quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Discurso de Raúl Castro


«Grandes têm sido os desafios e perigos desde o triunfo da revolução»

Raúl Castro Ruz*


Companheiras e companheiros:

Estamos há vários dias reunidos debatendo temas transcendentais para o futuro da nação. Neste momento, para além do habitual trabalho em comissões, os deputados também têm funcionado em sessões plenárias, com o propósito de discutir em detalhe a situação económica actual e as propostas de Orçamento e Plano Económico para o ano de 2011.
Os deputados dedicaram largas horas a aprofundar e esclarecer dúvidas e preocupações sobre o Projecto de Orientações da Politica Económica e Social do Partido e da Revolução.
Os nossos meios de comunicação têm divulgado amplamente o desenrolar desses debates, para facilitar a informação da população.
Apesar do impacto na economia nacional da crise mundial, o irregular comportamento das chuvas durante 19 meses, de Novembro de 2008 até Junho do ano em curso e não excluindo os nossos próprios erros, posso dizer que o plano 2010 teve um desempenho aceitável para os tempos que vivemos. Vai atingir a meta de crescimento de 2,1% do Produto Interno Bruto (PIB); cresceu a exportação de bens e serviços; ainda sem se concluir o ano já se alcançou a cifra prevista de visitantes estrangeiros, embora novamente não se tenham cumprido as receitas, consolida-se o equilíbrio financeiro interno e, pela primeira vez em vários anos, começa a verificar-se uma dinâmica favorável, embora limitada, na produtividade do trabalho em relação ao salário médio.
Continuam a diminuir as retenções na fonte de transferências para o exterior, ou o que é o mesmo, as limitações que tivemos que impor nos finais de 2008, nos pagamentos de bancos cubanos a fornecedores estrangeiros, as quais serão suprimidas totalmente no próximo ano; ao mesmo tempo conseguiram-se avanços significativos na renegociação da dívida com os nossos principais credores.
Desejo agradecer de novo a confiança e compreensão dos nossos parceiros comerciais e financeiros, a quem reafirmo o mais firme propósito de honrar pontualmente os compromissos assumidos. O Governo deu instruções precisas para não contrair novas dívidas sem a garantia de poder cumprir o pagamento nos prazos acordados.
Conforme explicou o Vice Primeiro-Ministro e Ministro da Economia e Planificação, Marino Murillo Jorge, o plano do próximo ano prevê um crescimento do PIB de 3,1%, que deverá alcançar-se no meio de um cenário não menos complexo e tenso.
O ano de 2011 é o primeiro dos cinco incluídos na projecção de médio prazo da nossa economia, período em que, gradual e progressivamente, se irão introduzindo alterações estruturais e conceptuais no modelo económico cubano.
Durante o próximo ano vamos continuar com determinação a reduzir gastos desnecessários e a promover a poupança de todos os tipos de recursos que, como temos dito repetidamente, é a fonte de rendimentos mais rápida e segura à nossa disposição.
Também prosseguiremos, sem descurar os mínimos pormenores, a elevar a qualidade dos programas sociais nas áreas de saúde, educação, cultura e desporto, nos quais se identificaram enormes reservas de eficiência no uso mais racional da infra-estrutura existente.
Também aumentaremos as exportações de bens e serviços, ao mesmo tempo que continuaremos a concentrar o investimento nas actividades de mais rápida recuperação.
Em termos do plano e orçamento, temos insistido que deve acabar a história repetida dos enganos e incumprimentos. O plano e o orçamento são sagrados, repito, a partir de agora o plano e o orçamento são sagrados, são elaborados para serem cumpridos, e não para nos conformarmos com explicações de qualquer tipo ou mesmo com imprecisões e mentiras, intencionais ou não, quando não se atingem as metas traçadas.
Às vezes, alguns companheiros, sem um propósito fraudulento, fornecem informações imprecisas aos seus subordinados sem as ter comprovado e, inconscientemente, caem na mentira, mas essas informações falsas podem-nos levar a decisões erradas, com maior ou menor impacto sobre a nação. Quem assim age também mente, e seja quem for, deve ser afastado definitiva ou temporariamente do cargo que ocupa e, depois da análise dos órgãos competentes, também afastado das fileiras do partido se nele milita.
A mentira e os seus efeitos nocivos têm acompanhado o homem desde que aprendeu a falar em épocas remotas, motivando a reprovação da sociedade. Lembre-se que nos Dez Mandamentos da Bíblia, o número oito dispõe: «Não darás falso testemunho nem mentirás.» Também nos três princípios básicos de ética moral da civilização Inca se estabelecia: não mentir, não roubar, não ser preguiçoso.
Devemos lutar para banir definitivamente a mentira e o engano do comportamento dos quadros, a todos os níveis. Não por acaso, o companheiro Fidel na sua brilhante definição do conceito de Revolução, entre outros critérios, disse: «não mentir jamais nem violar princípios éticos.»
Na sequência da publicação em 9 de Novembro do Projecto de Orientações para a Política Económica e Social, o comboio do VI Congresso do Partido está em andamento, pois o verdadeiro congresso será o debate dos seus enunciados, franco e aberto, com os militantes e todo o povo, o que, num verdadeiro exercício de democracia, vai tornar os debates mais ricos; embora não excluindo pontos de vista divergentes, teremos a formação de um consenso nacional sobre a necessidade e a urgência de mudanças estratégicas no funcionamento da economia, com a finalidade de tornar sustentável e irreversível o Socialismo em Cuba.
Não devemos temer as diferenças de critérios e esta orientação, que não é nova, nem deve ser interpretada como limitada à discussão das orientações; as diferenças de opinião, expressas preferencialmente em tempo, lugar e maneira, ou seja, no lugar certo, no momento oportuno e de forma correcta, serão sempre mais desejáveis para a falsa unanimidade com base na simulação e no oportunismo. É, além do mais, um direito de que não se deve privar ninguém.
Quantas mais ideias formos capazes de introduzir na análise de um problema, mais perto estaremos da sua solução.
A Comissão de Política Económica do Partido e os 11 grupos que a compõem, trabalharam durante meses na elaboração das citadas orientações que, como se explicou, constituem o tema central do Congresso, com base na convicção de que a situação económica é a tarefa principal do Partido e do Governo e o objecto básico dos quadros a todos os níveis.
Nos últimos anos insistimos em que não podíamos deixar-nos conduzir pela improvisação e por pressas nessa área, tendo em conta a dimensão, a complexidade e as inter-relações das decisões a tomar. É por isso que eu acho que se fez bem em adiar o Congresso do Partido, apesar de termos tido que resistir com paciência, às reivindicações honestas e também às mal-intencionadas para apressar a adopção de várias medidas, dentro e fora de Cuba. Os nossos adversários no exterior, como era esperado, desafiaram todos os passos que tomámos, primeiro desqualificando-os como cosméticos e insuficientes, agora tentando confundir a opinião pública, pressagiando um segundo fracasso, concentram as suas campanhas na exaltação de um suposto desencanto e cepticismo com que, dizem, o nosso povo tem acolhido este projecto.
Às vezes dá a impressão que os seus desejos mais íntimos os impedem de ver a realidade. Deixando claro as suas verdadeiras pretensões, exigem-nos abertamente que desmantelemos o sistema económico e social que conquistámos, como se esta Revolução estivesse disposta a submeter-se à mais humilhante rendição ou, o que é igual, a reger os seus destinos por condicionamentos degradantes.
Durante mais de 500 anos, de Hatuey a Fidel, muito sangue foi derramado pelo nosso povo para aceitar agora o desmantelamento do que foi conseguido à custa de tanto sacrifício.
Àqueles que guardem essas ilusões infundadas, é bom lembrar-lhes, mais uma vez, a afirmação feita neste Parlamento, em 1 de Agosto de 2009, que passo a citar: «Não me elegeram presidente para restaurar o capitalismo em Cuba nem para entregar a Revolução. Fui eleito para defender, manter e continuar a melhorar o socialismo, não para destruí-lo».
Hoje, acrescento que as medidas que estamos a implementar e todas as alterações que seja necessário introduzir para actualizar o modelo económico, têm por objectivo preservar o socialismo, fortalecê-lo e torná-lo verdadeiramente irreversível, como foi consagrado na Constituição da República, a pedido da imensa maioria da nossa população, no ano de 2002.
Temos de colocar na mesa todas as informações e argumentos que sustentam toda a decisão e de passagem, retirar o excesso de secretismo a que nos acostumámos durante mais de 50 anos de cerco inimigo. Um Estado tem sempre que manter alguns assuntos em segredo, isso é algo que ninguém contesta, mas não as questões definidoras do rumo político e económico da nação. É vital explicar, fundamentar e convencer o povo da justeza, da necessidade e da urgência de uma medida, por mais dura que pareça.
O Partido e a Juventude Comunista, além da Central de Trabalhadores de Cuba e seus sindicatos, junto com as restantes organizações de massas e sociais, têm a capacidade de mobilizar o apoio e a confiança do povo através do debate não vinculado a dogmas e sistemas inviáveis, que constituem uma barreira psicológica colossal, que é imprescindível desmantelar gradualmente e vamos consegui-lo juntos.
É precisamente esse o conteúdo que reservamos para Conferência Nacional do Partido a ser realizada em 2011, após o Congresso, em data a ser fixada posteriormente; iremos analisar, entre outras coisas, alterações aos métodos de trabalho e estilos de trabalho da organização partidária, já que, como resultado das deficiências apresentadas no desempenho dos órgãos administrativos do Governo, o Partido ao longo dos anos teve de se envolver no exercício de funções que não lhe pertencem, o que limitou e comprometeu a sua condição de vanguarda organizada da nação cubana e força dirigente superior da sociedade e do Estado, em conformidade com o artigo cinco da Constituição.
O Partido deve dirigir e controlar, e não interferir nas actividades do governo, a qualquer nível, cuja responsabilidade é a de quem governa, cada um com suas próprias regras e procedimentos, de acordo com as suas missões na sociedade.
É necessário mudar a mentalidade dos quadros e de todos os compatriotas para enfrentar o novo cenário que começa a emergir. Trata-se simplesmente de transformar conceitos errados e insustentáveis sobre o socialismo, profundamente enraizados em amplos sectores da população durante anos, como consequência de uma abordagem excessivamente paternalista, idealista e igualitarista que a Revolução estabeleceu em nome da justiça social.
Muitos cubanos confundem socialismo com direitos e subsídios, igualdade com igualitarismo, muitos identificam a caderneta de racionamento como uma conquista social que nunca deveria ser suprimida.
Neste contexto, estou convencido de que muitos dos problemas que enfrentamos hoje têm a sua origem nesta medida de distribuição, que embora em determinado momento tenha estado animada pelo empenhamento saudável de garantir ao povo uma oferta estável de alimentos e outros bens em vez do açambarcamento sem escrúpulos por parte de alguns para fins do lucro, é uma expressão clara do igualitarismo, que beneficia do mesmo modo aqueles que trabalham e aqueles que não o fazem ou que não precisam e gera práticas de troca e venda no mercado negro, etc, etc.
A solução para esta complexa e sensível questão não é simples, ele está intimamente relacionado com o reforço do papel dos salários na sociedade e isso só será possível se a par da redução dos serviços gratuitos e subsídios, aumentar a produtividade do trabalho e a oferta produtos à população.
Nesta questão, como na redução de pessoal excedentário, o Estado socialista não deixará desamparado nenhum cidadão e mediante o sistema de assistência social, garantirá que as pessoas impossibilitadas de trabalhar receberão a protecção mínima necessária. No futuro, haverá subsídios, mas não aos produtos, e sim para as cubanas e cubanos que por uma razão ou outra, realmente necessitem.
Como é sabido, desde Setembro do ano passado que se eliminou cigarro racionado, um artigo que apenas uma parcela da população recebia e, como é óbvio, pelos seus efeitos nocivos para a saúde, não constitui um produto de primeira necessidade.
No próximo ano, não podemos dar-nos ao luxo de gastar quase 50 milhões de dólares em importações de café para manter a quota actual aos consumidores, incluindo os recém-nascidos. Prevê-se, por ser uma necessidade absoluta, como fizemos até 2005, misturá-lo com cevada, muito mais barata do que o café que nos custa quase três mil dólares a tonelada, enquanto aquela custa 390 dólares.
Se quisermos continuar a beber café puro e sem racionamento, a única solução é produzi-lo em Cuba, onde está provado existirem todas as condições para o seu cultivo, em quantidade suficiente para atender à procura e até para o exportar, e da mais alta qualidade.
Estas decisões e outras que é necessário aplicar, embora saibamos que não são populares, são obrigatórias para podermos manter e melhorar os serviços gratuitos, de saúde pública, educação e segurança social a todos os cidadãos.
