisão não apenas de sua metodologia, cronograma, mas da própria viabilidade ambiental atribuída sob chantagem privada e coerção governamental. Para além das parcas medidas de compensação e mitigação previstas no licenciamento das duas obras, está em jogo nesse caso a plena autonomia conferida aos Consórcios titulares das novas concessões de aproveitamento hidrelétrico na Amazônia, para gerir o que eram antes considerados "bens públicos".
 
Com o intuito de consolidar a participação do setor privado (PSP) nas áreas de infra-estrutura, a ordem unida é a regulamentação desregulamentadora nas três esferas governamentais, bem como em todas as instâncias setoriais, creditícias e fiscalizadoras respectivas (Ministério do Meio Ambiente, IBAMA, Agência Nacional de Águas, Ministério das Minas e Energia, ANEEL, BNDES, TCU). Flexibilidade institucional dirigida para o planejamento territorial corporativo e, subsequentemente, para o rebaixamento ainda maior dos patamares mínimos de direitos sociais e de salvaguardas ambientais.
 
O aplainamento do processo de licenciamento, de concessão e de financiamento desses dois aproveitamentos hidrelétricos no rio Madeira é uma derivação lógica da política de atração de investimentos para o setor de infra-estrutura, o cerne do PAC (Programa de Aceleração de Crescimento), lançado em 2007 e relançado como PAC 2, em 2010. Essa iniciativa, vista de forma superficial, seria tão somente um programa de execução de obras prioritárias, quando na verdade compreende também uma agenda de facilitações regulatórias e creditícias pró-mercado, através de reformas administrativas e setoriais nos órgãos e na legislação ambiental, bem como da reestruturação do BNDES. Essa conjunção materializada na emissão das Licenças Prévias e de Instalação das Usinas do rio Madeira e na viabilização de seus respectivos leilões fez surgir um novo e temerário paradigma de "licenciamento automático"(1). A instalação dessas usinas, na forma como se apresenta, equivale a um salvo-conduto institucional para a reabertura de um novo ciclo de grandes projetos hidrelétricos na Amazônia, em território brasileiro e transfronteiriço.
 
Já instalados os canteiros de obras das duas usinas, impôs-se a verificação de como a precarização e flexibilização de sua regulamentação vêm se refletindo na sua implementação efetiva. Procurou-se, por conseguinte, diante das lacunas processuais oficialmente internalizadas, avaliar a possibilidade mesma de se atestar, nessas condições, consistência e adequação das ações de remanejamento e as medidas de compensação e mitigação dos impactos previstos nas comunidades a montante das UHE de Jirau e Santo Antônio. Como é possível compensar o que nem sequer foi mensurado ou reconhecido como perda ou dano? Governo e empreendedores determinam, a partir das UHEs no rio Madeira, que subjetividades e direitos coletivos são passíveis de compra e venda.
 
Como concessões elétricas traduzem-se em cessões territoriais
 
O maleável regime de concessões do setor elétrico aplicado a grandes aproveitamentos hidrelétricos na Amazônia tem redundado em oficiosos processos de cessão, a grandes conglomerados privados, de porções territoriais estratégicas para o país. Tal como o Projeto Grande Carajás(PA), aprovado em 1982, o Projeto Complexo Madeira é que define a região que lhe cabe. Grandes Projetos de Investimentos (GPIs), ao gerarem espaços em função da máxima eficácia dos investimentos aportados neles, não poderiam deixar de planejar e gerir esses mesmos espaços.
 
Contudo, à diferença das décadas de 70 e 80, quando o regime militar procurava incorporar a Amazônia à estrutura produtiva do centro-sul do país por meio de obras viárias e de incentivos fiscais, a partir dos anos 90 o avanço da fronteira econômica na região passa a ser crescentemente dirigido por cadeias globais de valor. As mediações políticas derivadas de uma rígida divisão inter-regional do trabalho foram sendo substituídas por fórmulas territoriais flexíveis condizentes com as novas estratégias de deslocalização dos investimentos e ajustes espaciais consecutivos. O que não significa ausência de política ou do Estado, e sim seu pleno disciplinamento em coalizões privado-públicas, necessariamente nesta ordem. O que pode ser mais ativo, em termos político-operacionais, que medidas progressivas de liberalização comercial e flexibilização legal, além do empenho de estatais, bancos e fundos públicos e semi-públicos na formação de conglomerados empresariais com raio de atuação no Brasil e/ou a partir dele?
 
O Projeto Complexo Madeira, que se articula a outros projetos de interconexão de infra-estrutura no continente, serve de trampolim para impulsionar uma série de novos mega-projetos na Amazônia. A meta é estruturar e potencializar plataformas e corredores de exportação, com a disponibilização não só de energia hidrelétrica e recursos naturais conexos (terras, jazidas minerais, madeira e biodiversidade), mas da plasticidade territorial que se fizer necessária, ou for convidativa, aos conglomerados privados. Os arranjos empresariais resultantes são concomitantemente eleitos pelo Estado e eletivos das políticas setoriais deste. O novo planejamento territorial em operação na Amazônia paradoxalmente dinamiza nossas vantagens comparativas estáticas, em um processo de acumulação extensiva marcado por especializações regressivas em termos de agregação de valor e inovação tecnológica.
 
O compartilhamento jurisdicional empresas-Estado, da região do alto Madeira, teve início ainda na fase dos estudos ambientais do Complexo hidroelétrico. Procedeu-se em 2007 uma alteração regulamentar dos patamares de suficiência de comprovações técnicas e de compromissos públicos requeridos para atestar a viabilidade ambiental e social das duas usinas. O seu licenciamento a fórceps ensejou o desmanche como um todo do licenciamento ambiental nacional. O próprio órgão licenciador, o IBAMA, sofreu uma intervenção administrativa, em 2007, que além de fragmentar suas funções originais delimitou-as, retirando dele capacidade de vetar projetos considerados de "interesse nacional". Na análise do Estudo de Impacto Ambiental e de suas complementações, a cargo do então Consórcio Furnas-Odebrecht (hoje Santo Antônio Energia), identificamos as seguintes distorções e incongruências:
 
a) Minimização das áreas de impacto direto e indireto com a exclusão do território da Bolívia e das áreas a jusante.
 
b) Anulação da necessidade prévia dos estudos de bacia.
 
c) Adoção de metodologias e critérios de certificação que minimizam e mascaram os danos.
 
d) Definição arbitrária dos Consórcios dos próprios critérios de suficiência ou de insuficiência de estudos, e medidas mitigatórias e compensações decorrentes.
 
e) Aprovação das Licenças Prévias e de Instalação com condicionantes que procuram substituir o vazio de informação e de diagnóstico pelo monitoramento das incertezas, o que significa que os empreendedores adquiriam autonomia para definir os próprios parâmetros da instalação e operação das usinas.
 
Esses vícios de origem no processo de licenciamento das UHEs do rio Madeira reproduziram-se e desdobraram-se no momento de elaboração e de implementação dos Projetos Básicos Ambientais a cargo dos Consórcios Energia Sustentável do Brasil(ESBR) e Santo Antônio Energia (SAESA). Nos dois PBAs consta o princípio de que o empreendedor fica obrigado a recompor as condições de vida e das atividades produtivas na área diretamente afetada pelas obras e pela formação do reservatório. Em tese, a recomposição das atividades e da qualidade de vida, por meio de indenização justa ou do remanejamento, deveria se dar "em condições pelo menos equivalentes às atuais". O Programa de Remanejamento a cargo do Consórcio Santo Antonio Energia, por exemplo, reitera o compromisso de que se ofereça indenização ou processo de realocamento de modo que "todos os afetados deverão ter condições de ser remanejados para uma propriedade pelo menos equivalente" (2).
 
No entanto, não foram prescritos ou previstos indicadores, critérios e metas para que essa obrigação fosse cumprida, ou seja, sobre como seria essa "recomposição", com quais meios, recursos e prazos. O modelo de reassentamento em agrovilas estranhas às tradições comunitárias ribeirinhas, e ainda por cima localizadas em solos inférteis sem acesso ao rio e seus igarapés, constituiu uma via de mão única na "negociação" da realocação da população atingida. Cerceados pela contagem regressiva do despejo, cerca de 85% dos afetados submeteram-se ao instrumento da indenização ou da carta de crédito, proporção averiguada pelo próprio IBAMA(3). O que deveria ser exceção tornou-se regra, em termos de deslocamento compulsório, no decorrer da instalação das UHEs no rio Madeira. Modos de vida amazônicos singulares não deveriam ser levianamente contabilizados e sim protegidos e sustentados por políticas públicas que reconhecessem e valorizassem as múltiplas abordagens coletivas no trato do espaço e do tempo. A indenização exclusivamente monetária é uma amortização sumária dos compromissos sociais formalmente assumidos pelos Consórcios junto à população atingida, uma política oficial de erradicação de dezenas de comunidades ribeirinhas, agora entregues à sua própria sorte em novas frentes irregulares de ocupação urbana e rural.
 
O negligenciamento no cumprimento dos já rebaixados parâmetros sociais e ambientais se refletiu na falta de detalhamento das diretrizes constantes nos PBAs das UHEs de Jirau e Santo Antonio. Essa metodologia de auto-licenciamento depende de combinações nas múltiplas escalas de governo, o que implica em negociações cruzadas, paralelas ou oficiais, no uso das verbas de compensação social e rearranjos das contrapartidas federais, estaduais e municipais. Um complexo intercâmbio de interesses entre grupos econômicos globais e locais e suas representações políticas ocorre sob a conveniente fachada de "fornecimento de energia para o Brasil" e "geração de emprego e renda na região".
 
