terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Em defesa do santo direito à greve neste Natal

Passamos horas na sala de embarque do aeroporto esperando Godot. E Godot parece nunca chegar.
Nessas horas, tenho a certeza que a Infraero resolve economizar até no ar condicionado.
A espera, o calor… O tumulto, o calor… A desinformação, o calor… A fome, o calor… Lembro quando, anos atrás, durante o ápice do caos aéreo, rolaram tapas entre passageiros e funcionários, entre passageiros e passageiros. Um funcionário-descontrolado chegou a tomar o celular de uma repórter-passageira que registrava um coronel-suado dando explicações. Sobre o que? Na época, não deu para ouvir. Muita gente…
Cansei de contar o número de vezes, nos últimos anos, em que me lasquei por conta dos grandes ou pequenos momentos de caos. Muita gente ao meu lado jogou videogame, Sudoku, navegou na internet, cochilou, namorou, comeu, reclamou, esperando Godot. E Godot nem tchum.
Não culpo os aeroviários e controladores de vôo. Nos últimos anos, constatamos o quanto a situação deles é desesperadora, muitos com jornada de trabalho que extrapola o limite da regulamentação da profissão, sob imposição de estresse, sofrendo pressão do patrão de uma lado e da sociedade de outro. O setor cresce economicamente, nada mais justo que a remuneração também.
(Como não estamos mais nos primórdios da revolução industrial, não faz mais sentido jogar tamancos – do francês, sabots – nas engrenagens para paralisar a produção e se fazer ouvir. Há formas mais modernas, mas com o mesmo efeito. A idéia da paralisação e da grave também é essa.)
Começam a chamar uma possível paralisação de trabalhadores de terrorismo. Terrorismo não é parar de trabalhar. Terrorismo é fazer a população ficar contra um grupo de trabalhadores, enquanto se encobre as incompetências do setor privado, que cresce e não quer gastar para se adaptar a essa nova realidade, e do poder público, que acumulada inação na área por vários presidentes da República.
Durante anos, a “modernização” do sistema aéreo esbanjou dinheiro em piso de granito de aeroportos. À medida em que o capital fixo crescia (o visível, porque radar para eliminar “ponto cego” nem pensar), o capital variável (salários) continuava insuficiente para o nível de exigência das profissões.
Apóio os aeroviários e os controladores de vôo. Apóio os cobradores e motoristas de ônibus. Apóio os bancários e metalúrgicos. Apóio os garis. Apóio os residentes médicos. Apóio o santo direito de se conscientizarem, reconhecerem-se nos problemas, dizer não à exploração e entrar em greve até que a sociedade pressione e os patrões escutem.
Mesmo que isso torne minha vida um absurdo.
Mesmo que Godot nunca chegue.

O debate dos blogueiros progressistas do Rio



Miguel do Rosario em seu blog Gonzum
Os blogueiros progressistas do Rio de Janeiro continuam botando a mão na massa e trabalhando. No dia 18 de dezembro, um sábado quente e modorrento, a uma semana do Natal, conseguimos reunir mais de sessenta pessoas, inclusive de outros estados, inclusive os guerreiros da Rede Liberdade, para um debate sobre a função política da blogosfera à luz da nova correlação de forças criada pela eleição de Dilma Rousseff. Organizamos tudo na marra, sem patrocínio. Eu, um reles blogueiro desempregado, botei uma boa grana do próprio bolso; e não só eu, vários outros companheiros o fizeram; como sempre a blogosfera demonstrou generosidade, idealismo e disposição para fazer acontecer. Valeu a pena. É o tipo de investimento que você faz com orgulho. Alugamos o auditório do Sindicato dos Bancários, que possuía um bom sistema de ar-condicionado e bebedouro com água mineral (fatores fundamentais nessa época do ano no Rio…), compramos garrafas térmicas para servir café, chocolate, amendoins, biscoitinhos doces e salgados. Não tem preço ficar de frente, tocar e abraçar aqueles idealistas, de olhos bondosos e puros, que outros chamam de “sujos” e que agora alguns tentam destruir a golpes de pedantismo.
Houve problemas com o som e com a internet. Um companheiro nosso que deveria trazer o som, não o fez, e tivemos que falar sem microfone, o que não foi problema por se tratar de um auditório com excelente acústica. Também não foi possível fazer a transmissão online via internet, igualmente por incompetência nossa, que nos esforçaremos para que não se repita em eventos futuros.
Fabiano Santos, um cientista político de primeira grandeza, do Iupesp-UERJ, abriu o debate com uma brilhante exposição sobre o momento político brasileiro. Relatou, em primeiro lugar, como mergulhou de cabeça na blogosfera, após sentir-se ofendido com matéria publicada num grande jornal do Rio, que atacava o instituto onde ele trabalhava, o Iuperj. Passou a ser um consumidor de blogs, começando pelo do Nassif.
Fabiano Santos elogiou o termo “progressista”, conceito que, segundo ele, contava com sua total simpatia, como aliás deixou claro ao aceitar prontamente o convite que lhe fiz de participar do evento e pela seriedade com que desempenhou sua tarefa. O cientista elogiou muito a contribuição dos blogueiros progressistas no sentido de ampliar o debate democrático no país.
Santos analisou a função da blogosfera política nas eleições e discorreu sobre as perspectivas eleitorais futuras. Uma das funções seria a reiteração ideológica, onde o indivíduo encontraria em alguns blogs uma visão parecida. Este fator, segundo ele, tem relevância política porque fornece argumentos e autoconfiança para um determinado núcleo duro, de pessoas interessadas no assunto, que são procuradas pela maioria, que apenas se interessa por política durante o momento eleitoral.
Outra função, que seria a ideal, seria a de persuadir, e eventualmente mudar o voto de uma pessoa.
Santos disse acreditar, no entanto, que a primeira função seria mais comum na blogosfera de esquerda atual.
Em seguida, ele fez considerações de ordem propriamente política-eleitoral-partidária. Lembrou a tese de seu pai, Wanderley Guilherme dos Santos, de que há uma possiblidade forte de união entre Aécio Neves e lideranças do PSB, e mesmo de outros partidos, sobretudo porque muitos estão se sentindo “órfãos” na divisão de poder entre PT e PMDB. Lembrou que da mesma forma que o PT se aliou ao PL, o PSB pode se aliar ao PSDB. A diferença (e aqui vai minha opinião, embora eu ache que o Fabiano concordaria com ela) é que, no caso da dupla PT X PL, a esquerda vinha na cabeça, enquanto a chapa PSDB X PSB teria um perfil hegemonicamente conservador.
Respondendo a uma pergunta minha, Santos apontou mais um desafio para a esquerda: lidar com o avanço das bandeiras conservadoras gerado pela ascensão social de um número grande de pessoas. A partir do momento em que se amplia o tamanho da classe média, outras demandas se impõem, entre elas, a discussão sobre a carga tributária.
Santos observou, todavia, que esses dilemas, hoje muito prementes entre a esquerda européia (onde a classe trabalhadora que votava na esquerda hoje vota na direita pelas mesmas razões), ainda demorarão a se tornar tão aguçados no Brasil. Observação minha: não vão demorar tanto, ainda mais porque a mídia já identificou esses possíveis ponto-fracos da esquerda e vem trabalhando com afinco para satanizar a cobrança de impostos (o que não é difícil, visto que ninguém gosta de pagar imposto; de maneira que a pregação tem um quê de irresponsabilidade republicana, bem típica do tipo de direita que temos no Brasil). Outra observação é que isso é processo político normal e inevitável e se a esquerda não souber enfrentar essa luta com sabedoria, merecerá a derrota.
O cientista disse ainda que a imprensa grande é conservadora no mundo inteiro, com raras exceções. Eu lembrei das exceções: França e Itália, onde temos grande imprensa de esquerda, mas em todos os países americanos, mídia grande é ligada aos partidos conservadores.
Bemvindo Sequeira falou em seguida. Lembrou do tempo em que foi diretor do sindicato dos artistas, e sofria na mão de uma ultra-minoria ultra-esquerdista que sabotava sistematicamente as convenções, forçando as melhores cabeças a irem embora para casa, depois do que eles assumiam as votações e aprovavam bandeiras radicais, inconvenientes e contraproducentes.
O ator contou a história do grupo Rede Liberdade, que promove encontros virtuais, entrevistas, festas, e outros eventos.
Sequeira, como era de se esperar, extraiu fortes risadas da plateia com sua irreverência livre e inteligente. Socialista maduro, responsável, positivamente astuto, o ator e comediante também fez uma bela defesa da liberdade de expressão nos debates políticos, ou seja, do não-patrulhamento, e a tolerância para com a opinião divergente. A harmonia carinhosa entre ele, que defende a ação do governo estadual e federal no Complexo do Alemão, e o cartunista Latuff (a seu lado na mesa), que a critica ferinamente, era um exemplo maravilhoso e concreto. É possível discordar sem rancor.
Latuff dedicou grande parte de seu tempo a criticar a ação do Estado no Complexo do Alemão. Apesar d’eu discordar dele, compreendo e até apoio (por mais paradoxal que isso possa parecer) a manifestação de Latuff. De fato, a mídia produziu um consenso assustador nesse caso. O Globo deixou bem claro o que pode fazer quando “gosta” de uma determinada ação governamental: abraça-a com a mesma violência manipuladora e exagerada que usa para atacar ações que não gosta. Mesmo apoiando a ação, eu adverti por aqui a minha profunda discordância do tom salvacionista adotado pela Globo para descrever a ação.
O fato, porém, é que os principais movimentos sociais ligados às favelas apoiaram a invasão do Alemão pelo exército e polícia, mas todos tivemos muito medo de uma carnificina e por isso mesmo houve uma grande mobilização para que fosse tomado extremo cuidado para com os direitos humanos. A própria presença maciça dos canais de tv ajudou a evitar um banho de sangue. A mídia, conservadora ou não, é importante neste caso, porque permite à sociedade vigiar de perto o poder público.
Depois do evento, uma parte dos blogueiros progressistas confraternizaram no Bar do Gomes, na Lapa, que eu e meus amigos chamamos ainda pelo nome antigo: o Ceará. Rodrigo Brandão, Arles, Rô, Latuff, o Betinho de BH, e vários outros. Havia um objetivo de confabular sobre o Encontro Regional, mas a gente usou o tempo para falar genericamente de política, relembrar anedotas, trocar impressões, ou simplesmente falar besteira.
O Emir Sader, que participaria do debate, mas não pode fazê-lo por estar em Foz do Iguaçu, num evento de lideranças da América Latina, mandou-nos uma cartinha:
Caros blogueiros, caros companheiros e amigos
Impossibilitado de participar desse importante debate, mando um abraço a todos. Terminamos um ano e uma década muito importantes para o Brasil e a América Latina. Começamos a construir alternativas ao neoliberalismo – ao reino do dinheiro, do tudo se vende, tudo se compra, e, que tudo tem preço – para começar a entender e a colocar em prática o principio democratico de que o essencial não tem preço. E o essencial são os direitos de todos.
No plano da comunicação, nossa ação guerrilheira surte efeitos e nos anima a seguir adiante. Mas não devemos ter ilusões; lutamos contra Exércitos regulares, com um poder de fogo muito superior ao nosso.
Estamos coseguindo demonstrar a superioridade politica, cultural e moral, do plurairismo, da diversidade, da multiplicação de vozes – princípios em que deve se assentar uma politica democrática de comunicação social.
Com debates como esse, vamos estabelecendo os elos desse nova politica.
Sou apenas mais um da nossa turma.
Um abraço.
Emir Sader
A Rede Liberdade já postou muitas fotos do evento. Escolhi umas e publico abaixo (repetindo: o crédito das fotos é da Rede Liberdade).
(em primeiro plano, à esquerda, o artista plástico Juliano Guilherme, combatente da blogosfera na área de comentários, de camiseta azul; e Sérgio Telles, à direita, de camiseta bege, um dos organizadores do debate do #rioblogprog. Betinho Duarte, vereador por 16 anos em Belo Horizonte, aparece à direita, de camiseta branca. Detalhe: o resto do público assistia a palestra junto a mesa do bufê, onde tinha café e quitutes; uma parte ia fumar cigarro do lado de fora de vez quando; outra fica na janela).
(À esquerda, eu, despenteado e barba por fazer, ou seja, fantasiado de blogueiro sujo; à direita, Fabiano Santos, cientista político do Iupesp).
(Parte do núcleo duro do #rioblogprog, em foto tirada ao final do debate).

