quarta-feira, 6 de abril de 2011

Governo do RS apresenta metas para a Educação nos próximos quatro anos

No blog Tomandonacuia


O Secretário da Educação do Estado do Rio Grande do Sul, José Clóvis de Azevedo, apresentou nesta terça-feira (05) em audiência pública da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa diagnóstico da situação atual da rede pública estadual de ensino, as políticas previstas e o plano de trabalho da secretaria para o período 2011-2014. O requerimento de audiência foi apresentado pelos deputados petistas Alexandre Lindenmeyer, Ana Affonso e Marisa Formolo.

O secretário destacou que o plano de trabalho da SEDUC tem como principio norteador a democratização da escola em três dimensões: o acesso, a gestão democrática e a recuperação do papel político dos conselhos escolares. José Clovis também destacou que um dos objetivos da Secretaria é melhorar a qualidade da aprendizagem e ampliação do conhecimento.

O secretário antecipou que será aberto um processo de debate com a sociedade e a comunidade escolar, valorizando espaços como o da Conferência Estadual de Educação. O secretário também abordou a necessidade da modernização tecnológica e da recuperação física da rede escolar, prioridades para os próximos quatro anos. A SEDUC está elaborando um diagnóstico da situação física da rede escolar com o objetivo de recuperar e qualificar bibliotecas, laboratórios e ampliar a informatização administrativa e pedagógica.

A universalização do ensino fundamental, segundo José Clovis, trouxe uma modificação extraordinária na escola pública, que passou a hospedar uma nova composição social ao incluir milhões de jovens originários das classes populares de baixa renda no sistema, alterando um ambiente quase exclusivo da classe média. Por isso, segundo o secretário, esse novo cenário de escola pública traz também um novo desafio pedagógico e uma nova concepção de avaliação, onde se faz necessário o acolhimento a esses estudantes e o estímulo para que não abandonem o aprendizado.

Ensino médio

Os dados apresentados pelo secretário revelam um quadro preocupante no ensino médio, devido ao alto nível de reprovação e abandono da sala de aula por parte dos estudantes. Segundo ele, há uma redução de quase 40% do número de matrículas e o desafio da Secretaria nestes quatro anos é reverter esse cenário. A meta de trabalho é diminuir a evasão e a reprovação. “A não aprendizagem não é um problema só dos alunos. É um problema do sistema educacional e da forma de atuação pedagógica, pois a escola tem o dever de despertar nos alunos o desejo de estudar”, afirmou.

José Clóvis assegurou, ainda, que a educação profissional terá uma dedicação especial, tendo como meta elevar em 50% o número de matrículas ma ensino técnico nos próximos quatro anos.

O estímulo para a formação de novos professores também é uma prioridade para o governo Tarso Genro. Segundo o secretário, a médio e longo prazos faltarão professores, devido ao esvaziamento generalizado dos cursos de licenciatura, principalmente nos campos de conhecimento da matemática, física e química. Com o objetivo de reverter esse quadro, a SEDUC promoverá convênios com universidades para a formação permanente para o educador, investindo na especialização e extensão universitária dos educadores. No que tange à valorização dos trabalhadores em educação, o secretário confirmou como meta a realização de concurso público, pagamento das promoções atrasadas e a recuperação salarial com o avanço gradativo para o piso nacional e integração gradativa do piso no vencimento básico.

A luta vitoriosa de 72 famílias gaúchas de sem terra por um pedaço de chão


Assentados recolhem o arroz cultivado sem agrotóxico - Ramiro Furquim/Sul21

Igor Natusch no Sul21

Para muitos, um pedaço de terra é mais do que uma conquista: é uma luta que nunca se encerra. Depois das longas marchas, das ocupações e da espera pela desapropriação, vem outra etapa para aqueles que, até este momento, chamávamos de sem terra. Com poucos recursos, muitas vezes sem conhecer bem o chão onde construirão os alicerces de seu futuro, resta a centenas de famílias o esforço para tirar do solo o que dele se espera. O assentamento, longe de ser o final de uma saga, é apenas o começo de um novo e longo episódio.
Desde os três anos de idade, Jaqueline Nunes conhece como poucos os caminhos poeirentos da luta por um pedaço de chão. Vinda de uma família de pequenos agricultores, Jaqueline foi criada em meio a barracas, nos acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), espalhados pelo interior do Rio Grande do Sul. Debaixo de uma lona, encarou durante anos o calor do verão eas chuvas geladas do inverno. Aos 18 anos, decidiu sair do assentamento onde morava com a família, em Nova Santa Rita, para construir a própria história. Foram mais 3 anos e 9 meses em meio à escassez, buscando por um lugar onde cultivar uma nova vida.
Desde 2007, Jaqueline faz parte das 72 famílias que vivem no Assentamento Apolônio de Carvalho, em Eldorado do Sul (RS). Dessas, 53 se dedicam atualmente ao cultivo de arroz orgânico, em uma área que se estende por 534 hectares. “O orgânico para mim é mais natural, porque eu sempre estive no meio disso”, conta Jaqueline, que também atua como coordenadora regional do MST. Seu pai, assentado em Nova Santa Rita, foi um dos primeiros agricultores ligados ao movimento a cultivar verduras ecológicas. Atualmente, vende seus produtos em Porto Alegre, em uma feira promovida pelo Incra.
Segundo dados do Incra/RS, a área de cultivo de arroz agroecológico no RS alcançou 3,8 mil hectares em 2011, superando os 2,1 mil do ano passado. O número de famílias envolvidas com o cultivo, feito sem aditivos químicos, também aumentou: de 211 famílias em 2010, agora são 428. Os produtores vivem em 16 assentamentos, espalhados por 11 municípios. A maioria deles ligados à reforma agrária. Realidade na qual o assentamento onde Jaqueline mora se insere, de forma oficial, pela primeira vez.
O Assentamento Apolônio de Carvalho foi escolhido pelo governo gaúcho para a inauguração da oitava colheita de arroz orgânico de 2011. O lançamento aconteceu no dia 17 de março, com a presença do governador Tarso Genro e de secretários estaduais. Depois da festa, da visita dos engravatados e do governador chegando de helicóptero, ficou o trabalho para fazer. E as perspectivas são boas. Em alguns pontos, os assentados estimam mais de 120 sacos de arroz por hectare — uma média maior do que a das fazendas das redondezas, que cultivam o cereal de forma convencional, com uso de aditivos químicos. “Eles ficam falando ‘poxa, nós plantamos arroz convencional e colhemos 80 ou 90 sacos por hectare. Como é que eles conseguem?’”, diz Jaqueline.