O processo de desterritorialização levado a cabo por grandes projetos de mineração na Amazônia se articula com aquele produzido pelos projetos hidrelétricos na região. Ambos se retroalimentam, em ordem direta e reversa. No entorno do Complexo Madeira, o processo de desterritorialização e de reterritorialização vai se consumando diligentemente, pelo grau de interpenetração dos Consórcios e conglomerados anexos com os aparelhos governamentais regulamentadores e fiscalizadores.
 
A apropriação do alto Madeira e a definição da forma predominante de seu uso se associa a estratégias simbólicas de universalização da forma tida como a mais "adequada" para utilização daquela territorialidade. A implementação célere e brutal das UHEs de Santo Antônio e Jirau se vale do alicerce objetivo de expropriações sucessivas, promovidas no bojo da formação territorial do estado de Rondônia. E ainda conta com o beneplácito subjetivo de uma população majoritariamente migrante, que, vítima e órfã de um modernização periférica, se dispõe a qualquer sacrifício em nome de seu "repatriamento" a qualquer dinâmica que remeta à centralidade altiva do "progresso", especialmente quando o objeto de sacrifício maior lhe pareça alheio e exterior, como as comunidades tradicionais que vivem ao longo do rio Madeira.
 
O controle e o uso compartilhado das águas e várzeas do rio Madeira pôde proliferar no interregno dos surtos de expansão mercantis. Exatamente por isso nunca foram objeto de políticas públicas que dinamizassem suas potencialidades horizontalizantes, que lhes providenciassem regularização fundiária, créditos preferenciais, programas de extensão de caráter agroecológico e infra-estrutura social. Depois de inserido no mapa dos grandes negócios, agentes econômicos e as arenas estatais por eles manejadas, o rio Madeira é estampado como providencial estoque/escoadouro de energia, commodity basilar, porque insumo das demais commodities que têm definido o ritmo de crescimento e o perfil produtivo do país.
 
Madeira: restabelecer a controvérsia e o contraponto
 
Podemos atestar que a defasagem entre os direitos e os interesses da população local e o processo de licenciamento e implementação das UHEs de Santo Antônio e Jirau no rio Madeira foi voluntária e premeditadamente construída pelas empresas concessionárias, com anuência e colaboração do poder público.
 
Como bônus extra, os Consórcios Santo Antônio Energia (SAESA) e Energia Sustentável do Brasil (ESBR) podem vender 100% da energia gerada antes dos prazos previstos contratualmente (dezembro de 2012 e março de 2013, respectivamente). Os dois consórcios pretendem antecipar a geração em até 11 meses por isso e contam com a benevolência da ANEEL e do MME para tanto. Alucinados cronogramas de execução das obras são a contraparte da ausência de cronogramas físico-financeiros dos programas de compensação e de mitigação, da mais completa negligência para com a população que vive ao longo do rio Madeira e com seu meio ambiente. Se nem sequer as condicionantes da Licença Prévia foram cumpridas, como acenar com a emissão antecipada da Licença de Operação, sem que se consolidem mínimas salvaguardas sociais e ambientais?
 
Na direção contrária, o procedimento democrático elementar, frente ao conjunto de evidências de descumprimento flagrante de compromissos legais por parte dos Consórcios liderados pela Odebrecht e pela Suez, seria a suspensão da Licença da Instalação das Usinas de Santo Antônio e Jirau e o estabelecimento de um balanço rigoroso das irregularidades cometidas. Existisse um Ministério de Meio Ambiente com efetividade similar ao de Minas e Energia, ou um Poder Judiciário desincumbido de blindagens casuísticas, esta seria a única diretiva cabível diante de mais um desastre social e ambiental em curso na Amazônia.
 
Em paralelo e procurando explicitar toda a extensão dos danos já verificáveis produzidos por essas obras incondicionadas, propomos a criação de uma Comissão de investigação, composta por especialistas, representantes do Ministério Público Federal, dos movimentos sociais e da população atingida, para fornecer um quadro fidedigno da desestruturação social e ambiental que se dá na região do rio Madeira. Iniciativa que procurará colocar em pauta a revisão do licenciamento ambiental das duas usinas projetadas, bem com a rediscussão do projeto Complexo Madeira como um todo.
 
Seria tarefa prioritária dessa Comissão, em especial dos grupos de pesquisa universitários adjuntos, explicitar o novo modelo de investimento e de financiamento aplicado à construção das UHEs de Santo Antônio e Jirau, identificando atores-chave, suas metodologias obscuras e truculentas, de modo a possibilitar a responsabilização e co-responsabilização dos mesmos, em particular do BNDES.
 
É crucial que se exponha a célere territorialização corporativa de que é objeto a sub-região protocolarmente denominada "Sudoeste da Amazônia", no Plano Amazônia Sustentável(PAS), assim como as formas de atualização do bloco de poder inter-escalar que implicam em novas fórmulas hegemônicas. Em contraponto, é preciso demarcar as territorializações ribeirinhas, indígenas e camponesas resilientes, e também as pontes possíveis com dinâmicas disruptivas de base urbana. A questão central aqui colocada é: haverá um "nós" denso e representativo para evocar o significado dessa renúncia, renúncia ao Madeira, ao Xingu, ao Tapajós e demais rios amazônicos, a tudo que aflora, circula, brota e se multiplica com seus fluxos?
 
Luis Fernando Novoa Garzon é professor da Universidade Federal de Rondônia, membro da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais e doutorando em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ). Contato: l.novoa@uol.com.brEste endereço de e-mail está protegido contra spam bots, pelo que o Javascript terá de estar activado para poder visualizar o endereço de email
 
Notas:
 
1) GARZON, L., F. Novoa. O licenciamento automático dos grandes projetos de infra-estrutura no Brasil: o caso das usinas no rio Madeira. Revista Universidade&Sociedade nº 42, p.37 a 58, ANDES, Brasília, junho de 2008
2) PBA da UHE de Santo Antônio, 2008 seção 22 p.5.
3) Parecer 029/2010. COHID/CGENE/DILIC/IBAMA, p.11