Descontente com PDT, Juliana Brizola assina CPI da Saúde e ameaça ir para o PSol



Igor Natusch no Sul21

O requerimento para instalação da CPI da Saúde em Porto Alegre é mais um episódio a marcar o clima tenso que tomou conta da relação de Juliana Brizola com o PDT, o partido criado pelo seu avô, Leonel Brizola. Protocolado na tarde desta segunda-feira (20), o pedido de investigação foi proposto pela oposição ao governo da capital, comandado por José Fortunati (PDT). Até a manhã de hoje, faltava uma única assinatura para viabilizar a CPI – ela acabou sendo dada por Juliana Brizola, contra os interesses do próprio partido. Curiosamente, a 12ª assinatura, a de Juliana, que permitiu a tramitação na Câmara Municipal do pedido da CPI da Saúde, foi justamente a que faltou para que a vereadora conseguisse a instauração de outra Comissão Parlamentar de Inquérito: a da Secretaria Municipal da Juventude. A CPI do ProJovem, que tramita na Casa, foi encaminhada pelo vereador tucano Luiz Braz, da base aliada de Fortunati.
Mais do que uma represália contra o que Juliana considera uma “perseguição” do seu partido, a atitude da vereadora, que ocupará uma cadeira na Assembleia gaúcha a partir de 2011, é um sinal de que a detentora do sobrenome que personifica o trabalhismo está disposta a bater de frente com o partido de seu avô. Há a possibilidade crescente de Juliana Brizola partir de mala e cuia para outra sigla – no caso, o PSol.
A proposta de CPI para apurar denúncias sobre a Secretaria Municipal de Saúde existe desde janeiro de 2010. Em abril, já haviam sido coletadas 11 das doze assinaturas necessárias para o andamento da investigação. A última assinatura só surgiria hoje, com a concordância de Juliana em opor-se ao governo de seu partido. “Ela era favorável à CPI (da Saúde) desde o início”, garante o vereador de Porto Alegre, Pedro Ruas (PSol), que deu início ao processo. Segundo ele, a pressão partidária impedia que Juliana assinasse o requerimento. Barreira que teria deixado de existir depois da polêmica envolvendo a investigação da Secretaria de Juventude. “Com os últimos acontecimentos, a vereadora (Juliana Brizola) não se sente mais presa às imposições de seu partido, o que a deixou muito mais à vontade para assinar (a CPI)”, garante Ruas. Agora, a CPI da Saúde fica no aguardo de parecer da presidência da Câmara.
Tentando apagar o incêndio, lideranças trabalhistas acenam com uma solução conciliadora. Juliana Brizola poderia, de acordo com a proposta da bancada do PDT, assumir a Comissão de Educação na Assembleia Legislativa a partir de 2011. Seria um modo de diminuir a insatisfação da deputada eleita, que não apenas ostenta um sobrenome muito importante para a sigla, como teve também a melhor votação da bancada trabalhista nas eleições de outubro. Uma reunião da bancada pedetista está marcada para terça-feira (21), na qual Juliana Brizola deve estar presente. Entre outros assuntos, o encontro deve consolidar a oferta da Comissão de Educação, como meio de acabar com as rusgas entre Juliana e a sigla.
“O lugar dela é no PDT”, diz o deputado Adroaldo Loureiro, que será colega de Assembleia de Juliana Brizola a partir de 2011. Frisando que a futura deputada merece ser “bem tratada” pelo partido, Loureiro diz crer que a tendência, daqui para frente, é que as coisas se acalmem. “Foi um ano muito complicado, cheio de conflitos dentro do partido, e isso acabou tendo influência. Além disso, ela será deputada, estará em outro ambiente a partir do ano que vem. Acredito que teremos um clima mais favorável ao entendimento daqui para frente”, assegura.
Briga antiga
A insatisfação de Juliana é assunto que se arrasta há anos nos corredores do PDT. Os choques entre a atual vereadora e a direção estadual da sigla foram tantos que motivaram até uma denúncia por assédio sexual contra o então presidente do partido no RS, Pompeo de Mattos, em 2004. Nas articulações para definir o apoio dos trabalhistas ao governo de Tarso Genro (PT), Juliana Brizola foi uma das vozes mais fortes contra a participação, mas acabou sendo voto vencido. Nos últimos dias, a situação ganhou tamanha dimensão que até o presidente nacional do PDT, Carlos Lupi, aproveitou viagem ao RS para tentar acalmar os ânimos.
As rusgas entre Juliana e o PDT tiveram uma gota d’água na recente proposta de uma CPI para investigar a Secretaria Municipal da Juventude, da qual foi titular. A pasta, até a explosão da polêmica, era comandada pelo marido de Juliana, Alexandre de Souza Silveira, conhecido como Alexandre Rambo. Rebatendo denúncias contra o marido, as quais ela atribui a uma armação comandada pelo desafeto Mauro Zacher (PDT), que também esteve à frente da Secretarua da Juventude, Juliana propôs a abertura de uma comissão processante para investigar as últimas administrações da pasta. Porém, seu pedido foi negado pela presidência da Casa, baseada num parecer da procuradoria-geral da Câmara.
Juntamente com a vereadora Fernanda Melchionna (PSol), Juliana entrou com um recurso, encaminhado à Comissão de Constituição e Justiça, onde teve parecer favorável do presidente da CCJ e relator do recurso, vereador Pedro Ruas. O vereador Luiz Braz (PSDB), no entanto, pediu vistas e a decisão foi adiada por um dia. Tempo suficiente para Braz assinar um novo pedido de CPI para investigar a secretaria.
Ao perceber a manobra, Juliana Brizola tentou ela mesma substituir o pedido de abertura de uma comissão processante pelo de uma CPI. No entanto, não obteve as 12 assinaturas necessárias, enquanto a Comissão proposta por Luís Braz, com 14 assinaturas, foi aceita pelo presidente da Câmara de Porto Alegre, Nelcir Tessaro (PTB). Na prática, o controle da investigação saiu das mãos da oposição – e, em última análise, de Juliana Brizola – e passou para o controle de setores muito mais simpáticos a José Fortunati e ao governo municipal. “Fui desrespeitada na minha pretensão de ingressar com a CPI e, agora, o pedido de outro vereador é aceito em lugar do meu. A mesa não pode aceitar esse pedido. É uma questão de autoria”, disse Juliana, em entrevista coletiva logo após a decisão.
Vereadores Fernanda Melchionna e Pedro Ruas / Divulgação CMPA

Conversas com o PSol
A aproximação de Juliana Brizola com o PSol vem sendo costurada há alguns meses. Nas sessões da Câmara municipal, era comum ver a futura deputada ao lado de Pedro Ruas e Fernanda Melchionna, representantes psolistas no legislativo de Porto Alegre. A migração, embora de forte repercussão, não seria inédita, já que o próprio Pedro Ruas deixou os quadros trabalhistas em 2004, depois de 25 anos na sigla, para entrar no PSol.
As conversas entre Juliana e o PSol tomaram tal dimensão que a vereadora, acompanhada de Pedro Ruas e do presidente gaúcho do PSol, Roberto Robaina, dirigiu-se até o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) na quarta-feira passada (15) para um encontro com o presidente do Tribunal, Luiz Felipe Silveira Difini. O tema da conversa: eventuais implicações de uma mudança de partido sobre o recém conquistado mandato na Assembleia do RS. A ideia, no caso, seria de Juliana Brizola tomar posse ainda como pedetista. Com o mandato já em andamento, a deputada alegaria perseguição ou rompimento do PDT com o programa partidário para migrar de sigla – o que, caso aceito pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), garantiria a entrada no PSol sem que Juliana precisasse abrir mão do mandato.
Segundo o vereador Pedro Ruas (PSol), a discussão ainda está em um estágio “muito preliminar”. Mas confirma a aproximação entre Juliana Brizola e o partido. “Sempre houve um grande respeito nosso pela trajetória dela, além de estarmos sempre muito próximos na atuação de plenário. Para nós (PSol), seria uma honra muito grande recebê-la, caso as coisas evoluam. Mas ainda não há nada concreto”, ressalva.
Sem entrar no mérito de uma possível entrada de Juliana Brizola no PSol, a vereadora Fernanda Melchionna (PSol) lembra que os recentes acontecimentos deram “maior independência” às decisões da futura deputada estadual. “A vereadora Brizola não encontra mais espaço dentro do partido ao qual pertence. O PDT distanciou-se das bandeiras que ela defende, e ela acabou ficando isolada. Isso fez com que ela se aproximasse de nós (PSol) na Câmara, já que abraçamos várias lutas em comum”, explica Melchionna.
Adroaldo Loureiro, porém, descarta a hipótese com veemência. “Isso não passa de boato, não tem a menor sustentação”, diz. Para ele, não existiria nem sequer uma “lógica política” para sustentar essa possibilidade. “Ela carrega consigo o legado do doutor Leonel Brizola, fundador e grande líder do PDT. Não existe motivos para ela sair, aqui é a casa dela. Nós (deputados estaduais) vamos receber ela de braços abertos e com muita alegria”.
O Sul21 tentou conversar com Juliana Brizola durante toda a tarde desta segunda-feira (20), mas a vereadora não retornou as ligações. A assessoria de Juliana informou que a futura deputada havia decidido não falar com a imprensa.

