quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

As frágeis mulheres fortes de Israel


Submissão religiosa, maus-tratos e desigualdades laborais complicam a existência de metade da população israelense



Carmen Rengel
de Jerusalém (Israel)

“És benigno. Senhor eterno. Deus nosso. Rei do Mundo que não me fez mulher”. A cada manhã, numerosos judeus praticantes agradecem à Deus em sua reza de Adom Olam por haver-lhes salvado da escravidão, evitado que caíssem na idolatria e tê-los afastado do estigma de ser mulher, esses seres submetidos, cuja única função sobre a terra é engendrar novos filhos do povo escolhido.
Nem todos os judeus recitam essa ladainha, nem todos creem de pés juntos que ser mulher é uma desonra. Não. Mas o certo é que em Israel a religião se mescla tanto com a vida que acaba por tornar-se lei. Ainda que formalmente não se tenha declarado um “Estado judeu”, Israel o é na prática, e são as mulheres as que mais sofrem essa realidade.
Esse desenho da mulher israelense forte, firme, empreendedora, capaz de pilotar um caça, se esvai com outras qualificações, menos visíveis, mas igualmente reais: as da mulher insultada, aprisionada pela religião, minimizada por uma sociedade masculina. As frágeis mulheres fortes de Israel.

Machismo e matrimônio

As mulheres, que são 51% da população do país (pouco mais de 3,5 milhões de pessoas), veem seus direitos vulnerados especialmente no campo da família. Arrastam a obrigação geral de se casarem por meio de um rito religioso, já que o matrimônio civil não é contemplado e, além disso, só se pode levar a cabo com o consentimento do rabino.
Os problemas aumentam caso o casal queira separar-se. Gila Adahan, advogada de Jerusalém especializada em divórcios, explica que as separações se regem pelas leis do Talmud, dos séculos 4 e 5. “Só o homem pode conceder o divórcio, e tem que entregá-lo por escrito pessoalmente à mulher”. Essa cláusula dá lugar a um fenômeno denominado “mulheres ancoradas”, que não conseguem o divórcio se o marido não quiser ou, inclusive, se ele estiver fisicamente impedido e não puder assiná-lo com seu punho e letra.
A solução, explica a especialista, passa por uma longa espera, já que a média para conseguir o divórcio em Israel é de dez anos, segundo ONGs, e de dois, segundo o governo. Existem mulheres que buscam outra solução: pagam seus esposos para que as deixem separar. “Não é incomum que renunciem à moradia ou à manutenção dos filhos para tal. Chegam a um verdadeiro desespero”, completa.

Critérios bizarros

Kaveh Shafran, porta-voz da associação Rabinos pelos Direitos Humanos, explica que as sinagogas tentam ajudar essas mulheres, convencendo os maridos a dar o braço a torcer. Os ameaçam com o “repúdio” da comunidade, com o impedimento de estudar o Torá, com o rebaixamento no organograma da sinagoga e até com denúncias às autoridades penais – em 2007, 80 homens cumpriam prisão depois de serem apontados por seus rabinos, informa a agência Efe.
Às vezes, até pagam um detetive privado para ir atrás do marido fugido. Os rabinos se envolvem sempre que há uma “causa justificada” para o divórcio, mas aí reside outro dos inconvenientes: a extravagância desses critérios.
Shafran explica que o Talmud não considera como “causa suficientemente argumentada” a infidelidade, a violência ou a ausência prolongada do lar. Por isso, se um homem ataca a punhaladas sua esposa, poderá ir à cadeia, mas não tem que conceder divórcio. Aceita-se como causa justificada o fato de o marido ter mau hálito ou não cumprir com suas obrigações na cama. “Um homem pode repudiar sua mulher se não ela cozinha bem, se encontra outra que o satisfaça mais ou se eles não têm filhos”, diz o rabino.
A solteirice “é o maior mal para a mulher israelense”, afirma um dos rabinos mais conservadores do país, Ovadia Yosef, e nem de longe é uma solução: as solteiras estão condenadas ao ostracismo em sua comunidade. É preciso se casar, e logo (24,5 anos as judias, 20,5 as árabes) e ter muitas crias (três em média). Aqui não fica nem o consolo da Espanha antiga de tornar-se freira. Ao contrário: a mulher participa em pouquíssimos atos das cerimônias litúrgicas e apenas em um punhado de sinagogas mais abertas.

Heranças da religião

Sigal Ronen-Katz, assessora legal da Israel Women's Network (IWN, uma das principais organizações feministas do país), sustenta que a religião marca uma sociedade patriarcal que acaba por gerar maus-tratos. Sempre se difundiu a ideia da israelense valente, pioneira, combatente, criadora do Estado, pilar-mãe da sociedade, “mas, por trás disso, há pressões psicológicas e físicas muito fortes, especialmente no entorno religioso”.
Segundo seus dados, 42% das mulheres ultraortodoxas apanham de seus maridos e 24% sofre violência sexual. Nos últimos 20 anos, 378 mulheres foram assassinadas por seus parceiros. A metade era formada por judias e árabes de idade madura que residiam em zonas radicalizadas.
Quase 36% delas eram estrangeiras, sendo que o número total desse segmento não supera um sexto da população total do país. 2010 foi o pior ano desde 2004, com 18 mortas, o dobro de 2009. O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu informou, no Dia Mundial contra a Violência contra a Mulher (25 de novembro), que 200 mil israelenses e 600 mil crianças são vítimas de violência física ou emocional e, quando denunciam, levam em média cinco anos de calvário.
Ele disse isso abaixando a cabeça diante das mulheres que reprovaram sua debilidade em relação aos agressores: há um ano, ele prometeu cinco milhões de shekel [moeda isaraelense] em ajudas e investimento em refúgios, mas ainda não liberou nada. As ligações para o serviço de assessoramento da IWN cresceram entre 30 e 50% no último ano.
Entre as estrangeiras submetidas a maus-tratos, encontram-se, sobretudo, as russas e as etíopes, justamente as minorias mais presentes no mundo da prostituição. A Divisão para o Adiantamento da Mulher (DAW) sustenta que cerca de 3 mil mulheres estão submetidas à exploração sexual, apesar de que a religião deveria ser um freio para a maioria dos israelenses.
Não é assim. “A prostituição é uma forma moderna de escravidão, inclusive neste país que nasceu fazendo iguais a homens e mulheres e já distante de colonialismos e opressões. Em 15 anos, foram deportadas 5 mil mulheres”, afirma Ronen-Katz. A ONU calcula que cada traficante ganha por ano mais de 60 mil dólares por garota, cada uma comprada por entre 7 e 25 mil dólares. Um bordel pequeno, com dez mulheres, pode gerar 250 mil dólares mensais. 70% das jovens são viciadas em drogas.

Trabalho

“As israelenses se movem em uma realidade masculina sob a falsa aparência de serem iguais”, escreveu já em 1978 a feminista Lesley Hazleton. A situação não mudou muito, como revela a cada ano a comissão criada no parlamento israelense sobre a mulher.
Ruhama Avraham Balila, deputada pelo Kadima e ex-ministra do Turismo, repassa os dados desolada. É uma das 23 mulheres de uma câmara com 120 parlamentares, que sempre oscila entre 7 e 10% de representação feminina, habitualmente de partidos de centro ou esquerda. Entre os dados que aponta, encontra-se o de as mulheres terem melhor formação que os homens, com 2 pontos percentuais mais de tituladas em educação formal (22%) e 9 pontos mais no ensino médio.
55,9% dos estudantes de formação superior são mulheres (a sétima melhor cifra do mundo), mas, apesar disso, o desemprego feminino é dois pontos superior ao masculino (de 6,1 a 8,3%). “É desesperador: somos um quarto do professorado universitário e a pressão familiar e religiosa afasta as meninas das carreiras técnicas. Por fim, somos maioria no de sempre: educação, trabalho social, enfermagem, secretariado… Onde estamos em economia ou defesa? Em nenhum lugar, não nos promovem, não nos veem como igual”, diz uma senhora que teve mais espaço na imprensa por ter sido eleita uma das políticas mais bonitas do mundo do que por seu trabalho.
Nunca foi bem visto que mulheres tenham autonomia em seu emprego, assim que 91,4% das empregadas exercem funções de subordinação, contra 80% dos homens. Não chegam a 4,5% as que têm cargos executivos (sete pontos menos do que os homens) e, na política, passam de um terço apenas em prefeituras potentes como a da capital Tel Aviv.
“Só houve nove prefeitas em nosso país”, denuncia Avraham. Na Corte Suprema, em 62 anos de Estado, só houve três mulheres. Nos últimos dias, a briga no Parlamento se centrou em fazer cumprir a lei de igualdade de salários, que chegam a diferenças de até 38%, e a abertura a todos os empregos, pois muitos estão vetados “por ser perniciosos para a saúde da mulher”, como os trabalhos noturnos.
“Não nos deixam ser as judias fortes do Holocausto, ou as que saíram no filme Êxodo. Nos suavizaram no mau sentido. Temos pequenas coisas: um ano de licença maternidade, uma lei contra o assédio sexual muito potente, ajudas de escolarização… E, entretanto, ser mulher aqui é muito difícil”.