Jaqueline Nunes: luta pela terra durou bastante tempo - Ramiro Furquim/Sul21
A maioria das famílias, segundo Jaqueline, tinha a ideia inicial de trabalhar com leite. Mas as condições do terreno inviabilizaram o projeto e forçaram os assentados a uma mudança de rota. “A nossa terra aqui só dá mesmo para arroz”, afirma Josino de Jesus, outro agricultor que encontrou no Apolônio de Carvalho a chance de controlar o próprio destino. “O terreno é muito molhado, não dá para cultivar plantas secas”. Jaqueline explica que algumas famílias, pela falta de experiência, tiveram resistência em plantar o orgânico. “É uma cultura meio arriscada, porque é muito investimento. Se der um erro humano perde a produção e fica endividado para o resto da vida”.
Uma das formas de contornar essa inexperiência é a parceria estabelecida com agricultores de Tapes, já acostumados a lidar com o cultivo de arroz. É uma troca simples: os assentados de Eldorado do Sul entram com a terra, e Tapes empresta os tratores, fundamentais para a colheita. Além disso, a troca de experiências é valiosa para os iniciantes no cultivo de arroz agroecológico. “Nossa ideia é ir aprendendo, adquirindo equipamento e nos tornando cada vez mais autônomos”, explica Jaqueline.

“Por que tu não acampa e pega um pedaço de terra?”

Josino de Jesus nasceu em Caçapava do Sul, filho de agricultores. A decisão de lutar por um pedaço de chão, porém, surgiu em Porto Alegre. “Vim trabalhar com um doutor aqui em Porto Alegre, e tinha um acampamento perto de onde eu trabalhava. E aí esse doutor me disse: por que tu não vai acampar lá com eles e pegar um pedaço de terra?” Jesus, como é conhecido no assentamento, achou que era uma boa ideia, e juntou-se ao acampamento. “Foi ele quem me levou lá, inclusive. Faz uns 7 anos”.
Hoje em dia, Jesus cuida não só da plantação de arroz, mas também de uma das hortas que diversificam a produção do assentamento. “Já entreguei aipim, milho verde, abóbora”, lista ele. As hortas ajudam, também, a aproximar o assentamento de um equilíbrio autossustentável. “Algumas famílias buscam alternativas”, explica Jaqueline Nunes. “Arroz é uma vez por ano. Dá para fazer até 7 mil reais de renda por ano, mas se a gente fizer essa divisão por mês, vai dar uns 400 ou 500 reais, às vezes menos que um salário mínimo. Tem muitas famílias, como a do Jesus, vendo essa questão de horta. A horta já é uma renda mensal que ele vai ter. Tem famílias que estão fazendo queijo. Já são outras rendas, mesmo que a gente saiba que a renda maior é mesmo a do arroz”.
Para ampliar a capacidade produtiva, a solução é contar com fomentos do Incra. O assentamento já conseguiu duas parcelas de recursos junto ao órgão, e atualmente pleiteia uma terceira. Além disso, os trabalhadores rurais contam com fundos de investimento do Pronaf. Os assentados assentados podem investir estes recursos em equipamentos para plantio e colheita, além de melhorias úteis para o seu dia a dia. Existem também planos para empreendimentos coletivos, como a construção de um silo.

Josino de Jesus: "Não dá para cultivar plantas secas" - Ramiro Furquim/Sul21
“Podemos formar grupos de cinco ou seis famílias para adquirir um trator, para grades, esses implementos maiores”, comenta Jaqueline. “A família pode optar. Se ela diz que vai ficar no arroz, tem como investir em trator, comprar os implementos todos. Outros optam por trabalhar com leite, mas para nós aqui é bem mais complicado, por causa das características do terreno. Provavelmente 90% das famílias vão ficar no arroz mesmo”.

Terreno pertencia a traficante internacional de drogas

A terra que hoje fornece alimento para a merenda escolar de milhares de estudantes em todo o Brasil já foi utilizada para propósitos bem menos nobres. Mais precisamente aos negócios escusos do traficante internacional Juan Carlos Ramirez Abadía. O terreno era parte das quase infidáveis posses do colombiano Abadía no Brasil, mas não era usado para o cultivo ou produção de drogas. Era, isso sim, um gigantesco haras, no qual o traficante criava cerca de 15 cavalos de raça. “Os cavalos eram criados à base de chocolate. Chocolate mesmo, alfafa e chocolate!”, admira-se Jaqueline.