Dez conselhos para viver a religião



1. Religue-se. Evite o solipsismo, o individualismo, a solidão nefasta. Religue-se ao mais profundo de si mesmo, lá onde se cultivam os bens infinitos; à natureza, da qual somos todos expressão e consciência; ao próximo, de quem inevitavelmente dependemos; a Deus, que nos ama incondicionalmente. Isto é religião, re-ligar.
2. Tenha presente que as religiões surgiram na história da humanidade há cerca de oito mil anos. A espiritualidade, porém, é tão antiga quanto a própria humanidade. Ela é o fundamento de toda religião, assim como o amor em relação à família. Busque na sua religião aprimorar a sua espiritualidade. Desconfie de religião que não cultiva a espiritualidade e prioriza dogmas, preceitos, mandamentos, hierarquias e leis.
3. Verifique se a sua religião está centrada no dom maior de Deus: a vida. Religião centrada na autoridade, na doutrina, na ideia de pecado, na predestinação, é ópio do povo. “Vim para que todos tenham vida e vida em abundância”, disse Jesus (João 10,10). Portanto, a religião não pode manter-se indiferente a tudo que impede ou ameaça a vida: opressão, exclusão, submissão, discriminação, desqualificação de quem não abraça o mesmo credo.
4. Engaje-se numa comunidade religiosa comprometida com o aprimoramento da espiritualidade. Religião é comunhão. E imprima à sua comunidade caráter social: combate à miséria; solidariedade aos pobres e injustiçados; defesa intransigente da vida; denúncia das estruturas de morte; anúncio de um “outro mundo possível”, mais justo e livre, onde todos possam viver com dignidade e felicidade.
5. Interiorize sua experiência religiosa. Transforme o seu crer no seu fazer. Reduza a contradição entre a sua oração e a sua ação. Faça pelos outros o que gostaria que fizessem por você. Ame assim como Deus nos ama: incondicionalmente.
6. Ore. Religião sem oração é cardápio sem alimento. Reserve um momento de seu dia para encontrar-se com Deus no mais íntimo de si mesmo. Medite. Deixe o Espírito divino lapidar o seu espírito, desatar os seus nós interiores, dilatar sua capacidade amorosa.
7. Seja tolerante com as outras religiões, assim como gostaria que fossem com a sua. Livre-se de qualquer tendência fundamentalista de quem se julga dono da verdade e melhor intérprete da vontade de Deus. Procure dialogar com aqueles que manifestam crenças diferentes da sua. Quem ama não é intolerante.
8. Lembre-se: Deus não tem religião. Nós é que, ao institucionalizar diferentes experiências espirituais, criamos as religiões. Todas elas estão inseridas neste mundo em que vivemos e mantêm com ele uma intrínseca interrelação. Toda religião desempenha, na sociedade em que se insere, um papel político, seja legitimando injustiças, ao se manter indiferente a elas, seja ao denunciá-las profeticamente em nome do princípio de que somos todos filhos e filhas de Deus. Portanto, temos o direito de fazer da humanidade uma família.
9. A árvore se conhece pelos frutos. Avalie se a sua religião é amorosa ou excludente, semeadora de bênçãos ou arauto do inferno, serva do projeto de Deus na história humana ou do poder do dinheiro.
10. Deus é amor. Religião que não conduz ao amor não é coisa de Deus. Mais importante que ter fé, abraçar uma religião, frequentar templos, é amar. “Ainda que eu tivesse fé capaz de transportar montanhas, se não tivesse o amor isso de nada me serviria”, disse o apóstolo Paulo (1 Coríntios 13, 2). Mais vale um ateu que ama que um crente que odeia, discrimina e oprime. O amor é a raiz e o fruto de toda verdadeira religião; e a experiência de Deus, de toda autêntica fé.

* Escritor

A barreira da desigualdade



Sem erradicar a pobreza e a marginalização social, é impossível fazer funcionar regularmente o regime democrático


Ideias para Dilma
A ligação entre democracia e direitos humanos é visceral, pois trata-se de realidades intimamente correlacionadas. Sem democracia, os direitos humanos, notadamente os econômicos e sociais, nunca são adequadamente  respeitados, porque a realização de tais direitos implica a redução  substancial do poder da minoria rica que domina o País. Como ninguém pode desconhecer, sem erradicar a pobreza e a marginalização social, com a concomitante redução das desigualdades sociais e regionais, como manda a Constituição (art. 3º, III), é impossível fazer funcionar regularmente o regime democrático, pois a maioria pobre é continuamente esmagada pela minoria rica.

Acontece que o nosso País continuar a ostentar a faixa de campeão da desigualdade social na América Latina, e permanece há décadas entre os primeiros colocados mundiais nessa indecente competição. Em seu último relatório, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento Humano (PNUD) mostrou que os setores de mais acentuada desigualdade social, no Brasil, são os de rendimento e educação.

É óbvio que essa realidade deprimente jamais será corrigida simplesmente com a adoção de programas assistenciais do tipo Bolsa Família. Trata-se de um problema global, ligado à estrutura de poder na sociedade. Para solucioná-lo, portanto, é indispensável usar de um remédio também global. Ele consiste na progressiva introdução de um autêntico regime republicano e democrático entre nós. Ou seja, no respeito integral à supremacia do bem comum do povo ( a res publica romana) sobre o interesse próprio das classes e dos grupos dominantes e seus aliados. Ora, se a finalidade última do exercício do poder político é essa, fica evidente que ao povo, e a ele só, deve ser atribuída uma soberania efetiva e não meramente simbólica, como sempre aconteceu entre nós.

Para alcançar esse desiderato, é preciso transformar a mentalidade dominante, moldada na passiva aceitação do poder oligárquico e capitalista. O que implica um esforço prolongado e metódico de educação cívica.

Concomitantemente, é indispensável introduzir algumas instituições de decisão democrática em nossa organização constitucional. Três delas me parecem essenciais com esse objetivo, proque provocam, além do enfraquecimento progressivo do poder oligárquico, a desejada pedagodia política popular.

A primeira e mais importante consiste em extinguir o poder de controle, pelo oligopólio empresarial, da parte mais desenvolvida dos nossos meios de comunicação de massa. É graças a esse domínio da grande imprensa, do rádio e da televisão, que os grupos oligárquicos defendem, livremente, a sua dominação política e econômica.

O novo governo federal deveria começar, nesse campo, pela apresentação de projetos de lei que deem efetividade às normas constitucionais proibidoras do monopólio e do oligopólio dos meios de comunicação de massa, e que exigem, na programação das emissoras de rádio e televisão, seja dada preferência a finalidades educativas, artísticas e informativas, bem como à promoção da cultura nacional e regional.

A esse respeito, já foram ajuizadas no Supremo Tribunal Federal algumas ações diretas de inconstitucionalidade por omissão. É de se esperar que a nova presidenta, valendo-se do fato de que o Advogado-Geral da União é legalmente “submetido à sua direta, pessoal e imediata supervisão”( Lei Complementar n˚ 73, de 1993, art.3˚, § 1°), dê-lhe instruções precisas para que se manifeste favoravelmente aos pedidos ajuizados. Seria, com efeito, mais um estrondoso vexame se a presidenta eleita repetisse o comportamento do governo Lula, que instruiu a Advocacia-Geral da União a se pronunciar, no Supremo Tribunal Federal, a favor da anistia dos assassinos, torturadores e estupradores do regime militar.

As outras duas medidas institucionais de instauração da democracia entre nós são: 1. A livre utilização, pelo povo, de plebiscitos e referendos, bem como a facilitação da iniciativa popular de projetos de lei e a criação da iniciativa popular de emendas constitucionais. 2. A instituição do referendo revocatório de mandatos eletivos (recall), pelos quais o povo pode destituir livremente aqueles que elegeu, sem necessidade dos processos cavilosos de impeachment.

Salvo no tocante à iniciativa popular de emendas constitucionais, já existem proposições em tramitação no Congresso Nacional a esse respeito, redigidas pelo autor destas linhas e encampadas pelo Conselho Federal da OAB: os Projetos de Lei n˚ 4.718 na Câmara dos Deputados e n˚ 001/2006 no Senado Federal, bem como a proposta de Emenda Constitucional n˚ 26/2006, apresentada pelo senador Sérgio Zambiasi, que permite a iniciativa popular de plebiscitos e referendos.

Mas não sejamos ingênuos. Todos esses mecanismos institucionais abalam a soberania dos grupos oligárquicos e, como é óbvio, sua introdução será por eles combatida de todas as maneiras, sobretudo pela pressão sufocante do poder econômico. Se quisermos avançar nesse terreno minado, é preciso ter pertinácia, organização e competência.

Está posto, aí, o grande desafio a ser enfrentado pelo futuro governo federal. Terá ele coragem e determinação para atuar em favor da democracia e dos direitos humanos, ou preferirá seguir o caminho sinuoso e covarde da permanente conciliação com os donos do poder?

É a pergunta que ora faço à presidenta eleita.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Usinas Hidrelétricas aceleram ‘territorialização corporativa’ da Amazônia

Escrito por Luis Fernando Novoa Garzon no Correio da Cidadania  
 
A análise e o acompanhamento das transformações observáveis ao longo da implementação do Complexo Hidrelétrico do rio Madeira (RO) são cruciais no sentido de testar as metodologias, procedimentos e indicadores que têm sido apresentados como um "novo paradigma" de construção de grandes UHEs na Amazônia, que irá nortear a expansão da fronteira elétrica na região. Durante a fase prévia do licenciamento dos empreendimentos, o conjunto de incertezas, técnica e socialmente identificadas, para a população e o meio ambiente, foi certificado como válido e passível de monitoramento.
 
