sábado, 15 de janeiro de 2011

Rosa Luxemburg: judia, polonesa, socialista, revolucionária... também feminista?

Por Por Isabel Loureiro na Revista Forum
Por que homenagear Rosa Luxemburg no Dia Internacional da Mulher, uma vez que é notório seu desprezo pela questão feminina, e não sua amiga Clara Zetkin, a feminista de carteirinha da esquerda alemã? Enquanto esta, na linha dos marxistas clássicos, pensava que o fim da desigualdade entre os gêneros só ocorreria com o advento do socialismo que emanciparia todos os oprimidos, inclusive as mulheres, Rosa Luxemburg, que não se deteve na questão feminina, foi poupada das críticas que as feministas endereçaram à esquerda tradicional. Algumas feministas alemãs chegaram mesmo a inspirar-se na sua teoria da acumulação do capital para desenvolver uma concepção original a respeito da opressão das mulheres. Desse ponto de vista, Rosa Luxemburg teria uma contribuição teórica a dar ao movimento feminista. Mas, para além desse aspecto, existe, a meu ver, uma outra dimensão que também leva Rosa a ter voz no capítulo. Sua luta incansável para se construir como mulher livre no plano pessoal e político, exposta em detalhes na vasta correspondência com os amigos e namorados, é um exemplo que ainda hoje nos sensibiliza e faz pensar.
Rosa tem 27 anos quando chega a Berlim em 1898 para trabalhar no Partido Social-Democrata Alemão, a mais importante organização de trabalhadores daquela época. O que queria a jovem judia polonesa, cuja carta de apresentação era tão-somente uma tese de doutorado defendida em Zurique sobre o desenvolvimento industrial na Polônia? A resposta é simples: nada menos do que fazer política em pé de igualdade com os maiores teóricos do partido. Essa meta ela alcança em pouco tempo. Dotada de uma inteligência fulgurante e de uma energia sem limites, Rosa torna-se rapidamente conhecida na socialdemocracia alemã ao investir contra o velho e respeitado teórico do partido, Eduard Bernstein, que, embora amigo dos fundadores do marxismo, não hesita em fazer uma revisão da teoria marxista que despencava no mais puro reformismo. A jovem estudiosa e seguidora ortodoxa da obra de Marx não teme enfrentar a hierarquia da organização, dando assim o primeiro passo no caminho a que se tinha proposto: construir-se como mulher independente, tanto no plano político, quanto pessoal.
Mas aqui as coisas eram um pouco mais difíceis. Para começo de conversa, Rosa não era bonita: um metro e 50 de altura, cabeça desproporcional, nariz grande e um problema no quadril que a fazia mancar. Numa época em que o andar elegante era um dos principais atributos femininos, ela quase sempre conseguia disfarçar essa deficiência por meio do autocontrole e da roupa feita sob medida. Rosa, que certamente sofria com isso, se protegia na medida do possível com a auto-ironia, dizendo preferir empregadas altas e fortes, com medo de que quem fosse visitá-la acreditasse ter chegado a uma casa de anões. Segundo a biógrafa Elzbieta Ettinger (Rosa Luxemburgo, Zahar, 1986), esse defeito físico foi determinante em sua vida, levando-a a forjar uma excepcional força de vontade e a tornar-se, a título de compensação, primeiro, aluna modelo, depois, oradora, polemista, jornalista e intelectual brilhante.
As razões para que a fundadora e líder da socialdemocracia polonesa e líder da ala esquerda da socialdemocracia alemã ainda exerça tamanho fascínio sobre nós não são apenas suas idéias políticas libertárias, mas também o fato de que, sendo mulher – o que faz toda a diferença –, e mulher mergulhada na vida política, ela se recusa a sacrificar a felicidade individual à carreira. Porém, neste ponto, acabou se frustrando. Na juventude insistia com Leo Jogiches (também fundador da socialdemocracia polonesa e o grande amor de sua vida durante 15 anos) para ter uma vida “normal”: casar, ter filhos etc. E, junto com isso, dedicar-se à política. Mas Leo era o revolucionário típico, “durão”, acostumado à luta política clandestina e à conspiração. Unir prazer e dever era algo que não estava nos seus planos, se acreditarmos nas eternas reclamações de Rosa, que o censurava por só pensar na “causa”. De temperamentos muito diferentes, a relação entre os dois, depois dos primeiros meses, foi uma fonte contínua de tensões e desavenças, e ela sentia-se infeliz. Segundo Charles Rapoport, que conhecia bem os dois, “Rosa era sentimental e apaixonada, romântica e sensível ao extremo. Talvez Jogiches, no fundo do coração, se parecesse com ela, mas, grande conspirador, soube tão bem esconder sua sensibilidade que mal podia encontrá-la para manifestá-la exteriormente”.
A ruptura veio em 1906. Sobre as razões exatas que levaram a isso só nos resta conjeturar. A versão mais divulgada (inclusive pelo filme de Margarethe von Trotta) é que durante a Revolução Russa de 1905, quando Leo estava em Varsóvia e Rosa, em Berlim, ele teria tido um caso com uma militante. Na versão de Ettinger, que parece a mais plausível quando acompanhamos a evolução do relacionamento pela correspondência, foi Rosa quem rompeu ao apaixonar-se por Costia Zetkin, o filho mais novo de sua amiga Clara Zetkin. Apaixonou-se porque internamente já estava afastada de Leo, o homem unilateralmente consagrado à causa. Entretanto, o contato político entre eles durou até o fim da vida. Durante os quatro anos de guerra, quando Rosa ficou presa, Jogiches teve um papel importante na organização do movimento spartakista e, posteriormente, na Revolução Alemã de novembro de 1918, sempre na sombra. Quando Rosa foi assassinada, com o apoio (pelo menos passivo) da socialdemocracia no poder, em 15 de janeiro de 1919, Jogiches, “fiel e sólido como a rocha”, assumiu como tarefa descobrir os culpados. Isso não durou muito: também ele seria brutalmente assassinado no dia 10 de março.
Rosa, diferentemente de Leo, não tinha nenhuma inclinação especial para a clandestinidade, as seitas revolucionárias, o segredo; grande oradora e jornalista, o seu era um combate público contra todas as formas de opressão, tanto social quanto individual. E é como militante política, como combatente na arena pública, que Rosa enfrenta – e vence intelectualmente – os preconceitos arraigados na socialdemocracia alemã. Nessa medida, ela rompe com o tradicional papel feminino de esposa e mãe, ou mesmo, num outro patamar, de secretária do marido. Não podemos esquecer que ela sofre de vários handicaps para a ultraconservadora Alemanha da época – é mulher, judia, polonesa e revolucionária.
Rosa era de fato uma figura singular na sociedade imperial alemã, dominada pelo autoritarismo e o patriarcalismo que contaminavam a própria socialdemocracia, razão para que fosse extremamente discreta sobre sua vida privada. Tanto que Leo Jogiches nunca apareceu publicamente como seu companheiro; muito menos Costia Zetkin, com quem manteve um relacionamento amoroso cuidadosamente escondido de seus convencionais companheiros de partido; e menos ainda a relação com Paul Levi, que só se tornou conhecida em 1983, muito tempo depois da morte de ambos, quando a família dele tornou pública a correspondência com Rosa Luxemburg. E havia motivos para tanta discrição.
Os ataques contra a mulher começaram cedo no ambiente machista da esquerda da época, que temia sua independência de espírito e sua língua mordaz: o socialista austríaco Victor Adler chamou-a de “idiota venenosa”; quando ela foi nomeada redatora-chefe de um importante jornal socialdemocrata e enfrentou quase uma rebelião dos colegas jornalistas que duvidavam de sua competência pelo fato de ser mulher; seus companheiros de partido ao se referirem a ela falavam em “materialismo histérico”; para Lênin, Rosa era uma águia que ocasionalmente voava mais baixo que uma galinha. Seus assassinos fizeram questão de vilipendiá-la como mulher: depois de espancada, levou um tiro na cabeça, foi enrolada em arame farpado e jogada nas águas do canal Landwehr. Só pôde ser enterrada meses mais tarde, numa cerimônia acompanhada por milhares de pessoas, quando o corpo, quase irreconhecível, foi identificado a duras penas por sua secretária Mathilde Jacob. Recentemente na Alemanha, quando o governo de esquerda de Berlim propôs construir um monumento em sua homenagem, entre críticas de todos os tipos, voltaram à cena os ataques contra a mulher, desta vez mais sutis: Rosa nunca recebeu uma proposta de casamento dos amantes, nem realizou o desejo de ter filhos. Quem questionaria um homem dessa maneira, apelando para sua vida privada?
Para concluir, uma rápida menção às feministas alemãs inspiradas em Rosa.1 Segundo essa leitura, em suas obras de economia política, A acumulação do capital e Introdução à economia política, Rosa não compartilha da crença no progresso, comum na socialdemocracia do seu tempo, mas, ao contrário, enfatiza o lado violento da expansão capitalista que leva à destruição das culturas primitivas, distinguindo-se assim de seus companheiros homens, Marx, bolcheviques, socialdemocratas. Es¬tes encaram como positivo o desenvolvimento capitalista com seus aliados naturais, a grande indústria e o desenvolvimento técnico, vendo tal processo como uma etapa necessária no caminho da humanidade em direção ao socialismo. Para Rosa, em contrapartida, cuja tese sobre o imperialismo tem no centro a idéia de que o capitalismo só pode desenvolver-se anexando – com violência – as formações sociais não-capitalistas, o capitalismo traz apenas destruição. Estas formações sociais não-capitalistas, que antes eram as colônias, abarcam hoje setores como a saúde, a educação, a criatividade intelectual, os recursos ambientais, a cultura, e, segundo as feministas, o trabalho das mulheres no âmbito doméstico.
Com toda certeza, Rosa ficaria feliz por ter deixado uma obra mais brilhante e duradoura que a da grande maioria de seus companheiros homens. Mas, para nós mulheres, o mais estimulante ainda hoje é o fato de ela ser uma intelectual revolucionária que vê a sociedade do ponto de vista feminino; e, além disso, a preservação dos registros pessoais em que ela, no decorrer dos anos, relata sua penosa construção como mulher independente contribui para nosso próprio autoconhecimento, dando-nos força para lutar contra os limites que continuam nos sendo impostos e que acabamos por introjetar. 