Minoria esquecida

A discriminação geral da mulher israelense se soma, no caso das árabes, ao fato de pertencerem a uma minoria esquecida. Fadwa Lemsine, 36 anos, empresária, se vê como uma vítima tripla, “por ser árabe em um Estado judeu, por suportar uma sociedade patriarcal que exala machismo e por não poder receber a qualificação necessária para escalar neste mundo de economia liberal”. Ela é uma exceção, parte desses escassos 3% de autônomas, sobrevivendo em sua loja de design de interiores. Segundo o Escritório Central de Estatística de Israel, só 18,6% das árabes trabalham, diante de 56% entre as judias.
As mulheres árabes limpam Israel, basicamente. Ou dão aulas em colégios de sua mesma minoria. Ou cozinham. Trabalham por 47% menos do salário de uma israelense. Casam-se antes, têm mais filhos e, ainda que a palestina seja uma das comunidades mais progressistas do Oriente Médio, também carregam o rigor do Islã. “Eu estudei em um centro árabe, não tive subvenção alguma para abrir minha empresa, recebi pressões municipais para contratar judeus… Ainda assim, sou a primeira empresária da minha família, estou orgulhosa”, defende.
Ela colabora em uma associação de mulheres e afirma que um quinto das mulheres de Israel vivem na pobreza e quase um terço não come todos os dias para que nada falte a sua família. “Essa é a tragédia, não temos poder, mas pobreza, e esse círculo vicioso não acaba”, lamenta. A crescente radicalização religiosa do país só complica as coisas. “Maus tempos, é sempre ruim nascer mulher nesta terra”.

Tradução: Vinicius Mansur

''É preciso um Nuremberg dos especuladores''. Entrevista com Jean Ziegler



Diplomata internacional na ONU, Ziegler publicou o ensaio El odio a Occidente, uma crítica ao sistema capitalista dominado pela Europa e pelos EUA.
A reportagem é de Guillaume Fourmont Madrid, publicada no sítio Publico.es, 29-12-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Que ninguém se deixe enganar pelo seu cargo muito oficial de membro do Comitê Consultivo do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Por trás de seus óculos de professor de universidade, o suíço Jean Ziegler (Thoune, 1934) é um revolucionário. Ele gosta de provocar e gritar o que os seus colegas diplomatas não ousam dizer nem nos corredores das organizações internacionais.
Um exemplo: "Uma criança que morre de fome hoje em dia é um assassinato". Outro: "Somos democracias, mas praticamos um fascismo exterior". Ziegler é um argumento que argumenta cada frase com números ou citações de grandes intelectuais, como esse grito de dor do poeta anticolonialista Aimé Césaire: "Vivo em uma ferida sagrada / Vivo em um querer obscuro / Vivo em um longo silêncio".
Dessa ferida, Ziegler falar em seu último livro, El odio a Occidente (Ed. Península), um título que responsabiliza os países desenvolvidos pelos males do mundo. O escritor não perde a esperança e aspira a uma "revolução para acabar com a ordem canibal do mundo". Na capa do seu ensaio, a letra "i" da palavra ódio é uma bomba com detonador. Resta só um segundo para que ela exploda.
Eis a entrevista.


O mundo vai tão mal assim?
Jamais na história um imperador ou um rei teve tanto poder como o que a oligarquia do poder financeiro possui na atualidade. São as bolsas que decidem quem vive e quem morre. Doze bilhões de pessoas podem comer, o dobro da população mundial. Mas a cada cinco segundos, uma criança menor de 10 anos morre de fome. É um assassinato!
É daí que vem o ódio do qual o senhor falar? Por que nos odeiam?
É preciso distinguir dois tipos de ódio. Um, primeiro, patológico, como o da Al Qaeda, que assassina inocentes com bombas. Mas nada justifica essa violência, nada! E o meu livro não trata disso. Refiro-me a um ódio meditado, que pede justiça e compensação, que chama a romper com o sistema estrutural do mundo, dominado pelo capitalismo.
Não aprendemos nada com a crise?
Lições? É pior ainda: esses bandidos de especuladores que provocaram a crise e a quebra do sistema ocidental atacam agora produtos como o arroz e o trigo. Há milhares de vítimas a mais do que antes. É preciso sentar esses especuladores na cadeira. É preciso realizar um Nuremberg para eles!
O senhor trabalha na ONU. Não acredita no papel da comunidade internacional?
O mero fato de que a comunidade internacional seja consciente dos problemas do mundo é positivo. Os Objetivos do Milênio não se cumpriram, mas não sou uma pessoa cética.
Não acredita, no entanto, que o Ocidente só se interessa pelo Ocidente e que mantém o Terceiro Mundo na pobreza de propósito?
É verdade! Mas não se trata de doar mais, mas sim de roubar menos. Na África, podem-se encontrar produtos europeus mais baratos do que os locais, enquanto que as pessoas se matam trabalhando. A hipocrisia dos europeus é bestial! Nós geramos fome na África, mas quando os imigrantes chegam às nossas costas em balsas os mandamos embora. Para acabar com a fome, é preciso uma revolução!
No Ocidente? Isso é possível?
A sociedade civil se despertou. Há movimentos como Attac, Greanpeace e outros que fazem uma crítica radical da ordem mundial. No Ocidente, temos democracias, mas praticamos um fascismo exterior. Embora não haja nada impossível na democracia. "O revolucionário deve ser capaz de ouvir a grama crescer", disse Karl Marx.
Em seu livro, o senhor fala da Bolívia de Evo Morales como exemplo.
É um caso exemplar. Pela primeira vez na história, o povo boliviano elegeu como presidente um deles, um indígena aimara. E, em seis meses, expulsaram as empresas privadas que ficavam com todos os benefícios das energias do país. O governo pode, com esses milhões ganhados, lançar programas sociais, e a Bolívia é agora um Estado florescente e, principalmente, soberano. Veja, não sou um ingênuo, mas na Bolívia a memória ferida do povo se converteu em uma luta política, em uma insurreição identitária.
Em outros termos, Morales merecia mais o Nobel da Paz do que Obama.
Claro! O Nobel de Obama era ridículo, era una operação de marketing.
Obama não trazia consigo nenhuma esperança?
Ver uma cara negra de presidente dos Estados Unidos na capa de grandes revistas foi incrível, principalmente porque o bisavó da esposa de Obama era um escravo. Mas é só um símbolo. O império norte-americano é três coisas: a indústria armamentícia, Wall Street e o lobby sionista. Obama sabe que se tocar em algum dos três está morto. E não vai fazer isso. A esperança vem da sociedade civil. Se conseguirmos criar uma aliança planetária de todos os movimentos de emancipação, do Ocidente e do Sul, então haverá uma revolução mundial, uma revolução capaz de acabar com a ordem canibal do mundo.

«Criámos um monstro: a ocupação»

Pela primeira vez, ex-oficiais do exército israelita dão a cara para denunciar os crimes de Israel em Gaza. Eis uma entrevista de Yehuda Shaul, fundador da ONG Breaking the Silence e autor do livro do mesmo nome. Seguem-se algumas declarações de outros ex-oficiais na mesma organização. Por ex-oficiais israelitas, entrevista de Catherine Schwaab


Yehuda Shaul, 28 anos, ex-oficial do exército israelita, é autor de Breaking the Silence [Quebrar o silêncio], um livro acontecimento que será publicado em Janeiro, onde os combatentes do Tsahal [o exército israelita] contam o seu intolerável comportamento nos territórios ocupados em Gaza. Uma entrevista de Catherine Schwaab publicada na revista francesa Paris Match.

