terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Brevíssima história de 40 anos de políticas neoliberais


Muitos especialistas dizem que a ideologia neoliberal iniciou nos anos 80 com Reagan, Thatcher e a Escola de Chicago. Mas o que tornou possível esse giro na economia política? Que elementos, que novas forças podem explicar essa mudança ideológica e as desigualdades que a seguiram? Como os poderes que tomam decisões políticas foram sendo postos gradualmente nas mãos de um corpo de tecnocratas neoliberais que pontificavam sobre as limitações dos governos? Responder a essas questões passa por reconhecer que este processo durou décadas. O artigo é de Marshall Auerback.

Um assíduo leitor de New Deal 2.0 faz uma aguda questão:
“Há uma questão que nunca consigo responder. Muitos especialistas dizem que a ideologia neoliberal iniciou nos anos 80 com Reagan, Thatcher e a Escola de Chicago. Mas sigo sem entender o que tornou possível esse giro na economia política. Que elementos, que novas forças nos anos 80 podem explicar essa mudança ideológica e as desigualdades que a seguiram?"

Todos esses temas são muito dignos de exploração e eu, quero dizer desde logo, não posso fazer justiça a eles com uma resposta de duas linhas. É melhor recomendar o soberbo livro de Yves Smith, Econned. O livro proporciona uma excelente explicação histórica do modo como algumas teorias infundadas, mas amplamente aceitas, levaram à execução de políticas que geraram o atual estado de coisas. Também ilumina a capacidade dessas filosofias para ressuscitar mesmo quando se acumulam provas conclusivas contra elas. Documenta não só a crescente degradação dos economistas profissionais neoclássicos (e sua concomitante tendência a reduzir a soma da experiência humana a uma série de equações matemáticas), mas também a maneira pela qual fundações muito bem financiadas subvencionaram universidades e think tanks que, por sua vez, legitimaram e validaram essas filosofias charlatanescas.

A ideia de que governos democraticamente eleitos devem servir-se de políticas fiscais discricionárias para contraestabilizar as flutuações do ciclo do gasto público chegou a ser visto como algo muito próximo ao socialismo. Os poderes que tomam decisões políticas foram postos gradualmente nas mãos de um corpo de tecnocratas neoliberais que pontificavam sobre as limitações dos governos e reforçavam as posições fiscalmente pró-cíclicas, ou seja: reforçavam a contração discricionária quando os estabilizadores automáticos levavam a grandes déficits orçamentários como resultado da frágil demanda não-pública.

Essa mudança em nossas políticas públicas foi acompanhada por um processo de tomada de controle dos juristas em uma longa marcha através do poder Judiciário. Foi um esforço patrocinado pelas grandes empresas, centrado exclusivamente no tema da desregulação, e culminou com um esforço titânico para revogar as reformas do New Deal, limitar o poder dos sindicatos e do próprio governo (salvo em matéria de Defesa, cabe assinalar, que organizou seu próprio e formidável exército de lobistas).

Responder a questão colocada por nosso leitor passa por reconhecer que este foi um processo que durou décadas e que veio acompanhado de enormes somas de dinheiro e de vasto exército de forças empresariais, jurídicas e políticas, empenhado em frustrar qualquer alternativa progressista. O processo inteiro ocorreu em um período de aproximadamente 40 anos. Flexibilização da regulação e da supervisão; uma crescente desigualdade que levou às famílias a se endividar para manter o nível de gasto; cobiça e exuberância irracional e liquidez global excessiva: todos esses são sintomas do mesmo problema.

Mas como tudo começou? A análise que o grande economista Hyman Minsky realizou no final de sua vida é particularmente potente, porque permite ver essas mudanças a partir de uma vasta perspectiva histórica. Minsky chamou a situação de saída da II Guerra Mundial de “capitalismo paternalista”. Ela se caracterizava por um “enorme Tesouro público” (cujo custo equivalia a 5% do PIB) dotado de um orçamento que oscilava contraciclicamente a fim de estabilizar a renda, o emprego e os fluxos de lucros; um Banco Central ao estilo de um “enorme banco” que mantinha baixas as taxas de juros e intervinha como emprestador último de recursos; uma ampla variedade de garantias estatais (seguro de depósitos, respaldo público implícito ao grosso das hipotecas); programas de bem estar social (Seguridade Social, ajuda às famílias com filhos dependentes, ajuda médica); estreita supervisão e regulação das instituições financeiras; e um leque de programas públicos para promover a melhoria da renda e a igualdade de riqueza (tributação progressiva, leis de salário mínimo, proteção para o trabalho sindicalmente organizado, maior acesso à educação e à habitação para pessoas de baixa renda).

Além disso, o Estado jogava um papel importante em matéria de financiamento e refinanciamento (por exemplo, a corporação pública para financiar a reforma de imóveis e a corporação pública para o crédito destinado à compra de imóveis) e na criação de um mercado hipotecário moderno para a compra de imóveis (baseado em um empréstimo de tipo fixo amortizável em 30 anos), sustentado por empresas patrocinadas pelo Estado. Minsky reconheceu papel desempenhado pela Grande Depressão e pela II Guerra Mundial na criação de bases para a estabilidade financeira. Nas palavras de Randy Wray:

“A Depressão pulverizou e expulsou o grosso dos ativos e passivos financeiros: isso permitiu às empresas e às famílias saírem com pouca dívida privada. O ciclópico gasto público durante a II Guerra Mundial criou poupança e lucro no setor privado, enchendo os livros de contabilidade com dívida saneada do Tesouro (60% do PIB, imediatamente depois da II Guerra). A criação de uma classe média, assim como o baby boom, mantiveram alta a demanda de consumo e alimentaram um rápido crescimento do gasto público dos estados federados e dos municípios em infraestrutura e em serviços públicos demandados pelos consumidores metropolitanos.