Traficante colombiano criava 15 cavalos nas terras que agora produzem arroz orgânico - Ramiro Furquim/Sul21
Muito bem alimentados de cacau, os cavalos descansavam em grandes baias, enquanto o proprietário do terreno pensava em investimentos ainda mais altos. A ideia de Abadia, segundo os atuais moradores do assentamento, era construir no local uma das maiores arenas de rodeio da América Latina. No entanto, a Justiça alcançou Abadía antes que as obras tivessem início, e frustrou os planos empreendedores do traficante internacional.
As origens pouco nobres da terra acabaram sendo positivas para o MST na luta pelo apoio da comunidade. O que não quer dizer que o assentamento tenha acontecido sem sobressaltos. “Foi uma ocupação que durou bastante tempo”, explica Jaqueline. Durante 58 dias, os trabalhadores rurais ficaram no terreno, esperando uma definição, sem aceitar os argumentos usados para convencê-los a sair. “Eles (governo) não tinham argumentos para as famílias”, diz Jaqueline. “Nosso argumento era de que queríamos produzir, e eles não tinham elementos para nos contestar, porque era terra de traficante, de lavagem de dinheiro. Mas acabou sendo bom, porque a sociedade ficou do nosso lado. Conseguimos fazer esse diálogo”.

Mãe de Jaqueline foi presa no confronto da Praça da Matriz

A mãe de Jaqueline Nunes, Elenir, foi uma das pessoas presas após o tristemente notório incidente na Praça da Matriz, em 1990, quando uma violenta tentativa de dispersar agricultores resultou na morte de Valdeci de Abreu Lopes, cabo da Brigada Militar. O fato marcou o MST, que a partir dali passou a ser visto por muitos como uma organização criminosa — imagem que, para vários setores, segue intocada. “Foi uma coisa que marcou muito”, admite Jaqueline, em um dos poucos momentos em que seu olhar desvia do interlocutor e volta-se para o vazio.
Sete pessoas foram presas pela morte de Valdeci. Durante anos, a versão oficial foi de que, agredido por uma foice, o cabo teria atirado a esmo uma ou duas vezes antes de tombar morto. Mais tarde, os autos do processo relevaram outra versão: a de que o golpe fatal teria sido provavelmente uma atitude de defesa, após os disparos, já que uma pessoa golpeada na artéria carótida perde os sentidos quase que imediatamente.
Dos sete presos, a mãe de Jaqueline foi a única mulher. Aparentemente, nenhum dos que assumiram a responsabilidade estava de fato envolvido no crime. Ao levarem a culpa pela morte do policial militar, eles seguiram o princípio do MST de não personalizar ações. Elenir Nunes foi uma das pessoas baleadas por Valdeci — vítima dos tiros, acabou transformada pelo inquérito em culpada de assassinato.
O confronto na Praça da Matriz acabou marcando decisivamente a relação entre Jaqueline Nunes e a mãe. A filha evita detalhes, não se aprofunda na história, mas admite que pouco viu Elenir nos anos de prisão e que passou a ser filha de “duas famílias”. Hoje, ela tem uma terceira família: a própria. Seu marido trabalha longe, voltando apenas nos finais de semana; seu filho passa a maior parte do tempo na escola ou sob os cuidados da madrinha. Enquanto isso, Jaqueline trabalha em nome do MST, ajudando outras famílias a colocar um fim na caminhada em busca de terra.

“Diziam que eu ia chegar aqui para plantar sapo”

“Chega de caminhar”, disse Doroti Carpes, após anos de marchas e acampamentos. Ela e o marido participaram da marcha até São Gabriel, que cruzou o Rio Grande do Sul em 2003, e permaneceram durante três anos e meio em um pré-assentamento em São Borja. “Era marcha e marcha, luta e luta. A gente parava de caminhar já de noite; os pés ficavam inchados”, conta ela. Depois de tanto andar, Doroti resolveu abraçar a chance e vir até Eldorado do Sul. “Diziam para mim: mas tu vai para lá para plantar sapo!  E eu disse que não tinha problema: vou plantar sapo se precisar”, lembra, rindo.

Doroti Carpes: "Vou plantar sapo, se precisar" - Ramiro Furquim/Sul21
Chegando ao assentamento, a água acabou se mostrando, de fato, um problema. Devido ao solo úmido do banhado, demorou muito tempo até que se encontrasse o lugar mais adequado para levantar as casas. “A gente levantava um barraquinho, dava uma chuva e já alagava tudo”, lembra Doroti. Jaqueline explica que, no início, a divisão por lotes não levava em conta as áreas secas, e as casas se espalhavam de forma desigual pelo assentamento. Depois de um tempo, os assentados e o Incra chegaram a uma conclusão: era impossível levantar casas em determinados pontos do terreno. Atualmente, as casas são erguidas em trechos específicos, próximas umas das outras. “São áreas que não alagam” explica ela. “A limpeza dos valos e a criação de canais acabaram drenando bastante, por isso é seco… Antes, qualquer chuva e era água pelo joelho, em qualquer lugar”.
Vinda da região norte do estado, Marli Malinoski chegou ao assentamento mais de um ano depois da primeira divisão dos lotes. Esteve no Rio de Janeiro, fazendo parte de um projeto chamado “solidariedade e formação nas áreas de reforma agrária”. Embora estivesse concorrendo a outras áreas mais próximas de onde moram seus familiares, Marli acabou sendo chamada para o Apolônio de Carvalho, e resolveu não deixar a chance passar. No momento, ela é uma das poucas pessoas a morar sozinha no assentamento.
No momento, existem cinco lotes ainda não ocupados no Apolônio de Carvalho. Geralmente, o MST tem seus próprios critérios para definir quem vai ganhar a terra — participação nas marchas e ocupações, tempo de acampamento, situação familiar. Porém, o Incra resolveu criar regras para disciplinar essa escolha. Regras que não parecem agradar muito os moradores do assentamento. “Hoje, aplicam um questionário”, conta Marli Malinoski. “Querem saber se tem experiência em plantio de arroz, carteira assinada de trabalho em várzea. Quem é sem terra não tem carteira assinada, é gente que trabalhou em granja e não tem como comprovar”, reclama.