Barricadas LGBT


Extraido do sitio Barricadas

A sexualidade sempre foi parte importante da vida em sociedade. Entretanto, o modo como ela é encarada muda de acordo com a época, o sistema econômico e as condições materiais. Embora nunca tenha sido a forma predominante de sexualidade, as relações entre pessoas do mesmo sexo nem sempre foram criminalizadas, havendo inúmeros registros históricos de sociedades nas quais o intercurso sexual entre homens ou entre mulheres era parte natural da vida afetiva. Hoje, no entanto, o que se vê é a mais completa naturalização do preconceito contra gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transsexuais, trasgêneros (LGBTs) e todos aqueles que escapam da norma estabelecida pelo sistema capitalista: a família patriarcal, monogâmica e heterossexual.
Este modelo de organização social baseado na família tem como objetivo garantir a manutenção da sociedade de classes por meio da transferência de herança, uma vez que somente as relações heterossexuais geram herdeiros. Nesse contexto, a homossexualidade passa a ser encarada como um risco para o sistema baseado na propriedade. Com o surgimento do capitalismo, a homofobia se torna um mecanismo de opressão aos homossexuais, da mesma forma como o machismo e o racismo para oprimir mulheres e os negros, pois é a partir da imposição das diferenças que se dá a exploração do homem pelo homem, uma das bases de sustentação do sistema.
Completamos, no último dia 28 de junho, 41 anos da Rebelião de Stonewall, considerada um marco na luta das lésbicas, gays, bissexuais, transsexuais e trasgêneros contra séculos de opressão silenciosa. Desde então, homossexuais de todo o mundo vem se mobilizando na luta por uma sociedade sem homofobia, pela liberdade sexual e pela igualdade de direitos, promovendo importantes mudanças no que diz respeito a concepção de sociedade imposta pelo capital. Aqui no Brasil, os primeiros grupos formados por homossexuais surgem no final dos anos 70, lutando contra a repressão dos órgãos de segurança do regime militar. Entetanto, o caráter fragmentado do movimento homossexual brasileiro impossibilitou maiores avanços políticos. Para se ter uma ideia, desde a promulgação da constituição de 1988 nenhuma lei em benefício da população LGBT foi aprovada pelo congresso nacional.
Atualmente, a legislação brasileira nega mais de 30 direitos civis aos LGBTs. Não por acaso, a maioria destes direitos são trabalhistas e previdenciários, o que coloca a luta contra o preconceito em pé de igualdade com as lutas da classe trabalhadora. A pessoa homossexual é fortemente discriminada no mundo do trabalho, sofrendo todo o tipo de assédio moral e sendo muitas vezes obrigada a esconder sua orientação sexual para não perder o emprego. As travestis, em sua maioria, são relegadas à prostituição, enquanto os transsexuais precisam recorrer à justiça para ter o seu nome social reconhecido.
Segundo dados da ONG Grupo Gay da Bahia (GBB), o Brasil é o país campeão em assassinatos contra homossexuais: em 2010 foram mais de 250 assassinatos, uma média de um a cada dois dias. Os números revelam ainda que 11% desses homicídios foram cometidos por policiais. As vítimas geralmente são gays, negros, pobres e o cenários das execuções na maioria das vezes é a periferia das grandes cidades. Os números, no entanto, não correspondem à realidade, pois não existem estatísticas oficiais a respeito de crimes homofóbicos. Isso sem contar com as agressões físicas, que estão longe de ocorrer somente na Avenida Paulista. Estão presentes nos quatro cantos do país, no cotidiano de milhares de lésbicas, gays, bissexuais e transsexuais.
A universidade brasileira, por sua vez, não cumpre com o papel de ser um espaço crítico de emancipação e reproduz os valores machistas, sexistas e homofóbicos de nossa sociedade. Como exemplo, temos o caso da Universidade Mackenzie, que divulgou recentemente um texto oficial assinado pelo reverendo Dr. Augustus Nicodemus Gomes Lopes, Chanceler da Universidade, declarando que a instituição de ensino era “contra a aprovação da chamada lei da homofobia, por entender que ensinar e pregar contra a prática do homossexualismo não é homofobia, por entender que uma lei dessa natureza maximiza direitos a um determinado grupo de cidadãos”.
Também é comum presenciarmos episódios de agressão ou insulto aos homossexuais em nossas universidades, não havendo grandes mobilizações estudantis em torno desta pauta. Mesmo tendo a compreensão de a superação completa de toda a forma de opressão, seja ela de gênero, sexualidade, raça ou etnia, só será possível a partir da implementação de um outro modelo de sociedade, nós, estudantes do campo Barricadas Abrem Caminhos defendemos a luta contra a homofobia dentro e fora das universidades!
Algumas bandeiras que defendemos:
Universidade
A universidade, como espaço de questionamento da sociedade, deve abordar temas relacionados a livre orientação sexual e identidade de gênero, afim de formar jovens conscientes e livres de preconceito. Também é preciso garantir o respeito, o acompanhamento e a sobrevivência do jovem travesti e transsexual nas universidades brasileiras, por meio de políticas específicas de assistência estudantil. O movimento estudantil, por sua vez, tem o dever de pautar a questão da homofobia, lutando contra a lógica conservadora e moralista imposta pelas instituições de ensino superior, que muitas vezes impede o exercício público da sexualidade em suas dependências. É preciso ainda combater o machismo que impera entre os próprios estudantes, a exemplo das atléticas, que reproduzem todo o tipo de preconceito contra as mulheres e os homossexuais.
Violência
Hoje no Brasil, não existe uma lei específica para penalizar atos homofóbicos, sejam eles verbais ou físicos. O Projeto de Lei 122/2006, que propõe pena de dois a cinco anos de reclusão para os crimes resultantes de discriminação à orientação sexual ou identidade de gênero, acaba de ser arquivado pelo senado federal, uma vez que a legislação prevê o arquivamento de todo e qualquer projeto que tramite na casa há mais de duas legislaturas. O Governo Lula, por sua vez, jamais pressionou sua base aliada para a aprovação deste projeto e pior ainda, se aliou a diversos políticos que declaradamente fazem oposição a sua aprovação. Com o Governo Dilma Rousseff, as perspectivas são ainda piores. Embora tenha assumido o compromisso de sancionar a PLC 122, caso esta seja aprovada pelo senado, Dilma chegou ao poder graças a uma série de alianças com os setores religiosos mais conservadores da sociedade, o que coloca em cheque seu suposto compromisso com o movimento LGBT.
A recente campanha presidencial de 2010 explicitou o caráter reacionário do debate político feito pelos partidos da ordem em nosso país. O resultado disso foi uma onda de ataques homofóbicos amplamente divulgados pela imprensa nacional. Sabemos que estes fatos representam apenas uma parte da violência enfrentada diariamente pelos LGBTs brasileiros, mas esta conjuntura reforça a necessidade da aprovação de instrumentos jurídicos que garantam a nossa integridade enquanto pessoa humana. Entendemos que o reconhecimento constitucional obtido a partir da criação de dispositivos legais como a PLC 122 se constituem como conquistas importantes para a população LGBT, porém, a formulação de leis como esta não garantem o fim de ações homofóbicas, sendo para isto fundamental privilegiar ações de conscientização da sociedade. E a universidade, neste sentido, se mostra um espaço privilegiado para avançar na consciência e organizar as lutas sociais.
Estado Laico
O Estado deve assegurar os direitos de todos os cidadãos, independente de cor, raça, credo, naturalidade, orientação sexual ou identidade de gênero. Por isso, defendemos a laicidade do estado, ou seja, o Estado leigo, separado da igreja e livre de opção religiosa, como previsto na constituição de 1988. Porém, o que se vê atualmente na esfera legislativa legislativa é um amplo boicote por parte das chamadas “bancadas religiosas” aos projetos de lei direcionados a população LGBT (como o casamento civil, a adoção de crianças por casais do mesmo sexo e a lei que criminaliza a homofobia). O executivo também foi de encontro ao Estado Laico quando o Presidente Luís Inácio Lula da Silva assinou em 2009 o acordo Brasil/Vaticano e a Lei Geral das Religiões, ameaçando os direitos das mulheres, dos homossexuais e principalmente dos trabalhadores.  Compreendemos que a violação do Estado Laico se configura como um grande retrocesso para a luta dos setores oprimidos da sociedade.
Por isso, nós homossexuais do campo Barricadas Abrem Caminhos propomos espaços de organização dos estudantes LGBT no Movimento Estudantil, para formulação e, mais que isso, ações concretas contra a opressão a qual somos submetidos!