A elevada demanda dos entes públicos e dos consumidores trouxe por sua vez consigo a possibilidade de se cobrir o grosso das necessidades das empresas para financiar o gasto interno, incluindo os investimentos. Assim, durante as primeiras décadas que se seguiram à Segunda Guerra, o capital financeiro desempenhou um papel muito menor. A lembrança da Grande Depressão gerou relutância em relação ao endividamento. Os sindicatos pressionavam e, frequentemente, obtinham mais e mais compensações, o que permitiu o crescimento dos níveis de vida, financiados em sua maior parte somente com a renda dos trabalhadores”.

Na década de 1970 tudo isso começou a mudar, como é bem explicado em Econned. O gasto público começou a crescer mais lentamente que o PIB; os salários ajustados à inflação se estancaram a medida que os sindicatos perdiam poder; a desigualdade começou a crescer e as taxas de pobreza deixaram de cair; as taxas de desemprego dispararam; e o crescimento econômico começou a desacelerar.

Nos anos 70 assistimos também aos primeiros esforços sustentados para fugir das restrições impostas pelo New Deal, a medida que as finanças respondiam para aproveitar as oportunidades. Com o desastroso experimento monetarista de Volcker (1979-82), muitos dos velhos vestígios do sistema bancário estabelecido pelo New Deal foram arrasados.

O rito de inovações se acelerou a medida que foram se adotando muitas práticas financeiras novas para proteger as instituições do risco da taxa de juros. A despeito de todas as apologias feitas sobre os anos de Volcker a frente da Federal Reserve, o certo é que suas políticas de juros altos assentaram as bases do atual sistema financeiro baseado no mercado, incluídas a titulação hipotecária, a inovação financeira na forma de derivativos para cobrir o risco das taxas de juros, assim como muitos dos veículos financeiros “extra contábeis” que proliferaram nas duas últimas décadas. Legislou-se para criar um tratamento fiscal muito mais favorável aos juros, o que, por sua vez, estimulou as compras alavancadas para substituir ativos por dívida (como a tomada de controle empresarial financiada com dívida que seria servida pelos futuros fluxos de receita da empresa assim controlada).

Os excedentes orçamentários dos anos Clinton – outro exemplo de ascendência de uma filosofia neoliberal que fugiu da política tributária e determinou a primazia da política monetária – restringiram a demanda agregada, encolheram as receitas e criaram uma maior dependência da dívida privada como meio de sustentar o crescimento e as receitas. Esse foi claramente facilitado por inovações que ampliaram o acesso ao crédito e mudaram os critérios das empresas e dos lares para definir o nível de endividamento prudente. O consumo conduzia o timão e a economia voltou finalmente aos rendimentos dos anos 60. Regressou o crescimento robusto, agora alimentado pelo déficit do gasto privado, não pelo crescimento do gasto público e da receita privada. Tudo isso levou ao que Minsky chamou de capitalismo dos gestores do dinheiro.

Esse é o contexto histórico básico que veio se desenvolvendo nos últimos 40 anos. E essa é, provavelmente, uma resposta que vai mais além do que nosso amável leitor queria, mas sua questão não é daquelas que possa ser respondida laconicamente.

(*) Marshall Auerback é analista econômico, pesquisador do Roosevelt
Institute, colaborador da New Economic Perspectives e da NewDeal 2.0.

Tradução para SinPermiso: Casiopea Altisench
Tradução para Carta Maior: Katarina Peixoto

Por que sou contra a pena de morte?

Exame de DNA faz homem ser inocentado após passar mais de 30 anos na prisão nos EUA

Cornelius Dupree Jr. com a mulher Selma Perkins Dupree - AP
DALLAS - Graças a um exame de DNA, um homem que havia sido condenado por roubo e estupro teve sua sentença revertida nesta terça-feira após passar mais de 30 anos na prisão nos Estados Unidos. Cornelius Dupree Jr., de 51 anos, foi formalmente inocentado após cumprir parte da pena de 75 anos de reclusão à qual havia sido sentenciado. Ele ficou preso entre dezembro de 1979 e julho de 2010, quando foi posto em liberdade condicional.
Uma semana depois, saíram os resultados do exame de DNA que provaram sua inocência, mas o cancelamento da condenação só veio agora. Ele se tornou a pessoa a passar mais tempo presa antes de ser inocentada por um exame deste tipo no estado do Texas.
- É uma alegria estar livre de novo - disse Dupree após a decisão de um tribunal em Dallas.
Ele foi condenado em 1980 por estuprar e roubar uma mulher de 26 anos. O crime teria acontecido quando a vítima parou em uma loja de bebidas com o marido. Ele teria sido expulso do carro onde estavam. Dois homens teriam levado a mulher para um parque. A vítima reconheceu Dupree após ele ser detido sob acusação de envolvimento com outros crimes.
Segundo o Innocence Project, organização baseada em Nova York e especializada nestes casos, nos EUA apenas outros dois presos passaram mais tempo na cadeia indevidamente antes de serem soltos: um homem passou 35 anos detido na Flórida e outro ficou 31 anos numa prisão no Tennessee.
No Texas, desde 2001 pelo menos 41 pessoas condenadas por engano já foram libertadas graças a exames de DNA. É o número mais alto entre os estados americanos. 

Fonte: O globo

Educação e inclusão: ano-velho ou ano-novo?