O próprio líder da Revolução cubana, o companheiro Fidel, no seu discurso histórico em 17 de Novembro de 2005, disse textualmente: «Uma conclusão que eu tirei após muitos anos: entre os muitos erros que temos cometido, o maior erro foi acreditar que alguém sabia de socialismo, ou que alguém sabia como construir o socialismo». Há apenas um mês, exactamente ao cabo de cinco anos, Fidel através da sua mensagem por ocasião do Dia Internacional do Estudante ratificou estes conceitos que permanecem em pleno vigor.
Pela minha parte, lembro a abordagem de um laureado cientista soviético há cerca de meio século atrás, que, embora teoricamente se tivesse comprovado a possibilidade do voo humano para o espaço, acreditava que ainda era uma viagem ao ignorado, ao desconhecido.
Se bem que contemos com o legado teórico marxista-leninista, onde é cientificamente comprovada a viabilidade do socialismo e a experiência prática das tentativas de construção em outros países, a construção da nova sociedade na área económica é, na minha humilde opinião também uma viagem para o desconhecido, onde cada passo deve meditar-se profundamente e ser planificado antes do próximo, onde os erros se corrijam oportuna e prontamente, para não deixar que o tempo dê a solução, pois só os irá aumentar e, no final nos passar-nos-á uma factura ainda mais cara.
Estamos plenamente conscientes dos erros que cometemos e precisamente por isso as Orientações marcam o início do caminho da correcção e da necessária actualização do nosso modelo económico socialista.
Ninguém se deve deixar enganar: as Orientações apontam a direcção para o futuro socialista, ajustado às condições de Cuba, e não ao passado capitalista e neocolonial derrubado pela Revolução. O Planeamento, e não o livre mercado será a marca distintiva da economia e não será permitido, como indicado no terceiro ponto das orientações gerais, a concentração da propriedade. Mais claro que a água, embora não haja pior cego que aquele que não quer ver.
A construção do Socialismo deve estar em conformidade com as peculiaridades de cada país. É uma lição histórica que aprendemos bem. Não pensamos voltar a copiar ninguém. Bastantes problemas nos trouxe fazê-lo, mas também porque se copiámos de forma errada; não ignoramos porém as experiências dos outros, aprendemos com elas, incluindo com as experiências positivas dos capitalistas.
Pensando sobre a necessária mudança de mentalidades vou citar um exemplo: se chegamos à conclusão de que o exercício do emprego por conta própria constitui mais uma alternativa de emprego para pessoas em idade de trabalhar, a fim de aumentar a oferta de bens e serviços á população e libertar o Estado dessas actividades para se concentrar no que é decisivo, o que compete ao Partido e ao Governo é facilitar a sua gestão e não criar estigmas ou preconceitos em relação a eles e para isso é necessário mudar a actual apreciação negativa existente em alguns de nós em relação a esta forma de trabalho privado. Os clássicos do marxismo-leninismo ao projectarem as grandes linhas que deviam caracterizar a construção da nova sociedade, definiram, entre outras, que o Estado, representando todo o povo, manteria a propriedade dos meios fundamentais de produção.
Nós absolutizámos esse princípio e passámos para a propriedade estatal a maior parte da actividade económica do país. Os passos que temos vindo a dar e daremos na expansão e flexibilização do trabalho por conta própria, são o resultado de uma profunda reflexão e análise e podemos garantir que desta vez não haverá recuo.
Por seu lado, a Central de Trabalhadores de Cuba e os respectivos sindicatos nacionais estão a estudar as formas e métodos para a organização desta força laboral, promover a estrita observância da lei e os impostos e motivar nestes trabalhadores a rejeição das ilegalidades. Devemos defender os seus interesses, como fazemos com qualquer outro cidadão, desde que actuem em conformidade com as normas jurídicas aprovadas.
Nesse sentido reveste-se de grande importância a introdução a diferentes níveis do ensino básico do sistema fiscal, a fim de familiarizar, de forma permanente e concreta, as novas gerações na aplicação dos impostos como a forma mais universal de redistribuição do rendimento nacional, no interesse da sustentabilidade das despesas sociais.
A nível de toda a sociedade, devemos incentivar valores cívicos de respeito e cumprimento por parte dos contribuintes com as suas obrigações fiscais, criar nas pessoas essa cultura e disciplina, bonificar os que cumprem e punir a evasão fiscal.
Outra tarefa em que, apesar dos progressos alcançados, ainda há muito a fazer é na atenção ás diferentes formas de produção na agricultura, de modo a eliminar diversas barreiras existentes para potenciar as forças produtivas nos nossos campos e a correspondente poupança nas importações de alimentos, por forma a que agricultores obtenham remuneração razoável e justa pelo seu sacrificado trabalho, o que não justifica a imposição de preços excessivos para o público.
Mais de dois anos depois de iniciada a entrega em usufruto de terras abandonadas, acho que estamos em posição de considerar o aluguer de áreas adicionais para além dos limites regulamentados pelo Decreto-Lei 259, de Julho de 2008, àqueles agricultores agro-pecuários com melhores resultados no uso intensivo dos solos sob sua responsabilidade.
Devo esclarecer que as terras dadas em usufruto são propriedade de todo o povo, por isso, se foram solicitadas para outros usos, o Estado deve compensar o investimento dos proprietários e pagar o valor de benfeitorias.
Uma vez concluídos os estudos a partir das experiências acumuladas, apresentaremos ao Conselho de Estado as correspondentes propostas de alteração do decreto-lei.
Um dos obstáculos mais difíceis de superar para conseguirmos uma visão diferente, e temos de admiti-lo publicamente, é a falta de cultura económica da população, incluindo alguns quadros de direcção que, mostrando uma ignorância suprema nesta matéria, ao enfrentar problemas diários adoptam ou propõem decisões sem pararem um momento para avaliar os seus efeitos e custos, ou se há recursos afectados no plano e orçamento para tal fim.
Não digo nada de novo, quando afirmo que improvisar, particularmente na economia, leva seguramente ao fracasso, independentemente dos bons propósitos pretendidos.
Em 2 de Dezembro passado, por ocasião do 54 º aniversário do desembarque do Granma, o órgão oficial do nosso partido reproduziu um trecho do discurso de Fidel em 1976, na mesma data, quando se comemoravam apenas 20 anos do evento e que, pela sua actualidade, julguei oportuno mencionar: «A força de um povo e de uma revolução consistem precisamente na sua capacidade de compreender e lidar com as dificuldades. No entanto, avançaremos em muitos campos e lutaremos incansavelmente para melhorar a eficiência da economia, economizar recursos, reduzir gastos não essenciais, aumentar as exportações e criar em cada cidadão uma consciência económica. Disse antes que todos nós somos políticos, agora acrescento que todos devemos também ser economistas, não economicistas, porque não é a mesma coisa uma mentalidade de poupança e eficiência e uma cultura de consumo».
Dez anos depois, no 1º de Dezembro de 1986, durante a sessão do Terceiro Congresso do Partido, Fidel disse textualmente: «Muitas pessoas não entendem que o Estado socialista, nenhum Estado, nenhum sistema pode dar o que não tem, e muito menos terá o que não se produz; está a dar-se dinheiro sem produtividade. Estou certo de que as folhas de pagamento inflacionadas, o excesso de dinheiro pago ás pessoas, os inventários supérfluos, o desperdício, têm muito a ver com o grande número de empresas não lucrativas que há no país …» Fim de citação.
Passados 34 e 24 anos, respectivamente, destas orientações do Chefe da Revolução, estes e muitos outros problemas ainda estão presentes.
Fidel com o seu génio ia abrindo brechas e apontava o caminho, e nós não soubemos proteger e consolidar os progressos na prossecução destes objectivos.
Faltou coesão, organização e coordenação entre o Partido e o Governo; no meio das ameaças diárias e urgências quotidianas negligenciámos o planeamento médio e longo prazo, não fomos suficientemente exigentes perante erros económicos cometidos por alguns dirigentes e também demorámos a rectificar decisões que não tiveram o efeito esperado.
Mais de uma vez referi a que nesta Revolução já quase tudo já foi dito, pelo que deveríamos rever que orientações do Chefe da Revolução quais as que cumprimos e as que ficaram por cumprir, a partir do seu vibrante apelo «A História me absolverá» até hoje. Recuperaremos as ideias de Fidel que permanecem válidas e não permitiremos que nos aconteça o mesmo.
Os erros, se são discutidos simplesmente com honestidade, podem transformar-se em experiências e lições, para os superar e não para voltar a cair neles. Essa é precisamente a grande utilidade da análise em profundidade dos erros e deve começar a ser uma norma permanente de conduta de todos os líderes.
A realidade dos números está para além das nossas aspirações e desejos. Na aritmética elementar do primeiro grau da escola primária, aprende-se desde cedo que dois e dois são quatro, não são cinco ou seis; não é preciso ser economista para o entender, por isso, se num dado momento temos que fazer alguma coisa em matéria económica e social com os recursos disponíveis, façamo-lo com consciência das consequências e sabendo de antemão que, no final, a crueza dos factos se imporá inevitavelmente.
Cuba tem dezenas de milhares de profissionais graduados pela Revolução nas áreas de economia, contabilidade e finanças, para citar apenas alguns com esse perfil, que não os temos sabido utilizar adequadamente em benefício do desenvolvimento ordenado da nação.
Nós temos o mais precioso, o capital humano, e temos de o congregar com a colaboração da Associação Nacional de Economistas e Contabilistas (ANEC) para empreender a tarefa de educar nesta matéria, de forma consistente e sistemática, o nosso povo e seus dirigentes em todos os níveis. Uma grande representação do Comité Nacional da ANEC participou nos primeiros seminários sobre as orientações que organizámos, e muitos de seus membros estão envolvidos no processo de debates em curso.
Há que destacar a contribuição decisiva de milhares de contabilistas para recuperar o lugar da contabilidade na direcção da actividade económica, que evidentemente é um pré-requisito indispensável para assegurar o sucesso e a ordem em tudo o que propomos.
Nestas circunstâncias, não se deve perder de vista a importância de manter uma abordagem diferenciada para com os jovens, e em correspondência com isso, destaco a decisão de excluir dos processos de disponibilidade laboral os recém-formados a trabalhar no cumprimento do Serviço Social.
No entanto, não se trata de colocá-los em funções não relacionadas com o seu perfil profissional, como já aconteceu no passado, em que chegaram a colocar-se como porteiros do centro laboral, precisamente porque este período é projectado para os treinar com base na produção e serviços, completar, na prática, a formação teórica das escolas e cultivar neles o amor ao trabalho.
Não menos importante é a obra dos quadros e especialistas envolvidos na elaboração e revisão de documentos legais, em consonância com as mudanças que se vão implementando; por exemplo, apenas para dar cobertura legal para duas orientações (números 158 e 159), relativas ao exercício de trabalho por conta própria, o seu sistema fiscal e os processos de disponibilidade de trabalho, foram obrigados a emitir cerca de 30 disposições, entre decretos-lei, acordos de governo e resoluções de vários ministérios e institutos nacionais.
Há poucos dias uma resolução do Ministério das Finanças que modificou os preços de aprovisionamento de um grupo de produtos agrícolas, teve de anular 36 resoluções desse mesmo organismo emitidas em anos anteriores, mas todas ainda em vigor.
Esses factos dão uma ideia do trabalho que temos pela frente em matéria de ordenamento jurídico, para fortalecer as instituições do país e eliminar muitas proibições irracionais que duraram anos e que, independentemente das circunstâncias existentes, criaram um terreno fértil a múltiplas actuações à margem da lei, muitas vezes a origem da corrupção a vários níveis. Pode chegar-se a uma conclusão comprovada pela vida: proibições irracionais fomentam violações, o que por sua vez leva à corrupção e à impunidade; por isso eu acho que as pessoas têm razão nas suas preocupações sobre o uso de procedimentos complexos relacionados com a habitação e a compra e venda de veículos entre indivíduos, para citar apenas dois exemplos que estão actualmente em estudo para uma solução ordenada.
Ao mesmo tempo, impõe-se a simplificação e ordenação da legislação vigente, normalmente bastante dispersa. Os documentos são feitos para serem do domínio dos responsáveis pela sua execução, a não para serem arquivados. Por conseguinte, é necessário educar todos os quadros e exigir que trabalhem com as leis que regem as suas funções e fiscalizar o seu cumprimento, como condição de idoneidade para ocupar uma determinado cargo.
Vale a pena lembrar uma vez mais que a ignorância da lei não isenta ninguém do seu cumprimento e que, segundo a Constituição, todos os cidadãos têm direitos e deveres iguais, pelo que qualquer pessoa que comete um crime em Cuba, independentemente do cargo que ocupe, seja ele quem for, terá que enfrentar as consequências dos seus erros e o peso da justiça.