Presidente tunisino abandona o país

Que a fagulha tunisina abrase todo o mundo árabe!

por Mohamed Belaali
Um povo em luta merece respeito. Mais de quatro semanas de revoltas populares, o exército atira com balas reais sobre a multidão, mortos às dezenas, cessar-fogo, desaparecimento e execução de sindicalistas, prisão de bloguistas, etc, etc. Estes acontecimentos não se desenrolam nem em Cuba, nem na Venezuela, nem na Bolívia, nem na China e nem no Irão mas na... Tunísia! Os países europeus, a França de Sarkozy à cabeça, sempre prontos a se imiscuírem nos assuntos do Irão ou da Costa do Marfim, por exemplo, desta vez contentaram-se com alguns comunicados após semanas de silêncio cúmplice: "a Tunísia confronta-se com problemas económicos e sociais. Só o diálogo permitirá aos tunisinos ultrapassá-los" dizia servilmente um comunicado do Ministério francês dos Negócios Estrangeiros.

Que contraste entre a violência da propaganda contra o Irão na Primavera de 2009 aquando das eleições presidenciais e o servilismo das declarações oficiais a propósito da revolta do povo tunisino. Bastaria na época ler os títulos dos jornais e olhar as imagens difundidas em cadeia pelas televisões americanas e europeias para perceber o ódio do imperialismo à República Islâmica do Irão. Mas a revolta do povo tunisino não merece senão o desprezo e o silêncio. Pois "A Tunísia é um país amigo, estamos extremamente vigilantes com o que se passa lá em baixo e muito preocupado (...) Ao mesmo tempo, a França não tem de se ingerir nos assuntos da Tunisia", declarava Luc Chatel na Radio Classique e i-Télé .

Sempre invocando cinicamente o direito de não ingerência nos assuntos dos outros países, os governo francês, através da sua ministra dos Negócios Estrangeiros Michèle Alliot-Marie, chega mesmo a propor aos regimes tunisino e argelino sua colaboração em matéria de seguranças e manutenção da ordem: "Propomos que o know how das nossas forças de segurança, reconhecido no mundo inteiro, resolva situações securitárias deste tipo. Esta é a razão pela qual propomos aos dois países [Argélia e Tunísia], no quadro das nossas cooperações, agir neste sentido para que o direito de manifestar possa ser feito ao mesmo tempo que a garantia da segurança" [1] . É que a França é um dos primeiros investidores estrangeiros na Tunísia. Ela ocupa mesmo o primeiro lugar quanto ao número de empresas instaladas neste país (1200 empresas). Pode-se citar dentre muitas Lacoste, Valeo, Sagem, Danone, Sanofi-Aventis, Fram, Accor, Club med, BNP-Paribas, Société générale, Groupe Caisse d'épargne etc. etc. [2]

As burguesias ocidentais que apregoam incessantemente desejarem difundir a democracia por todo o mundo, na realidade não fazem senão sustentar, directa ou indirectamente, as ditaduras e impedem deste modo todo progresso no caminho da democracia e do progresso social. Toda a história do imperialismo não é senão o apoio aos regimes mais ferozes, quando não são instalados directamente por ele. Seria difícil e fastidioso pretender estabelecer uma lista exaustiva destas ditaduras pois são demasiado numerosas. Citemos ainda assim as mais conhecidas e as mais terríveis: Augusto Pinochet no Chile, Videla na Argentine, Somoza na Nicarágua, Suharto na Indonésia, Marcos nas Filipinas, Musharraf no Paquistão, o xá Reza Pahleve no Irão, Hosni Mubarak no Egipto, Omar e Ai Bongo no Gabão, etc, etc. O apoio indefectível das burguesias ocidentais aos regimes mais sangrentos é uma constante na história do capitalismo.

Hoje, o levantamento do povo tunisino, sua coragem e sua determinação a enfrentar um dos regimes mais repressivos, mostra o caminho a seguir a todos os oprimidos não só do Magreb como de todo o mundo árabe!

As massas populares árabes sofreram demasiado desta cumplicidade objectiva das suas próprias burguesias corrompidas até a medula e da burguesia ocidental que os mantêm na dependência e na miséria. O mundo árabe hoje é uma verdadeira bomba que pode explodir a qualquer momento.

Exploradas, marginalizadas e humilhadas por longo tempo, as massas populares árabes lentamente levantam a cabeça e tentam sair desta longa noite na qual foram mergulhadas.

Trabalhadores, progressistas e democratas europeus: é nosso dever apoiar o povo tunisino na sua luta contra um regime de outra era. A sua vitória nesta região do mundo árabe será igualmente a nossa aqui na Europa.

(1) www.rue89.com/...
(2) www.ambassadefrance-tn.org/...


O original encontra-se em www.legrandsoir.info/...


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

Miguel Hernández: cem anos de um poeta comunista


Com a entrada de 2011 culmina a comemoração do centenário (30 de outubro de 2010)do poeta comunista espanhol Miguel Hernández, que envolveu uma infinidade de atos de todo tipo (concertos, conferências, recitais poéticos, pelas de teatro e dança, congressos, etc.) que foram celebrados e tiveram uma dimensão universal, pois em pelo menos outros 22 países ocorreram atividades em memória do autor de El rayo que no cesa, da Argentina à Hungria, ou das Filipinas à Rússia.


Por Mario Amorós no Portal Vermelho

Um dos mais notáveis e plenos de significado ocorreu na luminosa manhã de 18 de setembro, no parque Dolores Ibárruri de San Fernando de Henares (Madri, Espanha) durante a festa anual do Partido Comunista da Espanha. Ali, diante de milhares de pessoas, o secretário geral do PCE, José Luis Centella, entregou a Lucía Izquierdo a caderneta comunista de 2010.
“É uma imensa honra receber esta caderneta e vamos cuidar dela como de um tesouro. Estamos muito orgulhosos de que Miguel Hernández pertencesse ao PCE”, disse a nora do poeta nascido em Orihuela (Alicante, Espanha) em 30 de outubro de 1910.
Com aquelas palavras Lúcia Izquierdo destacava um fato central na biografia de Miguel Hernández, mas muitas vezes marginalizado ou silenciado: seu compromisso com a defesa da II República se deu dentro das fileiras do PCE, ao qual se filiou no verão de 1936, e a partir de seu lendário Quinto Regimento das Milícias Populares, como mostra a caderneta reproduzida na exposição Miguel Hernández 1910-2010.
Da mesma forma que dezenas de milhares de jovens e trabalhadores, ele se uniu ao Partido Comunista para defender a legalidade democrática da II República e o programa da Frente Popular, votado majoritariamente pelo povo nas eleições de 16 de fevereiro de 1936, contra o golpe de estado fascista.

O Partido Comunista da Espanha também dedicou a Miguel Hernández um valioso número monográfico de sua revista teórica, Nuestra Bandera (na qual o poeta também colaborou em 1937 com vários artigos escritos desde a frente de batalha), com trabalhos, entre outros, de Marcos Ana, Armando López Salinas, Enrique Cerdán Tato, José Carlos Rovira e Marta Sanz e uma bela capa especialmente desenhada por Juan Genovés a partir dos versos de Hernández: “Alba que dás a mis noches un resplandor rojo y blanco”.

A Fundação de Pesquisas Marxistas e a editora El Páramo publicaram o livro Miguel Hernández. La voz de la herida, uma biografia que analisa em profundidade sua evolução política. Seus autores, David Becerra y Antonio J. Antón, apresentam o poeta como militante comunista e recordam que no presídio de Ocaña um grupo de falangistas (a direita fascista espanhola; entre eles Ernesto Jiménez Caballero) o visitou e lhe oferecem a liberdade em troca de sua conversão ideológica.