Catherine Schwaab [CS]: O seu livro é uma bomba pelas suas revelações: que efeito concreto espera?
Yehuda Shaul [YS]: Espero poder enfim suscitar uma verdadeira discussão séria em Israel pois, desta vez, os nossos testemunhos são numerosos, verificados, incontestáveis: são 180 e tiramos deles uma análise, o que é novo.
CS: Pensa que a opinião pública ignora o que significa a ocupação militar dos territórios palestinianos?
YS: O público tem clichés na cabeça que incitam à aprovação cega. Por exemplo, em hebreu, a política israelita nos territórios ocupados resume-se a quatro termos que não se pode contestar: “sikkul” (a prevenção do terrorismo), “afradah” (a separação entre a população israelita e a população palestiniana), “mirkam hayyim” (o “fabrico” da existência palestiniana) e “akhifat hok” (a aplicação das leis nos territórios ocupados). Na realidade, sob esses nomes de código escondem-se terríveis desvios que vão do sadismo à anarquia e rejeitam os mais elementares direitos da pessoa. Isso vai até aos assassinatos de indivíduos inocentes que se calcula serem terroristas. E não falo das prisões arbitrárias e dos assédios de toda a espécie.
CS: Qual é o objectivo disso?
793_1
Todos os dias, milhares de palestinianos são bloqueados sob o olhar dos soldados armados. Foto de Quique Kierszenbaum
YS: Está claramente definido: é o de mostrar a presença permanente do exército, de produzir o sentimento de ser-se perseguido, controlado, em suma, trata-se de impor o medo a todos na sociedade palestiniana. Opera-se de maneira irracional, imprevisível, criando um sentimento de insegurança que quebra a rotina.
CS: A ocupação dos territórios não será necessária para evitar «surpresas» terroristas?
YS: Não! A ocupação sistemática não se justifica, pois ela abrange uma série de interdições e de entraves inadmissíveis. Queremos discutir sobre isso agora. Nem no seio do exército nem no seio da sociedade civil ou política se quer enfrentar a verdade. E essa verdade, é que nós criámos um monstro: a ocupação.
CS: Pode esperar-se que discussões sérias sobre a paz melhorem a situação?
YS: Não, tentar acabar com o conflito é uma coisa, acabar com a ocupação é outra. Estamos todos de acordo para procurar a paz, mas esquecemos a ocupação. Ora, é preciso começar por aí.
CS: Os vossos testemunhos revelam a incrível impunidade de que beneficiam os colonos, verdadeiros assistentes militares: eles brutalizam os vizinhos palestinianos, levam os seus filhos à agressividade e ao ódio dos árabes…
YS: Certamente, mas não são eles o problema. É o mecanismo de ocupação que lhes deu esse poder desmedido. Eu, quando era militar em Hebron, não podia deter um colono que estivesse a infringir abertamente a lei sob os meus olhos. Eles fazem parte desse sistema imoral.
CS: Pensa encontrar um apoio na opinião israelita?
YS: Por enquanto, somos minoritários mas optimistas! Temos de sê-lo, pois vivemos tempos sombrios, a opinião israelita é apática, as pessoas estão fartas. E o preço a pagar por esta ocupação não é pesado. É a razão por que não há vontade política. Em contrapartida, o preço moral é enorme.
CS: É a primeira vez que são feitas tais revelações?
Yehuda Shaul, 28 anos, ex-oficial do exército israelita, fundador da ONG Breaking the Silence. Foto de Quique Kierszenbaum
Yehuda Shaul, 28 anos, ex-oficial do exército israelita, fundador da ONG Breaking the Silence. Foto de Quique Kierszenbaum
YS: Não, há um ano, tínhamos contado as pilhagens na faixa de Gaza e tínhamos sido atacados por todos os lados: pelo exército, pela sociedade civil e a sociedade política. Netanyahu acusou-nos de termos «ousado quebrar o silêncio». Mas que silêncio? É um silêncio vergonhoso sobre um escândalo estrondoso! Eles fizeram tudo para nos desacreditar. Saiu-lhes mal, pois nós somos todos antigos oficiais que vivemos esses acontecimentos terríveis.
CS: Precisamente, muitos soldados e oficiais que se expressam parecem traumatizados pelo que tiveram de fazer. Um sofrimento que permanece.
YS: Sim… Enfim, não nos enganemos: as vítimas, são os palestinianos que aguentam esse controlo. Hei-de sempre recordar a resposta de um comandante do exército durante uma discussão televisiva em 2004. Tínhamos organizado uma exposição de fotografias com um vídeo de testemunhos. Ele disse-me: «Concordo com o que vocês mostram, mas é assim, temos de aceitá-lo, isso chama-se crescer, tornar-se adulto». Fiquei sem palavras.
CS: Algumas pessoas pensam que Israel tem interesse em manter o conflito e que os palestinianos nunca terão as suas terras.
YS: É falso. É impossível erradicar uma população de 3,5 milhões de habitantes. O problema não está em dar-lhes uma terra, mas na obsessão de querer controlá-los.
CS: Serão as jovens gerações dos 20-30 anos mais permeáveis ao vosso ponto de vista?
YS: Nem toda a minha geração está de acordo comigo, mas ninguém pode dizer que minto. Somos todos ex-membros do exército nacional, pagámos o preço, ganhámos o direito de falar. É preciso que os espíritos mudem a partir de dentro.
CS: Você é judeu ortodoxo e tem um discurso estranhamente aberto. A sua fé ajuda-o neste combate?
YS: Nem por isso… Mas eu sei o que significa ser judeu religioso: não ficar silencioso perante o que está mal. E quero trazer uma solução, não um problema.
Micha, Dana, Noam e Mikhael combateram pelo Tsahal. É a primeira vez que oficiais israelitas contestam dando a cara contra os métodos do exército. Foto de Quique Kierszenbaum
Micha, Dana, Noam e Mikhael combateram pelo Tsahal. É a primeira vez que oficiais israelitas contestam dando a cara contra os métodos do exército. Foto de Quique Kierszenbaum
Declarações de 4 ex-oficiais, extraídas do livro Breaking the Silence
Granadas para provocar o medo
“Aparecemos de repente numa aldeia palestiniana, às 3h da madrugada, e começamos a lançar granadas de aturdimento nas ruas. Para nada, para provocar o medo. Víamos as pessoas acordarem desvairadas… Diziam-nos que isso punha em fuga eventuais terroristas. Balelas… Fazíamos isso todas as noites, rotativamente. Uma rotina. Diziam-nos: ‘Bela operação’. Nós não compreendíamos porquê.”
Roubar um hospital
“Uma noite, recebemos ordens para entrar à força numa clínica de Hebron que pertence ao Hamas. Confiscámos o equipamento: computadores, telefones, impressoras, outras coisas, ao todo um valor de milhares de sheleks [moeda de Israel = 0,21 euros, 0,47 reais]. E porquê? Atingir o Hamas financeiramente, mesmo antes das eleições para o Parlamento palestiniano, para eles as perderem. O governo israelita anunciara oficialmente que não iria tentar influenciar essas eleições…”
“Matámos um tipo por pura ignorância”
“Não sabíamos que, durante o ramadão, os fiéis saem à rua às 4 horas da manhã para acordar as pessoas, para que se alimentem antes do nascer do dia. Identificamos um tipo numa alameda que segura algo nas mãos, gritamos-lhe ‘alto!’. Então, se o ‘suspeito’ não pára imediatamente, o regulamento exige que se faça o aviso. ‘Páre ou atiro’, depois atiramos para o ar, a seguir para as pernas, etc. Matámo-lo, ponto final. E por pura ignorância dos ritos locais.”
Camponeses em pranto
“As nossas escavadoras levantam uma barreira de separação mesmo no meio de um campo de figueiras palestiniano. O camponês chega lavado em lágrimas: ‘Plantei este pomar durante dez anos, esperei dez anos que ele desse frutos, colhi-os durante um ano apenas e agora arrancam-mo pela raiz!’ Não há hipótese de replantar. Só há compensações a partir de 41% de terra confiscada. Se for só 40%, não levas nada. O pior é que amanhã, se calhar, eles vão decidir parar a construção da barreira.”
Devolver os galões [distintivos], voltar a ser soldado
“Instalamos pontos de controlo surpresa. Em qualquer lado, nunca se sabe claramente. E de repente prendemos toda a gente, controlamos todos os documentos. Ali estão mulheres, crianças, velhos, durante horas, por vezes à torreira do sol. Prendemos inocentes, pessoas que querem ir trabalhar, procurar alimentos, não são terroristas… Tive de o fazer durante cinco meses, oito horas por dia, isso deitou-me abaixo. Então decidi devolver os galões de comandante.”
“A nossa missão: incomodar, assediar”
“Estamos em Hebron. Como os terroristas são residentes locais e a nossa missão é entravar a actividade terrorista, a via operacional é esquadrinhar a cidade, entrar em casas abandonadas, ou em casas habitadas escolhidas ao acaso – não há serviço de informações para nos orientar –, revistá-las, saqueá-las… e nada encontrar. Nem armas nem terroristas. Os habitantes acabaram por se habituar. Andam irritados, depressivos, mas habituados porque é assim há anos. Fazer sofrer a população civil, fazer das suas vidas um inferno, e saber que isso não serve para nada. Dá um tal sentimento de inutilidade.”
“As punições colectivas”
“Os meus actos mais imorais? Fazer explodir casas de suspeitos terroristas, prender centenas de pessoas em massa, olhos vendados, pés e mãos atados, levá-los em camiões [caminhões]; entrar nas casas e expulsar brutalmente as famílias; às vezes voltávamos lá para fazer explodir a casa; nunca sabíamos porquê essa casa e não outra, nem quais suspeitos prender. Por vezes davam-nos ordem para destruir, com o bulldozer ou com explosivos, a entrada da aldeia, à guisa de punição colectiva por terem albergado terroristas.”
“Proteger colonos agressivos”
Chegamos subitamente ao distrito de Naplouse para garantir a segurança dos colonos. Descobrimos que eles decidiram atacar Huwara, a aldeia vizinha, palestiniana. Estão armados, atiram pedras, com o apoio de um grupo de judeus ortodoxos franceses que filmam, tiram fotografias. Resultado: ficamos entalados entre árabes surpreendidos, aterrorizados, e a nossa obrigação de proteger os colonos. Um oficial tenta fazer recuar os colonos para as suas terras, é agredido, há tiroteio, o oficial retira-se. Não sabemos o que mais fazer: sustê-los, proteger os palestinianos, proteger-nos a nós, uma cena absurda e demente. Acabámos por conseguir que os agressores voltassem para casa. Uma dezena de árabes ficaram feridos.”
Assassinar um homem desarmado
Estamos de vigia numa casa cujos ocupantes expulsámos, suspeita-se da presença de terroristas, estamos de vigia, são 2 horas da manhã. Um dos nossos atiradores localiza um tipo que caminha em cima de um telhado. Eu olho com os binóculos, tem 25 ou 26 anos, não está armado. Damos a informação por rádio ao comandante e este intima-nos: ‘É um vigia deles. Abatam-no.’ O atirador obedece. Eu chamo a isso um assassinato. Tínhamos meios de o prender. E não foi um caso único, são às dezenas.”

Versão original da entrevista (em francês) aqui.
 
Versão original (em francês) das declarações dos 4 oficiais extraídas do livro, aqui.

Tradução da entrevista de Yehuda Shaul: Comité de Solidariedade com a Palestina
 
Tradução dos excertos do livro: Passa Palavra.