Conto de Natal – Maria e José na Palestina em 2010



por James Petras

Os tempos eram duros para José e Maria. A bolha imobiliária explodira. O desemprego aumentava entre trabalhadores da construção civil. Não havia trabalho, nem mesmo para um carpinteiro qualificado. Os colonatos ainda estavam a ser construídos, financiados principalmente pelo dinheiro judeu da América, contribuições de especuladores de Wall Street e donos de antros de jogo.
"Bem", pensou José, "temos algumas ovelhas e oliveiras e Maria cria galinhas". Mas José preocupava-se, "queijo e azeitonas não chegam para alimentar um rapaz em crescimento. Maria vai dar à luz o nosso filho um dia destes". Os seus sonhos profetizavam um rapaz robusto a trabalhar ao seu lado… multiplicando pães e peixes.
Os colonos desprezavam José. Este raramente ia à sinagoga, e nas festividades chegava tarde para fugir à dízima. A sua modesta casa estava situada numa ravina próxima, com água duma ribeira que corria o ano inteiro. Era mesmo um local de eleição para a expansão dos colonatos. Por isso quando José se atrasou no pagamento do imposto predial, os colonos apropriaram-se da casa dele, despejaram José e Maria à força e ofereceram-lhes bilhetes só de ida para Jerusalém.
José, nascido e criado naquelas colinas áridas, resistiu e feriu uns tantos colonos com os seus punhos calejados pelo trabalho. Mas acabou abatido sobre a sua cama nupcial, debaixo da oliveira, num desespero total.
Maria, muito mais nova, sentia os movimentos do bebê. A sua hora estava a chegar.
"Temos que encontrar um abrigo, José, temos que sair daqui… não há tempo para vinganças", implorou.
José, que acreditava no "olho por olho" dos profetas do Antigo Testamento, concordou contrariado.
E foi assim que José vendeu as ovelhas, as galinhas e outros pertences a um vizinho árabe e comprou um burro e uma carroça. Carregou o colchão, algumas roupas, queijo, azeitonas e ovos e partiram para a Cidade Santa.
O trilho era pedregoso e cheio de buracos. Maria encolhia-se em cada sacudidela; receava que o bebê se ressentisse. Pior, estavam na estrada para os palestinos, com postos de controlo militares por toda a parte. Ninguém tinha avisado José que, enquanto judeu, podia ter-se metido por uma estrada lisa pavimentada – proibida aos árabes.
Na primeira barragem José viu uma longa fila de árabes à espera. Apontando para a mulher muito grávida, José perguntou aos palestinos, meio em árabe, meio em hebreu, se podiam continuar. Abriram uma clareira e o casal avançou.
Um jovem soldado apontou a espingarda e disse a Maria e a José para se apearem da carroça. José desceu e apontou para a barriga da mulher. O soldado deu meia volta e virou-se para os seus camaradas. "Este árabe velho engravida a rapariga que comprou por meia dúzia de ovelhas e agora quer passar".
José, vermelho de raiva, gritou num hebreu grosseiro, "Eu sou judeu. Mas ao contrário de vocês… respeito às mulheres grávidas".
O soldado empurrou José com a espingarda e mandou-o recuar: "És pior do que um árabe – és um velho judeu que violas raparigas árabes".
Maria, assustada com o caminho que as coisas estavam a tomar, virou-se para o marido e gritou, "Pára, José, ou ele dispara e o nosso bebê vai nascer órfão".
Com grande dificuldade, Maria desceu da carroça. Apareceu um oficial do posto da guarda, a chamar por uma colega, "Oh Judi, apalpa-a por baixo do vestido, ela pode ter bombas escondidas".
"Que se passa? Já não gostas de ser tu a apalpá-las?" respondeu Judith num hebreu com sotaque de Brooklyn. Enquanto os soldados discutiam, Maria apoiou-se no ombro de José. Por fim, os soldados chegaram a um acordo.
"Levanta o vestido e o que tens por baixo", ordenou Judith. Maria ficou branca de vergonha. José olhava para a espingarda desmoralizado. Os soldados riam-se e apontavam para os peitos inchados de Maria, gracejando sobre um terrorista ainda não nascido com mãos árabes e cérebro judeu.
José e Maria continuaram a caminho da Cidade Santa. Foram freqüentes vezes detidos nos postos de controlo durante a caminhada. Sofriam sempre mais um atraso, mais indignidades e mais insultos gratuitos proferidos por sefarditas e asquenazes, homens e mulheres, leigos e religiosos – todos soldados do povo Eleito.
Já era quase noite quando Maria e José chegaram finalmente ao Muro. Os portões já estavam fechados. Maria chorava em pânico, "José, sinto que o bebê está a chegar. Por favor, arranja qualquer coisa depressa".
José entrou em pânico. Viu as luzes duma pequena aldeia ali ao pé e, deixando Maria na carroça, correu para a casa mais próxima e bateu à porta com força. Uma mulher palestina entreabriu a porta e espreitou para a cara escura e agitada de José. "Quem és tu? O que é que queres?"
"Sou José, carpinteiro das colinas do Hebron. A minha mulher está quase a dar à luz e preciso de um abrigo para proteger Maria e o bebê". Apontando para Maria na carroça do burro, José implorava na sua estranha mistura de hebreu e árabe.
"Bem, falas como um judeu mas pareces mesmo um árabe", disse a mulher palestina a rir enquanto o acompanhava até a carroça.
A cara de Maria estava contorcida de dores e de medo; as contrações estavam a ser mais freqüentes e intensas.
A mulher disse a José que levasse a carroça de volta para um estábulo onde se guardavam as ovelhas e as galinhas. Logo que entraram, Maria gritou de dor e a palestina, a que entretanto se juntara uma parteira vizinha, ajudou rapidamente a jovem mãe a deitar-se numa cama de palha.
E assim nasceu a criança, enquanto José assistia cheio de temor.
Aconteceu que passavam por ali alguns pastores, que regressavam do campo, e ouviram uma mistura de choro de bebê e de gritos de alegria e se apressaram a ir até ao estábulo levando as suas espingardas e leite fresco de cabra, sem saber se iam encontrar amigos ou inimigos, judeus ou árabes. Quando entraram no estábulo e depararam com a mãe e o menino, puseram de lado as armas e ofereceram o leite a Maria que lhes agradeceu tanto em hebreu como em árabe.
E os pastores ficaram estupefatos e pensaram: Quem seria aquela gente estranha, um pobre casal judeu, que chegara em paz com uma carroça com inscrições árabes?
As novas espalharam-se rapidamente sobre o estranho nascimento duma criança judia mesmo junto ao Muro, num estábulo palestino. Apareceram muitos vizinhos que contemplavam Maria, o menino e José.
Entretanto, soldados israelenses, equipados com óculos de visão noturna, reportaram das suas torres de vigia que cobriam a vizinhança palestina: "Os árabes estão a reunir-se mesmo junto ao Muro, num estábulo, à luz das velas".
Abriram-se os portões por baixo das torres de vigia e de lá saíram caminhões blindados com luzes brilhantes, seguidos por soldados armados até aos dentes que cercaram o estábulo, os aldeões reunidos e a casa da mulher palestina. Um altofalante disparou, "Saiam cá para fora com as mãos no ar ou disparamos". Saíram todos do estábulo, juntamente com José, que deu um passo em frente de braços virados para o céu e falou, "A minha mulher Maria não pode obedecer às vossas ordens. Está a amamentar o menino Jesus".


Tradução de Margarida Ferreira.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/.

O narcotráfico e o aumento da violência social no México


201210_mexico O Diário - [Andrés Ávila Armella, dirigente comunista mexicano] 

O tema que serve de título foi amplamente referido em diferentes meios de counicação: diários, revistas, programas de rádio e televisão, além de tema de debate entre servidores do Estado; no entanto, é pouco o que até agora nós o que estamos organizados na esquerda pudemos opinar.
 Talvez porque não consideremos que seja este o problema principal dos explorados do país, talvez porque este é um problema do qual nos consideramos alheios, ou até, por o assunto estar permanentemente no discurso oficial.
Mas neste momento é inegável que existe no nosso país uma situação na qual o narcotráfico e o aumento da violência social a ele ligada alcançaram um nível tal que é difícil continuar a eludir a discussão; mais, é importante que utilizemos as nossas próprias ferramentas analíticas para o explicar, e no meu caso farei uso da melhor ferramenta analítica que tenho, o marxismo.
Por outro lado, há que aclarar que escrevo este escrito como se fosse um ensaio porque considero que a informação jornalística sobre os cárceres da droga, as suas rivalidades, operações e composição não é confiável. Na maioria dos casos trata-se de relatórios e filtrações de carácter policial, rumores e frases dos próprios envolvidos que resultam, ao fim de contas, como confusos, contraditórios e enganadores.
O meu propósito será sublinhar alguns aspectos estruturais e essenciais para a compreensão do problema, prescindindo por agora da análise concreta do tão falado negócio.