Relação com prefeitura de Eldorado do Sul é complicada

Um dos muitos desafios do dia a dia do assentamento está em conquistar, mais do que a atenção, o respeito do poder público. Pelo que se percebe nas conversas com os assentados, o diálogo com a prefeitura de Eldorado do Sul não costuma ser dos mais fáceis. Como exemplo, Jaqueline Nunes cita uma das reuniões que teve com o prefeito do município, Ernani de Freitas Gonçalves (PDT). Durante o encontro, Jaqueline teria tido que ouvir o prefeito dizer que o plantio de arroz orgânico não trazia muitas vantagens para Eldorado do Sul. “Ele disse que progresso mesmo quem trazia eram as grandes empresas, como a Dell”, revolta-se.
Para contestar essa visão, o assentamento tenta usar uma linguagem que os governos, de modo geral, entendem muito bem. “Fomos para uma reunião com o secretário de agricultura do município (Sérgio Munhoz), com a pauta de obter tubos para canalização”, conta Jaqueline. “No início, ele (secretário) ficou meio assim, não estava muito disposto a ajudar. Quando dissemos para ele que eles tinham que investir no Apolônio, que só de ICMS dá R$ 1 milhão por ano para o município, a coisa mudou. Ele arregalou os olhos e disse ‘um milhão? Vamos fazer os cálculos então’. Quando eles viram que dava retorno financeiro, mandaram 200 tubos para nós”, conta ela, sorrindo. “Antes de ver que dá retorno, eles ficam jogando a gente para lá e para cá”, continua Marli Malinoski. “Tem que falar com o prefeito, tem que falar com o secretário de Obras. É um jogo bem estranho”, completa, escolhendo as palavras.

Marli Malinoski: uma das poucas pessoas que vivem sozinhas no assentamento - Ramiro Furquim/Sul21
As dificuldades com a prefeitura vão além dos investimentos materiais, estendendo-se também a aspectos menos óbvios, mas nem por isso menos perceptíveis. “O transporte de Eldorado do Sul, que leva os estudantes, não aceita transportar assentados e não faz integrado”, denuncia Marli. Tratamento bem diferente do que recebem de Charqueadas, o outro município que abriga terras do assentamento. Na cidade, administrada por Davi Gilmar de Abreu Souza (PDT), os assentados são melhor tratados, dentro da lógica econômica que move o município. “A questão de apoio a cooperativas é bem mais marcada em Charqueadas”, diz Jaqueline Nunes, que também integra a coordenação regional do MST. “Eles veem a cooperativa com outros olhos. Nosso esforço é fazer Eldorado do Sul ver a gente com esse mesmo olhar”.
Marli exemplifica. “Às vezes, a gente chega em Eldorado passando mal, precisando mesmo de atendimento (médico). Já fui duas vezes até lá, uma delas porque eu estava com um problema de coluna, e já chegavam perguntando de onde eu era. Eu respondia que era do Apolônio e diziam ‘tá, mas é do lado de Eldorado ou de Charqueadas? Porque se for de Charqueadas a gente não atende, tem que ir até lá, nós não damos cobertura para vocês’”. Do outro lado da ponte, segundo ela, o tratamento é distinto. “Tu chega lá e tem atendimento, remédios, marca exames. Ninguém te pergunta nada”, diz Marli Malinoski, lembrando também do ônibus que aparece de vez em quando, com dentista e clínico geral, para atender as famílias dentro do assentamento.

Arrendamento para “catarinas” quase põe tudo a perder

Apesar dos progressos, uma crise interna acabou dividindo os assentados e por pouco não cria sérios problemas para o Apolônio de Carvalho. Tudo começou com a proposta de agricultores de fora, chamados de “catarinas” pelos moradores do assentamento. “As famílias estavam passando necessidade, sem equipamentos para plantar, sobrevivendo com cesta básica”, explica Marli. “Daí apareceram eles, com uma mala de dinheiro, dizendo que queriam plantar arroz nas nossas terras, que nos dariam tanto por ano. Como que não vai aceitar?”
Os catarinas tornaram-se, a partir daí, arrendatários do terreno. “Para eles, era um modo de ganhar dinheiro”, afirma Jaqueline. “Não nos levavam para a plantação, não nos deram chance de aprender nada. Eles vivem de empréstimo em cima de empréstimo, não pagam imposto nenhum, plantam e colhem aqui para vender tudo lá”.
Assim que soube do arrendamento, o Incra tomou medidas duras — contra os assentados. “Todas as famílias foram notificadas, ameaçaram tirar todo mundo dos lotes”, conta Jaqueline, indignada. Os interrogatórios eram constantes, tentando determinar quais assentados teriam sido os primeiros a aceitar a proposta dos catarinas. “Começaram a jogar as famílias umas contra as outras. Diziam que um tinha falado do outro, que algumas pessoas eram ‘inadequadas para convívio social’”, acrescenta Marli, sem disfarçar a ironia na voz. “Os companheiros começaram a pensar que não era o Incra o inimigo, e sim as outras famílias. Chegou em um ponto que os vizinhos não se encontravam mais nem para tomar chimarrão”.
De acordo com Jaqueline, foi um período de estagnação para o Apolônio de Carvalho. “Não conseguíamos mais reunir as famílias para discutir melhorias. Precisávamos ir atrás de energia elétrica, de água, transporte escolar, e ninguém conseguia se organizar, porque todo mundo desconfiava de todo mundo”. Além disso, a determinação do Incra no sentido de que ninguém podia deixar os lotes enquanto durasse o inquérito aumentou ainda mais a carga de tensão. “Quem saísse, seria notificado”, lembra Marli. “Acabou ficando uma situação do tipo: se o filho tiver como ir para a escola, tudo bem, se não tiver, não vai, porque ninguém tinha disposição de ir atrás”.
O esforço, mais do que de recuperar a convivência entre as famílias, acabou sendo de reorganizar todo o assentamento. “Fomos organizando os grupos de produção, dividindo alguns lotes para produção de sementes, outros para os grãos”, conta Jaqueline. Hoje, a integrante da coordenação regional do MST comemora uma situação bem mais positiva dentro do assentamento. “Se a gente tem uma reunião para discutir alguma demanda, 90% das famílias aparecem. Naquela época, a gente não conseguia reunir cinco famílias que fossem para ir atrás de alguma coisa”, revela.