Lucio Carvalho * Adital 
 
 A universalização do atendimento escolar, preconizada como a segunda grande diretriz do Plano Nacional de Educação (PNE) 2011-2020, enviado ao Congresso Nacional em fins de dezembro (15/12) pelo Ministro Fernando Haddad, do MEC, enfrenta desde já um importante desafio pelo menos no que se refere à educação especial. Caberá aos deputados federais eleitos, que assumem suas funções em 1º de fevereiro de 2010, conhecer, analisar e decidir pelo PNE e também sobre proposta de Decreto Legislativo que visa anular a aplicação de regulamentação proposta pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) no que diz respeito à matrícula de estudantes com deficiência nas classes comuns do ensino regular.
É o que pretende o PDC-2846/2010 (http://www.camara.gov.br/internet/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=485598), de autoria do Deputado Eduardo Barbosa (PSDB-MG) que também é presidente da FENAPAES, Federação Nacional das APAES (Associações de Pais e Amigos dos Excepcionais). Barbosa alega a inconstitucionalidade da Resolução 4/10 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação (CBE/CNE) e propõe anular o artigo da resolução que trata do caráter complementar e/ou suplementar do atendimento educacional especializado, justificando que alunos com deficiência possam receber exclusivamente a educação oferecida pelas escolas especiais, deixando de frequentar o espaço comum das escolas regulares, tendo em vista que o projeto de decreto visa tão somente a suspensão do efeito da norma expedida pelo CNE e publicada pelo Ministro Fernando Haddad em julho de 2010 e a obrigatoriedade dos sistemas de ensino em matricular alunos com deficiência.
A principal barreira legal que o projeto do Deputado Barbosa vai encontrar pelo caminho é a legislação federal atual, que incorporou com força de emenda constitucional a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e que assegura, em seu Art. 24, um sistema educacional inclusivo em todos os níveis e prevê que todos os apoios necessários sejam dirigidos a inclusão plena dos indivíduos na sociedade. A proposta ainda impacta o desejo da Conferência Nacional de Educação (CONAE) que confirmou em abril de 2010 o sentido de universalização a partir da instituição de uma escola unificada. Avanço nas matrículas e na qualificação
O último ano foi o segundo em que o número de alunos com deficiência matriculados em classes comuns do ensino regular superou as matrículas em escolas especiais. De acordo com o Censo Escolar 2010, o número de alunos com deficiência matriculados em todos os sistemas de ensino aumentou cerca de 10% e, segundo o INEP, isso resulta de uma maior presença social através do desenvolvimento da educação inclusiva. Por todo o país, dezenas de cursos envolvendo professores e gestores na área de educação aconteceram no sentido de qualificar a escola comum como um espaço efetivamente democrático e capaz de atender às diferenças inerentes a população de alunos, seja através dos poderes públicos municipais e estaduais como no meio universitário, atingindo novos profissionais da educação. Muitas escolas especiais, inclusive algumas APAES, redimensionaram sua forma de atendimento e passaram a atuar em regime de colaboração com a escola regular. Elas oferecem, no contraturno, o atendimento educacional especializado (AEE), que é um serviço disponibilizado aos alunos com deficiência também pelas próprias escolas e constitui a base da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, sustentada pelo MEC e recentemente regulamentada pelo CNE.
Resistências não são novidade
Não são exatamente novidade as resistências em torno da atual política de inclusão. Além das escolas especiais, que veem seus recursos ameaçados e seus serviços com uma clientela cada vez menor, também muitas escolas particulares ainda rejeitam essa nova perspectiva de atendimento. Mesmo sendo integrantes do sistema geral de ensino e obrigadas a cumprir a legislação educacional em vigor, ainda são muito frequentes situações de constrangimento às famílias de crianças com deficiência que encontram dificuldade inclusive para matricular seus filhos e imposições contratuais desiguais, como obrigações de pagamentos adicionais e outras necessidades específicas negociadas em particular. Sob o pretexto de aumentar custos em decorrência de necessidades não habituais, cria-se um espírito de animosidade que vai encontrar solução muitas vezes judicialmente. O judiciário, por sua vez, ainda vem assimilando os valores expressos na nova ordem constitucional sobre o tema e o resultado disso são prejuízos desnecessário à população, que apenas quer ver cumpridos os seus direitos. As decisões judiciais, entretanto, cada vez mais tem favorecido aos cidadãos e também o Ministério Público tem agido como indutor de políticas públicas, orientando e fiscalizando tanto escolas públicas quanto privadas, em todas as modalidades de ensino.
No legislativo, o tema tem sido objeto de disputa e debates há pelo menos dez anos, desde que o MEC assumiu posição em prol da educação inclusiva e despertou a reação das escolas especiais, principalmente através da FENAPAES. Desde então, o debate ganhou importância na comunidade escolar, no meio acadêmico e também na cobertura jornalística, escapando do discurso especializado e ganhando relevância na sociedade de um modo geral. Em dezembro, o Senado Federal promoveu o 6º Fórum Senado Debate Brasil, com o objetivo de capacitar os agentes legislativos a observar e efetivar os princípios propostos na Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência. Resta saber se o legislativo que irá tomar posse em fevereiro próximo irá acompanhar a vontade pública expressa na CONAE e no PNE e respeitar a hierarquia legal em vigor no Brasil ou se irá prevalecer o desejo de quem quer voltar atrás na implementação da educação inclusiva, abrindo brechas para que crianças com deficiência e suas famílias voltem a submeter-se à exclusão precoce do convívio social escolar e alijando-as do direito indisponível à educação e participação plena na sociedade.