Narcotráfico, um negócio essencialmente capitalista

Teremos de assumir que se as drogas, a sua produção, distribuição e consumo, contam com algumas peculiaridades diferentes de muitas outras mercadorias, é muito importante assumir que na generalidade a droga é uma mercadoria como qualquer outra, e que as leis que regem a acumulação de capital como resultado da sua produção são, na generalidade, as mesmas que regem o resto da economia capitalista.
A mercadoria droga, seja ela qual for, tem um valor de uso porque há milhões de pessoas que consideram que lhes serve para alguma coisa, para satisfazer o que eles consideram uma necessidade, e tem valor de troca porque para a sua produção se requer trabalho humano; quando falamos do negócio do narcotráfico referimo-nos à produção, distribuição e consumo das drogas ilegais, que se realiza sob formas capitalistas, pelo que fica excluído desta análise qualquer tipo de produção caseira ou destinada a consumo próprio, o que vamos tratar é a droga como mercadoria.
Assim, teremos que identificar que os elementos necessários para a aparição deste fenómeno são por um lado os proprietários de meios de produção necessários para a produção desta mercadoria, e por outro, os proletários que trabalham para os ditos proprietários a troco de um salário.
Como sabemos, praticamente todas as drogas que hoje são um negócio tão rentável, só são possíveis de obter a partir de um processo de trabalho, não se encontram em forma pura na natureza, é necessário reunir uma certa quantidade de matérias-primas, instrumentos de trabalho e maquinaria (mais, ou menos, rudimentar), para a sua produção. São trabalhadores assalariados os que através de diversos procedimentos combinam algumas substâncias e as embalam acrescentando um novo valor às mesmas. Naturalmente, os ditos trabalhadores não recebem o pagamento correspondente ao valor do seu trabalho, mas somente um salário pela venda da sua força de trabalho, pois de outra forma não haveria mais-valia nem este negócio poderia proporcionar o montante de lucros que propícia. Além dos operários da droga, cada empresário capitalista da droga emprega outras pessoas que realizarão um qualquer trabalho destinado às suas mercadorias: empregados de limpeza, distribuidores, empregados de transporte e, os mais notórios, empregados armados cuja finalidade é proteger a mercadoria, o dinheiro e fazer o que o patrão lhes mande e considere necessário para executar, amedrontar ou defender-se de alguém para realização da sua mercadoria. Além disso, são necessários empregados de confiança, cujo principal trabalho é intelectual, destinados à administração, contabilidade, engenharia, etc..
Com nas restantes empresas capitalistas os salários não são iguais para todos os empregados, o seu preço é determinado por um lado pelo valor da força de trabalho, e por outro pelas condições sociais de contratação da mesma, por exemplo a oferta e a procura laborais de determinado tipo de trabalho.
Partamos então do pressuposto lógico que um capitalista da droga é em princípio proprietário de uma quantidade de dinheiro D, com que comprará meios de produção Mp e Força de Trabalho, ft, para obter mais-valia Pv, uma mercadoria com valor incrementado M' e, finalmente, dinheiro incrementado, D'. Nem mais nem menos que a fórmula geral da acumulação capitalistas:
D - M Pv - M' - D'
Ora bem, o que é que leva um homem a investir o seu dinheiro em meios de produção e força de trabalho destinados a produzir droga? O mesmo que leva um qualquer capitalista a investir no que quer que seja, a sede de acumulação e de riqueza, e a possibilidade concreta de as obter neste negócio, pois de outra forma não o faria. Por outro lado podemos perguntar, o que é que leva uma pessoa a vender a sua força de trabalho a um capitalista da droga? O mesmo que o obriga a vendê-la a um qualquer capitalista, a necessidade de obter os meios de vida indispensáveis. Visto de maneira conjunta podemos dizer que num espaço de tempo e espaço, coincide o proprietário dos meios de produção da droga um homem juridicamente livre cujas capacidades de trabalho podem ser postas à disposição daquele. Esta coincidência flui por todo o país dado o alto índice de desemprego e do chamado trabalho informal; acontece que uma grande quantidade de pessoas não encontra onde vender a sua força de trabalho ou só consegue vendê-la por pequenos períodos de tempo, ou melhor, as condições em que a vende são insuficientes para a satisfação das suas necessidades.
O que foi dito anteriormente não significa que as condições de trabalho nas narco-empresas sejam boas, antes pelo contrário, implicam muitos riscos, obviamente não existe a possibilidade de contratação colectiva e, por isso, os trabalhadores não gozam de qualquer direito laboral nem sindical, talvez em alguns casos o salário seja melhor, mas este é inevitavelmente instável. Esta situação diz-nos da lamentável situação em que se encontra o proletariado mexicano, pelo que pode pensar-se que ser trabalhador de uma narco-empresa é comparativamente melhor que no resto da economia.
Na óptica do capitalista da droga o assunto é mais ou menos igual, se se investe num negócio é porque é rentável para esses capitalistas, seja a droga o seu principal investimento ou um secundário, o facto é que encontra no tráfico de droga uma oportunidade para a acumulação de capital, à qual não está disposto a renunciar por qualquer critério moral relacionado com as consequências do consumo da sua mercadoria; ao fim de contas, os capitalistas das empresas legais também não se detêm por critérios morais, mesmo que o seu negócio sejam as armas, as drogas legais, contaminantes ou qualquer outro produto com algum efeito nocivo para as pessoas, o meio ambiente ou a sociedade.
Os trabalhadores das narco-empresas podem ter adquirido alguns conhecimentos e habilitações necessários para o seu trabalho nas mesmas, mas no limite eles são formados tal como o restante proletariado em diferentes graus de conhecimentos gerais e diferentes tipos de especialização; naturalmente que uma narco-empresa emprega pessoas com experiência de empresas farmacêuticas e laboratórios, engenheiros, agrónomos, químicos, contabilistas, advogados, transportadores, etc.. E, particularmente no caso dos sicários e guardas, emprega pessoas formadas no manuseamento de armas tanto na polícia como no exército; assim como outros vendem a sua capacidade de trabalhar ao patrão, estes últimos vendem a sua capacidade de matar e instrução, muitas vezes financiada por todos os mexicanos, dado que somos nós quem financia o seu treino e experiência nas instituições policiais e militares. De que outra forma poderia trabalhar alguém que apenas está capacitado para disparar uma arma se esta é a sua capacidade de trabalhomais rentável?
Outro elemento que é indispensável ressaltar é que não há motivos razoáveis para pensar que os empresários da droga não são além disso empresários legais, nem muito menos para pensar que não há empresários originalmente legais que não estão a investir capital no negócio da droga. Embora com muita frequência os meios de comunicação recorrem a descrições fabuladas de narcotraficantes, caracterizando-os sempre como muito diferentes dos empresários legais, o facto é que apesar de existirem neste negócio personagens pitorescas e peculiares tal não significa minimamente que seja essa a generalidade. Os media também falam da infiltração do narco nas empresas legais, mas nunca escrevem nada sobre a infiltração das empresas legais no narco. Em geral, os grandes capitalistas costumam ter um grande investimento principal num qualquer ramo industrial ou comercial, mas ao mesmo tempo mantêm investimentos noutros ramos, ou melhor, fazem associações de capitalistas entre capitais oriundos de diferentes sectores.
Isto acontece sobretudo porque ao gerarem-se lucros na sua forma de dinheiro, nem sempre podem ser reinvestidos como capital no mesmo negócio, sobretudo quando as condições de mercado o limitam, pelo se torna necessário para o capitalista procurar outros negócios onde investir o seu capital. Portanto, não será de estranhar que um empresário legal que obtém lucros num qualquer negócio e cujo mercado se encontra já no limite, trate de evitar o decréscimo da sua quota de lucro colocando capital num ramo mais dinâmico da economia e no qual obtém lucros importantes. Quem ainda pense que os capitalistas têm uma moral escrupulosa dirá que, apesar de tudo, não seriam capazes de investir no negócio da droga, mas para os que amparados no marxismo pensam que não é a moral mas a sede de lucros o que motiva o capitalista a investir, parece-nos bem lógico que assim suceda.
É igualmente sabido que para elevar os lucros de uma empresa, neste caso de uma narco-empresa, é conveniente controlar a maior quantidade de cadeias produtivas relacionadas com ela e aí se expandir. É claro que para o negócio na droga não se utilizam apenas mercadorias ilegais, mas em geral utilizam-se muitas mercadorias legais, quer como meios de produção, matérias-primas, e factores de produção de diferente índole, pelo que necessariamente as narco-empresas estão ligadas e associadas com a economia legal e muitos níveis.
Convirá aos parceiros das narco-empresas que estas desapareçam? De modo algum, mas convém-lhes controlá-las.