O destino de Miguel Hernández esteve ligado à sorte trágica da II República. Na frente de batalha escreveu e declamou poesias, cavou trincheiras, animou as soldados do Exército Popular, redigiu artigos para a imprensa republicana...

Sua poesia refletiu inicialmente a esperança e a luta (como, por exemplo, Viento del pueblo). Entretanto, pouco a pouco foi acolhendo o pressentimento da derrota (El hombre acecha). Em março de 1939, com a crise política em Madri originada pela traição do coronel Casado, Besteiro e seus partidários, que decretaram a perseguição aos comunistas e aceleraram a derrota da II República, recusou a proposta de seu amigo Pablo Neruda de asilar-se na embaixada do Chile e decidiu mudar-se para Portugal [entre 4 e 12 de março de 1939 o Coronel Segismundo Casado dirigiu um golpe de estado anticomunista contra o governo da II República e tentou uma negociação com os fascistas dirigidos por Francisco Franco; sem resultado, exilou-se na França, precipitando o fim da república e a vitória fascista – nota da redação].

Em Portugal, em maio, Hernández foi preso pela polícia de Antonio Salazar e entregue às forças franquistas. Passou por várias prisões e obteve a liberdade em setembro mas, voltando a Orihuela, foi detido outra vez e novamente percorreu a geografia penitenciária: Conde de Toreno (Madrid), Ocaña, Palencia y Alicante. Em janeiro de 1940 foi condenado à morte por incorrer no sarcasmo franquista do “delito de adesão à rebelião”, embora a pena capital tenha sido comutada depois para trinta anos de prisão.
Em Ocaña se negou a aceitar a proposta daquele grupo de falangistas. Em 27 de novembro de 1940 brindou de maneira simbólica com seus camaradas naquela prisão, levantando o punho clandestinamente, “pela felicidade deste povo, por aquilo que mais se aproxima da felicidade coletiva”, na modesta homenagem que lhe prestaram.
Doente de tuberculose, Miguel Hernández faleceu em28 de março de 1942 no Reformatório de Adultos de Alicante, sem ter completado 32 anos de idade. Clandestinos durante quatro décadas, seus versos conseguiram derrotar a censura franquista e acompanharam a luta pela liberdade, pela democracia e pela anistia aos presos políticos. Hoje, sua poesia é universal e, se as Nanas de cebolla que escreveu na prisão são os versos mais comoventes que um pai possa dedicar a seu filho, boa parte de sua produção poética, incluídas algumas de suas obras mais emblemáticas, como Viento del Pueblo, não pode ser desligada de seu firme compromisso político, de seus ideais comunistas.

Nestes tempos de ofensiva implacável contra a democracia, sua poesia, sua luta, seu sacrifício, sua memória, nos chamam a sair à rua outra vez, para proclamar que não somos “un pueblo de bueyes”, que somos “un pueblo que embargan yacimientos de leones, desfiladeros de águilas y cordilleras de toros con el orgullo en el asta”.

Porque como Miguel Hernández escreveu na dedicatória a Vicente Alexandre de uma de suas obras mais importantes: “Os poetas somos vento do povo: nascemos para passar soprados através de seus poros e conduzir seus olhos e seus sentimentos até os cimos mais formosos”.

(*) Mario Amorós é historiador e jornalista
Fonte: Rebelión. Tradução de José Carlos Ruy


Poemas de Miguel Hernández


O sol, a rosa e o menino

O sol, a rosa e o menino
flores de um dia nasceram.
Os de cada dia são
Sois, flores, meninos novos.

Amanhã não serei eu:
outro será o verdadeiro.
E não serei mais além
de quem queira sua lembrança.

Flor de um dia é a maior
ao pé do mais pequeno.
Flor da luz relâmpago,
e flor do instante o tempo.

Entre as flores te fostes.

Entre as flores fico.


A minha Josefina

Tuas cartas são um vinho
que me transtorna e são
o único alimento
para meu coração.

Desde que estou ausente
não sei senão sonhar,
igual que o mar teu corpo,
amargo igual que o mar.

Tuas cartas apaziguo
metido em um canto
e por redil e pasto
Dou-lhe meu coração.

Ainda que baixo a terra
meu amante corpo esteja,
escreve-me, pomba
que eu te escreverei.

(Tradução de Maria Teresa Almeida Pina)

Ventos do Povo(1937)

Ventos do povo me levam,
ventos do povo me arrastam,
esparzem-me o coração
e a garganta me arejam.

Os bois dobram a frente,
impotentemente mansa,
perante os castigos:
os leões erguem-na
e ao mesmo tempo castigam
com sua esplêndida pata.

Não sou de um povo de bois
mas de um povo impedido
por jazidas de leões,
desfiladeiros de águias
e cordilheiras de touros
com o orgulho nas hastes.

Nunca medraram os bois
nestes páramos de Espanha.

Quem falou em pôr um jugo
no pescoço desta raça?
Quem já pôs ao furacão
algum dia jugo ou laço,
ou quem o raio deteve
prisioneiro numa jaula?

Asturianos de bravura,
bascos de pedra blindada,
valencianos de alegria
e castelhanos de alma,
lavrados como a terra
e airosos como asas;
andaluzes de relâmpagos,
nascidos entre guitarras
e forjados na bigorna
torrencial das lágrimas;
estremenhos de centeio,
galegos de chuva e calma,
catalães de firmeza,
aragoneses de casta,
murcianos dinamite
espalhada como fruta,
leoneses, navarros, donos
da fome, do suor e da acha,
reis do minério,
senhores da lavoura,
homens que entre raízes,
como raízes galhardas,
ides da vida à morte,
ides do nada ao nada:
um jugo vos quer pôr
gente da erva ruim,
jugo que haveis de deixar
desfeito nas suas costas.

Crepúsculo dos bois
vem despertando a aurora.

Os bois morrem vestidos
de humildade e cheiro da corte:
as águias, os leões
e os touros de arrogância,
o céu por trás deles
nem se turva nem se acaba.
A agonia dos bois
apresenta cara pequena,
a do animal macho
engrandece a criação.

Se hei-de morrer, que morra
de cabeça bem erguida.
Morto mil vezes morto,
a boca colada ao chão,
hei-de ter os dentes cerrados
e a barba bem cortada.

Cantando espero a morte
pois há rouxinóis que cantam
acima das espingardas
e no fragor da batalha.

(Tradução de Albino M.)

R$ 24 milhões para proteger as encostas do Rio foram parar nas mãos da Fundação Roberto Marinho

do Blog do Garotinho, sugestão dos leitores Marco Aurélio e Luci via Viomundo

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O Império de Bases


O número de fato não é de todo importante. Se o total mais apurado é de 900, mil ou 1.100 bases em terras estrangeiras, isto não é o ponto central da questão, mas o que é inegável é que o exército dos EUA mantém, como diz a famosa frase de Chalmers Johnson, um império de bases tão enorme e obscuro que ninguém – nem mesmo o Pentágono – realmente faz idéia de seu tamanho e alcance totais.

Por Nick Turse
- Revista Fórum
Os Estados Unidos tem 460 bases no estrangeiro! Tem 507 bases permanentes! O que os EUA estão fazendo com mais de 560 bases no exterior? Por que é que eles tem 662 bases em outros países? Os Estados Unidos realmente tem mais de 1.000 bases militares espalhadas pelo globo?
Num mundo de estatísticas e precisão, num mundo onde a palavra “transparência” é a palavra do momento em Washington, num mundo onde toda a informação que existe está disponível a um clique de distância, existe um número que nenhum norte-americano conhece. Nem o presidente. Nem o Pentágono. Nem os experts. Ninguém.

O homem que escreveu o livro definitivo sobre o tema não sabia afirmar com certeza. O colunista do New York Times e ganhador do Prêmio Pulitzer não chegou nem perto. Numerosos artigos foram escritos sobre as bases militares norte-americanas, e, no entanto, falharam como todos os outros.

Existem mais de 1.000 bases militares norte-americanas por todo o planeta. Para ser mais específico, o número mais apurado é de 1.077 bases. A não ser que seja 1.088. Ou, se a contagem for diferente, 1.169. Ou mesmo 1.180. Talvez o número seja até maior. Ninguém sabe ao certo.

Fazendo as Contas

Num recente artigo de opinião, o colunista do New York Times Nicholas Kristof explicitou seu mordaz ponto de vista: “Os EUA mantém tropas em mais de 560 bases e outros locais no exterior, muitos dos quais são herança de uma guerra mundial que acabou há mais de 65 anos. Temos medo de que, se retirarmos nossas bases da Alemanha, a Rússia poderá invadir?”