Passando a outro assunto, também recolhido nas Orientações. Foram excluídos do plano para o próximo ano 68 investimentos significativos para o país por não cumprirem os requisitos estabelecidos; entre eles, a obrigação do financiamento, a preparação técnica e dos projectos, a definição das empresas de construção capazes de cumprir os prazos fixados e a avaliação dos estudos de viabilidade. Não permitiremos o desperdício de recursos destinados a investimento por causa da espontaneidade, da improvisação e da superficialidade que em muitos casos, têm caracterizado o processo de investimento.
Ao abordar estas questões é obrigatório referir ao papel decisivo que devem desempenhar os quadros do Partido, do Estado, do Governo, as organizações de massas e os jovens na condução coordenada e harmoniosa do processo de actualização do modelo económico cubano.
No decorrer da progressiva descentralização que estamos a implementar, tomaram-se várias medidas para aumentar a autoridade dos dirigentes empresariais e administrativos, em quem continuamos a delegar competências. Paralelamente, aperfeiçoam-se os procedimentos de controlo e sobem para níveis mais elevados a exigência face a manifestações de negligência, de preguiça e outros comportamentos incompatíveis com o desempenho de um cargo público.
Igualmente estamos plenamente conscientes dos danos que durante anos foram causados à política de quadros pelo fenómeno da «pirâmide invertida”, ou seja, em que os salários não estão em consonância com a importância e a hierarquia de cargos de gestão ocupados, nem à adequada diferenciação entre uns e outros, o que desincentiva a promoção dos mais capazes para maiores responsabilidades nas empresas e nos próprios ministérios. Esta é uma questão fundamental que deve ser resolvida em conformidade com as orientações descritas nos números 156 e 161, relativos à política salarial.
O VI Congresso do Partido deve ser, pela lei da vida, o último da maioria dos que integramos a Geração Histórica; o tempo que nos resta é curto e sem o menor sinal de imodéstia ou vaidade pessoal, eu acho que temos a obrigação de aproveitar o peso da autoridade moral que temos para deixar o rumo traçado.
Não nos vemos como mais inteligentes ou capazes, mas estamos convencidos que temos o dever fundamental de corrigir os erros que cometemos nessas cinco décadas de construção do socialismo em Cuba e, nesse sentido, vamos usar todas as energias que nos restam e que felizmente não são poucas.
Vamos reforçar a firmeza e a intransigência com o mal feito; os ministros e os outros dirigentes políticos e administrativos sabem que terão todo o nosso apoio quando, no cumprimento das suas funções, eduquem e ao mesmo tempo exijam aos seus subordinados e não temam levantar problemas. Descobrir os problemas para enfrentar o trabalho mal feito é agora uma das nossas principais tarefas.
Também é claro para todos que não estamos nos primeiros anos após o triunfo em 1959, quando alguns dos que ocupavam posições no governo renunciavam para demonstrar a sua oposição aos primeiros passos radicais que dava a Revolução, e por isso essa atitude se classificava como contra-revolucionária. Hoje, quando um quadro se senta cansado ou incapaz de realizar as suas funções plenamente, o verdadeiramente revolucionário e honesto é pedir a demissão, com dignidade e sem medo, que é sempre preferível à destituíção.
Em relação a assunto, devo fazer uma referência a três companheiros que tiveram importantes responsabilidades na direcção do Partido e do Governo, e que pelos erros que cometeram, o Bureau Politico pede para renunciarem á sua qualidade de membros deste órgão de direcção, do Comité Central e de deputados à Assembleia Nacional do Poder Popular.
Trata-se de Jorge Luis Sierra Cruz, Yadira Garcia Vera, e Pedro Sáez Montejo. Os dois primeiros foram libertados já das suas responsabilidades de Ministros dos Transportes e da Indústria Básica, respectivamente. Sierra por assumir atribuições que não lhe competiam e que levaram a erros graves na direcção, e Yadira Garcia por um péssimo trabalho à frente do Ministério, reflectido sobretudo no fraco controle sobre os recursos destinados ao processo de investimento, levando ao desperdício destes, como foi comprovado no projecto de ampliação da empresa de níquel Pedro Soto Alba, em Moa, Província de Holguín. Ambos os companheiros foram severamente criticados em reuniões conjuntas da Comissão do Bureau Político e do Comité Executivo do Conselho de Ministros.
Por seu lado, Pedro Sáez Montejo, mostrando uma superficialidade incompatível com o cargo de Primeiro Secretário do Partido na cidade de Havana, violou regras do trabalho partidário, o que foi discutido com ele numa comissão do Bureau Politico, presidida por mim e composta pelos companheiros Machado Ventura e Esteban Lazo.
É justo assinalar que os três reconheceram os erros apontados e assumiram uma atitude correcta, razão pela qual a Comissão do Bureau Político decidiu manter o seu estatuto de membros do partido. Da mesma forma, considerou-se conveniente colocá-los em trabalhos relacionados com suas especialidades.
Pessoalmente, os três permanecerão meus amigos, mas eu só tenho compromissos com o povo e especialmente com os que caíram nestes 58 anos de luta contínua desde o golpe de estado de 1952. Se seguimos este procedimento com três altos dirigentes, saibam que esta é a linha que seguirá o Partido e o Governo com todos os quadros. Mais exigência, uma vez que alertaremos e adoptaremos as medidas disciplinares adequadas quando forem detectadas violações do estabelecido.
Conforme o prescrito pela Lei que altera a Divisão Político-Administrativa, no próximo mês de Janeiro irão criar-se as novas províncias de Artemisa e Mayabeque, cujos órgãos de Governo começarão o seu trabalho sob novos conceitos de organização e estrutura, muito mais racionais do que os da actual província de Havana.
Definiram-se funções, estruturas e modelos. Trabalha-se na definição das suas competências, assim como nas relações com os órgãos da administração central do Estado, as empresas nacionais e as organizações políticas e de massas. Vamos acompanhar de perto esta experiência para uma gradual generalização aos outros órgãos do governo local, ou seja, a todo o país, ao longo dos próximos cinco anos. Defendemos a utilidade de continuar a elevar gradualmente a autoridade dos governos provinciais e municipais e dotá-los de maiores poderes para gerirem os orçamentos locais, aos quais se destinarão parte dos impostos gerados pela actividade económica, a fim de contribuir para o seu desenvolvimento.
No meio da conturbada situação internacional avançam as relações com os povos e governos de quase todas as nações.
O mundo foi surpreendido com as revelações chocantes de centenas de milhares de documentos classificados do governo dos Estados Unidos, alguns deles muito recentes, sobre as guerras no Iraque e Afeganistão e, em seguida, uma variedade de temas nas suas relações com dezenas de Estados.
Enquanto todos se perguntam o que realmente está acontecer e como isso pode estar relacionado com os meandros da política americana, o que foi difundido até agora mostra que este país, por mais que se esconda numa retórica fácil, segue em essência a política de sempre e age como um polícia mundial.
Nas relações com os Estados Unidos não se vê a menor vontade de rectificar a política contra Cuba, nem para eliminar os seus aspectos mais irracionais. É evidente que nesta questão ainda é prevalecente uma poderosa minoria reaccionária que serve de sustentáculo à máfia anti-cubana.
Os Estados Unidos não só ignoram o grande protesto de 187 países que exigem o fim do bloqueio económico, comercial e financeiro contra nosso país, como em 2010 reforçaram a sua aplicação e incluíram novamente Cuba nas suas listas espúrias, através das quais se arrogam o direito de julgar e caluniar os Estados soberanos para justificar uma acção punitiva, ou mesmo actos de agressão.
A política dos Estados Unidos contra Cuba não tem a menor credibilidade. Eles não têm outro remédio senão recorrer à mentira para reiterar acusações entre as quais sobressaem, pela sua escandalosa falsidade, que somos um pais patrocinador do terrorismo internacional, tolerante perante o tráfico interno de mulheres e crianças para exploração sexual, violador flagrante dos direitos humanos e responsável por restringir, de maneira significativa, as liberdades religiosas.
O governo dos EUA tenta esconder os seus próprios pecados e procura fugir às suas responsabilidades no facto de continuarem impunes nesse país notórios terroristas internacionais, reclamados pela justiça de vários países, ao mesmo tempo que mantêm em injusta prisão os nossos Cinco irmãos por lutarem contra o terrorismo.
Nas suas caluniosas campanhas sobre o tema dos direitos humanos em Cuba, os Estados Unidos tiveram a conivência dos países europeus, conhecidos pela sua cumplicidade com os voos secretos da CIA, o estabelecimento de centros de detenção e tortura, por descarregar os efeitos da crise económica sobre os trabalhadores de menores recursos, pela violenta repressão sobre os manifestantes e a aplicação de políticas discriminatórias contra os imigrantes e as minorias.
Juntamente com as nações irmãs da América Latina continuaremos a luta pela emancipação e a integração no âmbito da Aliança Bolivariana para os Povos de Nossa América, trabalharemos para reforçar a solidariedade e a unidade que nos fortalecerá a todos cada vez mais.
Assim continuaremos a apoiar a fraterna nação do Haiti, onde o nosso pessoal de saúde, juntamente com médicos latino-americanos e haitianos formados em Cuba, enfrenta com abnegação, de forma desinteressada e humanitária, a epidemia de cólera, os danos do terramoto e as consequências de séculos de exploração e pilhagem deste nobre povo, que precisa da comunidade internacional de recursos para a reconstrução e, especialmente para o desenvolvimento sustentado.
É também uma ocasião propícia para, a partir deste Parlamento, enviar em nome de todos os cubanos, uma mensagem de encorajamento e solidariedade para com o povo irmão da Venezuela, que sofre o impacto de chuvas torrenciais, com perdas de vidas humanas e danos materiais. As dezenas de milhares de voluntários cubanos servindo naquele país, receberam logo instruções para se colocarem à disposição do Presidente Hugo Chávez para o que fosse preciso.
Em Abril próximo cumprem-se 50 anos da proclamação do carácter socialista da nossa Revolução. Nas areias de Playa Girón as nossas forças lutaram pela primeira vez em defesa do socialismo e, em apenas 72 horas e sob a liderança pessoal do Comandante em Chefe derrotaram a invasão mercenária patrocinada pelo governo dos EUA.
Por ocasião deste relevante acontecimento, em 16 de Abril realizaremos um desfile militar, com a participação de tropas e meios de combate, à qual assistirão os delegados ao VI Congresso do Partido, que nessa mesma tarde deverão reunir para começar os seus trabalhos, que esperamos concluir em 19 de Abril, Dia da Vitória de Playa Girón. O encerramento do desfile será levado a cabo por dezenas de milhares de jovens, representando as gerações mais novas, que constituem a garantia da continuidade da Revolução.
Esta comemoração será dedicada à nossa juventude, que nunca abandonou a Revolução.
Jovens foram os que caíram no assalto aos quartéis Moncada e Bayamo:
• jovens foram os que se sublevaram em Santiago de Cuba sob a liderança de Frank País;
• jovens eram os expedicionários do navio Granma, que, após a queda do Alegría de Pío formaram o Exército Rebelde, reforçados por ondas de jovens das zonas rurais e das cidades, o primeiro reforço de Santiago pessoalmente organizado e enviado pelo próprio Frank;
• jovens eram os membros do poderoso movimento clandestino;
• jovens foram os valorosos assaltantes do Palácio Presidencial e da Rádio-Reloj em 13 de Março de 1957, liderados por José Antonio Echeverría;
• jovens foram os que lutaram heroicamente em Giron;
• jovens e adolescentes aderiram à campanha de alfabetização também há 50 anos;
• jovens eram a maioria dos combatentes na luta contra os bandos mercenários organizados pela CIA;
• jovens foram os protagonistas de belas páginas de coragem e estoicismo em missões internacionalistas em diversos países, nomeadamente na ajuda aos movimentos de libertação em África;
• jovens são os nossos Cinco Heróis que arriscaram suas vidas na luta contra o terrorismo e sofrem já mais de 12 anos de prisão cruel;
• jovens são muitos dos milhares e milhares de colaboradores cubanos que defendem a vida humana curando doenças erradicadas em Cuba, apoiam programas de alfabetização e difundem a cultura e a prática do desporto para crianças e adultos em todo o mundo.
Esta revolução é obra do sacrifício da juventude cubana: operária, camponesa, estudantil, intelectual, militar, de todos os jovens em todas as épocas em que lhes coube viver e lutar.
Essa revolução será conduzida pelos jovens cheios de optimismo e fé inabalável na vitória.
Grandes têm sido os desafios e perigos desde o triunfo da Revolução e, muito especialmente, a partir de Girón, mas nenhuma dificuldade foi capaz de nos subjugar. Estamos aqui e estaremos pela dignidade, integridade, coragem, firmeza ideológica e espírito de sacrifício e revolucionário do povo de Cuba, que há muito tempo fez seu o conceito de que o socialismo é a única garantia de permanecer livre e independente.