O narco e a política

Lenine explicava que as relações políticas são, essencialmente, uma expressão condensada das relações económicas. Esta premissa ajudar-nos-á a compreender porque é que a vida política do país, e particularmente a política burguesa, aparece cada vez mais frequentemente nas mãos dos senhores da droga.
O poder político só por si não se mantém num Estado capitalista, ele é manobrado e determinado principalmente pela classe dominante, a burguesia.
Como pode observar-se, o poder da burguesia não se explica por definição legal, não que a constituição política do país o diga, mas é inevitável que sendo a burguesia quem detém o controlo da economia, é ela mesma quem esta em condições de controlar a política. A forma como a burguesia faz política é frequentemente de forma velada, e só nalguns casos o faz de forma clara, isto é, vale-se da burocracia política para se fazer representar nos órgãos do governo e nas diferentes instâncias do Estado. Poderíamos elaborar uma lista interminável de mecanismos de como isto se faz, que vão desde a formação ideológica até à chantagem e ao suborno. O caso mais típico é nos processos eleitorais, onde os partidos e candidatos necessitam de dinheiro para as suas campanhas e, logicamente, obtém maior financiamento quem consiga ser patrocinado pelo mais rico, enquanto, por sua vez, os empresários não oferecem o seu dinheiro, mas investem-no, pelo que por trás de cadafinanciamento privado existem necessariamente acordos de protecção e de facilidades que vão da política à economia e vice-versa. Por que é que então temos de estranhar que os empresários da droga se comportem como o resto da sua classe?
Assim, a ingerência dos capitalistas da droga na política é o resultado da sua posição económica, do controlo que têm sobre uma série de cadeias produtivas; desta forma, através das suas relações e posição política conseguem estabilizar a sua posição.
Assim podemos ver que a ingerência dos narco-empresários na política burguesa é mais forte onde são eles quem tem maior controlo sobre os processos produtivos e comerciais de uma região determinada, e menor onde o seu negócio não seja significativo para economia local, embora em todo o caso a política continue a ser controlada pelos capitalistas de sempre.
Por isso, a submissão dos políticos aos narco não é na essência um fenómeno diferente do da subordinação dos políticos à burguesia, é antes o mesmo fenómeno; é uma condicionante da política burguesa e de como se faz política dentro de um Estado burguês. A prática impõe-se a qualquer princípio político ou ético, e um político ganhador é o que sabe servir os seus amos, os capitalistas; não se trata de uma eleição nem de uma inclinação moral mas de uma coisa prática, se queres ganhar uma eleição e governar com apoio deves muito simplesmente manter-te aliado dos que são donos das condições materiais para o fazer, e numa região são os banqueiros, noutra os empresários de calçado, noutra os empresários da mineração e noutra os narco-empresários, e não existe aqui nenhuma diferença. Visto de outra forma: como poderia um presidente de câmara de um país capitalista como o México, inimizar-se com o dono da principal fábrica, loja e hotéis do município só porque é dono de um outro negócio que explica a existência destes?
Naturalmente estaria metido num beco sem saída. Na generalidade o narco-empresário nem sequer necessita de chegar à violência explícita para ter o presidente do município nas suas mãos, pois a sua posição económica explica o porquê da sua capacidade de exercer a violência.
Com isto não estou a desculpar nenhum eleito pelos seus actos de corrupção, mas a estabelecer que a corrupção é inerente à política burguesa porque disfarça permanentemente os interesses privados, fazendo-os passar por públicos, ou dito de outra maneira, não há diferença substancial entre quem governa em nome de um país para favorecer os interesses dos banqueiros norte-americanos ou das grandes transnacionais e quem governa em nome do povo para favorecer os narco-empresários. Na realidade, todos estes políticos são talhados da mesma peça, e quem está disposto a vender-se aos interesses do capital estrangeiro ou dos banqueiros, logicamente estará disposto a vender-se aos interesses do narco-capital e vice-versa. Poderá perguntar-se, e se houver alguém que não estiver disposto? Simples e simplesmente não está inserido na política burguesa, seja por cepticismo, por consciência de classe, ou porque foi violentamente afastado dela.
O papel da violênciaPoder económico e violência são dois factores que ao longo da história têm caminhado a par, não é privativo do narcotráfico nem tampouco é privativo da sociedade burguesa, ainda que certamente adquira características particulares a que faremos referência.
A burguesia valeu-se da violência em grande e pequena escala para estender e preservar o seu domínio, e fá-lo geralmente através do Estado burguês, através do seu aparelho repressivo assegura-se de que ninguém se interpõe no seu caminho de acumulação e quem o tentar é violentado por diversas formas. Desde o seu início, o capitalismo avançou violentamente sobre civilizações inteiras, açambarcando territórios, rotas comerciais, recursos naturais, despojando comunidades agrárias, encontrando as condições necessárias para que os donos dos meios de produção tivessem à sua disposição homens com capacidade de venda da sua força de trabalho. A barbárie, a morte e a destruição que o capitalismo deixou na sua passagem não é nada inferior à praticada pelos cartéis da droga, diria mesmo que esta é o reflexo daquela.
A peculiaridade da violência exercida pelas narco-empresas é que esta realiza-se fora do da formalidade estabelecida pela normatividade burguesa, pois, ao não ser reconhecida a sua existência jurídica, as narco-empresas não podem regular as relações entre elas nem com os outros através dos tribunais e outras instâncias de «execução da justiça», pelo que praticam a violência por conta própria, através dos mecanismos que têm ao seu alcance. Assim, a execução, ainda que não seja o único mecanismo por eles utilizado, é por excelência o modo como os narco-empresários dirimem os conflitos entre eles e dentro da sua própria empresa.
Este é um elemento que tem estado presente desde o início do negócio, tal como acontece no contrabando em geral mesmo antes de se movimentar os actuais montantes de dinheiro e de capital à sua volta, presente desde que o narcotráfico se apresentava apenas em pequenos bandos de contrabandistas que, por exemplo, passavam marijuana para os Estados Unidos nos guarda-lamas dos carros, como diz a lenda.
Mas esta violência a que nos referimos é também uma violência de classe, é a violência burguesa, pois o seu uso está reservado às pessoas explicitamente autorizadas pelos narco-empresários; não corresponde a uma decisão individual dos seus empregados decidir quando deve ser empregue, mas são os próprios donos quem a instrumenta e dirige, tendo na maioria das vezes por vítimas os próprios empregados, e o seu móbil é facilitar o processo de acumulação de capital. É certo que podemos encontrar casos em que influem factores pessoais e de outra natureza, mas a generalidade da violência praticada pelos cartéis da droga tem como finalidade apoiar objectivos capitalistas, isto é, desfazerem-se dos que criam obstáculos ao processo de acumulação.
De igual modo, temos de dizer que o aumento da capacidade de exercício da violência dos narco-empresários se deve principalmente ao aumento do seu poder económico e à extensão da sua influência económica. É difícil saber se são agora mais violentos do que o eram antes, o que é certo é que o aumento da sua capacidade económica aumentou a sua capacidade de exercício da violência, ou dito de outra maneira, a sua capacidade e exercício da violência aumenta ao mesmo tempo e ao mesmo ritmo do seu capital.
Para os que nunca foram burgueses custa compreender por que razão os narco-empresários, se já têm tanto dinheiro e poder, se agarram ferreamente e desta maneira a arrebatar aos outros narco-empresários o seu negócio. Não poderiam conformar-se com o que têm e andarem em paz uns com os outros?
Mas a paz e a guerra fazem parte de um todo, e quanto menos espaços livres de narcotráfico por conquistar houver, mais crescerá a rivalidade e a violência entre os blocos ou grupos rivais, porque a consciência capitalista caracteriza-se precisamente por procurar sempre mais. Além disso, a tendência geral do capital é para a sua concentração e centralização e o negócio da droga não é excepção à regra. De igual modo, a tendência monopolista do capital conduz ao confronto violento entre os blocos de capitalistas. Se isto aconteceu à escala mundial, não tem nada de estranho que também suceda neste caso.
Mas é possível a paz entre os bandos de narcotraficantes? É-o tanto quanto é possível a paz entre os blocos capitalistas a nível mundial, só transitoriamente, e quando um bloco eminentemente dominante consegue agrupar à sua volta os demais e estes reconhecem a supremacia daquele; tal como as potencias capitalistas reconheceram a primazia dos Estados Unidos, de tal forma que a violência se encontra em estado latente e as expressões mais sanguinárias são contra grupos ou Estados mais pequenos, com menos poder e cuja capacidade militar é completamente díspar. Assim, pode chegar uma situação em que uma qualquer aliança de narco-empresários hegemonizem os restantes e só utilizem a violência de forma mais isolada contra pequenos grupos que se recusem a aceitá-los, ou até que se forme um novo bloco capaz de disputar a hegemonia.
Até aqui está claro que a violência foi um instrumento historicamente utilizado pela burguesia para reprimir todos os que se interpuseram entre eles e o seu objectivo máximo; a acumulação de capital é exercida por cada capitalista com os meios e os métodos que tem ao seu alcance; os narco-empresários desenvolveram os seus próprios métodos de exercício da violência. Mas, o que é que se passa com as expressões aparentemente irracionais de violência a que temos assistido nos últimos anos?
Também aqui podemos tropeçar com a armadilha colocada pelos aparelhos ideológicos do Estado, que nos têm dito que as referidas expressões irracionais de violência provêm do que chamam «o crime organizado». Será verdade? Do meu ponto de vista a dúvida é legítima, pois se é certo que há expressões violentas que parecem estar relacionadas com ajustes de contas, disputas de mercados, etc., existem outros acontecimentos que não se enquadram nesta suposição.
Um exemplo muito importante foi o que aconteceu durante a celebração do grito de independência, em 15 de Setembro de 2008, na cidade de Morelia Michoacán, quando rebentaram duas granadas no meio da população que assistia à comemoração. O governo atribuiu imediatamente as culpas do facto às organizações de narcotraficantes, e ordenou o aumento da presença do militar no Estado, fazendo barreiras indiscriminadamente, e fazendo o patrulhamento de estradas, aldeias e cidades por uma imensidão de militares.
Não se tendo resolvido nada, levantam-se algumas questões. Que ganhará uma narco-empresa em fazer explodir duas granadas numa praça pública onde não há qualquer objectivo lógico para acrescentar o seu capital? Quem é que beneficiou com este acontecimento?
O incidente foi precedido de dois anos de constante incentivo do governo de Calderón ao exército, que foi tirado dos quartéis para o desempenho de funções próprias da polícia. Desde que chegou ao poder, Filipe Calderón procurou no exército o seu principal apoio, e encarregou-se de o trazer para as ruas, aumentou o seu orçamento e elevou-o à única instituição honesta e com capacidade para garantir a segurança dos mexicanos. Se compreendermos que o exército é o pilar dos aparelhos repressivos do Estado, e que a sua principal função tem sido a de zelar pelos interesses da burguesia, não estranharemos que um presidente tão impopular, que ganhou a presidência em eleições fraudulentas e acelerou no seu governo a tomada de medidas antipopulares, tenha procurado o apoio seguro do exército.
Assim, as expressões irracionais de violência não vieram apenas do «crime organizado», mas também vieram do próprio exército e dos corpos de polícia que se dedicaram à violação sistemática das garantias individuais e que chegaram, inclusive, a balear famílias inteiras por supostamente não terem respeitado uma ordem de «alto» numa qualquer barreira.
Mas voltemos ao que aconteceu em Morelia. Foi lógico? Na perspectiva de quem? Seja dito que em alguns momentos a violência é exercida pela burguesia com o objectivo de daí tirar benefícios individuais, mas às vezes ela exerce a violência como classe organizada para o seu favorecimento geral. De uma forma ou doutra, directamente a violência não gera valor nem mais-valia, mas pode servir para favorecer o surgimento de condições de acumulação de capital.
Assim, quando a burguesia como classe organizada utiliza a violência, esta aparece sob a forma de violência pública, e quando o faz por sua conta aparece como violência privada. Na primeira sai beneficiada a classe capitalista em geral, e a segunda só quem a exerceu. Em geral, a violência pública é um assunto de Estado como também o é a administração e regulação da violência privada. O que aconteceu em Morelia foi um acto de violência pública porque beneficiou o Estado, e portanto a classe dominante em geral, pelo que é difícil pensar que se tratou de um exercício privado da violência.
No entanto, não nos encontramos em condições de fazer uma peritagem ou uma investigação que possa descobrir o que realmente aconteceu naquele dia, mas podemos saber quem saiu beneficiado com ele: o Estado, o governo de Calderón, o exército e o bloco hegemónico da classe dominante.
Referi o caso das granadas em Morelia pelo seu significativo resultado, mas ao mesmo tempo podemos falar do desenvolvimento e protagonismo dos grupos de sicários, supostamente ao serviço das narco-empresas. Aqui, o curioso é que muitas das suas operações também não parecem corresponder com o exercício da violência privada, isto é parecem não ter como objectivo conquistar um mercado, acertar contas, desfazer-se de um rival, etc. – refiro-me à execução de pessoas que nada têm a ver com o negócio, intimidações, extorsões, assassínios de artistas, etc. Para quê tanta violência? Será verdade que estes grupos de sicários são guardas privados de alguma narco-empresa?
O que os media dizem não é suficiente para acreditar nisso.
A história recente da América Latina mostra-nos uma possibilidade. Nalgumas ocasiões as narco-empresas criam guardas privadas para exercer a violência, que para eles é dispendiosa mas de alguma forma é lucrativa; mas por vezes, também acontece as narco-empresas terem necessidade de financiar grupos de sicários e, neste caso, os sicários não são um instrumento do narcotráfico mas um objectivo. Isto é, o Estado precisa de um certo tipo de violência para favorecimento da classe dominante, mas como não pode financiá-los nem lhes pode dar abertamente cobertura, permite que esse grupo, treinado e patrocinado por eles, se auto-financie através de todas as facilidades que lhe dá para o negócio da droga. Isto aconteceu, por exemplo com os «contra» na Nicarágua e acontece com os grupos paramilitares na Colômbia, como as tristemente célebres Autodefesas Unidas da Colômbia. O objectivo destes grupos não é propriamente traficar droga, mas o narconegócio permite-lhes
exercer a violência política, que é principalmente dirigida ao combate das organizações e posições opostas aos desígnios do capital; no caso dos contras, o combate era contra o governo sandinista e no caso do paramilitarismo colombiano para conter a insurreição com a repressão indiscriminada e irracional não só contra as bases de apoio tanto das FARC-EP como do ELN, mas também das organizações sociais, líderes sindicais e opositores em geral.
No México estes grupos de sicários não se fizeram notar como grupos anti-insurreccionais, embora se saiba que alguns estão treinados para isso, mas também não estamos livres, de sicários que se reivindiquem como parte de uma organização de sicários ou de «narcotraficantes», e tenham ameaçado ou de alguma maneira violentado lutadores sociais. Um caso conhecido foi, por exemplo, o assassínio do comandante «Ramiro» do ERPI que, antes de ser executado, advertiu que estavam a ser fustigados por este tipo de grupos na região de «Tierra Caliente» do Estado de Guerrero.
Se por ora não podemos assegurar que estes grupos de sicários têm como principal função a contra-insurreição, podemos no entanto dizer que é muito provável que estejam em última instância destinados a isso, e também podemos assegurar que o seu comportamento teve como principal beneficiário o governo Calderón e instituições repressivas como o exército.