Na fase de instalação, subseqüentemente, os consórcios obtiveram plena discricionariedade para impor seus cronogramas físico-financeiros, independentemente da execução plena e prévia dos programas compensatórios e mitigatórios.
 
Na região do município de Porto Velho (RO) e adjacências, configurou-se, a partir do início das obras das Usinas Hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio no rio Madeira, a partir de 2008, uma dinâmica social de novo tipo, com descontinuidades intensificadas no espaço e no tempo, com efeitos assimétricos sobre os grupos sociais afetados. Esses efeitos são desproporcionais e diferenciados segundo a posição e o lugar relativo dos grupos sociais em relação à intervenção referida. Quanto mais vinculados ao ciclo do rio e de suas margens, maior a perda e dissipação de poder material e simbólico. Quanto mais instrumentalizados forem em função dos requisitos e do cronograma das duas obras, maior a invisibilidade e descartabilidade dos mesmos, incluindo a força de trabalho direta e indiretamente mobilizada pelas obras, bem como a população que vai engrossando as áreas peri-urbanizadas da cidade anfitriã dos dois mega-projetos.
 
Os danos sócio-econômicos, culturais e ambientais já consubstanciados na instalação do Complexo Hidrelétrico do rio Madeira constituiriam motivo suficiente, houvesse rigor proporcional na aplicação da legislação ambiental ao nível de classificação de risco dos empreendimentos, para a paralisação das obras e a subseqüente revisão não apenas de sua metodologia, cronograma, mas da própria viabilidade ambiental atribuída sob chantagem privada e coerção governamental. Para além das parcas medidas de compensação e mitigação previstas no licenciamento das duas obras, está em jogo nesse caso a plena autonomia conferida aos Consórcios titulares das novas concessões de aproveitamento hidrelétrico na Amazônia, para gerir o que eram antes considerados "bens públicos".
 
Com o intuito de consolidar a participação do setor privado (PSP) nas áreas de infra-estrutura, a ordem unida é a regulamentação desregulamentadora nas três esferas governamentais, bem como em todas as instâncias setoriais, creditícias e fiscalizadoras respectivas (Ministério do Meio Ambiente, IBAMA, Agência Nacional de Águas, Ministério das Minas e Energia, ANEEL, BNDES, TCU). Flexibilidade institucional dirigida para o planejamento territorial corporativo e, subsequentemente, para o rebaixamento ainda maior dos patamares mínimos de direitos sociais e de salvaguardas ambientais.
 
O aplainamento do processo de licenciamento, de concessão e de financiamento desses dois aproveitamentos hidrelétricos no rio Madeira é uma derivação lógica da política de atração de investimentos para o setor de infra-estrutura, o cerne do PAC (Programa de Aceleração de Crescimento), lançado em 2007 e relançado como PAC 2, em 2010. Essa iniciativa, vista de forma superficial, seria tão somente um programa de execução de obras prioritárias, quando na verdade compreende também uma agenda de facilitações regulatórias e creditícias pró-mercado, através de reformas administrativas e setoriais nos órgãos e na legislação ambiental, bem como da reestruturação do BNDES. Essa conjunção materializada na emissão das Licenças Prévias e de Instalação das Usinas do rio Madeira e na viabilização de seus respectivos leilões fez surgir um novo e temerário paradigma de "licenciamento automático"(1). A instalação dessas usinas, na forma como se apresenta, equivale a um salvo-conduto institucional para a reabertura de um novo ciclo de grandes projetos hidrelétricos na Amazônia, em território brasileiro e transfronteiriço.
 
Já instalados os canteiros de obras das duas usinas, impôs-se a verificação de como a precarização e flexibilização de sua regulamentação vêm se refletindo na sua implementação efetiva. Procurou-se, por conseguinte, diante das lacunas processuais oficialmente internalizadas, avaliar a possibilidade mesma de se atestar, nessas condições, consistência e adequação das ações de remanejamento e as medidas de compensação e mitigação dos impactos previstos nas comunidades a montante das UHE de Jirau e Santo Antônio. Como é possível compensar o que nem sequer foi mensurado ou reconhecido como perda ou dano? Governo e empreendedores determinam, a partir das UHEs no rio Madeira, que subjetividades e direitos coletivos são passíveis de compra e venda.
 
Como concessões elétricas traduzem-se em cessões territoriais
 
O maleável regime de concessões do setor elétrico aplicado a grandes aproveitamentos hidrelétricos na Amazônia tem redundado em oficiosos processos de cessão, a grandes conglomerados privados, de porções territoriais estratégicas para o país. Tal como o Projeto Grande Carajás(PA), aprovado em 1982, o Projeto Complexo Madeira é que define a região que lhe cabe. Grandes Projetos de Investimentos (GPIs), ao gerarem espaços em função da máxima eficácia dos investimentos aportados neles, não poderiam deixar de planejar e gerir esses mesmos espaços.
 
Contudo, à diferença das décadas de 70 e 80, quando o regime militar procurava incorporar a Amazônia à estrutura produtiva do centro-sul do país por meio de obras viárias e de incentivos fiscais, a partir dos anos 90 o avanço da fronteira econômica na região passa a ser crescentemente dirigido por cadeias globais de valor. As mediações políticas derivadas de uma rígida divisão inter-regional do trabalho foram sendo substituídas por fórmulas territoriais flexíveis condizentes com as novas estratégias de deslocalização dos investimentos e ajustes espaciais consecutivos. O que não significa ausência de política ou do Estado, e sim seu pleno disciplinamento em coalizões privado-públicas, necessariamente nesta ordem. O que pode ser mais ativo, em termos político-operacionais, que medidas progressivas de liberalização comercial e flexibilização legal, além do empenho de estatais, bancos e fundos públicos e semi-públicos na formação de conglomerados empresariais com raio de atuação no Brasil e/ou a partir dele?
 
O Projeto Complexo Madeira, que se articula a outros projetos de interconexão de infra-estrutura no continente, serve de trampolim para impulsionar uma série de novos mega-projetos na Amazônia. A meta é estruturar e potencializar plataformas e corredores de exportação, com a disponibilização não só de energia hidrelétrica e recursos naturais conexos (terras, jazidas minerais, madeira e biodiversidade), mas da plasticidade territorial que se fizer necessária, ou for convidativa, aos conglomerados privados. Os arranjos empresariais resultantes são concomitantemente eleitos pelo Estado e eletivos das políticas setoriais deste. O novo planejamento territorial em operação na Amazônia paradoxalmente dinamiza nossas vantagens comparativas estáticas, em um processo de acumulação extensiva marcado por especializações regressivas em termos de agregação de valor e inovação tecnológica.
 
O compartilhamento jurisdicional empresas-Estado, da região do alto Madeira, teve início ainda na fase dos estudos ambientais do Complexo hidroelétrico. Procedeu-se em 2007 uma alteração regulamentar dos patamares de suficiência de comprovações técnicas e de compromissos públicos requeridos para atestar a viabilidade ambiental e social das duas usinas. O seu licenciamento a fórceps ensejou o desmanche como um todo do licenciamento ambiental nacional. O próprio órgão licenciador, o IBAMA, sofreu uma intervenção administrativa, em 2007, que além de fragmentar suas funções originais delimitou-as, retirando dele capacidade de vetar projetos considerados de "interesse nacional". Na análise do Estudo de Impacto Ambiental e de suas complementações, a cargo do então Consórcio Furnas-Odebrecht (hoje Santo Antônio Energia), identificamos as seguintes distorções e incongruências:
 
a) Minimização das áreas de impacto direto e indireto com a exclusão do território da Bolívia e das áreas a jusante.
 
b) Anulação da necessidade prévia dos estudos de bacia.
 
c) Adoção de metodologias e critérios de certificação que minimizam e mascaram os danos.
 
d) Definição arbitrária dos Consórcios dos próprios critérios de suficiência ou de insuficiência de estudos, e medidas mitigatórias e compensações decorrentes.
 
e) Aprovação das Licenças Prévias e de Instalação com condicionantes que procuram substituir o vazio de informação e de diagnóstico pelo monitoramento das incertezas, o que significa que os empreendedores adquiriam autonomia para definir os próprios parâmetros da instalação e operação das usinas.
 
Esses vícios de origem no processo de licenciamento das UHEs do rio Madeira reproduziram-se e desdobraram-se no momento de elaboração e de implementação dos Projetos Básicos Ambientais a cargo dos Consórcios Energia Sustentável do Brasil(ESBR) e Santo Antônio Energia (SAESA). Nos dois PBAs consta o princípio de que o empreendedor fica obrigado a recompor as condições de vida e das atividades produtivas na área diretamente afetada pelas obras e pela formação do reservatório. Em tese, a recomposição das atividades e da qualidade de vida, por meio de indenização justa ou do remanejamento, deveria se dar "em condições pelo menos equivalentes às atuais". O Programa de Remanejamento a cargo do Consórcio Santo Antonio Energia, por exemplo, reitera o compromisso de que se ofereça indenização ou processo de realocamento de modo que "todos os afetados deverão ter condições de ser remanejados para uma propriedade pelo menos equivalente" (2).
 
No entanto, não foram prescritos ou previstos indicadores, critérios e metas para que essa obrigação fosse cumprida, ou seja, sobre como seria essa "recomposição", com quais meios, recursos e prazos. O modelo de reassentamento em agrovilas estranhas às tradições comunitárias ribeirinhas, e ainda por cima localizadas em solos inférteis sem acesso ao rio e seus igarapés, constituiu uma via de mão única na "negociação" da realocação da população atingida. Cerceados pela contagem regressiva do despejo, cerca de 85% dos afetados submeteram-se ao instrumento da indenização ou da carta de crédito, proporção averiguada pelo próprio IBAMA(3). O que deveria ser exceção tornou-se regra, em termos de deslocamento compulsório, no decorrer da instalação das UHEs no rio Madeira. Modos de vida amazônicos singulares não deveriam ser levianamente contabilizados e sim protegidos e sustentados por políticas públicas que reconhecessem e valorizassem as múltiplas abordagens coletivas no trato do espaço e do tempo. A indenização exclusivamente monetária é uma amortização sumária dos compromissos sociais formalmente assumidos pelos Consórcios junto à população atingida, uma política oficial de erradicação de dezenas de comunidades ribeirinhas, agora entregues à sua própria sorte em novas frentes irregulares de ocupação urbana e rural.
 