* Membro do Comitê de Comunicação da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down e colaborador da Inclusive - Ag ência para Promoção da Inclusão

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

Não chores por mim, Argentina


A Enguia era um homem magro. Os cabelos escassos eram bem penteados, e fixados, sem um fio fora do lugar. Gostava de jantares finos, com amigos com os quais compartilhasse os mesmos ideais. Sabia, ideais são perigosos, e dividi-los, só com poucos. Gostava da convivência com prelados da Igreja Católica. Sempre os tinha nos jantares finos, convidados seus ou dos amigos, e sempre, também, piedosos no cultivo dos mesmos ideais.
A Enguia não sorria. Um ser contido. Sem sentimentalismos. E quando nos jantares os prelados e amigos sorriam, ele os olhava por detrás dos óculos com um olhar enigmático, o que os deixava entre intrigados e inquietos, porque sempre queriam agradá-lo. Com toda força de sua alma, e era um católico fervoroso, combatia o comunismo e os comunistas, de qualquer espécie ou natureza. Era uma raça que pretendia extinguir, e o conseguiria com a graça e as bênçãos de Deus.
Penso já haver dito, e se não o fiz, repito: era um ser temente a Deus, católico fervoroso. Tinha hábitos espartanos, próprios de militares. Toda manhã se reunia com seu chefe de inteligência. Com ele, avaliava a situação do País, e especialmente quantos inimigos haviam sido abatidos no dia anterior e a quantas andavam os mais de 500 campos de concentração que seu regime havia construído. Com os comunistas, não havia por que descansar. Estavam sempre à espreita. A qualquer dúvida, melhor matá-los. Torturá-los, nem que até a morte, era sempre um serviço nobre, a favor da Nação. Matar e torturar eram procedimentos necessários.
E depois da reunião com o chefe de inteligência, sempre muito cedo, cumpria seu ritual de bom católico. Piedoso, assistia à missa, com impressionante contrição, sempre devidamente escoltado por sua segurança. Não gostava que chamassem de ditadura o governo que dirigia. Os inimigos da pátria é que o rotulavam dessa maneira. Estava salvando a Nação da escória comunista. E não gostava das denúncias de torturas. Como não torturar se esse era o único jeito de tirar informações dos comunistas? Os comunistas eram o diabo, e contra o Mal vale tudo. Ele representava o bem. Tinha convicção disso.
O regime que ele personificava começara em 1976. Terminará em 1983. Havia colocado ordem no País. Retomara as relações cordiais com os EUA. Dava-se bem com os presidentes dos países vizinhos, especialmente com os que seguiam a mesma linha, e não escondia a admiração por Pinochet, exemplo de homem que soube combater sem sentimentalismos os comunistas, soube varrer o comunista Allende do poder. Matar um comunista era um ato quase higiênico. Homem ou mulher, não importava. Tinha raiva especial das mulheres comunistas.
Sua expressão fria, sombria para tantos, quase uma esfinge, deixava trair irritação quando lhe falavam das denúncias no exterior sobre número de assassinados pelo regime. O que são 30 mil mortos diante do serviço que estamos prestando ao País? Irritava-se mais ainda quando revelavam que militares estupravam constantemente as mulheres presas. Ora, aquelas vacas, aquelas putas. Deviam agradecer de estarem vivas, murmurava entre dentes. Estão recebendo o que merecem, não têm o que reclamar. Defendeu sempre a tese de que a crueldade às vezes se impõe, como no caso do regime que conduzia com mão firme.
Aos 85 anos, não se arrepende de nada. De nada. Voltaria a matar e a torturar com a mesma convicção e insensibilidade. Não há qualquer sinal de arrependimento nele. Numa biografia se disse que ele era o mal em estado puro. Nada mais exato.
A Enguia vai cumprir os seus últimos dias de vida na cadeia. Foi condenado à prisão perpétua um pouco antes do Natal pelo genocídio, pelas atrocidades que cometeu enquanto dirigiu o País.
As mulheres, os homens, os filhos sem pai e sem mãe, os milhares de exilados, as Mães da Praça de Maio, os milhares de ex-presos exultam. Eles nunca se esqueceram de Jorge Rafael Videla. Enguia é como o chama o escritor argentino Tomás Eloy Martinez, em O Purgatório. A Argentina fez justiça. Que tarda, mas não falha. Cedo ou tarde, o Brasil também há de punir os seus torturadores, muitos certamente apenas pós-mortem.

Emiliano José

Emiliano José é jornalista, escritor, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas pela Universidade Federal da Bahia. www.emilianojose.com.br

Obra de Fernando Pessoa

Banco Mundial e FMI



JUREMIR MACHADO DA SILVA
  no sitio do CPERS

O Pior do mundo atual é a tecnoburocracia. O pior da tecnoburocracia é o FMI. Seguido de perto pelo Banco Mundial. O FMI já afundou muito país com seu receituário salvacionista. A Argentina ainda paga a conta de ter acreditado nos idiotas do FMI. O Banco Mundial pratica a soberba chantagista. Só empresta para quem está disposto a crer nas suas teses bizarras. Quem precisa, acredita em qualquer coisa. Li nos jornais que o Banco Mundial não está contente com o Brasil. Acha que estamos gastando demais em educação. É o caso de exclamar com toda a convicção: uau! Os tecnocratas do Banco Mundial asseguram que o Chile gasta menos e melhor do que nós. As circunstâncias e déficits educacionais históricos parecem não ser levados em consideração. Compara-se cebola com batata e alho. Afinal, tudo acaba no mesmo no lugar.