Conclusões

• O narcotráfico tem em comum com o resto da economia capitalista as suas características essenciais: a procura insaciável de lucro possibilitada pela mais-valia; carentes de ética, não têm qualquer problema com os efeitos nocivos relacionados com o consumo da sua mercadoria e estão dispostos ao que quer que seja para preservar e reproduzir a sua capacidade de acumulação de capital.
• O narcotráfico tem como particularidade a ilegalidade da sua actividade, portanto, as instituições do Estado, pelo menos formalmente, declaram-se sem competência para regular a relação entre os narco-empresários e os seus empregados, bem como a relação entre as narco-empresas, pelo que a dita regulação se faz sobretudo de forma privada. Por isso a violência privada exercida pelas narco-empresas tem um papel particularmentesignificativo.
• Diferenciar a economia do narcotráfico da economia legal torna-se cada vez mais difícil pela quantidade de capital que se movimenta no narcotráfico e a sua relação com a economia legal.
•Os narco-empresários estão cada vez mais integrados na burguesia como classe, isto é, cada vez é mais frequente que o seu comportamento e as suas acções sejam dirigidos ao favorecimento da classe capitalista em geral e não só a uma parte dela em particular.
• Pelas razões que foram ditas cresceu a capacidade das narco-empresas de fazer política, com incidência na política burguesa, estando a sua capacidade de acumular capital relacionada com a de fazer política.
• A violência privada exercida pelas narco-empresas favoreceu um clima de aumento da violência social, pública e privada na sociedade mexicana, o que veio complicar muito os problemas da sociedade mexicana em geral, afectando principalmente os mais pobres e beneficiando unicamente os senhores do capital.
• Este clima de violência abre e favorece a oportunidade de o Estado burguês mexicano se dotar dos instrumentos violentos de repressão da organização popular.
• Não há qualquer razão para pensar que o referido fenómeno abrande, antes pelo contrário, cada vez mais assume traços mais preocupantes. Para que se desse a sua diminuição seria necessário que desaparecessem as condições que levaram ao seu aparecimento e reprodução, pelo que teriam que desaparecer as condições que permitem a produção, distribuição e consumo da droga. E longe de estar interessado nisso, o Estado mexicano apenas trata de se aproveitar deste tema para fortalecer as suas posições no bloco hegemónico da burguesia mexicana.

Somos as mundanças que queremos no planeta


Leonardo Boff no Alaianet

Esta frase que parece arrogante é, na verdade, o testemunho do que significa o projeto “Cultivando Agua Boa” implementado pela grande hidrelétrica Itaipu Binacional nos limites entre o Brasil e o Paraguai envolvendo cerca de um milhão de pessoas. Os diretores da empresa – Jorge Samek e Nelton Friedrich – com suas equipes sabiamente entenderam o desafio global que nos vem do aquecimento global e resolveram dar uma resposta local, o mais inclusiva e holística possível. Esta se mostrou tão bem sucedida que fez-se uma referência internacional.

Seus diretores-inspiradores dizem-no claramente: ”A hidrelétrica Itaipu adotou para si o papel de indutora de um verdadeiro movimento cultural rumo à sustentabilidade, articulando, compartilhando, somando esforços com os diversos atores da Bacia Paraná 3 em torno de uma série de programas e projetos interconectados de forma sistêmica e holística e que compõem o Cultivando Agua Boa; eles foram criados à luz de documentos planetários como a Carta da Terra, o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis, a Agenda 21 e os Objetivos do Milênio”.

Operaram, o que é extremamente difícil, uma verdadeira revolução cultural, vale dizer, introduziram um complexo de princípios, valores, hábitos, estilos de educação, formas de relacionamento com a sociedade e com a natureza, modos de produção e de consumo que justifica o lema, escrito em todas as camisetas dos quatro mil participantes do último grande encontro em meados de novembro:”somos as mudanças que queremos no planeta”.

Com efeito, a gravidade da crise do sistema-vida e do sitema-Terra é de tal magnitude que não bastam mais as iniciativas dos Estados, geralmente, tardias e pouco eficazes. A Humanidade inteira, todos os saberes, as instâncias sociais e as pessoas individuais, devem dar a sua contribição e tomar o destino comum em suas mãos. Caso contrário, dificilmente, sobreviveremos coletivamente.

Christian de Duve, prêmio Nobel de Fisiologia de 1974, nos adverte em seu conhecido livro “Poeira Vital: a vida como imperativo cósmico”(1997) que “nosso tempo lembra uma daquelas importantes rupturas na evolução, assinaladas por extinções em massa”. Efetivamente, o ser humano tornou-se uma força geofísica destruidora. Outrora eram os meteoros rasantes que ameaçavam a Terra, hoje o meteoro rasante davastador se chama o ser humano sapiens e demens, duplamente demens.
Dai a importância de “Cultivando Agua Boa”: mostrar que a tragédia não é fatal. Podemos operar as mudanças que vão desde a organização de centenas de cursos de educação ambiental e capacitação, do surgimento de uma consciência coletiva de corresponsabilidade e cuidado pelo ambiente, da gestão compartilhda das bacias hidrográficas, de incentivo à agricultura familiar, da criação de um refúgio biológico  de espécies regionais, de corredores de biodiversidade unindo várias reservas florestais, de mais de 800 km de cercas de proteção das matas ciliares, do resgate de todos os rios, do cultivo de plantas medicinais, da geração de energia mediante os dejetos de suinos e aves, da construção de um canal de 10 km para vencer um desnível de 120 metros e permitir a passagem de peixes de piracema até a criação de um Centro Tecnológico, Centro de Saberes e Cuidados Ambientais e da Universidade da Integração Latino-Americana entre outras não citadas aquí.

A sustentabilidade, o cuidado e a participação/cooperação  da sociedade civil são as pilastras que sustentam este projeto. A sustentabilidade introduz uma racionalidade responsável pelo uso solidário dos recursos escassos. O cuidado funda uma ética de relação respeitosa para com a natureza, curando feridas passadas e evitando futuras e a participação da sociedade cria o sujeito coletivo que implementa todas as iniciativas. Tais valores são sempre revisados e pactados. O resultado final é a emergência de um tipo novo de sociedade, integrada com o ambiente, com uma cultura da valorização de toda a vida, com uma produção limpa e dentro dos limites do ecossistema e com profunda solidariedade entre todos. Uma aura espiritual benfazeja perpassa os encontros como se todos se sentissem um só coração e uma só alma.

Não é assim que começa o resgate da natureza e o nascimento  de um novo paradigma de civilização?
 
- Leonardo Boff é Teólogo

Por que as guerras não são relatadas honestamente?

- O público precisa saber a verdade acerca das guerras. Então porque há jornalistas que cooperam com governos para ludibriar-nos?

por John Pilger
 
No manual do US Army sobre contra-insurgência, o general David Petraeus descreve o Afeganistão como uma "guerra de percepção ... conduzida continuamente com a utilização dos novos media". O que realmente importa não é tanto as batalhas do dia-a-dia contra o Taliban e sim o modo como o caso é vendido na América onde "os media influenciam directamente a atitude de audiências chave". Ao ler isto, recordei-me do general venezuelano que dirigiu um golpe contra o governo democrático em 2002. "Tínhamos uma arma secreta", jactou-se. "Tínhamos os media, especialmente a TV. Temos de ter os media".