O negligenciamento no cumprimento dos já rebaixados parâmetros sociais e ambientais se refletiu na falta de detalhamento das diretrizes constantes nos PBAs das UHEs de Jirau e Santo Antonio. Essa metodologia de auto-licenciamento depende de combinações nas múltiplas escalas de governo, o que implica em negociações cruzadas, paralelas ou oficiais, no uso das verbas de compensação social e rearranjos das contrapartidas federais, estaduais e municipais. Um complexo intercâmbio de interesses entre grupos econômicos globais e locais e suas representações políticas ocorre sob a conveniente fachada de "fornecimento de energia para o Brasil" e "geração de emprego e renda na região".
 
O processo de desterritorialização levado a cabo por grandes projetos de mineração na Amazônia se articula com aquele produzido pelos projetos hidrelétricos na região. Ambos se retroalimentam, em ordem direta e reversa. No entorno do Complexo Madeira, o processo de desterritorialização e de reterritorialização vai se consumando diligentemente, pelo grau de interpenetração dos Consórcios e conglomerados anexos com os aparelhos governamentais regulamentadores e fiscalizadores.
 
A apropriação do alto Madeira e a definição da forma predominante de seu uso se associa a estratégias simbólicas de universalização da forma tida como a mais "adequada" para utilização daquela territorialidade. A implementação célere e brutal das UHEs de Santo Antônio e Jirau se vale do alicerce objetivo de expropriações sucessivas, promovidas no bojo da formação territorial do estado de Rondônia. E ainda conta com o beneplácito subjetivo de uma população majoritariamente migrante, que, vítima e órfã de um modernização periférica, se dispõe a qualquer sacrifício em nome de seu "repatriamento" a qualquer dinâmica que remeta à centralidade altiva do "progresso", especialmente quando o objeto de sacrifício maior lhe pareça alheio e exterior, como as comunidades tradicionais que vivem ao longo do rio Madeira.
 
O controle e o uso compartilhado das águas e várzeas do rio Madeira pôde proliferar no interregno dos surtos de expansão mercantis. Exatamente por isso nunca foram objeto de políticas públicas que dinamizassem suas potencialidades horizontalizantes, que lhes providenciassem regularização fundiária, créditos preferenciais, programas de extensão de caráter agroecológico e infra-estrutura social. Depois de inserido no mapa dos grandes negócios, agentes econômicos e as arenas estatais por eles manejadas, o rio Madeira é estampado como providencial estoque/escoadouro de energia, commodity basilar, porque insumo das demais commodities que têm definido o ritmo de crescimento e o perfil produtivo do país.
 
Madeira: restabelecer a controvérsia e o contraponto
 
Podemos atestar que a defasagem entre os direitos e os interesses da população local e o processo de licenciamento e implementação das UHEs de Santo Antônio e Jirau no rio Madeira foi voluntária e premeditadamente construída pelas empresas concessionárias, com anuência e colaboração do poder público.
 
Como bônus extra, os Consórcios Santo Antônio Energia (SAESA) e Energia Sustentável do Brasil (ESBR) podem vender 100% da energia gerada antes dos prazos previstos contratualmente (dezembro de 2012 e março de 2013, respectivamente). Os dois consórcios pretendem antecipar a geração em até 11 meses por isso e contam com a benevolência da ANEEL e do MME para tanto. Alucinados cronogramas de execução das obras são a contraparte da ausência de cronogramas físico-financeiros dos programas de compensação e de mitigação, da mais completa negligência para com a população que vive ao longo do rio Madeira e com seu meio ambiente. Se nem sequer as condicionantes da Licença Prévia foram cumpridas, como acenar com a emissão antecipada da Licença de Operação, sem que se consolidem mínimas salvaguardas sociais e ambientais?
 
Na direção contrária, o procedimento democrático elementar, frente ao conjunto de evidências de descumprimento flagrante de compromissos legais por parte dos Consórcios liderados pela Odebrecht e pela Suez, seria a suspensão da Licença da Instalação das Usinas de Santo Antônio e Jirau e o estabelecimento de um balanço rigoroso das irregularidades cometidas. Existisse um Ministério de Meio Ambiente com efetividade similar ao de Minas e Energia, ou um Poder Judiciário desincumbido de blindagens casuísticas, esta seria a única diretiva cabível diante de mais um desastre social e ambiental em curso na Amazônia.
 
Em paralelo e procurando explicitar toda a extensão dos danos já verificáveis produzidos por essas obras incondicionadas, propomos a criação de uma Comissão de investigação, composta por especialistas, representantes do Ministério Público Federal, dos movimentos sociais e da população atingida, para fornecer um quadro fidedigno da desestruturação social e ambiental que se dá na região do rio Madeira. Iniciativa que procurará colocar em pauta a revisão do licenciamento ambiental das duas usinas projetadas, bem com a rediscussão do projeto Complexo Madeira como um todo.
 
Seria tarefa prioritária dessa Comissão, em especial dos grupos de pesquisa universitários adjuntos, explicitar o novo modelo de investimento e de financiamento aplicado à construção das UHEs de Santo Antônio e Jirau, identificando atores-chave, suas metodologias obscuras e truculentas, de modo a possibilitar a responsabilização e co-responsabilização dos mesmos, em particular do BNDES.
 
É crucial que se exponha a célere territorialização corporativa de que é objeto a sub-região protocolarmente denominada "Sudoeste da Amazônia", no Plano Amazônia Sustentável(PAS), assim como as formas de atualização do bloco de poder inter-escalar que implicam em novas fórmulas hegemônicas. Em contraponto, é preciso demarcar as territorializações ribeirinhas, indígenas e camponesas resilientes, e também as pontes possíveis com dinâmicas disruptivas de base urbana. A questão central aqui colocada é: haverá um "nós" denso e representativo para evocar o significado dessa renúncia, renúncia ao Madeira, ao Xingu, ao Tapajós e demais rios amazônicos, a tudo que aflora, circula, brota e se multiplica com seus fluxos?
 
Luis Fernando Novoa Garzon é professor da Universidade Federal de Rondônia, membro da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais e doutorando em Planejamento Urbano e Regional (IPPUR-UFRJ). Contato: l.novoa@uol.com.brEste endereço de e-mail está protegido contra spam bots, pelo que o Javascript terá de estar activado para poder visualizar o endereço de email
 
Notas:
 
1) GARZON, L., F. Novoa. O licenciamento automático dos grandes projetos de infra-estrutura no Brasil: o caso das usinas no rio Madeira. Revista Universidade&Sociedade nº 42, p.37 a 58, ANDES, Brasília, junho de 2008
2) PBA da UHE de Santo Antônio, 2008 seção 22 p.5.
3) Parecer 029/2010. COHID/CGENE/DILIC/IBAMA, p.11

Conto de Natal – Maria e José na Palestina em 2010



por James Petras

Os tempos eram duros para José e Maria. A bolha imobiliária explodira. O desemprego aumentava entre trabalhadores da construção civil. Não havia trabalho, nem mesmo para um carpinteiro qualificado. Os colonatos ainda estavam a ser construídos, financiados principalmente pelo dinheiro judeu da América, contribuições de especuladores de Wall Street e donos de antros de jogo.
"Bem", pensou José, "temos algumas ovelhas e oliveiras e Maria cria galinhas". Mas José preocupava-se, "queijo e azeitonas não chegam para alimentar um rapaz em crescimento. Maria vai dar à luz o nosso filho um dia destes". Os seus sonhos profetizavam um rapaz robusto a trabalhar ao seu lado… multiplicando pães e peixes.
Os colonos desprezavam José. Este raramente ia à sinagoga, e nas festividades chegava tarde para fugir à dízima. A sua modesta casa estava situada numa ravina próxima, com água duma ribeira que corria o ano inteiro. Era mesmo um local de eleição para a expansão dos colonatos. Por isso quando José se atrasou no pagamento do imposto predial, os colonos apropriaram-se da casa dele, despejaram José e Maria à força e ofereceram-lhes bilhetes só de ida para Jerusalém.
José, nascido e criado naquelas colinas áridas, resistiu e feriu uns tantos colonos com os seus punhos calejados pelo trabalho. Mas acabou abatido sobre a sua cama nupcial, debaixo da oliveira, num desespero total.
Maria, muito mais nova, sentia os movimentos do bebê. A sua hora estava a chegar.
"Temos que encontrar um abrigo, José, temos que sair daqui… não há tempo para vinganças", implorou.
José, que acreditava no "olho por olho" dos profetas do Antigo Testamento, concordou contrariado.
E foi assim que José vendeu as ovelhas, as galinhas e outros pertences a um vizinho árabe e comprou um burro e uma carroça. Carregou o colchão, algumas roupas, queijo, azeitonas e ovos e partiram para a Cidade Santa.
O trilho era pedregoso e cheio de buracos. Maria encolhia-se em cada sacudidela; receava que o bebê se ressentisse. Pior, estavam na estrada para os palestinos, com postos de controlo militares por toda a parte. Ninguém tinha avisado José que, enquanto judeu, podia ter-se metido por uma estrada lisa pavimentada – proibida aos árabes.
Na primeira barragem José viu uma longa fila de árabes à espera. Apontando para a mulher muito grávida, José perguntou aos palestinos, meio em árabe, meio em hebreu, se podiam continuar. Abriram uma clareira e o casal avançou.
Um jovem soldado apontou a espingarda e disse a Maria e a José para se apearem da carroça. José desceu e apontou para a barriga da mulher. O soldado deu meia volta e virou-se para os seus camaradas. "Este árabe velho engravida a rapariga que comprou por meia dúzia de ovelhas e agora quer passar".
José, vermelho de raiva, gritou num hebreu grosseiro, "Eu sou judeu. Mas ao contrário de vocês… respeito às mulheres grávidas".
O soldado empurrou José com a espingarda e mandou-o recuar: "És pior do que um árabe – és um velho judeu que violas raparigas árabes".
Maria, assustada com o caminho que as coisas estavam a tomar, virou-se para o marido e gritou, "Pára, José, ou ele dispara e o nosso bebê vai nascer órfão".
Com grande dificuldade, Maria desceu da carroça. Apareceu um oficial do posto da guarda, a chamar por uma colega, "Oh Judi, apalpa-a por baixo do vestido, ela pode ter bombas escondidas".
"Que se passa? Já não gostas de ser tu a apalpá-las?" respondeu Judith num hebreu com sotaque de Brooklyn. Enquanto os soldados discutiam, Maria apoiou-se no ombro de José. Por fim, os soldados chegaram a um acordo.
"Levanta o vestido e o que tens por baixo", ordenou Judith. Maria ficou branca de vergonha. José olhava para a espingarda desmoralizado. Os soldados riam-se e apontavam para os peitos inchados de Maria, gracejando sobre um terrorista ainda não nascido com mãos árabes e cérebro judeu.
José e Maria continuaram a caminho da Cidade Santa. Foram freqüentes vezes detidos nos postos de controlo durante a caminhada. Sofriam sempre mais um atraso, mais indignidades e mais insultos gratuitos proferidos por sefarditas e asquenazes, homens e mulheres, leigos e religiosos – todos soldados do povo Eleito.
Já era quase noite quando Maria e José chegaram finalmente ao Muro. Os portões já estavam fechados. Maria chorava em pânico, "José, sinto que o bebê está a chegar. Por favor, arranja qualquer coisa depressa".
José entrou em pânico. Viu as luzes duma pequena aldeia ali ao pé e, deixando Maria na carroça, correu para a casa mais próxima e bateu à porta com força. Uma mulher palestina entreabriu a porta e espreitou para a cara escura e agitada de José. "Quem és tu? O que é que queres?"
"Sou José, carpinteiro das colinas do Hebron. A minha mulher está quase a dar à luz e preciso de um abrigo para proteger Maria e o bebê". Apontando para Maria na carroça do burro, José implorava na sua estranha mistura de hebreu e árabe.
"Bem, falas como um judeu mas pareces mesmo um árabe", disse a mulher palestina a rir enquanto o acompanhava até a carroça.
A cara de Maria estava contorcida de dores e de medo; as contrações estavam a ser mais freqüentes e intensas.
A mulher disse a José que levasse a carroça de volta para um estábulo onde se guardavam as ovelhas e as galinhas. Logo que entraram, Maria gritou de dor e a palestina, a que entretanto se juntara uma parteira vizinha, ajudou rapidamente a jovem mãe a deitar-se numa cama de palha.
E assim nasceu a criança, enquanto José assistia cheio de temor.
Aconteceu que passavam por ali alguns pastores, que regressavam do campo, e ouviram uma mistura de choro de bebê e de gritos de alegria e se apressaram a ir até ao estábulo levando as suas espingardas e leite fresco de cabra, sem saber se iam encontrar amigos ou inimigos, judeus ou árabes. Quando entraram no estábulo e depararam com a mãe e o menino, puseram de lado as armas e ofereceram o leite a Maria que lhes agradeceu tanto em hebreu como em árabe.
E os pastores ficaram estupefatos e pensaram: Quem seria aquela gente estranha, um pobre casal judeu, que chegara em paz com uma carroça com inscrições árabes?
As novas espalharam-se rapidamente sobre o estranho nascimento duma criança judia mesmo junto ao Muro, num estábulo palestino. Apareceram muitos vizinhos que contemplavam Maria, o menino e José.
Entretanto, soldados israelenses, equipados com óculos de visão noturna, reportaram das suas torres de vigia que cobriam a vizinhança palestina: "Os árabes estão a reunir-se mesmo junto ao Muro, num estábulo, à luz das velas".
Abriram-se os portões por baixo das torres de vigia e de lá saíram caminhões blindados com luzes brilhantes, seguidos por soldados armados até aos dentes que cercaram o estábulo, os aldeões reunidos e a casa da mulher palestina. Um altofalante disparou, "Saiam cá para fora com as mãos no ar ou disparamos". Saíram todos do estábulo, juntamente com José, que deu um passo em frente de braços virados para o céu e falou, "A minha mulher Maria não pode obedecer às vossas ordens. Está a amamentar o menino Jesus".