Os idiotas de plantão no Banco Mundial puxam a orelha brasileira por ter aumentado generalizadamente os salários dos professores. Afirmam que não há garantia de melhora na educação com aumento de salário. Uau! Certamente nossa educação melhorará se as fortunas ganhas por nossos professores forem congeladas. Ou reduzidas. Eu tenho certeza de que os rendimentos do Banco Mundial melhorarão se o bando de nababos inúteis empregados por essa nebulosa instituição tiverem seus salários reduzidos em dois terços. O Banco Mundial é contra o excesso de repetência no Brasil. O negócio é aprovar por decreto. Se os professores não tiverem aumentos de salário, pelo jeito, as reprovações cairão. Triste país que precisa pedir penico ao Banco Mundial. Ficamos livres do FMI. Precisamos ouvir sermão dos bad boys do Banco Mundial.

Quando eu era criança, ficava espantado ao ver um colega repetir todas as matérias de um ano por ter sido reprovado em apenas uma delas. Por que não repetia a matéria perdida em outro turno? Tive um colega que rodou dois anos seguidos em Técnicas Artísticas. Era péssimo em desenho. Eu também. Não sei como consegui passar. O Banco Mundial deveria emprestar dinheiro para o Brasil indenizar todas as famílias que tiveram o futuro dos seus filhos ceifados pela reprovação em desenho ou pela punição excessiva, geradora de evasão, com a repetição de ano pela perda de uma disciplina. Reprovei o sistema. Reprovo o Banco Mundial. Aposto que a faxineira do banheiro da sala do presidente do Banco Mundial ganha 15 vezes mais que qualquer professor de ensino fundamental ou médio no Brasil. Nada contra as faxineiras. É claro.

O BM merece nota zero em Pedagogia. Em lugar de estimular a cooperação, tenta introduzir o neoliberalismo educativo total. A ideia é jogar professor contra professor, escola contra escola, aluno contra aluno, numa competição desenfreada e fadada ao fracasso. A turminha do Banco Mundial dificilmente passaria num teste básico de meritocracia. É gente apadrinhada que conseguiu uma boca internacional, uma teta com poderes planetários. Queria ver esses burocratas dando aula e administrando a vida com os salários dos nossos professores. Venham!


JUREMIR MACHADO DA SILVA é professor e escritor

Na Bahia fazendeiro desrespeita lei e faz despejo com pistoleiro





MST - 030111_jagunco [Frei Henri Burin des Rosiers] 
No dia 25 de dezembro, por volta do meio-dia, 7 (sete) homens encapuzados e fortemente armados despejaram 45 famílias do Acampamento São José, localizado na fazenda Cruzeiro Novo, distante 20 Km da Vila Alacilândia, no município de Conceição do Araguaia. A fazenda tem como suposto proprietário Milton Gomes de Oliveira, deputado estadual do Estado da Bahia.
Embora o Juiz da Vara Agrária de Redenção, tenha concedido uma liminar, em 25 de novembro, em favor do fazendeiro, o grupo armado sequer esperou que o juiz determinasse a ida de um oficial de justiça ao acampamento, acompanhado de policiais militares para o devido cumprimento da ordem judicial, conforme determina a lei.
De acordo com informações dos acampados, quem comandava ação ilegal eram: um capitão da Polícia Militar de nome “Seade” e um policial civil de nome “César”, ambos lotados em Conceição do Araguaia. As famílias foram expulsas para fora da fazenda e homens armados passaram a fazer vigilância na propriedade para impedir a volta dos trabalhadores.
A liminar deferida pelo juiz em favor do fazendeiro, contraria uma recomendação do Tribunal de Justiça do Pará que orienta todos os juízes das varas agrárias a realizarem audiências de justificação prévia, com a presença do INCRA, antes de analisar o pedido de liminar. O Juiz não observou a recomendação do Tribunal ao qual é subordinado.
Informado do interesse do INCRA em desapropriar o imóvel, no dia 16 de dezembro passado, em uma reunião em Redenção, o Ouvidor Agrário Nacional, Dr Gercino Silva, determinou que a Ouvidoria oficiaria ao magistrado da Vara Agrária de Redenção, solicitando a designação de uma audiência de conciliação no bojo da ação de reintegração de posse da fazenda Cruzeiro Novo, dessa vez com a presença do INCRA, e que, solicitaria ainda, a suspensão do cumprimento da liminar até a realização da referida audiência.
Há 9 (nove) meses, que as famílias encontravam-se acampadas nas proximidades do limite da propriedade aguardando que o INCRA avaliasse as condições do imóvel e se seria viável para a reforma agrária.
O fato de o despejo ter sido realizado em dia de feriado de natal e sem a presença de um oficial de justiça com o devido mandado do juiz, são indícios de que policiais civis e militares de Conceição do Araguaia poderão ter agido fora da lei para favorecer o fazendeiro e deputado no Estado da Bahia.
A Comissão Pastoral da Terra do sul do Pará encaminhará denúncia formal à Ouvidoria Agrária Nacional, à presidência do Tribunal de Justiça do Estado e ao Ministério Publico para que o caso seja devidamente apurado.

* Frei Henri Burin des Rosiers é advogado da CPT da Diocese de Conceição do Araguaia.