Paraguai - O Vizinho Desconhecido




Por Marcelo Voges Guerguen* do aldeia gaulesa



 É meio de praxe que nós brasileiros desconheçamos o que passa ao lado de 
nossas fronteiras. 
Quando muito, ouvimos mais sobre a Argentina, o Chile, e mais recentemente sobre a Venezuela ou qualquer outro governo abaixo de uma “ditadura popular” como descrevem nossa velha conhecida mídia. Talvez aqui no Rio Grande do Sul tenhamos mais conhecimento também sobre nosso vizinho Uruguai, tanto pela proximidade quanto pelos free shops, amados por nossa galera sulista. Mas com certeza, o Paraguai é nosso completo desconhecido.
Quando ouvimos falar do Paraguai, a primeira coisa que vem em nossa cabeça é a relação comercial que nós brasileiros temos com o país guarani. Desde produtos eletrônicos chineses vindos da Ciudad del Este (lugar mais longínquo que os brasileiros vão além da fronteira), até produtos um tanto exóticos, como armamentos ilegais ou a erva (não a mate, que é o principal produto cultivado no país). Por mais que nossos “heróis” tenham sido forjados na Guerra do Paraguai, mesmo assim nossa ignorância em relação a esse vizinho é absurda.
A começar pela própria Guerra do Paraguai, até hoje discutida nas Faculdades de História quanto às reais motivações. Independente dos motivos, ela deixou um saldo de 85% de sua população morta, restando apenas 215 mil pessoas vivas, sendo essas quase 200 mil mulheres. Antes da Guerra, o país guarani era uma referência quanto organização social, pois eram precursores de algumas modernidades industriais como a siderurgia, ferrovias, estaleiro, telégrafos, isso em meados de 1850. As propriedades rurais eram do Estado, sendo que foram distribuídas a população a preços baixos, chamadas de Estâncias da Nação, criando assim um país de classe média agrícola. Dizem que 90% do que era produzido era para consumo interno, e o restante era exportado. Essa organicidade tem origem nas antigas Reduções Jesuíticas, conhecidas aqui no RS pelos 7 Povos das Missões.
Mas o objetivo desse artigo não é falar do passado longínquo desse vizinho, mas sim o que veio depois da Guerra, que como podemos deduzir, dizimou o país. Após a guerra, em 1887, se formou basicamente dois grupos políticos, a Aliança Nacional Republicana (Partido Colorado) e a Frente Liberal Radical Autêntica (Partido Liberal). Os Colorados assumiram o governo em 1877, antes mesmo de se formarem quanto partido, até ser deposto via golpe pelos liberais em 1903. Os Liberais então comandaram o país até 1936, sendo derrubado também via golpe pelo Partido Febrerista com apoio massivo da população. Isso se deu com o fim da Guerra do Chaco (1932-1935).
O Partido Comunista Paraguaio foi fundado em 1928, tendo grandes atuações tanto pela ação antiguerra do Chaco, quanto pelo apoio ao Movimento Febrerista, que assumiu o governo por 18 meses com forte apoio popular após a Guerra do Chaco. Desse governo surgiu o Partido Febrerista. Porém, para não fugirmos da regra,f oi deposto via golpe em 1937 pelo Partido Liberal, sob o governo do General Estigarríbia. Com a morte do General em 1940, assume a presidência o Marechal Higino Morínigo, de orientação nazifascista, permanecendo no poder no cargo até 1947, quando estoura a Guerra Civil no país guarani. Com o fim da Guerra Civil, o Partido Colorado volta ao poder.
Para ter uma idéia da instabilidade política do país vizinho, durante o período de 1947 a 1949, o governo trocou de mãos quatro vezes. Em 1954, Stroessner assume o poder através de um golpe de Estado, fazendo com que o Partido Colorado se tornasse único no país (1947-1963), e posteriormente hegemônico (1963-2008). Stroessner permaneceu no poder até 1989 por meio da força militar, e também pelas relações umbilicais junto aos EUA. Outro fator que garantiu-lhe no poder foi o apoio do Brasil junto ao país, que entre outras ações se destacam a construção da Ponte da Amizade e da Usina Hidroelétrica Binacional Itaipu, além das perseguições massivas a grupos considerados subversivos. Até 1963, como era “tradição” no país, quando alguma força política assumia, a outra era posta em ilegalidade. Em 63, Stroessner faz um novo golpe (só para não fugir da tradição) onde reconhece a oposição, que não faz muita diferença quanto ao governo. Era como se fosse o “Velho MDB de Guerra” o Partido Liberal, onde acatava as ordens do General.
Em 1989, Stroessner é deposto via golpe (falei que era tradição) e é empossado presidente General Rodriguez, um Colorado, em eleições livres. Os Colorados, foram assim sucessivamente reeleitos até 2008, quando pela primeira vez é empossado ao poder central um grupo político por via democrática, além de ser o primeiro governo de esquerda eleito pelo povo.
Antes de falar sobre o Governo de Fernando Lugo, precisamos resgatar um fato recente da história de nosso vizinho. Entre 23 a 28 de março de 1999, o assassinato do Vice-presidente Luis María Argaña, no qual o ex-general Lino Oviedo desatou uma crise cívico-militar. Como resposta espontânea, 10 mil pessoas, em sua maioria camponeses e jovens, irromperam o espaço público para defender a democracia. O Presidente Cúbas renunciou em perspectiva do início de uma Guerra Civil, e Oviedo se exilou na Argentina. Durante aquela semana, o exército foi acionado, e assim 7 jovens foram mortos nesse conflito. Esse evento ficou conhecido como Março Paraguaio.
Desde agosto de 2008, o Paraguai vive um momento ímpar de sua história, com o governo voltado para a população carente. Apesar das dificuldades do Presidente Lugo em aprovar seus projetos. Para se ter uma idéia, a Câmara dos Deputados Paraguaio é composta por 80 deputados, sendo que 30 são do Partido Colorado, 27 do Partido Liberal, 18 do Partido Unión de los Ciudadanos Éticos – UNACE – partido encabeçado por Lino Oviedo (extrema direita), e dos 08 parlamentares restante, apenas 1 é do Movimento Popular Tekojoja, do Presidente Lugo. No Senado o cenário é parecido, onde das 45 cadeiras, 15 são dos Colorados, 14 dos Liberais, 09 da UNACE, e das 07 restantes, 01 é do Partido do Presidente Lugo.
Mesmo com essa composição difícil, o nosso vizinho desconhecido está conseguindo desenvolver ações positivas para a população, especialmente a população jovem. Das Políticas Públicas voltadas para esse segmento, por exemplo, ressaltamos o movimento 5000 Proceres da Nação, que em razão do Bicentenário da Independência, convoca os jovens a darem suas opiniões sobre quais seriam as melhores políticas a serem implementadas para a galera. E 2011 já começa com novas ações, com as “Becas del Bicentenário”, que serão bolsas de estudo para os jovens carentes, porém com boas notas na escola, para os setores técnicos necessários ao país, como saúde, ciência e tecnologia, engenharia e meio ambiente. Essas bolsas serão em parceria com as hidroelétricas de Itaipu e de Yacyretá.
Esse foi um pequeno relato da história política de nosso vizinho Paraguai. Que mesmo com as adversidades históricas impostas a sua população, consegue nos últimos anos superar os obstáculos, e criar condições para sua população. Porém, as nações mais ricas do continente, em especial o Brasil, devem dar mais apoio para que eles possam se desenvolver, e se tornarem uma nação próspera, em conjunto com os países dessa nova potência mundial do Séc XXI chamada União das Nações Sulamericanas – UNASUL.


*Marcelo Voges Guerguen é Cientista Social

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

Vítimas de pornografia infantil na internet são cada vez mais jovens

Renate Kriege

Autoridades que investigam crime estimam que haja 200 mil websites de pornografia infantil no mundoPornografia infantil e pedofilia na internet vitimam crianças de menos de três anos; para especialistas, rede mundial de computadores facilita crimes. Tendência no combate é harmonizar legislação e ação policial.

Alimentada pela internet, a pornografia infantil se tornou uma crise mundial de dimensões alarmantes. E as vítimas são cada vez mais jovens. Para combater o crime de maneira mais eficaz, a Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE) organiza a primeira conferência internacional sobre o assunto, a partir desta quinta-feira (20/09), Dia Mundial da Criança.

Bildunterschrift: Großansicht des Bildes mit der Bildunterschrift: Tim Del Vecchio, diretor da unidade policial da Organização para Segurança e Cooperação na Europa (OSCE)"O que mais preocupa é que, quando conseguimos prender os suspeitos, as fotos que encontramos são de crianças muito jovens. 19% das imagens descobertas recentemente pelo Centro Nacional de Crianças Desaparecidas e Exploradas dos Estados Unidos são de crianças de menos de três anos", alerta Tim Del Vecchio, diretor da unidade de Polícia Estratégica da OSCE e organizador da conferência que termina nesta sexta-feira.

Crime organizado

"É mais que uma tragédia humana porque envolve crianças", comenta Del Vecchio. "A distribuição de pornografia infantil é apenas uma das fontes de lucro para o crime organizado. Mas, diferentemente do tráfico de drogas e das atividades tradicionais, existe o elemento humano, extremamente trágico", disse Del Vecchio à DW-WORLD.

A Internet Watch Foundation britânica registrou um aumento de 1.500% no número de imagens de pornografia infantil na rede mundial desde 1997. Em 2001, a organização internacional ECPAT (Pelo fim da Prostituição e do Tráfico Infantil, em inglês) calculou a existência de cem mil websites de pedofilia na internet. "Hoje, estima-se que haja o dobro", diz Del Vecchio.

Bildunterschrift: Großansicht des Bildes mit der Bildunterschrift: Operação "Mikado", na Alemanha, desmantelou rede de pedofilia com rastreamento de cartões de créditoPara o alemão Torsten Meyer, chefe do departamento de investigação da região de Sachsen-Anhalt, no Leste do país, a internet facilita o crime de abuso sexual infantil. "A pornografia infantil e a pedofilia sempre existiram. A internet facilita a criação da pornografia. Com as possibilidades da rede, os criminosos de várias áreas podem se encontrar, trocar idéias e achar mais material. Era mais difícil quando redes de dados eram menos desenvolvidas", diz Meyer, que este ano ganhou as manchetes da Alemanha com a "Operação Mikado", uma ação de rastreamento de criminosos por meio da análise de cartões de crédito.