Tradução de Margarida Ferreira.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/.

O narcotráfico e o aumento da violência social no México


201210_mexico O Diário - [Andrés Ávila Armella, dirigente comunista mexicano] 

O tema que serve de título foi amplamente referido em diferentes meios de counicação: diários, revistas, programas de rádio e televisão, além de tema de debate entre servidores do Estado; no entanto, é pouco o que até agora nós o que estamos organizados na esquerda pudemos opinar.
 Talvez porque não consideremos que seja este o problema principal dos explorados do país, talvez porque este é um problema do qual nos consideramos alheios, ou até, por o assunto estar permanentemente no discurso oficial.
Mas neste momento é inegável que existe no nosso país uma situação na qual o narcotráfico e o aumento da violência social a ele ligada alcançaram um nível tal que é difícil continuar a eludir a discussão; mais, é importante que utilizemos as nossas próprias ferramentas analíticas para o explicar, e no meu caso farei uso da melhor ferramenta analítica que tenho, o marxismo.
Por outro lado, há que aclarar que escrevo este escrito como se fosse um ensaio porque considero que a informação jornalística sobre os cárceres da droga, as suas rivalidades, operações e composição não é confiável. Na maioria dos casos trata-se de relatórios e filtrações de carácter policial, rumores e frases dos próprios envolvidos que resultam, ao fim de contas, como confusos, contraditórios e enganadores.
O meu propósito será sublinhar alguns aspectos estruturais e essenciais para a compreensão do problema, prescindindo por agora da análise concreta do tão falado negócio.

Narcotráfico, um negócio essencialmente capitalista

Teremos de assumir que se as drogas, a sua produção, distribuição e consumo, contam com algumas peculiaridades diferentes de muitas outras mercadorias, é muito importante assumir que na generalidade a droga é uma mercadoria como qualquer outra, e que as leis que regem a acumulação de capital como resultado da sua produção são, na generalidade, as mesmas que regem o resto da economia capitalista.
A mercadoria droga, seja ela qual for, tem um valor de uso porque há milhões de pessoas que consideram que lhes serve para alguma coisa, para satisfazer o que eles consideram uma necessidade, e tem valor de troca porque para a sua produção se requer trabalho humano; quando falamos do negócio do narcotráfico referimo-nos à produção, distribuição e consumo das drogas ilegais, que se realiza sob formas capitalistas, pelo que fica excluído desta análise qualquer tipo de produção caseira ou destinada a consumo próprio, o que vamos tratar é a droga como mercadoria.
Assim, teremos que identificar que os elementos necessários para a aparição deste fenómeno são por um lado os proprietários de meios de produção necessários para a produção desta mercadoria, e por outro, os proletários que trabalham para os ditos proprietários a troco de um salário.
Como sabemos, praticamente todas as drogas que hoje são um negócio tão rentável, só são possíveis de obter a partir de um processo de trabalho, não se encontram em forma pura na natureza, é necessário reunir uma certa quantidade de matérias-primas, instrumentos de trabalho e maquinaria (mais, ou menos, rudimentar), para a sua produção. São trabalhadores assalariados os que através de diversos procedimentos combinam algumas substâncias e as embalam acrescentando um novo valor às mesmas. Naturalmente, os ditos trabalhadores não recebem o pagamento correspondente ao valor do seu trabalho, mas somente um salário pela venda da sua força de trabalho, pois de outra forma não haveria mais-valia nem este negócio poderia proporcionar o montante de lucros que propícia. Além dos operários da droga, cada empresário capitalista da droga emprega outras pessoas que realizarão um qualquer trabalho destinado às suas mercadorias: empregados de limpeza, distribuidores, empregados de transporte e, os mais notórios, empregados armados cuja finalidade é proteger a mercadoria, o dinheiro e fazer o que o patrão lhes mande e considere necessário para executar, amedrontar ou defender-se de alguém para realização da sua mercadoria. Além disso, são necessários empregados de confiança, cujo principal trabalho é intelectual, destinados à administração, contabilidade, engenharia, etc..
Com nas restantes empresas capitalistas os salários não são iguais para todos os empregados, o seu preço é determinado por um lado pelo valor da força de trabalho, e por outro pelas condições sociais de contratação da mesma, por exemplo a oferta e a procura laborais de determinado tipo de trabalho.
Partamos então do pressuposto lógico que um capitalista da droga é em princípio proprietário de uma quantidade de dinheiro D, com que comprará meios de produção Mp e Força de Trabalho, ft, para obter mais-valia Pv, uma mercadoria com valor incrementado M' e, finalmente, dinheiro incrementado, D'. Nem mais nem menos que a fórmula geral da acumulação capitalistas:
D - M Pv - M' - D'
Ora bem, o que é que leva um homem a investir o seu dinheiro em meios de produção e força de trabalho destinados a produzir droga? O mesmo que leva um qualquer capitalista a investir no que quer que seja, a sede de acumulação e de riqueza, e a possibilidade concreta de as obter neste negócio, pois de outra forma não o faria. Por outro lado podemos perguntar, o que é que leva uma pessoa a vender a sua força de trabalho a um capitalista da droga? O mesmo que o obriga a vendê-la a um qualquer capitalista, a necessidade de obter os meios de vida indispensáveis. Visto de maneira conjunta podemos dizer que num espaço de tempo e espaço, coincide o proprietário dos meios de produção da droga um homem juridicamente livre cujas capacidades de trabalho podem ser postas à disposição daquele. Esta coincidência flui por todo o país dado o alto índice de desemprego e do chamado trabalho informal; acontece que uma grande quantidade de pessoas não encontra onde vender a sua força de trabalho ou só consegue vendê-la por pequenos períodos de tempo, ou melhor, as condições em que a vende são insuficientes para a satisfação das suas necessidades.
O que foi dito anteriormente não significa que as condições de trabalho nas narco-empresas sejam boas, antes pelo contrário, implicam muitos riscos, obviamente não existe a possibilidade de contratação colectiva e, por isso, os trabalhadores não gozam de qualquer direito laboral nem sindical, talvez em alguns casos o salário seja melhor, mas este é inevitavelmente instável. Esta situação diz-nos da lamentável situação em que se encontra o proletariado mexicano, pelo que pode pensar-se que ser trabalhador de uma narco-empresa é comparativamente melhor que no resto da economia.
Na óptica do capitalista da droga o assunto é mais ou menos igual, se se investe num negócio é porque é rentável para esses capitalistas, seja a droga o seu principal investimento ou um secundário, o facto é que encontra no tráfico de droga uma oportunidade para a acumulação de capital, à qual não está disposto a renunciar por qualquer critério moral relacionado com as consequências do consumo da sua mercadoria; ao fim de contas, os capitalistas das empresas legais também não se detêm por critérios morais, mesmo que o seu negócio sejam as armas, as drogas legais, contaminantes ou qualquer outro produto com algum efeito nocivo para as pessoas, o meio ambiente ou a sociedade.
Os trabalhadores das narco-empresas podem ter adquirido alguns conhecimentos e habilitações necessários para o seu trabalho nas mesmas, mas no limite eles são formados tal como o restante proletariado em diferentes graus de conhecimentos gerais e diferentes tipos de especialização; naturalmente que uma narco-empresa emprega pessoas com experiência de empresas farmacêuticas e laboratórios, engenheiros, agrónomos, químicos, contabilistas, advogados, transportadores, etc.. E, particularmente no caso dos sicários e guardas, emprega pessoas formadas no manuseamento de armas tanto na polícia como no exército; assim como outros vendem a sua capacidade de trabalhar ao patrão, estes últimos vendem a sua capacidade de matar e instrução, muitas vezes financiada por todos os mexicanos, dado que somos nós quem financia o seu treino e experiência nas instituições policiais e militares. De que outra forma poderia trabalhar alguém que apenas está capacitado para disparar uma arma se esta é a sua capacidade de trabalhomais rentável?
Outro elemento que é indispensável ressaltar é que não há motivos razoáveis para pensar que os empresários da droga não são além disso empresários legais, nem muito menos para pensar que não há empresários originalmente legais que não estão a investir capital no negócio da droga. Embora com muita frequência os meios de comunicação recorrem a descrições fabuladas de narcotraficantes, caracterizando-os sempre como muito diferentes dos empresários legais, o facto é que apesar de existirem neste negócio personagens pitorescas e peculiares tal não significa minimamente que seja essa a generalidade. Os media também falam da infiltração do narco nas empresas legais, mas nunca escrevem nada sobre a infiltração das empresas legais no narco. Em geral, os grandes capitalistas costumam ter um grande investimento principal num qualquer ramo industrial ou comercial, mas ao mesmo tempo mantêm investimentos noutros ramos, ou melhor, fazem associações de capitalistas entre capitais oriundos de diferentes sectores.
Isto acontece sobretudo porque ao gerarem-se lucros na sua forma de dinheiro, nem sempre podem ser reinvestidos como capital no mesmo negócio, sobretudo quando as condições de mercado o limitam, pelo se torna necessário para o capitalista procurar outros negócios onde investir o seu capital. Portanto, não será de estranhar que um empresário legal que obtém lucros num qualquer negócio e cujo mercado se encontra já no limite, trate de evitar o decréscimo da sua quota de lucro colocando capital num ramo mais dinâmico da economia e no qual obtém lucros importantes. Quem ainda pense que os capitalistas têm uma moral escrupulosa dirá que, apesar de tudo, não seriam capazes de investir no negócio da droga, mas para os que amparados no marxismo pensam que não é a moral mas a sede de lucros o que motiva o capitalista a investir, parece-nos bem lógico que assim suceda.
É igualmente sabido que para elevar os lucros de uma empresa, neste caso de uma narco-empresa, é conveniente controlar a maior quantidade de cadeias produtivas relacionadas com ela e aí se expandir. É claro que para o negócio na droga não se utilizam apenas mercadorias ilegais, mas em geral utilizam-se muitas mercadorias legais, quer como meios de produção, matérias-primas, e factores de produção de diferente índole, pelo que necessariamente as narco-empresas estão ligadas e associadas com a economia legal e muitos níveis.
Convirá aos parceiros das narco-empresas que estas desapareçam? De modo algum, mas convém-lhes controlá-las.