* Discurso do General do Exército Raúl Castro Ruz, Presidente dos Conselhos de Estado e de Ministros de Cuba, na Assembleia Nacional em 18 de Dezembro, 2010.
Tradução de Guilherme Coelho

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

“Regular a comunicação nada mais é do que cumprir com o Estado de Direito”

Integrantes do Coletivo Intervozes falam sobre estudo que lança luz sobre o funcionamento dos órgãos reguladores do setor em 10 países



Eduardo Sales de Lima da Redação do Brasil de Fato

Toda vez que se fala sobre a necessidade de se regular a comunicação no Brasil, os grandes meios do país disparam: tal medida seria “ditatorial”, “atentado à liberdade de expressão”, “cerco à mídia”. Ignoram, ou fingem ignorar, que mecanismos de controle sobre o setor existem em muitas nações do mundo, inclusive aquelas consideradas exemplos de democracia para esses mesmos meios.
O Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social realizou um levantamento sobre o funcionamento de órgãos reguladores que atuam sobre a rádio e a televisão em 10 países. O estudo trouxe à tona o caráter independente desses órgãos, com ênfase nas questões de garantia de competição, gestão do espectro e regulação de conteúdo.
Os países estudados foram Reino Unido, França, Canadá, Estados Unidos, Bósnia e Herzegovina, Argentina, Uruguai, Alemanha, Espanha (com um capítulo especial sobre a Catalunha) e Portugal. A seguir, leia uma entrevista, via correio eletrônico, com Ramênia Vieira da Cunha e Sivaldo Pereira, ambos pesquisadores responsáveis pela pesquisa.

Brasil de Fato – Dos países que vocês pesquisaram, qual (ou quais) apresentaram uma estrutura de regulação de mercado e conteúdo que mais lhe(s) chamaram a atenção positivamente? Por quê?
Sivaldo Pereira – Podemos apontar, por exemplo, a independência e a efetividade do modelo britânico com o Ofcom (Departamento de Comunicação) e o modelo bósnio-herzegovino, com a Agência Regulatória da Comunicação (CRA). O Ofcom, por exemplo, busca concretizar o ideal de uma agência autônoma sem perder em força regulatória do Estado. Possui um código de qualidade de conteúdo para a radiodifusão que é constantemente debatido e atualizado e que dá as diretrizes para o bom andamento dos sistemas de comunicação, chegando inclusive a aplicar uma média de 18 multas por ano a empresas infratoras. Veja que ninguém chama isso de censura, nem mão de ferro do Estado, nem ditadura da esquerda, como se fala no Brasil: nada mais é do que o Estado de Direito sendo cumprido.
Na Bósnia e Herzegovina, a criação de uma agência regulatória que busca cumprir os princípios de qualidade e ética à risca é justamente uma resposta ao trauma que o país sofreu devido ao mal uso da comunicação de massa no contexto da guerra, considerado por muitos especialistas um dos principais elementos que levaram o país ao conflito. Esses sistemas, de algum modo, preveem formas de participação do cidadão no sistema, aproximando-se, assim, do interesse do público.
Ramênia Vieira da Cunha – A Alemanha me chamou muito a atenção, por manter uma estrutura com autoridades de regulação da mídia em cada estado da federação (são 16 estados regulados por 14 autoridades de mídia – duas delas têm jurisdição sobre dois estados). Isso torna a regulação mais adaptada à realidade de cada uma dessas regiões, cabendo à associação nacional das autoridades (a ALM) o papel de agente regulador das transmissões e coberturas de abrangência nacional. A preocupação com a proteção à criança e ao adolescente também chama a atenção na legislação alemã.
Na Espanha, é a defesa contra a discriminação da mulher que ganha um bom espaço na regulação do conteúdo e do funcionamento das emissoras de radiodifusão. No Uruguai, ainda que o marco regulatório ainda esteja em discussão, o modelo atual prevê a regulação das telecomunicações e da comunicação audiovisual por um único órgão, o que elimina eventuais choques de competências entre organismos distintos e pode ser fator positivo para o controle efetivo sobre o funcionamento das emissoras.

No geral, como funciona a regulação de conteúdo nos países pesquisados por você? As agências reguladoras são, de fato, independentes?
Sivaldo – Os países que conseguem hoje ter melhor qualidade de conteúdo são aqueles que possuem códigos que buscam cristalizar princípios aos quais os meios estão submetidos democraticamente. Observe que não se trata de impor quais conteúdos devem ou não ser veiculados pelos meios, pois isso implicaria em podar a criatividade e a liberdade de expressão. Na verdade, trata-se de garantir que os conteúdos sejam plurais, diversos e que respeitem questões como equilíbrio de gênero, étnico, regional e político.
Ramênia – Há características comuns entre os agentes reguladores pesquisados. Uma delas é a busca pela independência em relação às empresas de comunicação, públicas ou privadas, e aos governos. O Executivo e o Legislativo participam, em maior ou menor grau, da indicação dos componentes dos órgãos reguladores, geralmente com participação prévia da sociedade. De qualquer forma, a maior parte dos países impede que os órgãos tenham como diretores pessoas com interesses econômicos ligados direta ou indiretamente ao setor regulado. O problema é montar um sistema legal que consiga identificar plenamente essas relações de interesses.
De forma geral, os organismos de regulação têm atuação tanto sobre o licenciamento das emissoras quanto sobre o mercado – em alguns casos, como na Alemanha, com controle sobre a concentração de poder econômico e político, pelo menos em termos teóricos. Esses órgãos também determinam a existência de infrações à lei e aplicam as respectivas sanções. Em termos de regulação de conteúdo, os organismos de regulação agem a partir de denúncias feitas pelo público ou por meio do monitoramento da programação pós veiculação. Ou seja, não ocorre nenhum tipo de censura prévia nos países pesquisados.