Crise neoliberal e sofrimento humano

Leonardo Boff  no Portal do PSOL 
Leonardo BoffLeonardo BoffO balanço que faço de 2010 vai ser diferente. Enfatizo um dado pouco referido nas análises: o imenso sofrimento humano, a desestruturação subjetiva especialmente dos assalariados, devido à reorganização econômico-financeira mundial.
Há muito que se operou a "grande transformação"(Polaniy), colocando a economia como o eixo articulador de toda a vida social, subordinando a política e anulando a ética. Quando a economia entra em crise, como sucede atualmente, tudo é sacrificado para salvá-la. Penalisa-se toda a sociedade como na Grécia, na Irlanda, em Portugal, na Espanha e mesmo dos USA em nome do saneamento da economia. O que deveria ser meio, transforma-se num fim em si mesmo.
Colocado em situação de crise, o sistema neoliberal tende a radicalizar sua lógica e a explorar mais ainda a força de trabalho. Ao invés de mudar de rumo, faz mais do mesmo, colocando pesada cruz sobre as costas dos trabalhadores. Não se trata daquilo relativamente já estudado do "assédio moral", vale dizer, das humilhações persistentes e prolongadas de trabalhadores e trabalhadoras para subordiná-los, amedrontá-los e, por fim, levá-los a deixar o trabalho. O sofrimento agora é mais generalizado e difuso afetando, ora mais ora menos, o conjunto dos países centrais. Trata-se de uma espécie de "mal-estar da globalização" em processo de erosão humanística.
Ele se expressa por grave depressão coletiva, destruição do horizonte da esperança, perda da alegria de viver, vontade de sumir do mapa e até, em muitos, de tirar a própria vida. Por causa da crise, as empresas e seus gestores levam a competitividade até a um limite extremo, estipulam metas quase inalcançáveis, infundindo nos trabalhadores, angústias, medo e, não raro, síndrome de pânico. Cobra-se tudo deles: entrega incondicional e plena disponibilidade, dilacerando sua subjetividade e destruindo as relações familiares. Estima-se que no Brasil cerca de 15 milhões de pessoas sofram este tipo de depressão, ligada às sobrecargas do trabalho.
A pesquisadora Margarida Barreto, médica especialista em saúde do trabalho, observou que no ano passado, numa pequisa ouvindo 400 pessoas, que cerca de um quarto delas teve idéias suicidas por causa da excessiva cobrança no trabalho. Continua ela: "é preciso ver a tentativa de tirar a própria vida como uma grande denúncia às condições de trabalho impostas pelo neoliberalismo nas últimas décadas". Especialmente são afetados os bancários do setor financeiro, altamente especulativo e orientado para a maximalização dos lucros. Uma pesquisa de 2009 feita pelo professor Marcelo Augusto Finazzi Santos, da Universidade de Brasília, apurou que entre 1996 a 2005, a cada 20 dias, um bancário se suicidava, por causa das pressões por metas, excesso de tarefas e pavor do desemprego. Os gestores atuais mostram-se insensíveis ao sofrimento de seus funcionários, acrescentando-lhes ainda mais sofrimento.
A Organização Mundial de Saúde estima que cerca de três mil pessoas se suicidam diariamente, muitas delas por causa da abusiva pressão do trabalho. O Le Monde Diplomatique de novembro do corrente ano, denunciou que entre os motivos das greves de outubro na França, se achava também o protesto contra o acelerado ritmo de trabalho imposto pelas fábricas causando nervosismo, irritabilidade e ansiedade. Relançou-se a frase de 1968 que rezava:"metrô, trabalho, cama", atualizando-a agora como "metrô, trabalho, túmulo". Quer dizer, doenças letais ou o suicídio como efeito da superexploração capitalista.
Nas análises que se fazem da atual crise, importa incorporar este dado perverso que é o oceano de sofrimento que está sendo imposto à população, sobretudo, aos pobres, no propósito de salvar o sistema econômico, controlado por poucas forças, extremamente fortes, mas desumanas e sem piedade. Uma razão a mais para superá-lo historicamente, além de condená-lo moralmente. Nessa direção caminha a consciência ética da humanidade, bem representada nas várias realizações do Forum Social Mundial entre outras.

Leonardo Boff é autor de Proteger a Terra-Cuidar da vida:como evitar o fim do mundo, Record 2010

Como funcionam as rádios comunitárias na Venezuela? Confira a reportagem

“Nós somos a expressão da liberdade”, define Carlos Lugo, coordenador da rádio Negro Libre Primero (101,1 FM), numa manhã de domingo em Caracas. É com este espírito ideológico que as mais de 244 rádios comunitárias da Venezuela atuam, acreditando na força do meio de comunicação para promover a tão desejada transformação socialista no país.

Desde o fracassado golpe de Estado promovido pela oposição em 2002, o ex-general militar Hugo Chávez difunde sua ideologia política, principalmente, pelos meios de comunicação públicos, como o jornal Ciudad CSS, a emissora Telesur, a Radio Nacional de Venezuela, entre outros.
Locutores na rádio Ali Primera (crédito: Maísa Tomaz)
Rádios comunitárias
O processo “revolucionário”, que, segundo os chavistas, a Venezuela atravessa, tem apoio massivo das rádios comunitárias, com transmissão sustentada pelo eleitorado mais fervoroso do presidente, as classes baixas.

Estas rádios comunitárias, em grande parte, possuem como principal objetivo a propagação dos ideais socialistas do bolivarianismo, os quais se valem da concepção de que os países latino-americanos devem emancipar-se da dependência do capital norte-americano e europeu, nações que, na visão de Hugo Chávez, exploram a classe trabalhadora por intermédio das super lucrativas multinacionais.

“Nós somos revolucionários, acreditamos que para construir uma sociedade mais justa há de se trabalhar, formar as pessoas, nos prepararmos. Neste momento, apoiamos o projeto do presidente Chávez porque, ainda que não seja o governo que sonhamos, é o que mais se assemelha ao que sempre nós sonhamos”, declara o coordenador editorial Yaarabid Gomez, da rádio Ali Primera (98.3 FM).