O narco e a política

Lenine explicava que as relações políticas são, essencialmente, uma expressão condensada das relações económicas. Esta premissa ajudar-nos-á a compreender porque é que a vida política do país, e particularmente a política burguesa, aparece cada vez mais frequentemente nas mãos dos senhores da droga.
O poder político só por si não se mantém num Estado capitalista, ele é manobrado e determinado principalmente pela classe dominante, a burguesia.
Como pode observar-se, o poder da burguesia não se explica por definição legal, não que a constituição política do país o diga, mas é inevitável que sendo a burguesia quem detém o controlo da economia, é ela mesma quem esta em condições de controlar a política. A forma como a burguesia faz política é frequentemente de forma velada, e só nalguns casos o faz de forma clara, isto é, vale-se da burocracia política para se fazer representar nos órgãos do governo e nas diferentes instâncias do Estado. Poderíamos elaborar uma lista interminável de mecanismos de como isto se faz, que vão desde a formação ideológica até à chantagem e ao suborno. O caso mais típico é nos processos eleitorais, onde os partidos e candidatos necessitam de dinheiro para as suas campanhas e, logicamente, obtém maior financiamento quem consiga ser patrocinado pelo mais rico, enquanto, por sua vez, os empresários não oferecem o seu dinheiro, mas investem-no, pelo que por trás de cadafinanciamento privado existem necessariamente acordos de protecção e de facilidades que vão da política à economia e vice-versa. Por que é que então temos de estranhar que os empresários da droga se comportem como o resto da sua classe?
Assim, a ingerência dos capitalistas da droga na política é o resultado da sua posição económica, do controlo que têm sobre uma série de cadeias produtivas; desta forma, através das suas relações e posição política conseguem estabilizar a sua posição.
Assim podemos ver que a ingerência dos narco-empresários na política burguesa é mais forte onde são eles quem tem maior controlo sobre os processos produtivos e comerciais de uma região determinada, e menor onde o seu negócio não seja significativo para economia local, embora em todo o caso a política continue a ser controlada pelos capitalistas de sempre.
Por isso, a submissão dos políticos aos narco não é na essência um fenómeno diferente do da subordinação dos políticos à burguesia, é antes o mesmo fenómeno; é uma condicionante da política burguesa e de como se faz política dentro de um Estado burguês. A prática impõe-se a qualquer princípio político ou ético, e um político ganhador é o que sabe servir os seus amos, os capitalistas; não se trata de uma eleição nem de uma inclinação moral mas de uma coisa prática, se queres ganhar uma eleição e governar com apoio deves muito simplesmente manter-te aliado dos que são donos das condições materiais para o fazer, e numa região são os banqueiros, noutra os empresários de calçado, noutra os empresários da mineração e noutra os narco-empresários, e não existe aqui nenhuma diferença. Visto de outra forma: como poderia um presidente de câmara de um país capitalista como o México, inimizar-se com o dono da principal fábrica, loja e hotéis do município só porque é dono de um outro negócio que explica a existência destes?
Naturalmente estaria metido num beco sem saída. Na generalidade o narco-empresário nem sequer necessita de chegar à violência explícita para ter o presidente do município nas suas mãos, pois a sua posição económica explica o porquê da sua capacidade de exercer a violência.
Com isto não estou a desculpar nenhum eleito pelos seus actos de corrupção, mas a estabelecer que a corrupção é inerente à política burguesa porque disfarça permanentemente os interesses privados, fazendo-os passar por públicos, ou dito de outra maneira, não há diferença substancial entre quem governa em nome de um país para favorecer os interesses dos banqueiros norte-americanos ou das grandes transnacionais e quem governa em nome do povo para favorecer os narco-empresários. Na realidade, todos estes políticos são talhados da mesma peça, e quem está disposto a vender-se aos interesses do capital estrangeiro ou dos banqueiros, logicamente estará disposto a vender-se aos interesses do narco-capital e vice-versa. Poderá perguntar-se, e se houver alguém que não estiver disposto? Simples e simplesmente não está inserido na política burguesa, seja por cepticismo, por consciência de classe, ou porque foi violentamente afastado dela.
O papel da violênciaPoder económico e violência são dois factores que ao longo da história têm caminhado a par, não é privativo do narcotráfico nem tampouco é privativo da sociedade burguesa, ainda que certamente adquira características particulares a que faremos referência.
A burguesia valeu-se da violência em grande e pequena escala para estender e preservar o seu domínio, e fá-lo geralmente através do Estado burguês, através do seu aparelho repressivo assegura-se de que ninguém se interpõe no seu caminho de acumulação e quem o tentar é violentado por diversas formas. Desde o seu início, o capitalismo avançou violentamente sobre civilizações inteiras, açambarcando territórios, rotas comerciais, recursos naturais, despojando comunidades agrárias, encontrando as condições necessárias para que os donos dos meios de produção tivessem à sua disposição homens com capacidade de venda da sua força de trabalho. A barbárie, a morte e a destruição que o capitalismo deixou na sua passagem não é nada inferior à praticada pelos cartéis da droga, diria mesmo que esta é o reflexo daquela.
A peculiaridade da violência exercida pelas narco-empresas é que esta realiza-se fora do da formalidade estabelecida pela normatividade burguesa, pois, ao não ser reconhecida a sua existência jurídica, as narco-empresas não podem regular as relações entre elas nem com os outros através dos tribunais e outras instâncias de «execução da justiça», pelo que praticam a violência por conta própria, através dos mecanismos que têm ao seu alcance. Assim, a execução, ainda que não seja o único mecanismo por eles utilizado, é por excelência o modo como os narco-empresários dirimem os conflitos entre eles e dentro da sua própria empresa.
Este é um elemento que tem estado presente desde o início do negócio, tal como acontece no contrabando em geral mesmo antes de se movimentar os actuais montantes de dinheiro e de capital à sua volta, presente desde que o narcotráfico se apresentava apenas em pequenos bandos de contrabandistas que, por exemplo, passavam marijuana para os Estados Unidos nos guarda-lamas dos carros, como diz a lenda.
Mas esta violência a que nos referimos é também uma violência de classe, é a violência burguesa, pois o seu uso está reservado às pessoas explicitamente autorizadas pelos narco-empresários; não corresponde a uma decisão individual dos seus empregados decidir quando deve ser empregue, mas são os próprios donos quem a instrumenta e dirige, tendo na maioria das vezes por vítimas os próprios empregados, e o seu móbil é facilitar o processo de acumulação de capital. É certo que podemos encontrar casos em que influem factores pessoais e de outra natureza, mas a generalidade da violência praticada pelos cartéis da droga tem como finalidade apoiar objectivos capitalistas, isto é, desfazerem-se dos que criam obstáculos ao processo de acumulação.
De igual modo, temos de dizer que o aumento da capacidade de exercício da violência dos narco-empresários se deve principalmente ao aumento do seu poder económico e à extensão da sua influência económica. É difícil saber se são agora mais violentos do que o eram antes, o que é certo é que o aumento da sua capacidade económica aumentou a sua capacidade de exercício da violência, ou dito de outra maneira, a sua capacidade e exercício da violência aumenta ao mesmo tempo e ao mesmo ritmo do seu capital.
Para os que nunca foram burgueses custa compreender por que razão os narco-empresários, se já têm tanto dinheiro e poder, se agarram ferreamente e desta maneira a arrebatar aos outros narco-empresários o seu negócio. Não poderiam conformar-se com o que têm e andarem em paz uns com os outros?
Mas a paz e a guerra fazem parte de um todo, e quanto menos espaços livres de narcotráfico por conquistar houver, mais crescerá a rivalidade e a violência entre os blocos ou grupos rivais, porque a consciência capitalista caracteriza-se precisamente por procurar sempre mais. Além disso, a tendência geral do capital é para a sua concentração e centralização e o negócio da droga não é excepção à regra. De igual modo, a tendência monopolista do capital conduz ao confronto violento entre os blocos de capitalistas. Se isto aconteceu à escala mundial, não tem nada de estranho que também suceda neste caso.
Mas é possível a paz entre os bandos de narcotraficantes? É-o tanto quanto é possível a paz entre os blocos capitalistas a nível mundial, só transitoriamente, e quando um bloco eminentemente dominante consegue agrupar à sua volta os demais e estes reconhecem a supremacia daquele; tal como as potencias capitalistas reconheceram a primazia dos Estados Unidos, de tal forma que a violência se encontra em estado latente e as expressões mais sanguinárias são contra grupos ou Estados mais pequenos, com menos poder e cuja capacidade militar é completamente díspar. Assim, pode chegar uma situação em que uma qualquer aliança de narco-empresários hegemonizem os restantes e só utilizem a violência de forma mais isolada contra pequenos grupos que se recusem a aceitá-los, ou até que se forme um novo bloco capaz de disputar a hegemonia.