Ação policial e legislação internacional são prioridade

Segundo Tim Del Vecchio, os 56 países-membros da OSCE querem dar prioridade à ação policial e políticas de prevenção do crime em diferentes países. "Não investigamos os casos, há mais peso para a ação da polícia que para o atendimento a vítimas. Mas queremos saber quais as dificuldades encontradas pelos diferentes países, quais as novas tecnologias disponíveis, que treinamentos policiais existem a custo zero. Assim, as investigações se tornam mais eficazes".

Bildunterschrift: Großansicht des Bildes mit der Bildunterschrift: Jovens e crianças são assediadas pelo computador; salas de chat apresentam maior riscoÁustria, Bélgica e Rússia vão apresentar casos exemplares de combate a redes de pornografia infantil. Em fevereiro deste ano, a polícia da Áustria desmantelou uma rede global de pedofilia que envolvia mais de 2.600 suspeitos em 77 países, com atos sexuais explícitos com crianças.

Em junho, foi a vez de a Grã-Bretanha implodir uma rede de pedofilia. Trinta e uma crianças, algumas com apenas alguns meses de idade, foram libertadas na operação, que rastreou mais de 700 suspeitos. 200 deles estavam na Grã-Bretanha. O material difundido no site "Crianças, a Luz de nossas vidas" (  incluía imagens de abuso explícito de crianças, com alguns vídeos transmitidos ao vivo).

As reuniões da OSCE ocorrem a portas fechadas por causa do conteúdo explícito das apresentações.

Tecnologia de ponta

No caso da Grã-Bretanha, as autoridades disseram ter usado táticas de investigação contra suspeitos de terrorismo e tráfico de drogas. Em Viena, empresas como Microsoft e Visa e provedores de internet vão mostrar novos softwares de rastreamento de suspeitos de pedofilia.

Um deles é o sistema "Marina", utilizado pelo Centro Francês de Análise para Imagens de Pornografia Infantil. Disponível para todos os investigadores do país, o software reconhece as assinaturas de pornografia infantil nos discos rígidos de computadores.

Bildunterschrift: Großansicht des Bildes mit der Bildunterschrift: Para agência britânica Internet Watch Foundation, imagens de pornografia infantil aumentaram 1.500% desde 1997Outra tecnologia é a de reconhecimento facial da empresa Asia Software, para identificar o rosto das vítimas de abuso sexual na Internet. "Mesmo se a aparência física mudar, ainda é possível reconhecer quem está na foto", explica Del Vecchio. O software é utilizado no Cazaquistão e na Rússia, ambos membros da OSCE.

A Microsoft também mostra o CETS (em inglês, Sistema de Rastreamento de Crianças Exploradas), um software gratuito que permite aos investigadores identificar tendências e criminosos, e pode ser instalado em sistemas de delegacias em todo o mundo.

Legislação transfronteiriça

A legislação sobre pedofilia varia de país para país. "Não queremos que uma investigação seja suspensa apenas porque o suspeito comete o crime em outro país", diz Del Vecchio. "Por isso, um dos primeiros assuntos a tratar é a legislação local", explica.

Del Vecchio também destacou a importância da cooperação de órgãos internacionais como a Interpol e a Europol, uma vez que o problema da pornografia infantil na internet é mundial, e não concentrado em certas regiões. "Todos dividem a culpa. Nos Estados Unidos, por exemplo, prenderam um casal no Texas que distribuía fotos de crianças pela rede. Eles ganhavam cerca de um milhão de dólares mensais, mas as fotos vinham de países do Leste Europeu".


Bildunterschrift: Großansicht des Bildes mit der Bildunterschrift: Para o investigador alemão Torsten Meyer, o problema também afeta o mundo todo. Mas o material vem de países muito pobres. "América Latina, Leste da Ásia ou Leste Europeu fornecem esse tipo de imagens. São regiões onde os direitos das crianças não são tão valorizados como na Alemanha, por exemplo. As famílias são muito pobres, têm até dez filhos e até vendem a criança para criminosos que filmam atos sexuais e vendem essas imagens", diz Meyer.

Lula cria empresa para administrar Hospitais – a lógica do lucro chega à saúde pública

Por Elaine Tavares - jornalista

Enquanto era carregado nos braços do povo brasileiro em emocionante despedida, o presidente Lula deixava sobre a mesa de trabalho uma medida provisória que terá conseqüências dramáticas para a maioria da população empobrecida do país. Nesta medida, que tem força de lei com implantação imediata, Lula golpeia de morte uma luta que foi travada ao longo de todo seu mandato contra a privatização dos Hospitais Universitários, responsáveis hoje pela pesquisa de ponta na saúde e pelo atendimento gratuito à população. A medida provisória autoriza a criação de uma empresa pública, de direito privado, chamada de Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares S.. - EBSERH, que, vinculada ao Ministério da Educação, poderá prestar atendimento à saúde e servir de apoio administrativo aos hospitais universitários.

Numa primeira mirada isso pode parecer ótimo e muitos perguntarão como alguém pode ser contra uma idéia como essa. Mas, observando as letras pequenas da lei, pode-se perceber o grau de perversidade que está contido nesta MP. Em primeiro lugar é bom contextualizar o problema. Desde há alguns anos que o Tribunal de Contas da União vem observando algumas ilegalidades nos HUs. Uma delas é a contratação indiscriminada de trabalhadores através de Fundações. Mas, esta foi a forma encontrada pelas administrações para dar atendimento nos HUs, uma vez que não havia concurso público para novas contratações e muito menos vontade política dos reitores em enfrentar o problema de frente. O movimento de trabalhadores sempre se colocou contra essa forma de contrato porque acabava criando duas categorias dentro dos hospitais, a dos servidores públicos, com todos os direitos garantidos e a dos contratados, sempre na berlinda por conta de serem celetistas. Não bastasse essa discriminação funcional, ainda havia intensa rotatividade prejudicando o bom andamento dos trabalhos.

A solução imediatamente apontada pelo governo Lula foi a regularização das fundações privadas dentro das universidades, o que provocou um grande movimento contrário nas Instituições Federais de Ensino Superior. Isso porque, ao longo destes anos, foram divulgados inúmeros escândalos envolvendo as fundações em várias IFES, mostrando o quão funesto era esse sistema de burlagem da lei, no qual as fundações captavam recursos privados para serem aplicados nas universidades, em operações muitas vezes envoltas em irregularidades que beneficiavam pessoas em vez das instituições.

Batendo de frente com o movimento docente e técnico-administrativo o governo do presidente Luis Inácio recuou e, mais tarde, lançou nova ofensiva com a proposta de uma Fundação Pública de Direito Privado que assumiria o papel de todas as fundações já existentes, com possibilidade, inclusive, de administrar as instituições de Educação, Saúde e Cultura. Isso, na prática, era privatizar o sistema público de atendimento à população. Mais uma vez os movimentos de trabalhadores dentro das instituições se mobilizaram e empreenderam longa luta contra esse projeto.

Mas, agora, no apagar das luzes do seu governo, em pleno final do ano, quando os trabalhadores públicos, na sua maioria, estão em férias, Lula cria uma empresa, de administração privada, para administrar os hospitais universitários. A estatal será uma sociedade anônima e terá seu capital oriundo do orçamento da União, portanto pertence à nação. Mas, como é de direito privado, toda a lógica administrativa se prestará a busca do lucro e da produtividade. Coisa que sempre foi combatida pelos trabalhadores, pois, na saúde, não há como trabalhar com produtividade. O que pode ser produtivo num hospital? A doença...

No corpo da medida provisória que cria a estatal de direito privado, o governo promete a prestação de serviços gratuitos de assistência médico-hospitalar e laboratorial à comunidade, assim como a prestação, às instituições federais de ensino ou instituições congêneres, de serviços de apoio ao ensino e à pesquisa, ao ensino-aprendizagem e à formação de pessoas no campo da saúde pública. De novo, isso parece muito bom. Mas, como é uma empresa de direito privado, sua meta é o lucro e aí se inserem as armadilhas.

Como seu papel será o de administrar unidades hospitalares, abre-se o caminho já apontado pelo governo de separação dos hospitais-escola do Ministério da Educação, passando ao campo da Saúde. Pode parecer lógico, mas não é. Os hospitais universitários estão hoje visceralmente ligados à universidade. Têm como função servir de espaço de ensino para os estudantes das mais variadas áreas médicas. Todos os trabalhadores ali lotados estão igualmente ligados à universidade. Com a nova empresa e sua lógica administrativa privada, isso muda. Os trabalhadores poderão ser contratados pela CLT, sem acarretar qualquer vínculo com o Estado e estarão submetidos a metas e produtividade. Isso igualmente cria uma profunda divisão na categoria, com a presença de dois tipos de trabalhadores, os públicos e os privados, ocasionando conflitos e freando as lutas. Segundo a medida, os trabalhadores especializados, ainda que CLT, passarão por concurso, mas o pessoal de nível técnico-administrativo poderá ser contratado sem qualquer concurso e por tempo determinado com contratos temporários. Esta era uma vontade muito antiga do governo, pois, com isso, consegue superar qualquer movimento grevista que venha a ser construído.

Na medida provisória está bem claro que a nova empresa poderá incorporar os trabalhadores que já estão nos quadros dos hospitais assim como os bens móveis e imóveis necessários para o início das atividades. Também diz a MP que a nova estatal estará autorizada a patrocinar entidade fechada de previdência privada, nos termos da legislação vigente, o que significa a abertura para o atendimento aos planos de saúde, também um antigo desejo do agora ex-presidente.