Durante anos, o falecido Chalmers Johnson, o homem que de fato escreveu um livro sobre o império de bases militares norte-americanas, The Sorrows Of Empire (“As Tristezas do Império”, em português), compartilhou o ponto de vista de Nicholas Kristof, e o embasou com a mais detalhada pesquisa já feita sobre o “arquipélago mundial” de bases americanas. Há alguns anos, depois de desbancar os próprios documentos públicos do Pentágono, Johnson escreveu, “Os Estados Unidos mantém 761 ‘localizações’ militares em países estrangeiros. (Este é o termo utilizado pelo Departamento de Defesa, ‘localizações’ ao invés de ‘bases’, ainda que sejam, em verdade, bases.)”

Recentemente, o Pentágono atualizou seus números sobre as bases outras localizações, afirmando que os números haviam diminuído. Se os números caíram ou não ao nível defendido por Kristof, entretanto, é uma questão de interpretação. De acordo com Relatório da Estrutura de Bases de 2010, publicado pelo Departamento de Defesa americano, as forças armadas dos EUA agora mantém 662 localizações estrangeiras em 38 países ao redor do mundo. Uma leitura mais apurada do Relatório, no entanto, traz à tona gigantescos furos e lacunas.

Um Legado de Bases

Em 1955, 10 anos depois que 2ª Guerra Mundial terminou, o Chicago Daily Tribune publicou uma grande investigação sobre as bases, incluindo um mapa sinalizado com pequenas estrelas e triângulos, em sua maioria localizados na Europa e no Oceano Pacífico. “A bandeira americana tremula sobre mais de 300 postos estrangeiros”, escreveu o repórter Walter Trohan. “Acampamentos e bases estão em 12 territórios de posse Americana. As bases externas estão em 63 nações ou ilhas estrangeiras.”

Hoje, de acordo com os mapas publicados pelo Pentágono, a bandeira americana passou a tremular sobre 750 bases militares localizadas em outros países ou em território americano no exterior.  Esse mapa com certeza não considera territórios estrangeiros pequenos, de extensão inferior a 10 acres ou aquele que o exército dos EUA não estipula que valham mais de US$ 10mi. Em alguns casos, muitas bases desse tipo podem ser agrupadas e contadas como apenas uma instalação militar num só país determinado. Uma solicitação de esclarecimento do Departamento de Defesa sobre o assunto não obteve resposta. 

O que nós de fato sabemos é que, nas bases que o exército norte-americano conta, ele controla algo em torno de 52 mil edifícios e mais de 38 mil peças de infraestrutura pesada como cais, piers e gigantescos tanques de armazenamento, sem mencionar mais de nove mil “estruturas lineares” tais como rodovias, ferrovias e tubulações. Também podemos adicionar mais 6.300 edifícios, 3.500 peças de infraestrutura e 928 estruturas lineares que estão em territórios dos EUA no exterior e teremos um total impressionante. E ainda assim, isto não está nem perto da história completa.

Perdendo a Conta

Em janeiro último o coronel Wayne Shanks, um porta-voz da Força Internacional de Assistência a Segurança (ISAF, órgão controlado pelos EUA), me disse que havia cerca de 400 bases norte-americanas e de coalizão no Afeganistão, incluindo acampamentos, bases de operação avançada e postos de combate. Ele esperava que esse número aumentasse em pelo menos 12 durante o ano de 2010. 

Em setembro, entrei em contato com o Escritório de Comando de Relações Públicas da ISAF, para checar as previsões. Para a minha surpresa, me foi dito que “havia aproximadamente 350 bases de operação avançada, com duas grandes instalações militares completas, os campos aéreos de Bagram e Kandahar.” Perplexo com a perda de 50 bases ao invés de um ganho de 12, contatei Gary Younger, um encarregado das Relações Públicas da Força Internacional de Assistência a Segurança. “Há menos de 10 bases da OTAN no Afeganistão”, ele me escreveu num email de outubro de 2010. “Existem mais de 250 bases dos EUA no Afeganistão.”

Até ali me parecia que os EUA tinham perdido cerca de 150 bases e eu me encontrava verdadeiramente confuso. Quando contatei diretamente os militares para resolver as discrepâncias entre os números e listei para eles todos os dados que haviam me passado – desde as 400 bases afirmadas por Shanks até os 250 que Younger havia me dito --, fui então transferido e transferido e transferido até que me transferiram para o Sargento de Primeira Classe Eric Brown novamente no Escritório de Comando de Relações Públicas da ISAF. “O número de bases no Afeganistão é, quase certo, 411”, Brown me escreveu num email já em novembro, “e este é uma estatística composta desde Bases Completas até o nível de Posto de Combate”. Mesmo isso, ele alertou, não era uma lista completa, porque, segundo ele, “posições temporárias ainda não foram consolidadas” não constam.

Durante todo o caminho até este cálculo “final”, me foi oferecido certo número de explicações – desde os diferentes métodos de contagem das bases até a falha dos soldados em efetivo trabalho de campo em fornecer informações apuradas – para os dados conflitantes que me haviam passado. Depois de meses trocando emails e vendo os números variarem largamente, terminar em novembro com mais ou menos o mesmo número que eu tinha em janeiro sugeria que os comando militar dos Estados Unidos não está mantendo a conta correta de quantas bases eles tem instaladas no Afeganistão. Aparentemente, o exército simplesmente não sabe quantas bases existem no seu primeiro escalão de operações.

Os pontos obscuros no mundo das bases.

Procure no Relatório da Estrutura de Bases de 2010, do Departamento de Defesa dos EUA por bases no Afeganistão. Vá em frente, leia todas as 206 páginas. Você não encontrará uma menção sequer a estas bases, nem mesmo uma citação ou uma mínima referência de que os Estados Unidos da América tem pelo menos uma base no Afeganistão, muito menos 400. Esta é dificilmente uma omissão insignificante. Adicione essas 411 bases que não aparecem no Relatório às 560 bases apresentadas por Nicholas Kristof e você terá 971 bases. Adicione isto também à conta oficial do Pentágono e ficaremos com um total de 1073 bases e localizações norte-americanas no exterior, por volta de 770 a mais do que Walter Trohan descobriu em seu artigo de 1955. Este número supera, ainda, a contagem de 1967, de que os EUA possuíam 1014 bases em países estrangeiros, ano considerado por Chalmers Johnson “o auge da Guerra Fria.”

Existem, todavia, outros meios de apurar o total. Numa carta escrita na primavera passada, o Senador Ron Wyden e os Representativos Barney Frank, Ron Paul e Walter Jones afirmaram que havia somente 460 instalações norte-americanas no exterior, não contando aquelas do Iraque e do Afeganistão. Nicholas Kristof, que contou 100 bases a mais do que contaram eles, não respondeu a meu email que requisitava esclarecimento, mas aparentemente deve ter feito a mesma análise que fiz: procurar e selecionar no Relatório do Pentágono as localizações que obviamente, apesar de seu tamanho e valor, só poderiam duvidosamente ser contadas como bases, como complexos habitacionais e escolas, hotéis (sim, o Departamento de Defesa possui hotéis), áreas de ski (possui estas também) e os maiores de seus campos de golfe – em 2007, o exército norte-americano alegou possuir um total de 172 campos de golfe dos mais variados tamanho – e cheguei a um total de 570 localizações estrangeiras. Adicionando-as ao número de bases afegãs você chegará então a 981 bases militares no exterior.

Como é óbvio, o Afeganistão não é o único pais com um mundo de bases obscuro. Procure nas contas do Pentágono por bases no Iraque e você não encontrará um único registro. (Esta omissão aconteceu mesmo quando os EUA mantiveram desveladamente mais de 400 bases no Iraque). Hoje a marca dos exércitos americanos sobre o país diminuiu radicalmente. O Departamento de Defesa recusou-se a responder um email que requisitava o número atual de bases instaladas no Iraque, mas relatórios publicados indicam que pouco menos que 88 bases ainda estão lá, incluindo Camp Taji, Camp Ramadi, Base Speicher de Operação de Contingente e a Base da Junta de Balad. Esta última, por si só, comporta por volta de sete mil soldados norte-americanos. Estas bases omitidas elevariam os números totais de bases através do globo para 1069.

As Zonas de Guerra não são os únicos pontos obscuros. Basta observarmos algumas nações do Oriente Médio cujos governos, por medo da opinião pública interna, preferem que nada seja divulgado a respeito das bases militares dos EUA em seus territórios. Para exemplificar, o Relatório da Estrutura de Bases de 2010 lista uma base não nomeada no Kuwait. Ainda assim sabemos que no Golfo Pérsico residem algumas bases americanas, incluindo o Acampamento Arifjan, Acampamento Buering, Acampamento Virginia, Base Naval do Kuwait, Base Aérea Ali Al Salem e a Ordem Udari. Adicione mais estas bases omitidas ao total e ele chega a 1074 bases no exterior.