Até aqui está claro que a violência foi um instrumento historicamente utilizado pela burguesia para reprimir todos os que se interpuseram entre eles e o seu objectivo máximo; a acumulação de capital é exercida por cada capitalista com os meios e os métodos que tem ao seu alcance; os narco-empresários desenvolveram os seus próprios métodos de exercício da violência. Mas, o que é que se passa com as expressões aparentemente irracionais de violência a que temos assistido nos últimos anos?
Também aqui podemos tropeçar com a armadilha colocada pelos aparelhos ideológicos do Estado, que nos têm dito que as referidas expressões irracionais de violência provêm do que chamam «o crime organizado». Será verdade? Do meu ponto de vista a dúvida é legítima, pois se é certo que há expressões violentas que parecem estar relacionadas com ajustes de contas, disputas de mercados, etc., existem outros acontecimentos que não se enquadram nesta suposição.
Um exemplo muito importante foi o que aconteceu durante a celebração do grito de independência, em 15 de Setembro de 2008, na cidade de Morelia Michoacán, quando rebentaram duas granadas no meio da população que assistia à comemoração. O governo atribuiu imediatamente as culpas do facto às organizações de narcotraficantes, e ordenou o aumento da presença do militar no Estado, fazendo barreiras indiscriminadamente, e fazendo o patrulhamento de estradas, aldeias e cidades por uma imensidão de militares.
Não se tendo resolvido nada, levantam-se algumas questões. Que ganhará uma narco-empresa em fazer explodir duas granadas numa praça pública onde não há qualquer objectivo lógico para acrescentar o seu capital? Quem é que beneficiou com este acontecimento?
O incidente foi precedido de dois anos de constante incentivo do governo de Calderón ao exército, que foi tirado dos quartéis para o desempenho de funções próprias da polícia. Desde que chegou ao poder, Filipe Calderón procurou no exército o seu principal apoio, e encarregou-se de o trazer para as ruas, aumentou o seu orçamento e elevou-o à única instituição honesta e com capacidade para garantir a segurança dos mexicanos. Se compreendermos que o exército é o pilar dos aparelhos repressivos do Estado, e que a sua principal função tem sido a de zelar pelos interesses da burguesia, não estranharemos que um presidente tão impopular, que ganhou a presidência em eleições fraudulentas e acelerou no seu governo a tomada de medidas antipopulares, tenha procurado o apoio seguro do exército.
Assim, as expressões irracionais de violência não vieram apenas do «crime organizado», mas também vieram do próprio exército e dos corpos de polícia que se dedicaram à violação sistemática das garantias individuais e que chegaram, inclusive, a balear famílias inteiras por supostamente não terem respeitado uma ordem de «alto» numa qualquer barreira.
Mas voltemos ao que aconteceu em Morelia. Foi lógico? Na perspectiva de quem? Seja dito que em alguns momentos a violência é exercida pela burguesia com o objectivo de daí tirar benefícios individuais, mas às vezes ela exerce a violência como classe organizada para o seu favorecimento geral. De uma forma ou doutra, directamente a violência não gera valor nem mais-valia, mas pode servir para favorecer o surgimento de condições de acumulação de capital.
Assim, quando a burguesia como classe organizada utiliza a violência, esta aparece sob a forma de violência pública, e quando o faz por sua conta aparece como violência privada. Na primeira sai beneficiada a classe capitalista em geral, e a segunda só quem a exerceu. Em geral, a violência pública é um assunto de Estado como também o é a administração e regulação da violência privada. O que aconteceu em Morelia foi um acto de violência pública porque beneficiou o Estado, e portanto a classe dominante em geral, pelo que é difícil pensar que se tratou de um exercício privado da violência.
No entanto, não nos encontramos em condições de fazer uma peritagem ou uma investigação que possa descobrir o que realmente aconteceu naquele dia, mas podemos saber quem saiu beneficiado com ele: o Estado, o governo de Calderón, o exército e o bloco hegemónico da classe dominante.
Referi o caso das granadas em Morelia pelo seu significativo resultado, mas ao mesmo tempo podemos falar do desenvolvimento e protagonismo dos grupos de sicários, supostamente ao serviço das narco-empresas. Aqui, o curioso é que muitas das suas operações também não parecem corresponder com o exercício da violência privada, isto é parecem não ter como objectivo conquistar um mercado, acertar contas, desfazer-se de um rival, etc. – refiro-me à execução de pessoas que nada têm a ver com o negócio, intimidações, extorsões, assassínios de artistas, etc. Para quê tanta violência? Será verdade que estes grupos de sicários são guardas privados de alguma narco-empresa?
O que os media dizem não é suficiente para acreditar nisso.
A história recente da América Latina mostra-nos uma possibilidade. Nalgumas ocasiões as narco-empresas criam guardas privadas para exercer a violência, que para eles é dispendiosa mas de alguma forma é lucrativa; mas por vezes, também acontece as narco-empresas terem necessidade de financiar grupos de sicários e, neste caso, os sicários não são um instrumento do narcotráfico mas um objectivo. Isto é, o Estado precisa de um certo tipo de violência para favorecimento da classe dominante, mas como não pode financiá-los nem lhes pode dar abertamente cobertura, permite que esse grupo, treinado e patrocinado por eles, se auto-financie através de todas as facilidades que lhe dá para o negócio da droga. Isto aconteceu, por exemplo com os «contra» na Nicarágua e acontece com os grupos paramilitares na Colômbia, como as tristemente célebres Autodefesas Unidas da Colômbia. O objectivo destes grupos não é propriamente traficar droga, mas o narconegócio permite-lhes
exercer a violência política, que é principalmente dirigida ao combate das organizações e posições opostas aos desígnios do capital; no caso dos contras, o combate era contra o governo sandinista e no caso do paramilitarismo colombiano para conter a insurreição com a repressão indiscriminada e irracional não só contra as bases de apoio tanto das FARC-EP como do ELN, mas também das organizações sociais, líderes sindicais e opositores em geral.
No México estes grupos de sicários não se fizeram notar como grupos anti-insurreccionais, embora se saiba que alguns estão treinados para isso, mas também não estamos livres, de sicários que se reivindiquem como parte de uma organização de sicários ou de «narcotraficantes», e tenham ameaçado ou de alguma maneira violentado lutadores sociais. Um caso conhecido foi, por exemplo, o assassínio do comandante «Ramiro» do ERPI que, antes de ser executado, advertiu que estavam a ser fustigados por este tipo de grupos na região de «Tierra Caliente» do Estado de Guerrero.
Se por ora não podemos assegurar que estes grupos de sicários têm como principal função a contra-insurreição, podemos no entanto dizer que é muito provável que estejam em última instância destinados a isso, e também podemos assegurar que o seu comportamento teve como principal beneficiário o governo Calderón e instituições repressivas como o exército.

Conclusões

• O narcotráfico tem em comum com o resto da economia capitalista as suas características essenciais: a procura insaciável de lucro possibilitada pela mais-valia; carentes de ética, não têm qualquer problema com os efeitos nocivos relacionados com o consumo da sua mercadoria e estão dispostos ao que quer que seja para preservar e reproduzir a sua capacidade de acumulação de capital.
• O narcotráfico tem como particularidade a ilegalidade da sua actividade, portanto, as instituições do Estado, pelo menos formalmente, declaram-se sem competência para regular a relação entre os narco-empresários e os seus empregados, bem como a relação entre as narco-empresas, pelo que a dita regulação se faz sobretudo de forma privada. Por isso a violência privada exercida pelas narco-empresas tem um papel particularmentesignificativo.
• Diferenciar a economia do narcotráfico da economia legal torna-se cada vez mais difícil pela quantidade de capital que se movimenta no narcotráfico e a sua relação com a economia legal.
•Os narco-empresários estão cada vez mais integrados na burguesia como classe, isto é, cada vez é mais frequente que o seu comportamento e as suas acções sejam dirigidos ao favorecimento da classe capitalista em geral e não só a uma parte dela em particular.
• Pelas razões que foram ditas cresceu a capacidade das narco-empresas de fazer política, com incidência na política burguesa, estando a sua capacidade de acumular capital relacionada com a de fazer política.
• A violência privada exercida pelas narco-empresas favoreceu um clima de aumento da violência social, pública e privada na sociedade mexicana, o que veio complicar muito os problemas da sociedade mexicana em geral, afectando principalmente os mais pobres e beneficiando unicamente os senhores do capital.
• Este clima de violência abre e favorece a oportunidade de o Estado burguês mexicano se dotar dos instrumentos violentos de repressão da organização popular.
• Não há qualquer razão para pensar que o referido fenómeno abrande, antes pelo contrário, cada vez mais assume traços mais preocupantes. Para que se desse a sua diminuição seria necessário que desaparecessem as condições que levaram ao seu aparecimento e reprodução, pelo que teriam que desaparecer as condições que permitem a produção, distribuição e consumo da droga. E longe de estar interessado nisso, o Estado mexicano apenas trata de se aproveitar deste tema para fortalecer as suas posições no bloco hegemónico da burguesia mexicana.