“A família que não tem um bichinho vai querer comprar uma vaca”

A situação, no momento, é inegavelmente melhor. Com esforço coletivo, o Assentamento Apolônio de Carvalho conseguiu retomar o rumo e agora investe com força crescente em uma cultura que já dá sinais de sucesso. Mas os trabalhadores sabem que ainda há bastante coisa para conquistar. “Como estamos investindo bastante, não vamos ter muito lucro agora”, admite Jaqueline Nunes. “A gente espera que nos anos seguintes, com essa estrutura que estamos montando, os custos caiam e a gente consiga investir mais nas famílias mesmo, nas casas”.

Marli, Jaqueline e Doroti: exemplos para os pequenos agricultores - Ramiro Furquim/Sul21
“Mesmo essas parcelas (de financiamentos do Incra) não garantem que a gente vá poder adquirir as máquinas e equipamentos que a gente precisa”, diz Marli Malinoski. “Porque a família que ainda não tem um bichinho vai querer comprar uma vaca, por exemplo. A vaca é uma garantia de leite, de sustento, é uma contribuição de proteína na alimentação. As famílias têm prioridades que são para a subsistência delas, para consumo imediato. Não tem como abrir mão disso para investir em outras coisas”.
Seja como for, o futuro dessas famílias surge mais como uma esperança do que como um ponto de interrogação. Os últimos quatro anos do Assentamento Apolônio de Carvalho são, para elas, mais um passo em uma longa jornada rumo ao próprio chão. Para muitos, distante de casa; para outros, longe do que a terra os tinha ensinado em semeaduras e colheitas anteriores. Para todos, um desafio e chance para novos começos. A colheita do arroz orgânico deve estar encerrada em duas semanas, fechando um ciclo e iniciando outro — na terra, da terra e para a terra.