Mais uma vez, se checarmos o cálculo de bases do Pentágono para o Qatar não obteremos nada. Mas observando o número de empregados do Departamento de Defesa trabalhando no exterior, encontraremos mais de 550 homens e mulheres trabalhando no país. Ainda que esta nação do Golfo Pérsico possa ter oficialmente construído a Base Aérea Al Udeid por si só, dizer que esta base é outra coisa que não uma instalação americana seria, no mínimo, dissimulado, tendo em vista que ela serviu como uma das bases de logística e comando mais fundamentais para os EUA nas Guerras do Iraque e do Afeganistão. Somamos então mais uma base, tendo 1075 até agora.

A Arábia Saudita também foi omitida da conta do Pentágono, ainda que, mais uma vez, a lista de empregados do Pentágono trabalhando no exterior indique que há centenas de soldados americanos neste país. Desde a preparação para a Primeira Guerra do Golfo em 1990 à invasão do Iraque em 2003, as forças armadas dos EUA enviaram centenas de tropas ao reino da Arábia Saudita. Em 2003, em resposta à pressão dos fundamentalistas sobre o governo Saudita, Washington anunciou que retiraria quase todas as suas tropas do país, deixando apenas um pequeno número. Ainda hoje o exército americano continua a treinar e educar soldados em localizações como a Vila Eskan, um complexo que fica 20 km a sul de Riyadh onde, de acordo com números publicados em 2009, 800 empregados americanos estariam instalados.

Descontados, Não-Contados e Desconhecidos.

Em adição ao desconhecido número de micro-bases que o Pentágono nem sequer se preocupa em contar e às bases do Oriente Médio e do Afeganistão que permanecem invisíveis ao radar, existem áreas ainda mais obscuras do império das bases: instalações pertencentes a outros países e que são usadas, mas não reconhecidas pelos Estados Unidos ou não declaradas por seu país de posse, também entram na conta. Por exemplo, é bem sabido que as aeronaves americanas, operando sob os auspícios da CIA tanto quanto da Força Aérea Americana e conduzindo uma não tão secreta guerra no Paquistão, decolam de uma ou mais bases localizadas no próprio território paquistanês.

Soma-se a isso ainda outras bases como a “bases disfarçada avançada de operações, comandada pela Junta do Comando de Operações Especiais (JSOC) dos EUA na cidade portuária de Karachi, no Paquistão”, exposto por Jeremy Scahill na revista Nation, e um ou mais campos aéreos gerenciados por empregados da contratadora de segurança privada Blackwater (agora renomeada Xe Services). Mesmo com o cálculo oficial do Departamento de Defesa indicando que existem mais que cem tropas no Paquistão, ainda assim nenhuma base ali é contada.

Da mesma maneira não são contadas as frotas marítimas, frotas estas que consistem em numerosos Porta-Aviões, o maior navio de guerra já produzido, assim como Cruzadores dotados de mísseis guiados, dois Destruidores de Mísseis Guiados, um submarino que ataque e um navio de munição, combustível e suprimentos. Os EUA possuem onze frotas como esta, frotas que se configuram como bases flutuantes do tamanho de cidades que podem cruzar o planeta. Possuem também muitos mais outros navios, alguns comportando cerca de mil pessoas, entre soldados e tripulação. Navios estes que, diz a Marinha, “viajam para qualquer porto numa lista 100 cidades espalhadas pelo mundo”, de Hong Kong ao Rio de Janeiro.

“A habilidade de conduzir funções logísticas a bordo permite que as forças navais mantenham uma estação em qualquer lugar”, diz o Conceito de Operações Navais: 2010, da Marinha americana. Portanto, estas bases que flutuam por debaixo dos dados oficiais deveriam ser contadas também.

Uma Explosão, Uma Lamúria, e o Alam do Século XXI

A Subsecretária Ajuda de Defesa, Dorothy Robyn, quando falou no ano passado ao Subcomitê do Comitê de Gastos do Senado sobre Construções Militares, Veteranos e Agências Relacionadas, se referiu às “507 instalações permanentes”. O Relatório da Estrutura de Bases de 2010 do Pentágono, no entanto, lista 4999 localizações e bases nos EUA, nos seus territórios e em países estrangeiros.

No grande esquema das coisas, o número de fato não é de todo importante. Se o total mais apurado é de 900, mil ou 1.100 bases em terras estrangeiras, isto não é o ponto central da questão, mas o que é inegável é que o exército dos Estados Unidos da América mantém, como diz a famosa frase de Chalmers Johnson, um império de bases tão enorme e obscuro que ninguém – nem mesmo o Pentágono – realmente faz idéia de seu tamanho e alcance totais.

Tudo o que sabemos é que isso desperta a ira de adversários como a Al Qaeda, que isso tem uma tendência a importunar mesmo o mais próximo dos aliados, como o Japão, e que costa aos Americanos que pagam impostos uma pequena fortuna por ano. Em 2010, de acordo com Robyn, a construção e a moradia militar de todas as bases dos EUA gastaram $23,2 bilhões. Somando-se mais um adicional de $14,6 bilhões necessários para reparos, manutenção e recapitalização. Para levar energia às suas instalações, de acordo com as estatísticas de 2009, o Pentágono gastou $3,8 bilhões. E isso não chega nem a tocar a superfície do que as bases norte-americanas mundo a fora custam em termos econômicos.

Como todo império, o império de bases militares dos Estados Unidos, algum dia ruirá. Essas bases, porém, não cairão como uma seqüência filmográfica de dominós bem posicionados. Não cairão, isto é, com a explosão de Álamos futurísticos, mas com a lamúria da insolvência.

De  fato, ao final de 2010, a Comissão de Déficit da Casa Branca – oficialmente conhecida como Comissão Nacional sobre Responsabilidade Fiscal e Reforma – sugeriu cortar em 1/3 os gastos na Europa e na Ásia, o que, na estimativa da Comissão, economizaria por volta de $8,5 bilhões em 2015.

O império das bases, ainda que tenha o tamanho que tem, está destinado a naufragar. Os militares terão que diminuir suas bases de controle estrangeiras e diminuir sua pegada global nos anos que virão. As realidades econômicas necessitarão disso. As escolhas que o Pentágono fará hoje sem dúvida determinarão em que condições nossos recursos voltarão para a casa amanhã. No momento, eles ainda podem escolher se voltar para a casa significará um ato de infalível e magnânima estratégia de estado ou simplesmente um recuo inglório.

Qualquer que seja a decisão, o relógio está correndo, e antes que qualquer retirada se inicie, o exército americano precisa saber exatamente de onde ele retirará suas tropas (e os americanos devem ter uma clara noção de onde estão seus exércitos). Uma contagem honesta de quantas bases os EUA tem no exterior – uma lista verdade, completa e compreensiva – seria um ínfimo primeiro passo no processo necessário de diminuição desta intervenção global.

Nick Turse é jornalista investigativo, editor associado do TomDispatch.com e atualmente também professor o Instituto Radcliffe da Universidade de Harvard. Seu ultimo livro se chama “The Case For Withdrawal from Afghanistan” (Verso Books). Você pode seguí-lo no Twitter @NickTurse. O seu site na internet é NickTurse.com.

Tradução de Cainã Vidor. Publicado por http://www.rebelion.org/noticia.php?id=120157

Alimentos: sintomas da nova crise mundial

140111_food_0Esquerda - Os sinais da nova tormenta estão à vista há algum tempo. A FAO alertou que os preços do arroz, trigo, açúcar, cevada e carne continuarão altos ou vão registar significativos aumentos em 2011. 