Para os reitores e provavelmente para a maioria dos trabalhadores que ainda estavam vinculados às Fundações, esta medida vem como uma luva para seus interesses. Os reitores poderão seguir contratando trabalhadores sem concurso, resolvendo a questão da terceirização. Além disso, também poderão captar recursos privados de forma mais tranqüila, sem precisar usar subterfúgios ou ilegalidade. Também poderão cobrar uma administração mais enxuta, aos moldes da privada, estabelecendo metas de produtividade. Em suma, tratando a saúde da população como mais uma mercadoria. Os trabalhadores terceirizados, que hoje estão sob a ameaça de perder o emprego, ficam mais tranqüilos e tudo segue dentro da “ordem”. Com isso não haverá mais a necessidade de lutar pelo concurso público.

Para quem faz a luta nas universidades este foi um duro golpe. A criação da nova empresa pública estilhaça uma luta de anos pela manutenção dos Hospitais Universitários 100% SUS. Com o artigo que permite a contratação de previdência privada, os HUs poderão, enfim, criar as famosas duas portas de entrada: uma para os que dependem da saúde pública e outra para os que têm plano de saúde. Pode parecer que isso está bem, que não vai mudar em nada a vida daqueles que hoje dependem do SUS e que sempre encontraram guarida nos HUs, mas, quando um hospital passa a se mover dentro da lógica privada, tudo muda. É certo que as pessoas vão sentir o peso desta medida bem mais na frente, inclusive, esquecendo como isso aconteceu. Mas, para quem está na luta pela universidade e pela saúde pública é hora de mostrar os funestos efeitos que virão.

É sempre difícil para os lutadores sociais serem os “arautos da desgraça”, aqueles que estão sempre a ver problemas e apontando as críticas. Mas, é o compromisso com a vida digna para todos que leva a essa prática. Nosso papel é mostrar as graves consequências que advirão desta medida e preparar o terreno para as lutas que se farão necessárias quando a privatização da saúde tomar conta de um dos últimos bastiões do atendimento público: os hospitais universitários.

Os ataques implacáveis a Marisa Letícia

Marisa Letícia Lula da Silva: as palavras que precisavam ser ditas
Hildegard Angel em seu blog
Foram oito anos de bombardeio intenso, tiroteio de deboches, ofensas de todo jeito, ridicularia, referências mordazes, críticas cruéis, calúnias até. E sem o conforto das contrapartidas. Jamais foi chamada de "a Cara" por ninguém, nem teve a imprensa internacional a lhe tecer elogios, muito menos admiradores políticos e partidários fizeram sua defesa. À "companheira" número 1 da República, muito osso, afagos poucos.
dirão os de sempre, e as mordomias? As facilidades? O vidão? E eu rebaterei: E o fim da privacidade? A imprensa sempre de olho, botando lente de aumento pra encontrar defeito? E as hostilidades públicas? E as desfeitas? E a maneira desrespeitosa com que foi constantemente tratada, sem a menor cerimônia, por grande parte da mídia? Arremedando-a, desfeiteando-a, diminuindo-a? E as frequentes provas de desconfiança, daqui e dali? E - pior de tudo - os boatos infundados e maldosos, com o fim exclusivo e único de desagregar o casal, a família?
Ah, meus queridos, Marisa Letícia Lula da Silva precisou ter coragem e estômago para suportar esses oito anos de maledicências e ataques. E ela teve.
Começaram criticando-a por estar sempre ao lado do marido nas solenidades. Como se acompanhar o parceiro não fosse o papel tradicional da mulher mãe de família em nossa sociedade.
Depois, implicaram com o silêncio dela, a "mudez", a maneira quieta de ser. Na verdade, uma prova mais do que evidente de sua sabedoria. Falar o quê, quando, todos sabem, primeira-dama não é cargo, não é emprego, não é profissão?
Ah, mas tudo que "eles" queriam era ver dona Marisa Letícia se atrapalhar com as palavras para, mais uma vez, com aquela crueldade venenosa que lhes é peculiar, compará-la à antecessora, Ruth Cardoso, com seu colar pomposo de doutorados e mestrados.
Agora, me digam, quantas mulheres neste grande e pujante país podem se vangloriar de ter um doutorado? Assim como, por outro lado, não são tantas as mulheres no Brasil que conseguem manter em harmonia uma família discreta e reservada, como tem Marisa Letícia.
E não são também em grande número aquelas que contam, durante e depois de tantos anos de casamento, com o respeito implícito e explícito do marido, as boas ausências sempre feitas por Luís Inácio Lula da Silva a ela, o carinho frequentemente manifestado por ele. E isso não é um mérito? Não é um exemplo bom?
Passemos agora às desfeitas ao que, no entanto, eu considero o mérito mais relevante de nossa ex-primeira-dama: a brasilidade.
Foi um apedrejamento sem trégua, quando Marisa Letícia, ao lado do marido presidente, decidiu abrir a Granja do Torto para as festas juninas. A mais singela de nossas festas populares, aquela com Brasil nas veias, celebrando os santos de nossas preferências, nossa culinária, os jogos e brincadeiras. Prestigiando o povo brasileiro no que tem de melhor: a simplicidade sábia dos Jecas Tatus, a convivência fraterna, o riso solto, a ingenuidade bonita da vida rural. Fizeram chacota por Lula colar bandeirinhas com dona Marisa, como se a cumplicidade do casal lhes causasse desconforto.
Imprensa colonizada e tola, metida a chique. Fazem lembrar "emergentes" metidos a sebo que jamais poderiam entender a beleza de um pau de sebo "arrodeado" de fitinhas coloridas. Jornalistas mais criteriosos saberiam que a devoção de Marisa pelo Santo Antônio, levado pelo presidente em estandarte nas procissões, não é aprendida, nem inventada. É legitimidade pura. Filha de um Antônio (Antônio João Casa), de família de agricultores italianos imigrantes, lombardos lá de Bérgamo, Marisa até os cinco de idade viveu num sítio com os dez irmãos, onde o avô paterno, Giovanni Casa, devotíssimo, construiu uma capela de Santo Antônio. Até hoje ela existe, está lá pra quem quiser conferir, no bairro que leva o nome da família de Marisa, Bairro dos Casa, onde antes foi o sítio de suas raízes, na periferia de São Bernardo do Campo. Os Casa, de Marisa Letícia, meus amores, foram tão imigrantes quanto os Matarazzo e outros tantos, que ajudaram a construir o Brasil.
Outro traço brasileiro dela, que acho lindo, é o prestígio às cores nacionais, sempre reverenciadas em suas roupas no Dia da Pátria. Obras de costureiros nossos, nomes brasileiros, sem os abstracionismos fashion de quem gosta de copiar a moda estrangeira. Eram os coletes de crochê, os bordados artesanais, as rendas nossas de cada dia. Isso sim é ser chique, o resto é conversa fiada.
No poder, ao lado do marido, ela claramente se empenhou em fazer bonito nas viagens, nas visitas oficiais, nas cerimônias protocolares. Qualquer olhar atento percebe que, a partir do momento em que se vestir bem passou a ser uma preocupação, Marisa Letícia evoluiu a cada dia, refinou-se, depurou o gosto, dando um olé geral em sua última aparição como primeira-dama do Brasil, na cerimônia de sábado passado, no Palácio do Planalto, quando, desculpem-me as demais, era seguramente a presença feminina mais elegante. Evoluiu no corte do cabelo, no penteado, na maquiagem e, até, nos tão criticados reparos estéticos, que a fizeram mais jovem e bonita.
Atire a primeira pedra a mulher que, em posição de grande visibilidade, não fez uma plástica, não deu uma puxadinha leve, não aplicou uma injeçãozinha básica de botox, mesmo que light, ou não recorreu aos cremes noturnos. Ora essa, façam-me o favor! Cobraram de Marisa Letícia um "trabalho social nacional", um projeto amplo nos moldes do Comunidade Solidária de Ruth Cardoso. Pura malícia de quem queria vê-la cair na armadilha e se enrascar numa das mais difíceis, delicadas e técnicas esferas de atuação: a área social.
Inteligente, Marisa Letícia dedicou-se ao que ela sempre melhor soube fazer: ser esteio do marido, ser seu regaço, seu sossego. Escutá-lo e, se necessário, opinar. Transmitir-lhe confiança e firmeza. E isso, segundo declarações dadas por ele, ela sempre fez. Foi quem saiu às ruas em passeata, mobilizando centenas de mulheres, quando os maridos delas, sindicalistas, estavam na prisão. Foi quem costurou a primeira bandeira do PT. E, corajosa, arriscou a pele, franqueando sua casa às reuniões dos metalúrgicos, quando a ditadura proibiu os sindicatos. Foi companheira, foi amiga e leal ao marido o tempo todo.
Foi amável e cordial com todos que dela se aproximaram. Não há um único relato de episódio de arrogância ou desfeita feita por ela a alguém, como primeira-dama do país. A dona de casa que cuida do jardim, planta horta, se preocupa com a dieta do maridão e protege a família formou e forma, com Lula, um verdadeiro casal. Daqueles que, infelizmente, cada vez mais escasseiam. Este é o meu reconhecimento ao papel muito bem desempenhado por Marisa Letícia Lula da Silvanesses oito anos.
Tivesse dito tudo isso antes, eu seria chamada de bajuladora. Esperei-a deixar o poder para lhe fazer a Justiça que merece.