A proibição de que os órgãos de regulação tenham como diretores pessoas com interesses econômicos ligados direta ou indiretamente ao setor regulado me parece algo muito distante da realidade brasileira (leia matéria sobre um possível marco regulatório no Brasil na página 11). O Brasil já apresenta um acúmulo no debate que possa pressionar os poderes públicos para a criação de uma agência com um caráter participativo de toda a sociedade?
Ramênia – O Brasil está iniciando um processo. O debate existe, embora ainda muito restrito às universidades e às organizações não governamentais que militam na área. Mas é um processo que vai avançar, certamente. Claro que, pelas características das empresas de comunicação em atividade no Brasil e pela fase de desregulamentação das comunicações verificada na segunda metade do século passado, será um processo mais semelhante ao instalado na Argentina – de disputas acirradas de poder e de ações desesperadas por parte das empresas para evitar a perda da hegemonia – do que a relativa tranquilidade com que a regulamentação foi estabelecida na Europa, a partir de diretivas da União Europeia.
Sivaldo – Essa cultura política que envolve participação e autonomia ainda é um desafio no Brasil. Órgãos como a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) buscam autonomia mas não se abrem efetivamente para a participação do cidadão comum. Isso acaba repercutindo – ou reforçando – um perfil demasiadamente técnico-econômico. Algo claramente sentido na hora de a agência regular o setor das telecomunicações, por exemplo: ao invés de priorizar o mérito de um “player” em cumprir horizontes e princípios constitucionais valoriza-se, apenas, sua robustez enquanto empresa. Mas creio que estamos num momento importante de se pressionar para que haja um modelo regulatório que triangule participação, autonomia e efetividade, como ocorre em qualquer país democrático. Por isso que o debate sobre regulação dos meios de comunicação não pode ser mais estigmatizado como violação à liberdade de imprensa. É simplesmente o Estado de Direito sendo posto a funcionar. Empresas de comunicação das diversas áreas como impresso, TV, rádio, telefonia, internet não estão acima da lei: precisam cumprir regras e prestar contas de suas atividades, responder por elas publicamente. Toda democracia pressupõe veículos de comunicação livres, mas também pressupõe que os mesmos estejam qualificados para cumprirem suas funções públicas ao invés de servir a interesses privados de grupos econômicos ou políticos.

Alguns países trabalham ainda com questões de imparcialidade e pluralidade de visões na cobertura jornalística. No Brasil, a grande mídia prima por um jornalismo que não é plural, isso é fato. Nesse setor, nosso país estaria muito atrasado em relação aos países pesquisados?
Sivaldo – Sim. O Brasil está muito aquém de um modelo de regulação sofisticado em termos democráticos. Na verdade, mal temos regulação no setor. Veja que caiu a Lei de Imprensa, que não era boa, mas ficamos na várzea... sem regulação nenhuma para o setor, o que é ainda pior. E na radiodifusão e telecomunicações, onde sobrou alguma regulação precária, prevalece uma omissão institucionalizada, como é o caso da prática já histórica do Ministério das Comunicações ou um tecnicismo econômico fechado em si mesmo, como é o caso da Anatel.
O problema é que essa mistura de selva regulatória, omissão e tecnicismo não é mais sustentável. Não mais nesses tempos de convergência tecnológica. E, para piorar, o Brasil ainda luta para ter um sistema público de comunicação, aquele de forte presença, autonomia e que não possua fins lucrativos e tenha independência em relação ao governo (a exemplo da NHK, no Japão, o sistema ARD e ZDF da Alemanha ou a famosa BBC britânica).
Em solo brasileiro, prevaleceu uma distorção em que há um hiperdesenvolvimento de um sistema de comunicação privado, isto é, com fins lucrativos, algo que não ocorre em boa parte de países democraticamente desenvolvidos. E falo no sentido clássico de “public broadcast” (radiodifusão pública), em que há investimento público significativo que mantém um sistema de comunicação qualificado e independente. Algo diferente, por exemplo, de um veículo estatal diretamente subordinado ao governador ou presidente. No Brasil, a criação da EBC já foi um avanço. Porém, ainda temos poucos investimentos e é preciso aumentar a participação civil no controle da empresa, desvinculando-a ainda mais do governo e dando meios para se transformar numa grande rede que possa equilibrar-se ao sistema comercial hoje preponderante no país.

Sivaldo Pereira da Silva é PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia, professor do Departamento de Comunicação da Universidade Federal de Alagoas e membro do Intervozes.
Ramênia Vieira da Cunha é jornalista e membro do Intervozes.

Governo liberta trabalhadoras em boate no MT

Leonardo Sakamoto em seu blog

Você é explorada sexualmente em uma boate e como pagamento ganha fichinhas que podem ser trocadas por produtos com preço superfaturado (como macarrão instantâneo, cigarros, bebidas…) na loja do próprio estabelecimento em que você trabalha. Se não quitar a dívida contraída dessa bola de neve fraudulenta, fica trabalhando. Para a alegria dos clientes e dos donos do estabelecimento.


Essa foi a situação a que estavam expostas 20 mulheres em Várzea Grande, município vizinho à capital do Estado do Mato Grosso, Cuiabá. De acordo com reportagem de Bárbara Vidal, da Repórter Brasil, elas estavam mantidas em alojamentos precários e superlotados no interior da casa noturna Star Night. As jovens eram obrigadas a permanecer o tempo inteiro (quando digo o tempo inteiro, refiro-me às 24 horas do dia) à disposição dos donos do lugar, localizado a cerca de um quilômetro do Aeroporto Internacional Marechal Rondon. Não tinham folga nem aos domingos ou feriados. Algumas delas assinaram um contrato – ilegal, é claro – que as proibia de deixar a boate se não houvesse pagamento das “dívidas”.
Segundo Valdiney Arruda, chefe da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Mato Grosso e acompanhou a ação, as mulheres “viviam em regime total de subordinação”. Além de precários e superlotados, os espaços não tinham ventilação adequada e proteção contra incêndio e não respeitavam normas de higiene.
Outros quatro trabalhadores (um gerente e três garçons) também foram retirados de lá. Não ficavam acomodados na boate e retornavam para suas casas após o expediente, mas enfrentavam condições precárias, com jornadas exaustivas e sem descanso. Todas as vítimas tinham entre 18 e 23 anos de idade.
A operação também contou com a participação da Polícia Civil, Guarda Municipal e Conselho Tutelar e foi realizada em novembro. Participaram ainda integrantes da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública e da Comissão Estadual de Erradicação do Trabalho Escravo do Mato Grosso, após investigações que começaram quatro meses antes. As vítimas receberam os seus direitos trabalhistas, foram orientadas para que retornassem a seus municípios de origem e vão receber seguro-desemprego.
O Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas lançado no ano passado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e o Crime Organizado em parceria com a Iniciativa Global da ONU contra o Tráfico de Pessoas apontou que a forma mais comum de tráfico humano (79%) é para a exploração sexual, em que as vítimas são predominantemente mulheres e meninas. Em 30% dos países que fornecem informações sobre o gênero dos traficantes, as mulheres são a maioria dos traficantes.
Mulheres que vão buscar uma condição de vida melhor em outras cidades ou mesmo países e que não possuem informações sobre seus direitos são as mais atingidas pelo problema. Além disso, muitas acabam não procurando auxílio por vergonha de sua condição e medo de sanções criminais.