Por Thalif Deen, IPS

Nações Unidas – A Organização das Nações Unidas (ONU), que tenta ajudar cerca de mil milhões de pessoas famintas no mundo, antecipa outra crise alimentar neste ano.
E os sinais da nova tormenta estão à vista há algum tempo. A Organização das Nações Unidas para a Agricultura e a Alimentação (FAO), com sede em Roma, alertou, na semana passada, que os preços mundiais do arroz, trigo, açúcar, cevada e carne continuarão altos ou vão registar significativos aumentos em 2011, talvez replicando a crise de 2007-2008.
Rob Vos, director de políticas de desenvolvimento e análise no Departamento de Economia e Assuntos Sociais da ONU, disse à IPS que o aumento dos preços já afectava vários países em desenvolvimento. Afirmou que nações com a Índia e outras da Ásia oriental e do sudeste já sofrem inflação de dois dígitos, devido ao aumento nos preços dos alimentos e da energia. Na Bolívia, o governo foi obrigado a reduzir os subsídios de alguns dos alimentos da cesta básica, já que estavam a fazer disparar o défice fiscal.
No curto prazo, além de os pobres serem afectados e mais gente poder ser arrastada para a pobreza, essa alta também dificultará a recuperação dos países que enfrentam maior inflação e cairá o poder aquisitivo dos consumidores em geral, afirmou Rob, economista-chefe da ONU. Alguns bancos centrais estão a endurecer as suas políticas monetárias, e governos vêem-se obrigados a apertar o cinto fiscal, acrescentou.
Frederic Mousseau, director de políticas do Instituto Oakland, com sede na cidade norte-americana de San Francisco, disse à IPS que Moçambique já havia sofrido, em Setembro, revoltas populares pelos altos preços do pão, nas quais morreram 13 pessoas. "Manifestações afectaram cerca de 30 países em 2008, e isto poderia repetir-se, já que a situação não mudou nos últimos três meses", afirmou Frederic, autor do livro "O desafio dos altos preços dos alimentos: uma revisão das respostas para combater a fome".
Os países mais vulneráveis são os mais dependentes das importações e os menos capazes de enfrentar com políticas públicas o aumento dos preços nos mercados, acrescentou Frederic. Isto diz respeito a muitas das nações mais pobres, com menos recursos, menos instituições e menos mecanismos públicos para apoiar a produção de alimentos, explicou. No final do ano passado, houve protestos na China pelos altos preços da merenda para estudantes secundários, e na Argélia pelo aumento da farinha, do leite e do açúcar.
Os argelinos voltaram às ruas na semana passada para protestar contra as duras condições económicas. As manifestações acabaram com três mortos e centenas de feridos, enquanto na vizinha Túnis distúrbios similares causaram pelo menos 20 vítimas fatais. Segundo o índice da FAO divulgado na semana passada, os preços de cereais, sementes oleaginosas, lácteos, carnes e açúcar continuam a aumentar por seis meses consecutivos.
"Estamos a entrar em terreno perigoso", disse Abdolreza Abbasian, economista da FAO, a um jornal londrino. Frederic explicou que os preços começaram a aumentar em 2010, depois das más colheitas na Rússia e na Europa oriental, em parte devido aos incêndios durante o Verão boreal. Agora, as severas inundações que afectam a Austrália, quarto maior exportador mundial de trigo, provavelmente afectarão a produção desse cultivo e pressionarão ainda mais os preços para cima, previu.
"Qualquer outro acontecimento, como outro desastre climático nalgum país exportador, ou uma nova alta do petróleo, sem dúvida alguma disparará os preços e fará com que a situação seja pior do que em 2008, ameaçando, portanto, o sustento de milhares de milhões de pessoas em todo o mundo", acrescentou.
Entretanto, Frederic esclareceu que não se trata de um problema de escassez, como ocorreu em 2007-2008. "Não se pode usar a palavra escassez se for considerado que mais de um terço dos cereais produzidos no mundo são usados como alimento para animais, e que uma parte cada vez maior é usada para fazer combustíveis", afirmou. De facto, no mundo foram produzidas 2,232 biliões de toneladas de cereais em 2008, uma quantidade sem precedentes, destacou.
O nível de produção para o período 2010-2011 é levemente menor do que em 2008. Ao contrário daquele ano, quando o arroz foi o responsável pelo aumento dos preços, desta vez é o trigo. Em todo caso, deve-se a uma combinação de factores: má colheita numa parte do mundo supõe uma pressão sobre o mercado, o qual envia sinais negativos aos especuladores. Estes, então, começam a comprar e os preços disparam.

Foto de frankfarm, FlickR

O ATRASO DO PROGRESSO



 





‘No lugar dos valores da vida, preferiu-se o poder, o sucesso e a riqueza por si mesmos’ (Freud, 1930)

Quem analisa o século passado, da urbanização mundial, encontra um traço profético nessa afirmação do ‘pai da psicanálise’. No Brasil, o desenvolvimento econômico também tem se baseado na exacerbação da cultura individualista e na degradação da esfera pública. Mas não há progresso real se não se supera a desigualdade e o atraso político. Nesses aspectos essenciais continuamos mal.
Entre nós, onde os 10% mais ricos ainda ganham 40 vezes mais que os 10% mais pobres, o abismo social ganha tom de tragédia: enlutados, vejamos a condição da maioria absoluta dos vitimados nas enchentes de verão.
Não se culpe o destino ou uma fatalista ‘ira divina’ e sim a falta de prioridade para políticas públicas que poderiam amenizar essa dor indizível. Não se atribua tudo a fenômenos naturais, alguns de fato inéditos. O imprescindível planejamento urbano raramente desce de virtuosas Leis Orgânicas, Planos Diretores e Estatuto das Cidades para a vida. Os insuficientes investimentos em macro-drenagens, contenções e programas habitacionais contrastam com os custos adicionais bilionários da reforma do recém-reformado Maracanã, por exemplo. No plano global, as políticas contra o aquecimento, que implicariam em mudanças drásticas do nosso modo de produzir e consumir, não avançam com a celeridade das crescentes oscilações climáticas.
O país emergente que celebra crescimento tem sua dimensão política soterrada pela avalanche do interesse menor, alimentado pela enchente do desinteresse coletivo. A comovente e episódica onda de solidariedade não tem conseguido transformar-se em torrente cidadã permanente. Promessas de prevenção das autoridades vão embora com as águas de março ou fecham-se após as chuvas de abril.
 Ocupar função pública, salvo exceções, não é mais missão de serviço e sim carreira promissora, inclusive com plano de vencimentos e oportunidades de negócios alentadores. Muitos no Executivo, no Legislativo e no Judiciário distanciam-se da sociedade, fechados em estamentos que se auto-regulam e tornam-se espaço de interesses privados. A moeda de troca nas alianças políticas é a distribuição de cargos e empenhos para consolidação dos ‘currais’ modernos de legitimação pelo voto – até nos recursos para a Defesa Civil! Os palácios só costumam ter alguma conexão com as praças quando ocorrem tragédias ou nos períodos bienais de captação de votos.  Hannah Arendt lembrava que “a sociedade burguesa, baseada na competição e no consumismo, gerou apatia e hostilidade em relação à vida pública, não somente entre os excluídos, mas também entre elementos da própria burguesia”.
Desde os primórdios os povos enfrentam dois desafios: adequar-se à natureza, para não perecer, e limitar o poder, para as maiorias não serem escravizadas por poucos. Caminhamos entre intenções cruzadistas e suas guerras nada santas, entre avanços tecnológicos que propiciariam o bem viver e relações de dominação que excluem amplos setores desses benefícios.
É imperativo o resgate da vida pública cooperativa, transparente, participativa. Res publica livre do interesse mercantil e/ou demagógico – inclusive em relação ao solo urbano. As centenas de mortes que se repetem a cada ano nos interpelam de forma dramática.

*Chico Alencar é professor de História e deputado federal (PSOL/RJ)

Pochmann: “O Brasil já podia ter acabado com a miséria”


Pedro Venceslau, Marcelo Cabral e Conrado Mazzoni   (redacao@brasileconomico.com.br)