“O Brasil é ao mesmo tempo imperialismo e motor imprescindível para a integração”


O economista e diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique, Pablo Stefanoni, faz um balanço da política sul-americana



Elena Apilánez e
Vinicius Mansur
de La Paz (Bolívia) via Brasil de Fato

Passados mais de dez anos da ascensão de presidentes de esquerda na América do Sul, o economista Pablo Stefanoni, diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique, é cético com relação às transformações trazidas por eles ao continente e relativiza a existência de governos de esquerda “radicais” e “moderados”.
Traçando um panorama da conjuntura política do continente, o ex-assessor de comunicação do governo Evo Morales prevê sérias limitações para o crescimento da Alba (Alternativa Bolivariana para as Américas) e muitas possibilidades para a Unasul (União das Nações Sul-Americanas). Na entrevista a seguir, Stefanoni analisa, ainda, a política na Argentina pós-Kirchner, destaca o surgimento de uma direita reciclada na Colômbia e no Chile e debate o papel do Brasil na região.

Brasil de Fato – Como você avalia a categorização dos governos sul-americanos entre esquerda radical, com Bolívia, Venezuela e Equador, e esquerda moderada, liderados por Brasil e Argentina?
Pablo Stefanoni – Esse esquema tem aspectos reais, mas há que relativizá-los. Primeiro, a radicalidade assumida, muitas vezes, não se dá porque os movimentos sejam particularmente mais radicais, senão porque a trajetória institucional e política foi diferente. Os três países considerados de esquerda radical tiveram a implosão do sistema partidário com forte mobilização popular, e era normal que houvesse uma grande demanda por refundação do país, do sistema político. No caso de Uruguai, Brasil e, sobretudo, Chile, a esquerda ganha em um contexto de desmobilização. Além disso, há continuidade institucional e o sistema de partidos continua o mesmo. Em segundo lugar, essa esquerda radical necessita da outra esquerda. Nos momentos-chave, Lula apoiou a Venezuela, como na greve petroleira, na crise da Bolívia houve um apoio importante da Unasul etc. Por isso, se valorizava a vitória de Dilma Rousseff [nos países da América Latina governados pela esquerda], mais do que qualquer debate interno, com a ideia de manter a correlação de forças. Em terceiro lugar, esse esquema supõe que uma esquerda é socialista e outra não, mas, vendo as políticas públicas concretas, nenhuma é socialista. Nem Venezuela nem Bolívia estão avançando rumo a um projeto pós-capitalista. Claro, há diferenças no trato com os EUA, no papel que joga o Estado, mas, vendo o que de fato mudou, o socialismo ainda é bastante retórico. E há muitas coincidências, por exemplo: a legitimidade do Evo não é tão distinta da do Lula. Uma mescla de autoidentificação popular com um líder que surgiu de baixo e políticas sociais. Inclusive, o Bolsa Família é mais radical, por sua abrangência, do que a política de bolsas da Bolívia, que é mais fragmentada.

O senhor não acha que a Venezuela, por exemplo, se diferencia dos outros com suas nacionalizações e políticas públicas que caminham para a transição ao socialismo?
Há tentativas, testes, mas com muitos problemas de eficácia. Promove-se cooperativas, conselhos comunais. Claramente, há um nível de participação popular maior do que havia antes de Chávez. Entretanto, os balanços sobre a geração de uma participação de baixo são complexos. Os conselhos comunais se ocupam de questões bastante locais e vinculadas à falta de Estado nos bairros. Começaram a falar menos de política nacional e aceitar os antichavistas nos conselhos, sempre e quando haja um pacto de não falar muito de política. Há também os conselhos em bairros de classe média alta de Caracas, que são antichavistas, mas que usaram essa fórmula. Quanto à economia, os números mostram que a privada não diminui em relação à estatal. E ainda há dificuldades enormes, para além da vontade do governo, de se pensar uma agenda pós-petroleira. Nisso, coincidem todos. O rentismo [referência à dependência da economia Venezuela da renda do petróleo que exporta] não distribui exatamente a riqueza, porque capta uma renda do mercado internacional e gera uma cultura não do trabalho, mas de como agarrar-se a essas fatias. É bom que se democratize [a renda], mas, depois, o problema sério é pensar um modelo produtivo. O problema venezuelano, hoje, talvez não seja tanto como transitar ao socialismo, mas a essa agenda, ainda que seja a médio prazo, porque não é fácil. Não é que o Chávez não tem vontade: inclusive, ele levou o Instituto de Tecnologia Industrial da Argentina para o país.

O senhor vê uma disputa pela liderança do continente?
Houve uma luta entre Brasil e Argentina, mas a Argentina perdeu. A Venezuela não tem condições, porque o Brasil já não joga em nível sul-americano, mas mundial, inclusive associado ao Bric [Brasil, Rússia, Índia e China]. Ninguém está pensando em competir com o Brasil, que aposta num rumo claro e complexo. O Brasil mescla um “imperialismo” com o papel de motor imprescindível para a integração regional. O Lula viaja com 200 empresários e, quando concede algum crédito, este país tem que contratar uma empresa brasileira. O Brasil é como um monstro ao lado de um monte de economias pequenas, que não têm visão muito clara sobre o que fazer com o Brasil. Há uma atitude de denunciar, como fizeram na Bolívia com a Petrobras, com a Odebrecht no Equador, ou a relação complicada com Itaipu, no Paraguai, mas, depois, chega o Marco Aurélio Garcia [assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais na gestão Lula] e tudo se ajeita.

Qual futuro o senhor vê para a Unasul e a Alba?
A Alba não avançou porque uma integração ideológica é mais complexa, depende de que os governos continuem. A Unasul não depende tanto dos governos coincidirem em tudo. A Bolívia não tem muitas relações com a Nicarágua ou Honduras. Ou seja, não está muito claro qual é o papel da Alba além do alinhamento político. É interessante que esses países possam jogar um certo papel juntos, mas a Alba não deve ser uma alternativa para outras vias de integração. A Unasul avançou muito mais rápido e existe essa coisa de que onde entra o Brasil se avança em nível diplomático, não? Quando o Brasil disse não à Alca, acabou a Alca.

Qual o impacto da morte de Néstor Kirchner para a política argentina?
A oposição fazia mais oposição ao Kirchner, que era uma espécie de copresidente, do que à própria Cristina. Kirchner era o grande disciplinador do peronismo e isso era muito necessário às vezes. Cristina era a presidente da nação e ele do peronismo. Então, temos que ver como ela vai operar isso. Pelas características meio necrófilas, a morte dele fortaleceu Cristina, pois recuperaram toda a figura de Kirchner, com a tentativa de torná-lo um mito, alguém que morreu em combate contra um monte de inimigos, corporações... o velório foi bem político. Ele recuperou todo um discurso e mística dos anos 1970, aproveitando que foi militante da juventude peronista, reativou uma parte de sua biografia muito distante. Porque, na verdade, Kirchner, nos anos 1990, apoiou basicamente o programa neoliberal. Na ditadura, ele era advogado que comprava casas de arremate, aproveitando uma lei de indexação feita pelo governo militar, e é nessa época que aconteceu sua acumulação. Ele tinha um patrimônio declarado de 14 milhões de dólares. Morreu à frente nas pesquisas para as próximas eleições pra presidente, com boa possibilidade de ganhar no primeiro turno. Kirchner não pensava a política como utopias, pensava o poder em seu sentido duro, construir dependências, interesses, redes. Então, há que se ver se Cristina consegue manter esse efeito gerado pela morte do marido. Tampouco há bons candidatos da oposição, além de haver uma parte dos votantes que se tornam “antiantikirchneristas”, ou seja, um rechaço à oposição sem ser kirchneristas. É o que acontece com tantos governos populares, cujas oposições são inapresentáveis. E isso dá vida a Cristina.

E quanto aos países que estão à direita?
[Os presidentes] Juan Manuel Santos, na Colômbia, e Sebastián Piñera, no Chile, surpreenderam um pouco porque se mantiveram olhando para a América Latina, mais do que se esperava. Deram início a uma direita muito mais hábil, pragmática, empresarial, menos conservadora em uma série de temas, inclusive morais. Uma direita parecida à nova direita europeia de [Nicolas] Sarkozi [presidente da França]. Não quero dizer que os conservadores não estão com Piñera, mas ele é liberal, não é pinochetista. Quando seu embaixador na Argentina defendeu Pinochet, ele o retirou 24 horas depois. Santos surpreendeu porque se esperava que fosse uma mera continuidade de Álvaro Uribe [presidente que o antecedeu], mas ele mostrou mais flexibilidade, com a Venezuela, por exemplo. Há razões econômicas também, porque a Venezuela começou a importar alimentos da Argentina e do Brasil. Mas ele ainda prometeu reforma agrária, devolvendo as terras que os paramilitares tomaram de camponeses. Não sei se o fará e não é que ele seja menos de direita, mas se adaptou mais a certas coisas.

E com relação às Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia?
Existe uma possibilidade que a Unasul contribua. De fato, as Farc pediram que Dilma participe como mediadora, apelando um pouco para o seu passado guerrilheiro. O Brasil pode jogar um papel importante nisso, algo que era impensável há dez anos. Mas as Farc são o grande obstáculo para que a esquerda possa disputar algo na Colômbia.

E o Peru?
Aí não se sabe, porque [o presidente] Alan García está de saída e todos creem que o Apra [Alianza Popular Revolucionaria Americana, seu partido] também. Mas o Peru é um pouco surpreendente, porque há alguns dias a relação com a Bolívia era malíssima e, agora, o Peru está deportando os prófugos da Justiça boliviana. Aceitaram também fazer um acordo sobre o mar. E a esquerda ganhou as eleições da capital Lima, apesar de parecer um pouco desarticulada para desafios mais sólidos. Para as próximas eleições, há cinco candidatos que estão com aproximadamente 20% dos votos cada um e dizem que o Apra não ganharia um segundo turno. E olha que a economia do Peru está crescendo 10%.