Jornalismo para quem precisa


Há alguns dias, lancei na minha página do Facebook uma idéia que venho acalentando há tempos, desde que encerrei um curso de extensão para uma faculdade privada de jornalismo, aqui em Brasília. O curso, de Técnica Geral de Jornalismo, reuniu pouco mais de 10 alunos, basicamente, porque era muito caro. Embora tenha sido uma turma de bons estudantes, gente verdadeiramente animada e interessada no ofício, me senti desconectado da real intenção do curso, que era de fazer um contraponto de método, opinião e visão ideológica a esse jornalismo que aí vemos, montado em teses absurdas, em matérias incompletas e mentirosas, omissas em tudo e contra todos, a serviço de um pensamento conservador, reacionário e golpista disseminado, para infelicidade geral, como coisa normal. Não é. E é sobre isso que eu queria falar enquanto ensinava, dia a após dias, os fundamentos práticos da pauta, da entrevista, da redação jornalística, da nobre função do jornalista na sociedade, no Brasil, na História.
Perguntei, então, no Facebook, o que estudantes de jornalismos e jornalistas formados achariam de eu transferir essas aulas para um espaço barato e democrático, capaz de levar esses conhecimentos a muito mais gente, sobretudo ao estudante pobre – e, quem sabe, credenciar também os pobres a brigar por uma vaga nas redações, que se tornaram ambientes muito elitistas. Encaretadas por manuais de doutrina e comportamento, adestradas pela conduta neoliberal dos anos 1990, quando passaram a responder diretamente pelas demandas do Departamento Comercial, as redações brasileiras se desprenderam da ação política, dos movimentos sociais, do protagonismo histórico a favor dos direitos humanos e da luta contra a desigualdade. Passaram, sim, a reproduzir um universo medíocre de classe média, supostamente a favor de uma modernidade pós-muro de Berlim, onde bradar contra privatizações e a adoração ao deus mercado passou a ser encarado como esquerdismo imperdoável e anacrônico.
Não por outra razão, os movimentos corporativos a favor da manutenção da obrigatoriedade do diploma de jornalista, que resistiram a todo tipo de investida patronal ao longo de duas décadas, foram definitivamente golpeados com o apoio e, em parte, a omissão, da maioria dos jovens profissionais de imprensa, notadamente os bem colocados em redações da chamada grande mídia. Vale lembrar que o jornalismo é, provavelmente, a única profissão do mundo onde existem profissionais que pedem o fim do próprio diploma. Há muitas nuances, claro, nessa discussão, inclusive porque há gente muito boa que, historicamente, se coloca contra o diploma, sobretudo velhos jornalistas criados em velhas e românticas redações, cenas de um mundo que, infelizmente, não existe mais.
Na essência, o fim da obrigatoriedade do diploma não é uma demanda de jornalistas, mas de patrões, baseada num argumento falacioso de liberdade de expressão – na verdade, de opinião –, quando a verdadeira discussão está, justamente, na formação acadêmica dos repórteres. E há uma distância abissal entre opinião e reportagem, porque a primeira qualquer um tem, enquanto a segunda não é só fruto de talento, mas de aprendizado, técnica e repetição.
Nas grandes empresas, o fim da obrigatoriedade do diploma coroou uma estratégia que tem matado o jornalismo: a proliferação de cursinhos internos de treinees, tanto para estudantes como para recém-formados, cuja base de orientação profissional é a competitividade a qualquer custo, um conceito puramente empresarial copiado, sem aparas, do decadente yupismo americano. Digo que tem matado porque esses cursinhos de monstrinhos competitivos relegam o papel universal do jornalista ao segundo plano, quando não a plano algum. A idéia de que o jornalista deva ser um profissional solidário, inserido na sociedade para lhe decifrar os dramas e transmiti-los a outros seres humanos passou a ser um devaneio, um delírio socialista a ser combatido como a um inimigo. Para justificar essa sanha, reforça-se o mito da isenção e da imparcialidade de uma mídia paradoxalmente comprometida com tudo, menos com a sua essência informativa, originalmente baseada no universalismo e no compromisso com o cidadão.
Na outra ponta, o fim da obrigatoriedade do diploma abriu a porteira para jagunços e capangas ocuparem as redações da imprensa regional, longe da fiscalização da lei e dos sindicatos, alegremente autorizados a fazer, literalmente, qualquer coisa com qualquer pessoa. Mesmo para o novo modelo de jornalismo que se anuncia na internet, baseado em disseminação mútua de informações primárias, como no caso dos vazamentos do Wikileaks, haverá sempre a necessidade do tratamento jornalístico dos conteúdos. E, para esse serviço, não há outro trabalhador credenciado senão um bom repórter treinado e formado para essa missão. Formação esta que, insisto, deve ser feita na academia e reforçada na experiência diária da reportagem.
Recentemente, li sobre a criação, em 2010, do Instituto de Altos Estudos em Jornalismo, sob os auspícios da Editora Abril. Entre os mestres do tal centro estavam o dono da editora, Roberto Civita, mantenedor da Veja, e Carlos Alberto Di Franco, do Master de Jornalismo, uma espécie de Escola das Américas da mídia nacional voltada para a formação de “líderes” dentro das redações. Di Franco, além de tudo, é um dos expoentes, no Brasil, da ultradireitista seita católica Opus Dei, a face mais medieval e conservadora da Igreja Católica no mundo.
Sinceramente, não vejo que “altos estudos”, muito menos de jornalismo, podem sair de um lugar assim.
Não tenho dúvidas de que a representação do tal instituto não é acadêmica, embora seja dirigido por Eugênio Bucci, ex-presidente da Radiobrás no governo do PT, renomado estudioso da imprensa no Brasil. Trata-se de uma representação fundamentalmente ideológica, a reforçar as mesmíssimas estruturas de poder das redações, estruturas ultraverticalizadas, essencialmente antidemocráticas e personalistas, onde a possibilidade de ascensão funcional, sobretudo a cargos de chefia, está diretamente ligada à capacidade de ser subserviente aos patrões e bestas-feras com os subordinados.
Felizmente, o surgimento da internet deu vazão a outro ambiente midiático, regido por outras regras e demandas, um devastador contraponto ao funcionamento hermético das grandes redações e ao poder hegemônico da velha mídia brasileira, inclusive de seus filhotes replicadores e retransmissores Brasil adentro. O fenômeno dos blogs e sua capacidade de mobilização informativa é só a parte mais visível de um processo de reordenamento da comunicação social no mundo. As redes sociais fragmentaram a disseminação de notícias, fatos, dados estatísticos, informes e informações em um nível adoravelmente incontrolável, criando um ambiente noticioso ainda a ser desbravado por novas gerações de repórteres que, para tal, precisam ser treinados e apresentados a novas técnicas e, sobretudo, a novas idéias.
A “era do aquário”, para ficar numa definição feliz do jornalista Franklin Martins – aliás, contrário à obrigatoriedade do diploma –, está prestes a terminar. O jornalismo decidido por cúpulas restritas, com pouco ou nenhum apego à verdade dos fatos, está reduzida a um universo patético de mau jornalismo desmascarado instantaneamente pela blogosfera, vide a versão rocambolesca da TV Globo sobre a bolinha de papel na cabeça de José Serra ou a farsa do grampo sem áudio que uniu, numa mesma trama bisonha, a revista Veja, o ministro Gilmar Mendes, do STF, e o senador Demóstenes Torres, do DEM de Goiás.
Não será a escola de “altos estudos” da Veja e do professor Di Franco, portanto, a suprir essa necessidade. Essa demanda terá que ser suprida por repórteres ciosos de outro tipo de jornalismo, mais aberto e solidário, comprometido com a verdade factual e a honestidade intelectual, interessado em boas histórias. Um jornalismo mais leve e mais humano, mais preocupado com a qualidade da informação do que com a vaidade do furo. Um jornalismo vinculado à realidade, não a interesses econômicos. E isso, certamente, só poderá ser viabilizado dentro de outro modelo, cooperativo e democrático, a ser exercido a partir das novas mídias virtuais.
Por isso, é preciso estabelecer também um contraponto à ideologia da mídia hegemônica no campo da formação, em complemento aos cursos superiores de jornalismo. Abrir espaço para os milhares de estudantes de comunicação, em todo o Brasil, que não têm chance de participar dos cursinhos de treinees dos jornalões e das grandes emissoras de radiodifusão. Dar a eles, de forma prática e barata, uma oportunidade de aprender jornalismo com bons repórteres, com repórteres de verdade.
Foi nisso que pensei quando idealizei, em 2007, a Escola Livre de Jornalismo, junto com outros dois amigos, ambos ótimos jornalistas, Olímpio Cruz Neto e Gustavo Krieger. Com eles, ajudei a montar bem sucedidos ciclos de palestras e oficinas de jornalismo em Brasília. Em 2009, um ano antes do 1º Encontro Nacional de Blogueiros Progressistas, em São Paulo, a Escola Livre, em parceria com o IESB, já havia conseguido reunir, na capital federal, os principais expoentes desse movimento no país: Luis Nassif (Blog do Nassif), Paulo Henrique Amorim (Conversa Afiada), Rodrigo Vianna (Escrevinhador), Marco Weissheimer (RS Urgente) e Luiz Carlos Azenha (Viomundo). Uma semana de debates ricos, bem humorados, em um auditório permanentemente lotado de estudantes de jornalismo e jornalistas profissionais. Foi nosso único evento gratuito e, claro, o de maior sucesso. Os ciclos e oficinas, embora tenham tido boa audiência, esbarravam sempre no problema do custo para os estudantes: como nos cursinhos de treinee da velha mídia, acabávamos por privilegiar um segmento de jovens já socialmente privilegiados. É dessa frustração e dessa armadilha que proponho fugir agora.
Por isso, expus no Facebook a idéia de ministrar minhas aulas de Técnica Geral de Jornalismo, divididas em módulos, de modo que cada estudante pague um valor baixo por cada aula. Ou seja, os estudantes vão às aulas que quiserem, pagam na entrada e participam de duas horas de aula de jornalismo sobre tópicos práticos e temas relevantes. Minha idéia é convocar outros repórteres de Brasília a participar desse movimento da Escola Livre de Jornalismo, com o compromisso de, em troca da aula de duas horas, receber 70% do valor arrecadado no dia, porque 30% serão sempre destinados à administração e organização do curso.
Além do valor da aula, ainda a ser estipulado, cada aluno deverá também levar um alimento não perecível qualquer, a ser distribuído para comunidades pobres do Distrito Federal ou instituições de assistência social a serem definidas com futuros parceiros. Esses mantimentos, inclusive, poderão ser usados como moeda de troca para podermos utilizar gratuitamente algum espaço físico em Brasília para ministrar as aulas. É algo ainda a ser definido.
A idéia está lançada. No Facebook, recebi quase 100 adesões imediatas de estudantes, jornalistas, incluindo alunos e ex-alunos realmente satisfeitos com a perspectiva de participar de um movimento interativo desse nível, a preços populares. Espero poder iniciar as primeiras aulas em fevereiro de 2011 e, desde já, conto com a participação de todos os amigos e colegas jornalistas do Brasil que quiserem compartilhar essa experiência. Quanto mais gente boa dando aula, mais gente boa a ser formada. Como nas experiências anteriores, a Escola Livre de Jornalismo espera contar com a parceria das faculdades de jornalismo do DF para transformar em crédito a freqüência dos estudantes nas aulas, de modo a colaborar com uma necessidade acadêmica deles, as horas extra-sala de atividades complementares.
Por favor, quem quiser participar dê o ar das graças. Nossa missão inicial é achar um lugar amplo e legal, com cadeiras e uma boa mesa de professor, para dar as aulas. A depender do nível de adesão dos colegas jornalistas, vamos organizar uma agenda para as aulas, que serão sempre aos sábados, em princípio, das 9 às 11 horas da manhã.
Por enquanto, é esse o meu manifesto, é essa a minha idéia. O resto virá, tenho certeza, na garupa de bons ventos.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

28 de dezembro de 1937: Morre o compositor francês Maurice Ravel

Morre em Paris aos 62 anos em 28 de dezembro de 1937 o célebre compositor Maurice Ravel que havia se tornado um grande expoente do impressionismo na música. Ao lado de Claude Debussy, com quem tinha afinidade de estilo, afastou a música clássica francesa do romantismo wagneriano. Compôs música fluida e altamente original dentro dos marcos das formas clássicas. Ravel brilhou nas composições para piano, orquestrando com frequência suas próprias composições e de outros autores.

Joseph-Maurice Ravel nasceu nos Pirineus franceses, perto da fronteira com a Espanha em 7 de março de 1975. Obrigações profissionais do pai levaram a família a Paris, onde o jovem Ravel ingressa no Conservatório Musical aos 14 anos. Matriculou-se como pianista, mas mudou para composição sob orientação de Gabriel Fauré.

Wikipedia

Foto de Ravel, tirada em 1912


Ravel era menos radical como compositor que Debussy, mas rebelde ao seu jeito. Onde Debussy podia compor peças para agradar os mestres do Conservatório e ganhar o Prêmio de Roma, Ravel se recusou a se submeter às regras de composição da escola. Deixar de ganhar prêmios o subestimou aos olhos de seus professores ainda quando, desde cedo, escrevesse peças de sucesso como a Sonata para Violino (1897) e Sheherazade (1898). Devido ao êxito dessas composições, ter deixado de ganhar o Prêmio de Roma de 1905 provocou um escândalo público e a mudança na direção do Conservatório.

Logo após esse episódio, Ravel entrou num período de grande criação, produzindo obras como L'Heure Espagñole e Rapsodie Espagñole (1907), Valses Nobles et Sentimentales (1911), importantes peças para piano e o balé Daphnis et Chloé para o Balé Russo de Sergei Diaghilev em 1912. Por essa época encontrou-se com Igor Stravinsky, formando um grupo de compositores radicais conhecido como Les Apaches. Em 1906, começou mas não concluiu uma homenagem orquestral a Johann Strauss a que chamou Viena, que viria com La Valse 14 anos mais tarde. 

Veja abaixo uma versão africana do Bolero de Ravel, sua obra mais famosa:



Quando eclodiu a Primeira Guerra Mundial deixou de compor. Tentou alistar-se mas foi rejeitado por razões físicas e terminou como motorista militar. Em 1916 afetado por uma disenteria volta a Paris. Pouco depois morre sua mãe que era seu contato humano mais próximo, pois Ravel nunca se casou. Deprimido, passou por longa inatividade musical. Desta época pode-se destacar apenas Poemes de Mallarmé (1915), Trois Chansons (1916), e Le Tombeau de Couperin (1917).

Após a guerra conclui Wien (Viena), considerando-a um ‘poema coreográfico’, mudando o título para La Valse. Após La Valse veio L'Enfant et les Sortilèges (1925), uma turnê pelos Estados Unidos em 1928, e no mesmo ano, Bolero, certamente sua obra mais famosa. O Concerto para Piano em Sol maior e o Concerto para Piano para a Mão Esquerda vieram à luz em 1930 e 1931. Os últimos anos de Ravel foram afetados pela Doença de Pick, mal que se reflete em distúrbios de linguagem, personalidade e comportamento e é um tipo de demência fronto-temporal. Cirurgia de cérebro em 1937 não foi bem sucedida e Ravel morre alguns meses depois.