O fato é que, na prática, as comunidades adquiriram voz própria e liberdade para comunicar não apenas os ideais socialistas do bolivarianismo, mas também o que é de interesse coletivo do bairro. A rádio tornou-se um meio alternativo que na sua essência socialista transcende o simples “informar”, ela surge como uma necessidade de comunicação entre os moradores, como é a história da Negro Libre Primero, localizada em um antigo prédio de três andares na periferia de Caracas.

“No ano de 2002, em meio ao golpe de Estado e greve do petróleo, o cidadão pobre que vinha a este posto (à frente da rádio) não poderia comprar a gasolina barata ou comprar o gás na bodega da esquina. Todos estes elementos a oligarquia mandou fechar, e as pessoas não sabiam onde poderiam buscar estes produtos. Foi então que começamos a perceber que estávamos sem comunicação”, relembra o também apresentador Carlos Lugo.
Rádio Negro Libre Primero realiza projetos sociais (Crédito: Renan Justi)
Outras iniciativas
Para quem é morador da comunidade La Candelaria, onde é sintonizada a Negro Libre Primero, existe o que eles chamam de processo de desenvolvimento social.  Graças à radio, a comunidade dispõe de iniciativas sociais e projetos de capacitação profissional. “Estes cursos (carpintaria, construção e costura) são preparatórios para estabelecermos grandes redes coletivas, onde todos podem compartilhar e ser donos daquilo que produzimos”, declara Lugo.

As novas instalações da rádio mostram que o próximo passo, como já está sendo construído, será a criação de uma padaria e açougue dentro do prédio da rádio, onde as pessoas irão aprender a produzir o que elas precisam consumir e, inclusive, adquirir mantimentos por preços menores, desprendendo-se do consumismo capitalista.

A moradora do bairro, Pátria América Zapata, que participa das aulas de costura, busca no passado a explicação para o processo “revolucionário-socialista” que a Venezuela chavista almeja há tanto tempo. “Estamos aqui hoje, data 9 de outubro, dia importante para todos, morte de Ernesto Che Guevara. E aqui, na rádio, enquanto abrimos estes projetos de formação e capacitação, fazemos honra a Che.” E complementa sobre o ambiente de igualdade: “O bom daqui é que todos sabemos e todos vamos aprender”, afirma Zapata.
Rádio Pérola define programação com a comunidade (Crédito: Maísa Tomaz)
Conteúdo colaborativo
Como decreta o governo ao sancionar a livre atuação dos meios alternativos (Lei Orgânica de Telecomunicação, de 2000), o conteúdo dos programas exibidos nas rádios é decidido de forma participativa entre quaisquer membros engajados da comunidade e produtores, construindo-se um laço de identificação com o material que vai ao ar.

É com base nesta lei que a rádio Perola (92.3 FM), instalada no piso térreo de um prédio residencial, define sua linha editorial. Sua programação é produzida com responsabilidade, centralizada nas questões que envolvem o bem social de quem vive no bairro Caricuao. Um exemplo é o programa “Em Família”, apresentado por Cristel Arrellano, funcionária do Ministério da Educação da Venezuela, que orienta os pais sobre como melhorar a qualidade de vida da população infantil, abordando temas ligados à saúde e educação.

A iniciativa de organizar um programa com estes temas surgiu a partir do alto número de jovens grávidas que despontou na comunidade. “Temos anos e anos lutando e trabalhando por isto, que para nós significa um projeto de vida, um sonho realizado por ajudar muitíssimas pessoas que não tem tantas alternativas”, revela Arellano.
Rádios funcionam na periferia de Caracas e comunidade ajuda a manter emissoras (Crédito: Renan Justi)
Meio alternativo
Um fator decisivo para o nascimento das rádios comunitárias foi a falta de identificação com os meios de comunicação privados, por não se sentirem representados por um conteúdo produzido pelas classes mais abastadas. “Hoje e ontem, os meios de comunicação privados tentam monopolizar as rádios. Surgimos, então, por uma necessidade de sermos escutados, das pessoas poderem dizer o que pensam, afinal, as comunidades também têm o direito de expressar-se sem comercializar o meio”, diz Marcos Flores, colaborador da Perola, sobre a democratização comunicacional do país.

Embora haja apoio incontestável dos meios comunitários às campanhas do presidente Chávez, mantido no poder há 12 anos, não há qualquer recompensa financeira por parte do governo. O sustento da rádio Ali Primera, montada dentro da Universidade Simón Rodriguez, é sacado do bolso de cada produtor, que colaboram mensalmente com 20 bolívares fortes, o equivalente a 8 reais. O coordenador Yaarabid esclarece este procedimento ao ilustrar como eles, moradores do bairro El Valle, conseguiram dinheiro para um novo equipamento. “Aqui sequer fazemos publicidade institucional. Em 2002, o CD player da rádio foi danificado e tivemos que vender nossa moto para comprar um novo”, revela.

Se as recentes eleições legislativas, em setembro, na Venezuela apontaram uma queda de prestígio do partido de Chávez (PSUV) perante os venezuelanos, Yaarabid mantém um discurso fiel e coerente à ética socialista, mas com ressalvas. “Nós acreditamos neste processo revolucionário porque estamos comprometidos com o próprio princípio moral, nossa forma de pensar, independente se Chávez preste algum apoio econômico”, finaliza.