Pablo Stefanoni é economista e jornalista argentino radicado em La Paz desde 2003. Foi assessor de comunicação do governo Evo Morales. Atualmente, é diretor da versão boliviana do Le Monde Diplomatique e faz doutorado sobre a história das ideias do indigenismo.

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Brevíssima história de 40 anos de políticas neoliberais


Muitos especialistas dizem que a ideologia neoliberal iniciou nos anos 80 com Reagan, Thatcher e a Escola de Chicago. Mas o que tornou possível esse giro na economia política? Que elementos, que novas forças podem explicar essa mudança ideológica e as desigualdades que a seguiram? Como os poderes que tomam decisões políticas foram sendo postos gradualmente nas mãos de um corpo de tecnocratas neoliberais que pontificavam sobre as limitações dos governos? Responder a essas questões passa por reconhecer que este processo durou décadas. O artigo é de Marshall Auerback.

Um assíduo leitor de New Deal 2.0 faz uma aguda questão:
“Há uma questão que nunca consigo responder. Muitos especialistas dizem que a ideologia neoliberal iniciou nos anos 80 com Reagan, Thatcher e a Escola de Chicago. Mas sigo sem entender o que tornou possível esse giro na economia política. Que elementos, que novas forças nos anos 80 podem explicar essa mudança ideológica e as desigualdades que a seguiram?"

Todos esses temas são muito dignos de exploração e eu, quero dizer desde logo, não posso fazer justiça a eles com uma resposta de duas linhas. É melhor recomendar o soberbo livro de Yves Smith, Econned. O livro proporciona uma excelente explicação histórica do modo como algumas teorias infundadas, mas amplamente aceitas, levaram à execução de políticas que geraram o atual estado de coisas. Também ilumina a capacidade dessas filosofias para ressuscitar mesmo quando se acumulam provas conclusivas contra elas. Documenta não só a crescente degradação dos economistas profissionais neoclássicos (e sua concomitante tendência a reduzir a soma da experiência humana a uma série de equações matemáticas), mas também a maneira pela qual fundações muito bem financiadas subvencionaram universidades e think tanks que, por sua vez, legitimaram e validaram essas filosofias charlatanescas.

A ideia de que governos democraticamente eleitos devem servir-se de políticas fiscais discricionárias para contraestabilizar as flutuações do ciclo do gasto público chegou a ser visto como algo muito próximo ao socialismo. Os poderes que tomam decisões políticas foram postos gradualmente nas mãos de um corpo de tecnocratas neoliberais que pontificavam sobre as limitações dos governos e reforçavam as posições fiscalmente pró-cíclicas, ou seja: reforçavam a contração discricionária quando os estabilizadores automáticos levavam a grandes déficits orçamentários como resultado da frágil demanda não-pública.

Essa mudança em nossas políticas públicas foi acompanhada por um processo de tomada de controle dos juristas em uma longa marcha através do poder Judiciário. Foi um esforço patrocinado pelas grandes empresas, centrado exclusivamente no tema da desregulação, e culminou com um esforço titânico para revogar as reformas do New Deal, limitar o poder dos sindicatos e do próprio governo (salvo em matéria de Defesa, cabe assinalar, que organizou seu próprio e formidável exército de lobistas).

Responder a questão colocada por nosso leitor passa por reconhecer que este foi um processo que durou décadas e que veio acompanhado de enormes somas de dinheiro e de vasto exército de forças empresariais, jurídicas e políticas, empenhado em frustrar qualquer alternativa progressista. O processo inteiro ocorreu em um período de aproximadamente 40 anos. Flexibilização da regulação e da supervisão; uma crescente desigualdade que levou às famílias a se endividar para manter o nível de gasto; cobiça e exuberância irracional e liquidez global excessiva: todos esses são sintomas do mesmo problema.

Mas como tudo começou? A análise que o grande economista Hyman Minsky realizou no final de sua vida é particularmente potente, porque permite ver essas mudanças a partir de uma vasta perspectiva histórica. Minsky chamou a situação de saída da II Guerra Mundial de “capitalismo paternalista”. Ela se caracterizava por um “enorme Tesouro público” (cujo custo equivalia a 5% do PIB) dotado de um orçamento que oscilava contraciclicamente a fim de estabilizar a renda, o emprego e os fluxos de lucros; um Banco Central ao estilo de um “enorme banco” que mantinha baixas as taxas de juros e intervinha como emprestador último de recursos; uma ampla variedade de garantias estatais (seguro de depósitos, respaldo público implícito ao grosso das hipotecas); programas de bem estar social (Seguridade Social, ajuda às famílias com filhos dependentes, ajuda médica); estreita supervisão e regulação das instituições financeiras; e um leque de programas públicos para promover a melhoria da renda e a igualdade de riqueza (tributação progressiva, leis de salário mínimo, proteção para o trabalho sindicalmente organizado, maior acesso à educação e à habitação para pessoas de baixa renda).

Além disso, o Estado jogava um papel importante em matéria de financiamento e refinanciamento (por exemplo, a corporação pública para financiar a reforma de imóveis e a corporação pública para o crédito destinado à compra de imóveis) e na criação de um mercado hipotecário moderno para a compra de imóveis (baseado em um empréstimo de tipo fixo amortizável em 30 anos), sustentado por empresas patrocinadas pelo Estado. Minsky reconheceu papel desempenhado pela Grande Depressão e pela II Guerra Mundial na criação de bases para a estabilidade financeira. Nas palavras de Randy Wray:

“A Depressão pulverizou e expulsou o grosso dos ativos e passivos financeiros: isso permitiu às empresas e às famílias saírem com pouca dívida privada. O ciclópico gasto público durante a II Guerra Mundial criou poupança e lucro no setor privado, enchendo os livros de contabilidade com dívida saneada do Tesouro (60% do PIB, imediatamente depois da II Guerra). A criação de uma classe média, assim como o baby boom, mantiveram alta a demanda de consumo e alimentaram um rápido crescimento do gasto público dos estados federados e dos municípios em infraestrutura e em serviços públicos demandados pelos consumidores metropolitanos.

A elevada demanda dos entes públicos e dos consumidores trouxe por sua vez consigo a possibilidade de se cobrir o grosso das necessidades das empresas para financiar o gasto interno, incluindo os investimentos. Assim, durante as primeiras décadas que se seguiram à Segunda Guerra, o capital financeiro desempenhou um papel muito menor. A lembrança da Grande Depressão gerou relutância em relação ao endividamento. Os sindicatos pressionavam e, frequentemente, obtinham mais e mais compensações, o que permitiu o crescimento dos níveis de vida, financiados em sua maior parte somente com a renda dos trabalhadores”.

Na década de 1970 tudo isso começou a mudar, como é bem explicado em Econned. O gasto público começou a crescer mais lentamente que o PIB; os salários ajustados à inflação se estancaram a medida que os sindicatos perdiam poder; a desigualdade começou a crescer e as taxas de pobreza deixaram de cair; as taxas de desemprego dispararam; e o crescimento econômico começou a desacelerar.

Nos anos 70 assistimos também aos primeiros esforços sustentados para fugir das restrições impostas pelo New Deal, a medida que as finanças respondiam para aproveitar as oportunidades. Com o desastroso experimento monetarista de Volcker (1979-82), muitos dos velhos vestígios do sistema bancário estabelecido pelo New Deal foram arrasados.

O rito de inovações se acelerou a medida que foram se adotando muitas práticas financeiras novas para proteger as instituições do risco da taxa de juros. A despeito de todas as apologias feitas sobre os anos de Volcker a frente da Federal Reserve, o certo é que suas políticas de juros altos assentaram as bases do atual sistema financeiro baseado no mercado, incluídas a titulação hipotecária, a inovação financeira na forma de derivativos para cobrir o risco das taxas de juros, assim como muitos dos veículos financeiros “extra contábeis” que proliferaram nas duas últimas décadas. Legislou-se para criar um tratamento fiscal muito mais favorável aos juros, o que, por sua vez, estimulou as compras alavancadas para substituir ativos por dívida (como a tomada de controle empresarial financiada com dívida que seria servida pelos futuros fluxos de receita da empresa assim controlada).

Os excedentes orçamentários dos anos Clinton – outro exemplo de ascendência de uma filosofia neoliberal que fugiu da política tributária e determinou a primazia da política monetária – restringiram a demanda agregada, encolheram as receitas e criaram uma maior dependência da dívida privada como meio de sustentar o crescimento e as receitas. Esse foi claramente facilitado por inovações que ampliaram o acesso ao crédito e mudaram os critérios das empresas e dos lares para definir o nível de endividamento prudente. O consumo conduzia o timão e a economia voltou finalmente aos rendimentos dos anos 60. Regressou o crescimento robusto, agora alimentado pelo déficit do gasto privado, não pelo crescimento do gasto público e da receita privada. Tudo isso levou ao que Minsky chamou de capitalismo dos gestores do dinheiro.

Esse é o contexto histórico básico que veio se desenvolvendo nos últimos 40 anos. E essa é, provavelmente, uma resposta que vai mais além do que nosso amável leitor queria, mas sua questão não é daquelas que possa ser respondida laconicamente.

(*) Marshall Auerback é analista econômico, pesquisador do Roosevelt
Institute, colaborador da New Economic Perspectives e da NewDeal 2.0.

Tradução para SinPermiso: Casiopea Altisench
Tradução para Carta Maior: Katarina Peixoto