Ravel era reservado e meticuloso. Poucos viram-no compondo embora muitos o tenham visto orquestrando e seus estudos raramente mostravam sinais de um trabalho em andamento. Como contemporâneos, Ravel e Debussy influenciavam e respeitavam um ao outro, porém seu relacionamento sofria nas mãos de críticos desejosos de denegrir Ravel em favor de Debussy.

De 1900 até sua morte, Debussy era considerado o maior compositor francês, tendo depois Ravel assumido o manto. Ravel e Debussy são amiúde comparados, no entanto eram compositores distintos. Ravel empregou técnicas impressionistas em trabalhos como Daphnis et Chloé, Ma Mère l'Oye, e La Valse, mas ele era na realidade um clássico. Fantástico orquestrador, Ravel utilizava toda a gama de instrumentos, mas colocava cada nota, corda ou instrumento como um joalheiro lapida suas joias. Sua orquestração de Quadros de uma Exposição de Mussorgsky é um de seus mais famosos trabalhos orquestrais. 
 
Fonte: OperaMundi

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Democratização da Mídia passa pela aprovação da ADO 11 no Supremo


Desde o dia 13 de dezembro encontra-se protocolada no Supremo Tribunal Federal, aguardando entrar na ordem do dia para julgamento a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão, a ADO 11, proposta pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Comunicação e Publicidade – CONTCOP.

Por José Reinaldo Carvalho*

Por incrível que pareça, 22 anos depois de promulgada a Constituição vigente, outrora denominada “Constituição cidadã”, dispositivos constitucionais relativos aos meios de comunicação de massa, imprensa, rádio e televisão - ainda não foram regulamentados por lei.

Em decorrência, impera a lei da selva no setor, inteiramente submetido aos caprichos e ditames de famílias e corporações que, dispondo de infra-estrutura criada pelo Estado, de infinita liberdade e de polpudas verbas provenientes de anúncios, boa parte dos quais de origem governamental, violam o direito fundamental da sociedade à informação. Em lugar desse inalienável direito, usam e abusam do seu próprio, erguendo uma trincheira de luta contra a democracia, para o que se valem da aparatosa usina de mentiras que soergueram e permanece intacta, desde os tempos da ditadura militar.

A ADO 11 tem por foco três questões nodais para a luta pela democratização dos meios de comunicação no país: a garantia do direito de resposta a qualquer pessoa ofendida através dos meios de comunicação; a proibição do monopólio e do oligopólio no setor e o cumprimento, pelas emissoras de Rádio e TV, da obrigação constitucional de dar preferência a programação de conteúdo informativo, educativo e artístico, além de priorizar finalidades culturais nacionais e regionais.

A ADO 11 reveste-se de enorme importância para o país, pois atinge em seu âmago, o monopólio dos meios de comunicação, um dos maiores obstáculos à plena vigência da democracia no país. Colateralmente, atinge um dos principais vícios nacionais, a omissão, no caso do Poder Legislativo, quando se trata de regulamentar os dispositivos constitucionais correspondentes a necessidades estruturais do país e que golpeiam interesses de poderosas corporações. Com a palavra e a ação agora, o Poder Judiciário.

As propostas constantes da ADO 11 constituem o núcleo do que poderia vir a ser uma Lei dos Meios de Comunicação que efetivamente democratize o setor. Daí sua importância estratégica.

Isto explica o silêncio da mídia sobre a sua tramitação na Corte Suprema. Por isso, está nas mãos do movimento sindical ligado ao setor, aos portais e sites de informação e análise política, aos blogueiros progressistas, aos parlamentares comprometidos com a liberdade de expressão e a democratização efetiva do país, ao conjunto das organizações do movimento social, divulgar notícias sobre a tramitação da ADO 11 no STF, acompanhá-la passo a passo, organizar uma campanha democrática por um julgamento favorável e para que prevaleçam os princípios nela defendidos.

O Portal Vermelho, que tem como princípio fundador a luta pela democratização dos meios de comunicação e a plena liberdade de expressão, com as quais é incompatível o oligopólio exercido por um punhado de famílias e corporações empresariais, abre seu espaço para a difusão da campanha em favor da ADO 11.

*Editor do Vermelho

Aborígenes australianos criam partido para defender seus direitos


Mais de quarenta anos depois que os aborígenes obtiveram o status de cidadãos, a Austrália deverá em breve ter seu primeiro partido político autóctone. O partido das First Nations (“primeiras nações”) acaba de ser formado, por iniciativa de Maurie Ryan, um ativista aborígene. Segundo Ryan, 2 mil pessoas pediram para se tornar membros do partido. A comissão eleitoral deverá registrá-lo oficialmente em janeiro.

Esse novo partido político manifesta o descontentamento de muitos aborígenes frente aos dois principais partidos, os liberais e os trabalhistas, acusados de não se preocuparem o suficiente com o destino dos primeiros habitantes do continente.

Até hoje, os autóctones permaneciam à margem do mundo político. Existem alguns parlamentares autóctones nos Estados australianos, mas foi preciso esperar as eleições federais, neste ano, para ver o primeiro deputado aborígene, Ken Wyatt, entrar na Câmara dos Representantes.

“Estamos decepcionados com os dois partidos, que não fazem o suficiente por nós, e que não escolhem candidatos aborígenes para as eleições. Existem partidos autóctones no mundo inteiro, é hora de termos um aqui também para nos representar”, alega Ryan, originário da nação Gurindji, no Território do Norte.

Ele terá muito trabalho pela frente, pois os aborígenes australianos representam a comunidade mais desfavorecida do país. Desemprego e problemas ligados ao alcoolismo corroem a população e, nas áreas isoladas do Território do Norte, as condições de vida às vezes são dignas do Terceiro Mundo. Resultado: segundo a Agência de Estatísticas, a expectativa de vida dos aborígenes é 10 anos menor que a média nacional. E embora os indígenas representem somente 2% da população, eles compõem quase um quarto da população carcerária. “Nós queremos falar sobre os problemas do emprego, da moradia, da saúde. Mas também de direitos fundiários e da soberania”, comenta Ryan.

Na linha de mira do partido, estará sobretudo a “Northern Territory Intervention”, uma grande operação implantada pelo governo liberal em 2007, e continuada desde então pelo governo trabalhista. Esse texto, aprovado após a publicação de um relatório que revelava casos de abusos sexuais em crianças das comunidades aborígenes, deveria solucionar problemas de violência e de abuso de álcool.

Em dezenas de comunidades autóctones do Território do Norte, a população foi proibida de ter álcool ou material pornográfico. Além disso, as bolsas de auxílio às famílias foram colocadas sob tutela. É o caso em Kalkaringi, onde vive Maurie Ryan. “É a lei mais racista de todos os tempos. Ela deve ser abandonada. Essa colocação sob tutela dos auxílios a todas as famílias, sem exceção, tenham elas problemas ou não, é profundamente injusta”, comenta. Além disso, a intervenção foi considerada discriminatória pela ONU.

Embora não se espere que ele vá conseguir muitos votos nos centros urbanos, o partido aborígene poderá levar até 20% dos votos na Austrália Central, segundo analistas. “Houve um grande movimento de desinteresse em relação aos trabalhistas nas últimas eleições, sendo que os aborígenes tradicionalmente votam neles. Isso deixa um lugar potencial para esse novo partido”, acredita Rolf Gerritsen, professor da Universidade Charles Darwin e especialista no Território.

Com o sistema eleitoral de transferência de votos em favor dos grandes partidos, poderá haver uma pressão por parte desse novo partido junto aos pesos-pesados da política australiana. Maurie Ryan quer apresentar candidatos para as eleições regionais em 2012.
 
Tradução: Lana Lim

Fonte: Le Monde via Portal Vermelho

Turquia islamista versus Irã secular?


É possível que o Irã se torne o líder da sanidade e criatividade no Oriente Médio, enquanto o mais vigoroso aliado muçulmano do Ocidente, a Turquia, se transforme na maior fonte de hostilidade da região. Por Daniel Pipes


No início do século XVI, enquanto o império Otomano e o império Safávida lutavam pelo controle do Oriente Médio, Selim I, governando de Istambul, entregava-se ao seu lado artístico ao compor célebres poesias em persa, na época a língua da alta cultura no Oriente Médio. Simultaneamente, Ismail I, governando de Esfahan, escrevia poesias em turco, sua língua ancestral. Esta justaposição vem à mente no momento em que as populações da Turquia e do Irã iniciam uma nova troca.  Enquanto a Turquia secular fundada por Atatürk ameaça desaparecer sob uma onda islamista, a República Islâmica fundada por Khomeini aparentemente titubeia, à beira do secularismo. Ironicamente, turcos querem viver como iranianos, e iranianos como turcos.
Selim I escrevia em persa enquanto Ismail I preferia o turco, sua língua ancestral

Turquia e Irã são países grandes, influentes, de maioria muçulmana, relativamente avançados, historicamente centrais, estrategicamente posicionados, e amplamente observados; ao cruzarem caminhos, como previ em 1994, correndo em direções opostas, seus destinos irão afetar não apenas o futuro do Oriente Médio, mas potencialmente o mundo muçulmano inteiro.