FALTOU ALGUÉM NO VELÓRIO DO ZÉ


José Ribamar Bessa Freire
 Diário do Amazonas


Os dois morreram com a mesma idade: 79 anos. Os dois foram abatidos pela mesma doença maligna contra a qual lutaram bravamente por um longo período. José Alencar (1931-2011), vice-presidente do Brasil, câncer no intestino. François Mitterand (1916-1996) presidente da França, câncer na próstata. Ambos tiveram funerais solenes com pompa de chefe de Estado. No velório do francês, porém, foi registrada uma presença, que esteve ausente no enterro do brasileiro.
Quase 15 mil pessoas desfilaram diante do corpo de Alencar, velado no Palácio do Planalto, em Brasília e, no dia seguinte, no Palácio da Liberdade, em Belo Horizonte, com direito a desfile em cortejo fúnebre, limusine preta, celebração presidida pelo núncio apostólico, honras militares, 21 tiros de canhão, bandeira a meio mastro, luto oficial. Alguém, no entanto, sentiu a perda, mas não foi aos dois palácios. Quem?  
Estavam lá a presidente Dilma Rousseff, quatro ex-presidentes, entre os quais Lula, ministros, senadores, deputados, juízes, governadores, autoridades civis, militares e eclesiásticas, políticos de todos os partidos, gente do povo. Enfim, todos os poderes constituídos. O comandante do Exército, general Enzo Peri, lembrou que o morto, quando jovem, havia feito ‘tiro de guerra’: “Nós sentimos profundamente. Era um grande patriota, amigo das Forças Armadas”.
O médico do ex-vice-presidente, Raul Cutait, declarou que Alencar era “um exemplo de paciente”. Ele teve “um papel quase que didático em relação ao câncer”, confirmou Josias de Souza, colunista da Folha de SP. Efetivamente, o Brasil inteiro acompanhou, solidário, a luta daquele mineiro de Muriaé, corajoso, esbanjando a disposição de um touro, sempre com um sorriso descontraído depois de cada uma das inúmeras cirurgias a que foi submetido. Era duro de queda, o Zé. Dava a impressão de ser imortal.
“Ele levou esperança a milhares de pacientes, abriu discussão sobre os avanços no combate ao câncer, ensinou ao Brasil a fé, a coragem no enfrentamento à doença e a importância fundamental da família e dos amigos para o sucesso do tratamento” - disse Luciana Holtz, presidente do Instituto Oncoguia. Na sua fala, nada foi dito sobre uma pessoa, ali ausente, que não havia recebido essa injeção de esperança.
Ritual do Poder
De qualquer forma, quem teve alguém próximo com câncer – e quase todo mundo teve alguém próximo com câncer – se sentiu unido a José Alencar. O Globo registrou muitas mensagens de mulheres e homens comuns como Sidney Tito – “Adeus Zé, Deus te receberá com honras destinadas aos humildes, aos bons e aos justos” – ou Fátima Cremona – “O Brasil perde um grande guerreiro”.
Até mesmo adversários não hesitaram em entrar na fila de cumprimentos no velório, entre eles o ex-presidente Itamar Franco, classificado como “péssimo caráter” por Alencar em depoimento a Eliane Cantanhêde, autora de “José Alencar, Amor à Vida”. Itamar não chegou a chorar, como Lula, mas provou que mineiro é solidário no câncer, como queria Otto Lara. Outro ex-presidente, José Sarney (vixe, vixe!), com ar compungido, moveu o bigode de ratazana e se pronunciou:
- “No meu tempo, não vi um político ser objeto de opinião tão unânime e receber uma solidariedade tão sem contrastes de todos os segmentos da sociedade quanto José Alencar”.
Será? O senador Aécio Neves concordou e, crente que o purgatório de Alencar foi aqui na terra, despachou-o direto pro céu:“O Criador deve ter dito: uai Zé, achei que você não vinha nunca”.Ninguém questionaria o sotaque mineiro de Deus se não houvesse um lugar vazio no velório. Mas havia, embora despercebido por pessoas tão familiares como o ex-ministro José Dirceu e a presidente Dilma.
Dilma contou que Alencar a “adotou” quando ela chegou a Brasília, em 2003: “Foi meu segundo pai”. Na mesma linha, Dirceu afirmou, ao sair do velório: “Lula disse que perdeu um irmão. Eu perdi quase um pai”.
Com tal paternidade declarada, não precisa de um estudo profundo sobre estrutura de parentesco para ver que a cerimônia do adeus ao patriarca reuniu toda a quase-família: a esposa dona Mariza, os três filhos Josué, Graça e Patrícia. Além do quase-filho Dirceu, lado a lado de sua quase-irmã Dilma e do seu tio Lula. Só faltou mesmo alguém que esteve nos funerais de Mitterand.
Quando o presidente da França morreu no cargo, foram se despedir dele, na Catedral de Notre Dame, em Paris, cerca de 1.500 personalidades: reis, rainhas, príncipes, presidentes e chefes de governo de quase todos os países do mundo. Mas não foi nenhum deles que fez falta no enterro de Alencar. Quem fez falta foi alguém ainda mais importante, que concentrou todo o foco da imprensa mundial: Mazarine
Mazarine
Mazarine foi registrada com esse nome em homenagem à biblioteca mais antiga da França. É que seus pais adoravam livros. Sua mãe Anne Pingeot era bibliotecária do Museu d´Orsay. Seu pai François Mitterand discutia com intimidade, entre outras, as obras de escritores latino-americanos como Júlio Cortázar e Garcia Marquez, que foram convidados para sua posse.
Acontece que Mazarine Marie, nascida em 1974, era filha de uma relação adúltera. Foi discretamente reconhecida, em cartório, pelo pai, que conseguiu manter o segredo durante anos, até 1994, quando foi revelado publicamente pela revista Paris-Match. Hoje, ela é Mazarine Marie Pingeot-Miterrand, escritora, autora de um romance – Cemitério de bonecas – em que uma mulher mata seu bebê e o coloca num congelador.
Mazarine e sua mãe não foram mortas nem ficaram no congelador. As duas foram convidadas para os funerais pela própria Danielle Miterrand, esposa do presidente, que bateu de frente com o poder e subverteu as normas do cerimonial. Uma foto estampada na primeira página dos jornais do mundo todo mostra Danielle ladeada por seus dois filhos Jean-Christophe e Gilbert, tendo Mazarine e Anne à sua esquerda.    
No velório de Alencar, quem ficou de fora foi a Mazarine brasileira, conhecida em Caratinga (MG) como Alencarzinha, uma quase-irmã do Dirceu e da Dilma. Trata-se de uma professora aposentada de 55 anos, que em 2001 entrou com uma ação de reconhecimento de paternidade, reivindicando ser filha de um romance entre José Alencar e a enfermeira Francisca Nicolina de Morais.
Com a mesma teimosia com que lutou contra o câncer, seu quase pai, Zé Alencar, se recusou a fazer exames de DNA e morreu sem reconhecer aquela que diz ser sua filha. Diante da recusa, o juiz da comarca de Caratinga (MG), José Antônio de Oliveira Cordeiro, fez o que manda a lei. Declarou oficialmente José Alencar Gomes da Silva como o pai da professora, que agora passou a assinar, legalmente, Rosemary de Morais Gomes da Silva.
Entrevistado no programa de Jô Soares, em 2010, diante das câmeras e dos microfones, José Alencar não negou que havia tido uma relação com Nicolina, mas disparou um tiro de guerra. Revelou que “como todo jovem na época” era freqüentador das zonas de meretrício das cidades onde morou, insinuando que a mãe de sua eventual filha era uma prostituta e que qualquer um podia ser o pai.
Alencarzinha
Confesso que nutria enorme admiração pela luta de Alencar contra o câncer, mas ela se esfumou quando ouvi sua declaração, digna de um Bolsonaro, ultrajante e ofensiva a todas as mulheres brasileiras, virtuosas ou pecadoras, que não mereciam um comportamento público tão machista, mesquinho e vulgar.
Fiquei envergonhado, afinal ele me representava. Não era um quase-pai, mas era um quase-presidente. Nem o insensato coração de André Lázaro Ramos foi capaz de discurso tão abominável e covarde, indigno de um homem tão bom, que pelo seu cargo deveria ter um comportamento mais republicano. O pior é que, pelo lugar de onde fala, ele tem um “papel didático” também nessas questões de gênero. Ele está ensinando aos telespectadores, incluindo aí nossos filhos, como um homem deve se comportar com uma mulher.
Alencarzinha assistiu pela televisão à cobertura do velório de um homem poderoso, rico, com grandes qualidades, mas asquerosamente machista. “Não fui a Belo Horizonte porque não ia ser bem aceita lá”, ela disse. Judicialmente, podia ter tentado impedir a cremação para realizar o exame de DNA, pelo qual tanto lutou. Mas não o fez. “Queria ter conversado com ele em vida, para mostrar quem eu sou, a filha que ele tem, todo pai gosta de conhecer a pessoa que ele colocou no mundo. Agora, não adianta mais”.
Danielle Mitterand recebeu criticas impiedosas pela presença de Mazarine e Anne Pingeot nos funerais do presidente francês. Num belo texto que tornou público, ela condenou a hipocrisia e o conformismo, dizendo que um homem ou uma mulher sensível podia se enamorar e se encantar com outras pessoas: “É preciso admitir docemente que um ser humano é capaz de amar apaixonadamente alguém e depois, com o passar dos anos, amar de forma diferente”. Ela fez um apelo:
- Aceitei a filha de meu marido e hoje recebo mensagens do mundo inteiro de filhos angustiados que me dizem: - 'Obrigado por ter aberto um caminho. Meu pai vai morrer, mas eu não poderei ir ao enterro porque a mulher dele não aceita' (...). Espero que as pessoas sejam generosas e amplas para compreender e amar seus parceiros em suas dúvidas, fragilidades, divisões e pequenas paixões. Isso é amar por inteiro e ter confiança em si mesmo".
Foi essa generosidade que faltou no enterro de Alencar.