O novo procurador geral do Estado do Rio Grande do Sul e o trabalho escravo


Por Jacques Távora Alfonsin

O novo governador do Rio Grande do Sul escolheu Carlos Henrique Kaipper (foto) como procurador geral do Estado. Alguns testemunhos do passado de quem assume, agora, a coordenação do serviço público da Procuradoria, abre expectativas bem diferentes entre os gaúchos, se o critério de defesa dos direitos humanos fundamentais da população pobre do nosso Estado decidir sobre o mérito dessa escolha. Enquanto ela, quase certamente, está animando essa multidão, leva muita preocupação e desconfiança àquele poderoso segmento latifundiário, contrário à reforma agrária e acostumado a camuflar como “produtividade rural”, exceções a parte, a manutenção perversa do trabalho escravo.
Kaipper integrou o quadro de advogados do Ministério de Desenvolvimento Agrário. Em 2004, quando participava da II jornada de debates sobre trabalho escravo, cuja abertura contara com pronunciamento do presidente do Superior Tribunal de Justiça, ele falou sobre esse crime, o modo como um tal tipo cruel de exploração de trabalhadoras/es pobres e ignorantes se dá no Brasil, sua inconstitucionalidade frente ao regime do país, os meandros por onde a bancada ruralista e a CNA consegue impedir, vergonhosamente, o andamento de qualquer projeto de lei capaz de punir essa injustiça, inclusive com a perda da propriedade da terra onde ela se perpetra.
Disponível na internet (II Jornada de debates sobre trabalho escravo), o seu discurso revela bem mais do que o perfil competente do advogado, particularmente daquele que lida com a defesa do Direito público e Social. Auditório acostumado com aquelas lições modorrentas de doutrina e jurisprudência, tão aborrecidas quanto alheias e distantes da dura realidade de injustiça social e pobreza, sob as quais vive todo um povo de párias no interior do Brasil, ficou perplexo quando o orador bradou: “Doutor, por mim não preciso receber um tostão. Só quero que me tirem daqui, pelo amor de Deus, pra que eu possa voltar para a minha família.”
Era a desesperada queixa que um trabalhador rural, submetido ao regime de escravidão, tinha feito ao Kaipper numa das suas visitas a um latifúndio onde os órgãos de fiscalização federal detectara esse crime hediondo. A lembrança dramática do fato, denunciada com indignação pelo, hoje, novo procurador geral do Estado, revela três diferenças relevantes sempre presentes entre advogadas/os, juízas/es, promotoras/es, gente enfim que lida com as leis e o direito, conforme a concepção de justiça de cada um/a.
A primeira relacionada com as gentes, o lugar e o tempo de onde partem os seus juízos sobre a realidade. Quando esses reduzem a sua visão dos fatos, filtrada apenas através da lei, por sua vez gestada em passado distante e atrasado, quando se negam ao contato epidérmico com o povo e os lugares onde serão sentidas e sofridas as suas conseqüências, cede a preconceitos tradicionais, “explicativos” de desigualdades sociais, é insensível a urgências, atrasa providências e a injustiça é certa.
A segunda relacionada com o sentido de exercício do poder público. Quando esse se baseia no cálculo interesseiro de como “subir”, submisso apenas a conveniências político partidárias casuísticas da hora, com medo de desagradar, ou confundindo o egoísmo corporativista com valorização de carreiras, medindo tudo pelo tamanho da remuneração a ser paga, ignora suas responsabilidades, fica imune à crítica, à auto-crítica, e a injustiça é certa.
A terceira relacionada com as referências de exercício do poder público. Esse tem uma tendência histórica de inverter sua obrigação de servir pela de dominar. Quando perde a noção de que a sua origem não se encontra na cabeça do indivíduo que o exerce, mas somente se justifica em função do mandato democrático que o constitui, fazendo passar por assunção de encargos a autoridade do argumento em lugar do argumento de autoridade, a injustiça é certa.
Pelo testemunho público do Kaipper naquela II Jornada, parece que nem o povo ao qual ele vai servir, nem as/os procuradoras/es que vai liderar, nem o governador que o nomeou, precisam temer, pois o novo procurador demonstra conhecer bem as tais diferenças.
A Procuradoria Geral, como a sua própria denominação autoriza confiar, somente se explica e justifica, na medida em que anda a procura. Movimentar-se, pois, agir, fazer, para ela não significa mera hipótese. No caso da defesa do Estado, democrático e de direito como previsto na Constituição Federal, outra prioridade nessa busca não pode e não deve existir que não seja a de garantir as condições de dignidade e cidadania do nosso povo, pois essa é a principal razão de ser do Estado.
Enquanto os direitos humanos fundamentais sociais que as expressam ficarem dependentes, apenas, da burocracia administrativa ou das decisões dos tribunais, a escravidão contra a qual o Kaipper se insurge terá somente mudado de lugar, (proporções e exceções ressalvadas), pois tanto a primeira, como as últimas não são fins em si, não passam de meios, de apoio às garantias de vida e liberdade para todo o povo.
Pobreza, miséria, falta de educação, saúde e segurança, entre outras realidades desafiadoras da nova administração pública do Estado, não deixam de ser formas outras de escravidão. O passado recente dessa mesma administração não percebeu isso com o cuidado e a urgência de a tais problemas se dar resposta oportuna e eficiente.
Mesmo respeitados os limites de competência constitucional da Procuradoria Geral do Estado, a escolha do coordenador da relevante prestação de serviço reservada àquele Órgão Público, feita pelo governador Tarso Genro, apóia dois dos mais importantes sentimentos do povo que elegeu o novo governo do Estado: a confiança depositada em suas virtudes e a esperança de que a sua escolha não foi feita em vão.