Nunca tanta energia oficial foi gasta para assegurar a conivência de jornalistas com os feitores de guerras de rapina as quais, dizem os generais amigos dos media, agora são "perpétuas". Ao reflectir os mais prolixos senhores da guerra, tais como o waterboarding [*] Dick Cheney, ex-vice-presidente dos EUA, o qual previu "50 anos de guerra", eles planeiam um estado de conflito permanente inteiramente dependente da manutenção à distância de um inimigo cujo nome não ousam dizer: o público.

Em Chicksands, Bedfordshire, o estabelecimento da guerra psicológica (Psyops) do Ministério da Defesa , treinadores de media dedicam-se à tarefa, imersos num mundo de jargões como "dominância de informação", "ameaças assimétricas" e "ciber-ameaças". Eles partilham instalações com aqueles que ensinam os métodos que levaram a uma investigação pública quanto à tortura militar britânica no Iraque. A desinformação e a barbárie da guerra colonial tem muito em comum.

É claro que apenas o jargão é novo. Na sequência de abertura do meu filme, A guerra que você não vê (The War You Don't See), , há uma referência a uma conversação privada pré-WikiLeaks, de Dezembro de 1917, entre David Lloyd George, primeiro-ministro britânico durante grande parte da primeira guerra mundial, e C.P. Scott, editor do Manchester Guardian. "Se o povo realmente soubesse a verdade", dizia o primeiro-ministro, "a guerra cessaria amanhã. Mas naturalmente não sabem, e não podem saber".

Na sequência desta "guerra para acabar com todas as guerras", Edward Bernays , um confidente do presidente Woodrow Wilson , cunhou a expressão "relações públicas" como um eufemismo para propaganda "à qual ganhou má reputação durante a guerra". No seu livro, Propaganda (1928), Bernays descreveu as RP como "um governo invisível" o qual é o verdadeiro poder dominante no nosso país" graças à "inteligente manipulação das massas". Isto era alcançado por "realidades falsas" e a sua adopção pelos media (Um dos primeiros êxitos de Bernay foi persuadir as mulheres a fumarem em público. Ao associar o fumo à libertação das mulheres, ele conseguiu manchete que louvavam os cigarros como "tochas da liberdade".)

Comecei a entender isto quando era um jovem repórter durante a guerra americana no Vietname. Durante a minha primeira missão vi os resultados do bombardeamento de duas aldeias e da utilização do Napalm B , o qual continua a queimar debaixo da pela; muitas das vítimas eram crianças; árvores eram engrinaldadas com pedaços de corpos. O lamento de que "estas tragédias inevitáveis acontecem em guerras" não explicava porque virtualmente toda a população do Vietname do Sul estava em grave risco diante das forças do seu declarado "aliado", os Estados Unidos. Expressões de RP como "pacificação" e "dano colateral" tornaram-se moeda corrente. Quase nenhum repórter utilizava a palavra "invasão". "Emaranhamento" e depois "atoleiro" tornaram-se correntes num novo vocabulário que reconhecia a matança de civis meramente como erros trágicos e raramente questionavam as boas intenções dos invasores.

Nas paredes dos escritórios em Saigão das principais organizações americanas de notícias eram muitas vezes afixadas fotografias horrendas que nunca eram publicadas e raramente eram enviadas porque, diziam, "sensacionalizariam" a guerra ao inquietar leitores e visionadores e portanto não eram "objectivas". O massacre de My Lai em 1968 não foi relatado a partir do Vietname, embora um certo número de repórteres soubesse dele (e de outros atrocidades afins), mas por um freelancer nos EUA, Seymour Hersh . A capa da revista Newsweek denominou-o uma "tragédia americana", implicando que os invasores foram as vítimas: um tema de purgação entusiasticamente adoptado por Holliwood em filmes como O caçador (The Deer Hunter) e Platoon. . A guerra era imperfeita e trágica, mas a causa era essencialmente nobre. Além disso, foi "perdida" graças à irresponsabilidade de uma media hostil e não censurada.

Embora o oposto da verdade, tais falsas realidades tornaram-se as "lições" aprendidas pelos feitores das guerras actuais e por muita gente dos media. A seguir ao Vietname, jornalistas "incorporados" ("embedding") tornaram-se centrais para a política da guerra em ambos os lados do Atlântico. Com honrosas excepções, isto teve êxito, especialmente nos EUA. Em Março de 2002, uns 700 repórteres incorporados e equipes de filmagem acompanharam as forças invasoras americanas no Iraque. Observem os seus relatos excitados e é a libertação da Europa mais uma vez. O povo iraquiano está distante, efémeros actores secundários; John Wayne ressuscitou.

. O apogeu foi a entrada vitoriosa em Bagdad e as imagens da TV de multidões a saudar a queda de uma estátua de Saddam Hussein. Por trás desta fachada, uma equipe americana de operações psicológicos (Psyops) manipulava com êxito o que um ignorado relatório do US Army descreve como um "circo dos media [com] quase tantos repórteres quanto iraquianos". Rageh Omaar , que estava ali pela BBC, informou no noticiário principal da noite: "O povo saiu saudando [os americanos], mostrando sinais em V. Isto é uma imagem que acontece por toda a capital iraquiana". De facto, na maior parte do Iraque, em grande parte não relatada, estava em marcha a conquista sangrenta e a destruição de toda uma sociedade.

Em The War You Don't See, Omaar fala com franqueza admirável. "Realmente não fiz o meu trabalho adequadamente", afirma ele. "Levanto a minha mão e afirmo que não pressionei os botões mais incómodos com força suficiente". Ele descreve como a propaganda militar britânico manipulou com êxito a cobertura da queda de Bassorá, a qual a BBC New 24 informou ter caído "17 vezes". Esta cobertura, afirma ele, foi "uma câmara de ressonância gigante".

A simples magnitude do sofrimento iraquiano na carnificina tem pouco espaço nos noticiários. De pé em frente à Downing Street nº 10, na noite da invasão, Andrew Marr , então editor político da BBC, declarou: "[Tony Blair] disse que seriam capazes de tomar Bagdad sem um banho de sangue e que no fim os iraquianos estariam a celebrar, e em ambas as afirmações ele demonstrou estar conclusivamente correcto..." Pedi uma entrevista a Marr, mas não recebi resposta. Estudos da cobertura televisiva feitos pela Universidade de Gales, Cardiff e Media Tenor , descobriram que a cobertura da BBC reflectia esmagadoramente a linha do governo e que informações do sofrimento de civis foram relegadas. A Media Tenor coloca a BBC e a CBS dos EUA entre os principais de meios de comunicação ocidentais que permitiram a invasão. "Estou perfeitamente aberto à acusação de que fomos ludibriados", disse Jeremy Paxman, ao falar no ano passado a um grupo de estudantes acerca das não-existentes armas de destruição em massa . "Nós o fomos claramente". Como um profissional altamente pago da comunicação, ele deixou de dizer porque foi ludibriado.

Dan Rather, que foi a âncora dos noticiários da CBS durante 24 anos, foi menos reticente. "Havia um medo em toda sala de redacção da América", contou-me, "um medo de perder o emprego ... o medo de lhe afixarem alguma etiqueta, impatriótica ou outra". Rather afirma que a guerra nos transformou em "estenógrafos" e que se jornalistas houvessem questionado os enganos que levaram à guerra do Iraque, ao invés de amplificá-los, a invasão não teria acontecido. Esta é uma visão não partilhada por um certo número de jornalistas sénior que entrevistei nos EUA.

Na Grã-Bretanha, David Rose, cujos artigos no Observer desempenharam um papel importantes ao ligar falsamente Saddam Hussein à al-Qaida e ao 11/Set, deu-me uma entrevista corajosa na qual afirmou: "Não posso dar desculpas ... O que aconteceu [no Iraque] foi um crime, um crime em escala muito grande ..."

"Será que isso torna os jornalistas cúmplices?", perguntei-lhe.

"Sim ... talvez inconscientes, mas sim".

Qual o valor de jornalistas que falam assim? A resposta é dada pelo grande repórter James Cameron , cuja corajosa e reveladora reportagem filmada, feita com Malcom Aird, do bombardeamento de civis no Vietname do Norte foi proibida pela BBC. "Se nós, cuja missão é descobrir o que os bastardos estão a tramar, não informarmos o que descobrimos, se não falarmos alto", disse-me ele, "quem é que vai travar toda essa guerra sangrenta acontecendo outra vez?"

Cameron não podia ter imaginado um fenómeno moderno tal como o WikiLeaks mas certamente teria aprovado. Na actual avalanche de documentos oficiais, especialmente aqueles que descrevem as maquinações secretas que levaram à guerra – tal como a mania americana sobre o Iraque – o fracasso do jornalismo raramente é notado. E talvez razão porque Julian Assange parece excitar tal hostilidade entre jornalistas que servem uma variedade de "lobbies", aqueles a quem o porta-voz de imprensa de George Bush certa vez chamou de "possibilitadores cúmplices", é que a WikiLeaks e o contar da verdade envergonha-os. Por que o público teve de esperar pelo WikiLeaks para descobrir como a grande potência realmente opera? Como revela um documento de 2000 páginas escapado do Ministério da Defesa, os jornalistas mais eficazes são aqueles encarados nas sedes do poder não como embebidos ou membros do clube, mas como um "ameaça". Isto é a ameaça da democracia real, cuja "moeda", disse Thomas Jefferson, é o "livre fluxo de informação".