Fernando Marroni: Aprovar a proposta do novo Código Florestal é irresponsabilidade

Motivos para não aprovar a proposta do novo Código Florestal

por Fernando Marroni, deputado federal (PT-RS) no Viomundo

As imagens e os efeitos devastadores dos deslizamentos na região serrana do Rio de Janeiro no início deste ano permanecem vivos na memória dos brasileiros dois meses depois da catástrofe. E tão importante quanto jamais esquecer a perda de 900 vidas é lembrar que grande parte dessa tragédia poderia ter sido evitada com uma simples atitude: obediência às regras do Código Florestal Brasileiro.
Estudo liberado essa semana pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) comparou imagens de satélite antes e depois da enchente e constatou a ocupação irregular das encostas e margens de rios. E o resultado dessa pesquisa é taxativo: os efeitos da chuva teriam sido significativamente menores se a Área de Preservação Permanente (APP) de 30 metros ao longo dos cursos d’água tivesse sido respeitada.
A morte de centenas de cidadãos brasileiros serve como trágico lembrete de que o Congresso Nacional não pode votar às pressas a proposta do novo Código Florestal Brasileiro.
Como primeira justificativa para isso basta lembrar que a atual proposta reduz de 30 metros para 15 metros a faixa que pode ser ocupada por habitações ou lavouras nas APPs, ou seja, permite de norte ao sul do Brasil ocupações de alto risco capazes de reproduzir resultados trágicos como os observados no interior do Rio, em janeiro último. Diante de recentes calamidades como essa, a inexistência de um regramento específico para as zonas urbanas por si só já inviabiliza qualquer tentativa de aprovação da atual proposta. Mas os danos cometidos pela atual proposta conseguem ir além de colocar milhões de brasileiros sob risco iminente.
A anistia proposta àqueles que desmataram áreas protegidas até 22/07/2008, por exemplo, reforça a nódoa de “país da impunidade” que o Brasil carrega e, criminosamente, sugere passar uma borracha em 43 anos de crimes ambientais. A injustiça nesse caso tem dois gumes: um fere quem sempre respeitou a lei e outro atinge quem luta para recuperar o meio ambiente degradado.
Ao ignorar qualquer referência sócio-econômica dos beneficiados pela isenção da reserva legal o relatório elaborado pelo deputado Aldo Rebelo (PCdoB/SP) se transforma na crônica de uma morte anunciada de aproximadamente 30 milhões de hectares de florestas (dos quais 20 milhões de hectares estão localizados na Amazônia). Tal proposta configura não apenas um crime ambiental sem proporções, mas um crime contra a humanidade em tempos de luta para controlar a emissão de gases e o aumento dos danos causados pelo efeito estufa.
Em 1962, o então ministro da Agricultura Armando Monteiro Filho propôs a criação do Código Florestal em vigor ao observar que o avanço do desmatamento se configurava em grave ameaça à produção agrícola nacional. Hoje, os grandes produtores agrícolas defendem a aprovação urgente da nova lei sem qualquer alteração, mas não percebem que a flexibilização das regras de contenção ao desmatamento fará deles próprios vítimas, quando a água destinada à agricultura começar a rarear.
A elaboração do atual Código consumiu três anos durante os quais centenas de cientistas foram ouvidos até a publicação da Lei 4.771/65. Hoje, 46 anos depois, se pretende votar uma proposta calcada em interesses econômicos imediatos e que contraria grande parte da comunidade científica brasileira, que sequer foi ouvida para a elaboração da proposta a ser votada.
Tomar tal atitude é ser irresponsável com o futuro do Brasil e de seus habitantes. É legar às futuras gerações florestas e rios mortos, cidades reféns das intempéries e solos estéreis. Como representantes do povo temos a responsabilidade de preservar o futuro deste país e protegê-lo. E votar o novo Código Florestal sem submetê-lo a sérias alterações é um passo na direção contrária.