Isto está acontecendo agora. Vamos rever a evolução de cada país:

Turquia: Atatürk praticamente removeu o Islã da vida pública no período de 1923-28. No entanto, ao longo das décadas, os islamistas reagiram e por volta de 1970 formaram parte de uma coalizão de liderança; em 1996-97 até lideraram um governo. Os islamistas tomaram o poder após a estranha eleição de 2002, quando obtiveram um terço dos votos e garantiram dois terços dos assentos parlamentares. Governando com competência e precaução, conseguiram aproximadamente metade dos votos em 2007, momento no qual tiraram suas luvas e as ameaças começaram, desde a descontrolada e excessiva multa cobrada de uma mídia crítica a infundadas teorias de conspiração contra as Forças Armadas. Os islamistas conseguiram 58% dos votos em um referendo em setembro e aparentam estar prontos para vencer as próximas eleições parlamentares, marcadas para junho de 2011.
Caso os islamistas vençam as próximas eleições, isto irá, provavelmente, estabelecer a premissa para que permaneçam continuamente no poder, e durante esse período irão forçar o país à sua vontade, instituindo a lei islâmica (a sharia) e construindo uma ordem islâmica semelhante ao regime idealizado por Khomeini.
Irã: Khomeini fez o oposto de Atatürk, tornando o Islã politicamente dominante durante o seu período no poder, de 1979 a 1989, mas após isso, logo começou a vacilar, com facções discordantes emergindo, a economia caindo, e a população se distanciando do governo extremista. Nos anos 90, observadores externos esperavam a rápida queda do regime. Apesar da crescente desilusão da população, a maior influência do Corpo de Elite da Guarda Revolucionária Islâmica e a chegada ao poder de veteranos endurecidos da guerra Irã-Iraque, simbolizados por Mahmoud Ahmadinejad, deram ao regime uma segunda lufada.
Atatürk excluiu o Islã da vida pública na Turquia e Khomeini o tornou central no Irã

Esta reafirmação das metas islâmicas também aumentou a alienação da população com relação ao regime, incluindo um distanciamento das práticas islâmicas em direção ao secularismo. As crescentes patologias do país, o consumo desenfreado de drogas, pornografia e prostituição apontam para a profundidade de seus problemas. A alienação instigou demonstrações contrárias ao regime logo após as fraudulentas eleições de junho de 2009. A repressão que se seguiu incitou ainda mais raiva contra as autoridades.
Uma corrida está a caminho. Exceto que não é uma competição justa, uma vez que islamistas governam nas duas capitais, Ancara e Teerã.
Olhando para o futuro, o Irã representa tanto o maior perigo quanto a maior esperança para o Oriente Médio. Sua escalada nuclear, o terrorismo, a agressividade ideológica e a formação de um “bloco de resistência” apresentam uma verdadeira ameaça global, abrangendo desde o aumento excessivo do preço do petróleo e gás a um ataque de pulso eletromagnético aos Estados Unidos. Mas se estes perigos puderem ser direcionados, controlados e vencidos, o Irã possui um potencial único de liderar os muçulmanos para fora da escuridão islamista em direção a uma forma mais moderna, moderada e amigável do Islã. Assim como em 1979, tal feito provavelmente afetará muçulmanos em todas as partes do mundo.
Contrariamente, enquanto o governo turco apresenta um menor perigo imediato, sua aplicação mais sutil dos abomináveis princípios islamistas o agiganta como uma ameaça futura. Muito tempo após Khomeini e Osama Bin Laden terem sido esquecidos, acredito que Recep Tayyip Erdoğan e seus colegas serão lembrados como inventores de uma forma de islamismo mais duradoura e insidiosa.
Portanto, é possível que o país mais problemático do Oriente Médio possa se tornar o líder da sanidade e criatividade do amanhã, enquanto que o mais vigoroso aliado muçulmano do Ocidente, por mais de cinco décadas, poderá se tornar a maior fonte de hostilidade e reação. A extrapolação é um jogo de tolos, a roda gira e com a história surgem surpresas.

Dois pontos que não se encaixaram no corpo principal da minha coluna:

(1) Ultimamente, Ancara e Teerã trabalham em conjunto, mas prevejo que em breve se tornarão rivais pela liderança islamista. Orgulho histórico, ambições sectárias e competições geoestratégicas sugerem que o atual momento de harmonia não irá durar muito. Observe a Turquia disputando a liderança iraniana em áreas como talento comercial, poderio militar e autoridade religiosa.
(2) Em 1994, eu apontei esta rivalidade em um artigo, publicado na National Interest, no qual eu ressaltei uma “luta longa, profunda e difícil” provavelmente fermentando “entre dois dos maiores países do Oriente Médio, Turquia e Irã”. Os turcos, eu escrevi, “parecem ainda não ter percebido o que os mulás sabem: que o Islã fundamentalista irá elevar-se ou decair de acordo com o que os turcos fizerem e que, portanto, a Turquia e o Irã estão envolvidos num confronto mortal. Será que os turcos irão acordar a tempo de se defender? Muito depende deste resultado.”

Maria e José na Palestina em 2010

Maria e José na Palestina em 2010

James Petras*Odiario.info
 James Petras 
Neste conto de Natal de James Petras, a alegoria ao nascimento de Jesus mostra-nos a persistência secular da injustiça e aponta-nos a necessidade de lutar por um mundo moderno.


Os tempos eram duros para José e Maria. A bolha imobiliária explodira. O desemprego aumentava entre trabalhadores da construção civil. Não havia trabalho, nem mesmo para um carpinteiro qualificado.
Os colonatos ainda estavam a ser construídos, financiados principalmente pelo dinheiro judeu da América, contribuições de especuladores de Wall Street e donos de antros de jogo.
“Bem”, pensou José, “temos algumas ovelhas e oliveiras e Maria cria galinhas”. Mas José preocupava-se, “queijo e azeitonas não chegam para alimentar um rapaz em crescimento. Maria vai dar à luz o nosso filho um dia destes”. Os seus sonhos profetizavam um rapaz robusto a trabalhar ao seu lado… multiplicando pães e peixes.
Os colonos desprezavam José. Este raramente ia à sinagoga, e nas festividades chegava tarde para fugir à dízima. A sua modesta casa estava situada numa ravina próxima, com água duma ribeira que corria o ano inteiro. Era mesmo um local de eleição para a expansão dos colonatos. Por isso quando José se atrasou no pagamento do imposto predial, os colonos apropriaram-se da casa dele, despejaram José e Maria à força e ofereceram-lhes bilhetes só de ida para Jerusalém.
José, nascido e criado naquelas colinas áridas, resistiu e feriu uns tantos colonos com os seus punhos calejados pelo trabalho. Mas acabou abatido sobre a sua cama nupcial, debaixo da oliveira, num desespero total.
Maria, muito mais nova, sentia os movimentos do bebé. A sua hora estava a chegar.
“Temos que encontrar um abrigo, José, temos que sair daqui… não há tempo para vinganças”, implorou.
José, que acreditava no “olho por olho” dos profetas do Antigo Testamento, concordou contrariado.
E foi assim que José vendeu as ovelhas, as galinhas e outros pertences a um vizinho árabe e comprou um burro e uma carroça. Carregou o colchão, algumas roupas, queijo, azeitonas e ovos e partiram para a Cidade Santa.
O trilho era pedregoso e cheio de buracos. Maria encolhia-se em cada sacudidela; receava que o bebé se ressentisse. Pior, estavam na estrada para os palestinos, com postos de controlo militares por toda a parte. Ninguém tinha avisado José que, enquanto judeu, podia ter-se metido por uma estrada lisa pavimentada – proibida aos árabes.
Na primeira barragem José viu uma longa fila de árabes à espera. Apontando para a mulher muito grávida, José perguntou aos palestinos, meio em árabe, meio em hebreu, se podiam continuar. Abriram uma clareira e o casal avançou.
Um jovem soldado apontou a espingarda e disse a Maria e a José para se apearem da carroça. José desceu e apontou para a barriga da mulher. O soldado deu meia volta e virou-se para os seus camaradas. “Este árabe velho engravida a rapariga que comprou por meia dúzia de ovelhas e agora quer passar”.
José, vermelho de raiva, gritou num hebreu grosseiro, “Eu sou judeu. Mas ao contrário de vocês… respeito as mulheres grávidas”.
O soldado empurrou José com a espingarda e mandou-o recuar: “És pior do que um árabe – és um velho judeu que violas raparigas árabes”.
Maria, assustada com o caminho que as coisas estavam a tomar, virou-se para o marido e gritou, “Pára, José, ou ele dispara e o nosso bebé vai nascer órfão”.
Com grande dificuldade, Maria desceu da carroça. Apareceu um oficial do posto da guarda, a chamar por uma colega, “Oh Judi, apalpa-a por baixo do vestido, ela pode ter bombas escondidas”.
“Que se passa? Já não gostas de ser tu a apalpá-las?” respondeu Judith num hebreu com sotaque de Brooklyn. Enquanto os soldados discutiam, Maria apoiou-se no ombro de José. Por fim, os soldados chegaram a um acordo.
“Levanta o vestido e o que tens por baixo”, ordenou Judith. Maria ficou branca de vergonha. José olhava para a espingarda desmoralizado. Os soldados riam-se e apontavam para os peitos inchados de Maria, gracejando sobre um terrorista ainda não nascido com mãos árabes e cérebro judeu.
José e Maria continuaram a caminho da Cidade Santa. Foram frequentes vezes detidos nos postos de controlo durante a caminhada. Sofriam sempre mais um atraso, mais indignidades e mais insultos gratuitos proferidos por sefarditas e asquenazes, homens e mulheres, leigos e religiosos – todos soldados do povo Eleito.
Já era quase noite quando Maria e José chegaram finalmente ao Muro. Os portões já estavam fechados. Maria chorava em pânico, “José, sinto que o bebé está a chegar. Por favor, arranja qualquer coisa depressa”.
José entrou em pânico. Viu as luzes duma pequena aldeia ali ao pé e, deixando Maria na carroça, correu para a casa mais próxima e bateu à porta com força. Uma mulher palestina entreabriu a porta e espreitou para a cara escura e agitada de José. “Quem és tu? O que é que queres?”
“Sou José, carpinteiro das colinas do Hebron. A minha mulher está quase a dar à luz e preciso de um abrigo para proteger Maria e o bebé”. Apontando para Maria na carroça do burro, José implorava na sua estranha mistura de hebreu e árabe.
“Bem, falas como um judeu mas pareces mesmo um árabe”, disse a mulher palestina a rir enquanto o acompanhava até à carroça.
A cara de Maria estava contorcida de dores e de medo; as contracções estavam a ser mais frequentes e intensas.
A mulher disse a José que levasse a carroça de volta para um estábulo onde se guardavam as ovelhas e as galinhas. Logo que entraram, Maria gritou de dor e a palestina, a que entretanto se juntara uma parteira vizinha, ajudou rapidamente a jovem mãe a deitar-se numa cama de palha.
E assim nasceu a criança, enquanto José assistia cheio de temor.
Aconteceu que passavam por ali alguns pastores, que regressavam do campo, e ouviram uma mistura de choro de bebé e de gritos de alegria e se apressaram a ir até ao estábulo levando as suas espingardas e leite fresco de cabra, sem saber se iam encontrar amigos ou inimigos, judeus ou árabes. Quando entraram no estábulo e depararam com a mãe e o menino, puseram de lado as armas e ofereceram o leite a Maria que lhes agradeceu tanto em hebreu como em árabe.
E os pastores ficaram estupefactos e pensaram: Quem seria aquela gente estranha, um pobre casal judeu, que chegara em paz com uma carroça com inscrições árabes?
As novas espalharam-se rapidamente sobre o estranho nascimento duma criança judia mesmo junto ao Muro, num estábulo palestino. Apareceram muitos vizinhos que contemplavam Maria, o menino e José.
Entretanto, soldados israelenses, equipados com óculos de visão nocturna, reportaram das suas torres de vigia que cobriam a vizinhança palestina: “Os árabes estão a reunir-se mesmo junto ao Muro, num estábulo, à luz das velas”.
Abriram-se os portões por baixo das torres de vigia e de lá saíram camiões blindados com luzes brilhantes, seguidos por soldados armados até aos dentes que cercaram o estábulo, os aldeões reunidos e a casa da mulher palestina. Um altifalante disparou, “Saiam cá para fora com as mãos no ar ou disparamos”. Saíram todos do estábulo, juntamente com José, que deu um passo em frente de braços virados para o céu e falou, “A minha mulher Maria não pode obedecer às vossas ordens. Está a amamentar o menino Jesus”.

Este artigo foi publicado em www.lahaine.org e em http://resistir.info.

Tradução de Margarida Ferreira.