No meu filme, perguntei a Assange como WikiLeaks trataria das draconianas leis secretas pelas quais é famosa a Grã-Bretanha. "Bem", disse ele, "quando olhamos para os documentos rotulados na Lei de Segredos Oficiais, vemos uma declaração de que é um delito reter informação e é um delito destruir a informação, de modo que a única resultante possível que temos de publicar a informação". Estes tempos são extraordinários.

[1] Waterboarding: Simulação de afogamento, método de tortura aprovado pelo vice-presidente Dick Cheney.

O original encontra-se em www.guardian.co.uk e em www.johnpilger.com

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

domingo, 19 de dezembro de 2010

A comida não pode ser barata? Uma resposta cúmplice aponta a causa dessa injustiça


 

Por Antonio Cechin e Jacques Távora Alfonsin no Sul21

“A sociedade tem de aceitar que a época da comida barata acabou.” Assim, o presidente da Farsul resumiu sua opinião sobre o preço da comida, na edição de sexta-feira, 17, do jornal Zero Hora.
Para quem ainda passa fome no Brasil, é difícil recordar quando, no passado, a comida foi barata. Em todo o caso, tratando aquela opinião de uma necessidade vital das pessoas, como é a de se alimentar, é conveniente analisar-se o dito no que ele pode revelar sobre as causas de uma injustiça social como essa, pois, pelo jeito, não temos saída e estamos condenados a aceitá-la.
Segundo essa maneira de pensar, cabe uma comparação. Entre o possível prejuízo que a fração de empresários representada pela tal liderança possa ter na venda do indispensável à vida das pessoas, e o que essas possam sofrer por não poderem pagar o que lhes mata a fome, quem não pode sair perdendo é o dono do capital (nem sempre identificado, em tudo, com o “produtor rural”, a economia familiar que o comprove), pois, em todo o contexto explicativo da entrevista, a “comida barata” aparece como prejuízo certo desse personagem.
Como o mercado, onde esse capital se alimenta de dinheiro e não de comida, é um ente abstrato, de humor desconhecido, refletido em expressões tão grandiloqüentes quanto aleatórias do tipo “crise da economia mundial”, “excesso de demanda”, “defesa da liberdade de iniciativa econômica”, “globalização”, as causas dos perversos efeitos da previsão feita pelo presidente da Farsul geralmente ficam isentas de qualquer investigação sancionatória, inclusive do ponto de vista jurídico. A “mão invisível” (Adam Smith) dos seus ciclos econômicos de crise, exploração da natureza e das gentes, trata de imunizá-lo.
Algumas mãos visíveis de defesa desse tipo de irresponsabilidade, todavia, podem ser identificadas, como prova a afirmação categórica do ministro da agricultura, publicada na mesma edição de ZH, segundo a qual “índices de produtividade é assunto encerrado.”
Ali aparece, novamente, o porque de se encerrar esse assunto: “Quem deve definir o que, como e quando o produtor brasileiro vai produzir é o mercado, a visão que ele tem de oportunidades de negócios, perspectivas de preço, demanda do mercado interno e internacional. Não pode ser um ato autoritário, de cima para baixo, dizendo que tem de produzir com tais índices de produtividade. Não é assim que se faz”.
Entre o que a sociedade, portanto, “tem de aceitar” como diz o presidente da Farsul, e a forma como essa aceitação deve ser feita (“assunto encerrado”, “não é assim que se faz”…), como diz o ministro da Agricultura, o Estado, a democracia, os Poderes Públicos, o ordenamento jurídico não têm que dar palpite nem se meter.
A lei e o direito, assim, não têm voz nenhuma aí. Quem deve mandar sobre o que deve se produzir “é o mercado”, “as oportunidades de negócios”, as “perspectivas de preços”, somente o dinheiro, em última análise. Poucas vezes se reconheceu, com tanta clareza e pelas vozes dos seus mais fiéis representes, onde se encontra, efetivamente, o “ato autoritário, de cima para baixo”, a que faz referência o ministro da agricultura. Ele desce do mercado e é indiscutível, fatal, como ato caracteristico de toda ditadura. A/o pobre faminta/o que se submeta a esse ente-ídolo capaz de ditar o que, como, quando e quanto ele deve comer. Não é por acaso, portanto, que acabe morrendo de fome. O Estado e a democracia prossigam fingindo terem o poder de garantir a vida e a liberdade do povo pobre.
Haja fome, então, para suportar uma opressão a esse nível. Ela comprova a maior contradição presente em todo o nosso sistema econômico. Justamente quando a produção rural conquista quantidades de alimento mais do que suficientes para alimentar o povo todo, o chamado “preço de mercado” cai a níveis tão baixos, que somente a retenção dessas quantidades consegue cobrir o custo da produção, seja o real, seja o inventado por quem sabe manipular dados a favor do seu lucro. Aí o Estado deixa de ser o vilão e passa a ser a solução…
Não é preciso ser economista para compreender onde tudo isso vai dar. Esse ar de fatalidade, no qual se inspiram as opiniões das referidas lideranças, não é igual ao do clima, corriqueiramente invocado em favor das alegadas dificuldades pelas quais passam os seus liderados. Que a freqüência desse repetido queixume já alcançou status de segunda natureza, isso não dá para negar, pois não há ano em que ele não repita o seu choro.
Quanto cinismo e hipocrisia se refletem, pois, quando o respeito à lei, especialmente a da segurança nacional, é invocado com veemência, por essas lideranças, sempre que o povo necessitado de casa e comida toma em suas próprias mãos a iniciativa de proclamar que o tal respeito só vale, de fato e materialmente, em favor de minorias historicamente protegidas por uma ideologia sem outras referências que não as da propriedade e as do mercado. Se o destinatário de algumas vantagens previstas em lei é a/o pobre, elas ignoram e desprezam a lei. Essa exige, por exemplo, o cumprimento da função sal da propriedade, “em prol do bem coletivo”, das “necessidades dos cidadãos”, da “erradicação da pobreza”, de “direitos humanos fundamentais”, expressões que não faltam na Constituição Federal, no Estatuto da Terra e no Estatuto da Cidade, entre outras regras jurídicas. Aí, o seu efeito material, concreto, é igual a zero, já que o mercado, pelo menos o refletido nas opiniões publicadas pela ZH, não precisa se preocupar com isso.
O direito à alimentação, por exemplo, somente entrou expressamente na Constituição em fevereiro deste ano (Emenda 64), como se a satisfação de uma necessidade vital como essa, de tão desrespeitada no país, tivesse necessidade de se proclamar em lei, para ser reconhecida como direito. Muito antes, os tratados internacionais que o Brasil assinou, como o dos direitos econômicos, sociais e culturais de 1966, já vinculavam o nosso país, inclusive, à reforma agrária capaz de, no mínimo, atenuar as danosas conseqüências da comida cara.
Os conceitos de “soberania alimentar” e de “segurança alimentar”, capazes de dar sustentação a direitos fundamentais de todo o povo, garantindo-lhe presidir o que plantar, colher, criar e abater, sem correr o risco da fome, pela falta de acesso à terra, devem inverter os sentidos das lições ditadas pelo presidente da Farsul e pelo ministro da Agricultura. O primeiro “tem de aceitar” e o segundo não pode “encerrar assunto” que envolva direitos como os que as suas opiniões desconsideram. O “realismo econômico” da comida cara, sem outro remédio, previsto por eles, se está sendo pelo menos mitigado nos seus danosos efeitos sociais, isso não se deveu ao mercado, lá erguido à panacéia dos nossos males, mas sim aos assentamentos gerados pela reforma agrária, pelo menos os que deram certo justamente por obedecer à outra lógica que não a exclusiva do mercado. Não foi este também que presidiu a política pública de implantação do Fome Zero e do Bolsa Família.
Se existem mais brasileiros saciados, hoje, não devem isso ao mercado. Felizmente, há uma outra economia em curso, familiar, solidária, cooperativa, diferente dessa que acumula na mão de poucos o que falta na mesa de muitos. É por isso que a reforma agrária, esses assentamentos e essas políticas públicas recebem críticas tão ácidas das lideranças latifundiárias e daquelas que, no exercício do Poder Público, lhes são fiéis. “Paternalismos oficiais”, “favelas rurais” costumam aparecer sustentando essas críticas. É que o ídolo ao pé do qual elas se ajoelham, rezam e acendem velas diárias de adoração, não aceita outra forma de produção, distribuição e partilha dos bens indispensáveis à vida das pessoas que não passe pelo seu poder de exclusão, medido de acordo com a capacidade de pagar que cada uma dessas tenha alcançado.
Aquela outra economia sabe que o dinheiro não se come, nem impõe um “ter de aceitar” ou um “assunto encerrado” prepotentes e anti-democráticos como os publicados pela ZH do dia 17. Os direitos e os interesses alheios não lhe são estranhos ou, até, hostis. O que ela mais deseja é a suficiência para todas/os e não somente para um pequeno grupo. Está a serviço de uma justiça social capaz de produzir comida e mesa fartas onde ninguém se assente constrangido pela dor de saber-se estranho à comum união.