O líder do Ipea diz que a meta da presidente Dilma de erradicar a pobreza absoluta até 2014 é factível.
Dentro do organograma do segundo escalão do governo federal, o economista Marcio Pochmann comanda um dos órgãos mais estratégicos.
Cabe ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) instrumentalizar com dados e diretrizes todos os ministérios, além, claro, da própria presidente Dilma Rousseff.
Alvo de cobiça entre aliados e disputado por diversas pastas, o Ipea deve seguir sob o comando da Secretaria de Assuntos Estratégicos, como revela Pochmann em entrevista ao Brasil Econômico.
A presidente Dilma Rousseff estabeleceu como meta a erradicação da miséria. Não é um projeto ousado demais?
Foi o Ipea que identificou que era possível o Brasil superar a pobreza até 2015, e em alguns estados em 2011 ou 2012. Nós sofremos crítica de alguns colegas que diziam ser uma miragem. Mas a então candidata Dilma entendeu que isso podia ser um compromisso de campanha. Agora é um compromisso de governo. É plausível.
O senhor já se reuniu com o ministro Moreira Franco, da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE), onde o Ipea está instalado?
Conversamos na semana passada sobre como ajudá-lo a organizar a SAE. Se vocês querem saber se vai haver mudança na direção do Ipea, não tenho como responder. Nós não tratamos sobre isso. Não temos mandato. Os cargos são de confiança.
Há quem defenda que o Ipea deixe a SAE e vá para o Ministério do Planejamento. O que acha disso?
Ocorreu uma competição entre ministros para ver onde ficaria o Ipea. O que ouvimos em Brasília foi que os ministérios de Ciência Tecnologia, Planejamento e Fazenda se mostraram interessados.
Posso estar equivocado, mas acredito que ele não sai da Secretaria de Assuntos Estratégicos.
O Ipea, que foi criado em 1964, pertencia, na sua origem, à Presidência da República. Foi parte responsável pela Secretaria de Planejamento. Em seus 46 anos esteve subordinado a diferentes ministérios. Nos anos 60 e 70 teve um papel inteligência dentro do governo, porque os ministérios não tinham assessoria técnica.
O Ipea chegou a ter 1200 servidores. Hoje temos 600. Demorou para ele encontrar sua vocação.
Existem ainda hoje correntes de pensamento diferentes no Ipea? Ele ainda se divide entre "fiscalistas" e "desenvolvimentistas"?
Em cada área existem visões diferentes. Essa é a riqueza da instituição. Essa idéia de desenvolvimentista e fiscalista é uma visão meio primitiva que se tinha do Ipea do passado. Estamos em outro patamar. Isso seria limitar a discussão. Quem faz essa divisão são os viúvos do Ipea do passado.
O Ipea tem um orçamento de R$ 302 milhões de reais. O órgão está blindado da disputa entre PT e PMDB por cargos do segundo escalão do governo?
O orçamento era de R$ 190 milhões quando chegamos, em 2007. Do ponto de vista político, não é uma boa área para se ter influência. O Ipea é uma instituição transparente. Há acesso livre aos pesquisadores. Temos comissão de ética e ouvidoria.
O Ipea pretende reforçar suas análises regionais?
Temos uma representação no Norte-Nordeste e outra no Rio de Janeiro. Falta a região Sul. Não dá para pensar o Brasil olhando apenas de Brasília.
O governo vai criar uma nova definição sobre o conceito de miséria no país. Que elementos serão usados para se definir o que é ser miserável no Brasil?
Nós somos um país que não tem uma definição oficial de pobreza. No mundo todo, essa definição é arbitrária.
Indicadores não faltam, o que nós precisamos ter é uma linha administrativa: miserável é aquele que ganha até um determinado valor por mês. Essa definição precisa ter um parâmetro razoável.
É preciso, ainda, haver uma identificação das diferentes formas da manifestação da pobreza. Há um movimento de redução da miséria nos últimos 30 anos. Antes, nos anos 90, a cada dez brasileiros, quatro eram miseráveis. Hoje, a cada dez, um é miserável. Estamos lidando, portanto, com o núcleo duro da pobreza extrema. É preciso reconhecer que essa pobreza extrema não é homogênea, mas diferenciada.
Em que sentido ela é diferenciada?
Por exemplo: existe o pobre estrutural, o das grandes cidades, das pequenas, os de mais idade. Como você vai conseguir uma porta de saída para alguém que tem mais de 70 anos de idade.
É preciso uma definição clara sobre as formas como se manifesta a pobreza. Como a pobreza rural de pessoas mais velhas se enfrenta de um jeito, nas cidades, de outro. O país mais rico do mundo, que é os Estados Unidos, tem o maior programa de assistência de renda. É maior que o Brasil. É maior parcela do mundo assistida. Em todas as economias do mundo há segmentos que não conseguem viver com suas próprias pernas. Outros segmentos podem ser incluídos.
A meta da presidente Dilma de acabar com a pobreza é viável?
O Brasil já podia ter acabado com a miséria no final dos anos 70. Miséria absoluta é o cara não ter o que comer. Isso não é um problema de escassez de alimentos, mas de má distribuição. Vamos acabar de forma tardia. A presidenta disse que a meta é 2014.
Qual a sua análise da situação macroeconômica do Brasil?
De certa maneira temos uma situação de acomodação que era esperada em 2011 devido ao fato que estávamos crescendo em um ritmo muito forte em 2010. Uns acham que nosso problema é ajuste fiscal.
Acham já superamos esse tema tal qual ele foi colocado nos anos 90. A prioridade era essa. Ajuste fiscal é um meio, não o fim. Hoje o fim é o desenvolvimento. Temos que ver medida se ajusta as finanças públicas para viabilizar o desenvolvimento.
Neste âmbito, precisamos olhar quais são as despesas que podem ser reduzidas, aquelas que são improdutivas. Estamos gastando entre 5% e 6% do PIB em pagamento dos juros da dívida.
Isso não gera emprego. Como reduzir o peso da dívida e os juros, que estão em um patamar muito alto, é um bom debate. Do ponto de vista do tempo, vem se reduzindo. Há possibilidade de redução do gasto público, mas temos que olhar quais gastos. O compromisso da presidente de terminar seu mandato com a taxa de juros em 2% real é razoável.
O peso do funcionalismo prejudica o investimento?
Essa é uma visão primitiva de quem não conhece bem o país e outros países. O Brasil não tem muitos funcionários públicos. Temos 11% da população que são ocupadas em serviços públicos, nos Estados Unidos é 16,5%. Na Europa é de 25%. Nos países escandinavos, que são competitivos, 40% da força de trabalho é de funcionários públicos.
O aperto monetário é inevitável?
A aposta de elevação dos juros é uma medida muito pesada para as circunstâncias que estamos vivendo hoje. Quando a taxa de juros se eleva, ela atua sobre todos os setores do sistema econômico. Isso leva a mudanças de decisões.
Quais seriam as alternativas para evitar a alta de juros?
A ampliação das exportações em alguns setores, a redução de impostos, uma política de Incentivos a elevação da produtividade. Temos que ser mais criativos. É claro que, para o Banco central, eleva-se o juro e garante a meta. Mas quais as consequências? Se você elevar a taxa de juros, eleva o gasto público com juros da dívida.
Qual o impacto do câmbio hoje na economia brasileira?
Não é algo homogêneo. Alguns setores, apesar da valorização cambial, estão relativamente bem. Outros estão em dificuldade enorme, sobretudo o industrial. O problema de ter uma taxa só de câmbio é que qualquer mudança sobre ela é boa para uns e ruim para outros. O melhor seria apostar em medidas pontuais para os setores específicos em dificuldades.

quinta-feira, 13 de janeiro de 2011

Ibama, Belo Monte e um rolo compressor

Leonardo Sakamoto em seu blog


O blog Político, da revista Época, informa que a saída do presidente do Ibama, oficializada hoje, não se deu por motivos pessoais, como alega sua carta de demissão, e sim por conta de pressões para emitir uma licença ambiental para usina de Belo Monte, talvez a mais polêmica das obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC):

Belo Monte derruba presidente do Ibama
 
O presidente do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Abelardo Bayma, pediu demissão do cargo por discordar da emissão da licença definitiva para a implantação da Usina Hidroelétrica de Belo Monte, prevista para ser construída no rio Xingu, no Pará. Em carta enviada à ministra do Meio Ambiente, Izabela Teixeira, Abelardo alegou motivos pessoais para pedir exoneração do cargo. Mas revelou a amigos que deixou o posto depois de ter sido pressionado pela diretoria da Eletronorte a emitir a licença definitiva em nome do IBAMA para a instalação da usina. Ele estava no cargo desde abril do ano passado e é funcionário de carreira da autarquia.
Em reuniões com a diretoria da Eletronorte há dez dias, Abelardo se negou a emitir a licença definitiva para a construção da usina. Ele argumentou que o IBAMA não poderia emitir o documento porque o projeto ainda está cheio de pendências ambientais. Abelardo admitiu que o IBAMA poderia emitir a licença para a instalação e não a definitiva. A construção de Belo Monte foi um dos motivos que levou ao pedido de demissão da ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva. Ela discordava da implantação da usina alegando que a obra causará fortes danos ambientais na região com o alagamento de uma área de aproximadamente 500 km2.
Marina Silva e a então ministra-chefe da Casa Civil, a presidenta Dilma Rousseff, que defende a antecipação dos prazos para a conclusão da usina, prevista inicialmente para outubro de 2015, um ano após o mandato presidencial. Para conseguir antecipar a conclusão, como quer Dilma, é preciso que o Ibama antecipe as licenças, mas o instituto alega que há falhas técnicas a serem reparadas no projeto. A previsão é que Belo Monte gere mais de 11 mil megawats para atender a uma população de 26 milhões de pessoas na região Norte.
Há uma outra versão que diz que a licença que não foi concedida não era a definitiva, mas uma especial para a obra. De qualquer forma, o ponto é o seguinte: Belo Monte será um grande gerador de impactos sociais e ambientais. Por exemplo, o Ministério Púbnlico Federal avalia em cerca de 40 mil o total de atingidos – incluindo populações tradicionais e indígenas.
Como já disse aqui em um post dias atrás, não adianta o governo federal elevar a questão dos direitos humanos nas relações internacionais e não executar o mesmo internamente. Se quiser fazer valer os direitos humanos em regiões rurais, a presidenta Dilma Rousseff terá que comprar brigas com áreas que lhe são importantes, como o setor elétrico. Coisa que, acredito, não vá fazer, muito pelo contrário. Incluída no PAC e no Plano Decenal de Energia (2007-2016), Belo Monte está planejada para ter uma potência máxima de 11,1 mil MW, mas a produção média estimada pela Eletrobrás é de 4.796 MW.
Lutou-se na ditadura não apenas por liberdade civis e políticas, mas por direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais. Desse ponto de vista, como justificar diferenças entre o discurso de uma época em que abríamos grandes estradas em rito sumário para o momento em que construímos gigantescas hidrelétricas em rito sumário, xingando os opositores de “arautos do atraso”?