Fernando Marroni é vice-líder da bancada do PT na Câmara dos Deputados e membro do grupo de trabalho petista que estuda o novo Código Florestal Brasileiro.

Leia aqui para saber por que a Via Campesina rechaça a proposta do deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) para o Código Florestal.

Ouça aqui a opinião de João Pedro Stedile, líder do MST, sobre a revisão do Código Florestal.

terça-feira, 5 de abril de 2011

Israel ameaça Palestina com medidas unilaterais


A indignação de Israel pelas críticas internacionais atingiu o seu ponto mais alto quando o presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahmoud Abbas, disse que as negociações entre as duas partes permaneciam congeladas. Na semana passada, Israel informou aos 15 membros do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas e aos maiores países da União Europeia que se a ANP persistir nos seus esforços para obter reconhecimento como Estado, responderia com medidas unilaterais. O artigo é de Mel Frykberg e encontra-se na CARTA MAIOR


Nos últimos meses, vários países latino-americanos (Brasil, Argentina, Bolívia, Chile, Equador, Guiana e Uruguai) reconheceram oficialmente o Estado palestino. É provável que Paraguai e Peru sigam o mesmo caminho em breve, enquanto a Venezuela já o fez na década passada. Por outro lado, a Noruega passou a considerar “delegação diplomática” o escritório palestino em Oslo, antes chamado “delegação geral”.

Nos últimos quatro meses, várias outras nações amigas de Israel, como França, Espanha e Portugal, tomaram a mesma medida. Outras centenas de países, a maioria do Sul, reconheceram a “Palestina” depois do seu líder histórico, Yasser Arafat (1929-2004) ter declarado unilateralmente a sua independência em 1988. Outros Estados, a maioria do antigo Bloco do Leste, reconheceram o Estado palestino às vésperas dos acordos de paz de Oslo de 1993.

A onda diplomática originada na América Latina pode propagar-se pela África e Ásia. Um sinal disso foi notado quando a Universidade de Johannesburgo, na África do Sul, decidiu, na semana passada, cessar todo tipo de cooperação com a Universidade Bem Gurion e boicotar outras instituições acadêmicas israelenses. O antigo regime do apartheid (segregação racial institucionalizada pela minoria branca contra a maioria negra) na África do Sul costumava ser um dos aliados mais próximos de Israel.

A cooperação militar, política e econômica entre os dois governos era extremamente próxima. Israel ajudou a treinar as forças de segurança sul-africanas, famosas pela sua brutalidade, e ajudou o regime com seu programa de desenvolvimento nuclear, desarticulado com o fim do apartheid e a chegada do governo democrático, liderado por Nelson Mandela (1994-1999). Acredita-se que, por outro lado, que os sul-africanos forneceram urânio a Israel para seu próprio plano atômico.

A indignação de Israel pelas críticas internacionais atingiu o seu ponto mais alto quando o presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahmoud Abbas, disse que as negociações entre as duas partes permaneciam congeladas. Na semana passada, Israel informou aos 15 membros do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas e aos maiores países da UE que se a ANP persistir nos seus esforços para obter reconhecimento como Estado, responderia com medidas unilaterais.

Também na semana passada, a chancelaria israelense enviou um telegrama classificado a mais de 30 de suas embaixadas, ordenando que apresentassem protestos diplomáticos no mais alto nível possível em resposta aos esforços palestinos pelo reconhecimento internacional na próxima sessão da Assembleia Geral da ONU.

Em setembro passado, o presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, disse na Assembleia Geral que desejava ver o Estado palestino convertido em membro da ONU em menos de um ano. Israel e ANP também disseram que as conversações começaram dia 2 de setembro em Washington e durariam, pelo menos um ano. O primeiro-ministro palestino, Salam Fayyad, anunciou que os esforços para criar instituições estatais estarão completos até setembro próximo.

Embora soe ameaçador, não se sabe exactamente o que o governo israelense tem em mente quando fala de “ações unilaterais”. É possível que anexe grandes blocos de assentamentos israelenses construídos ilegalmente na Cisjordânia ocupada. Más notícias para Israel chegaram no dia 30 de março, quando o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, chamou esse país a deter a construção de colônias em territórios palestinos ocupados e toda a forma de violência e provocação.

Ao falar no Uruguai durante uma conferência internacional organizada pela ONU sobre apoio latino-americano e caribenho à paz no Oriente Médio, Ban afirmou que é um momento “crucial” para o processo de paz. “O tempo é essencial para concretizar a solução dos dois Estados. A ocupação que começou em 1967 é moral e politicamente insustentável, e deve acabar. Os palestinos têm um direito legítimo de estabelecer um Estado independente e viável por si mesmos”.

Mas Samir Awad, da Universidade de Birzeit, na Palestina, perto da cidade de Ramalah, na Cisjordânia, acredita que os israelenses estão mais preocupados em controlar o terreno do que com a opinião internacional. “Os israelenses, contrariamente às suas afirmações de que apoiam a criação de um Estado palestiniano, decidiram, ao menos extra-oficialmente, que isso não está entre os seus interesses”, disse Samir, à IPS. “Para consumo internacional e a fim de manter as aparências, continuarão com a farsa de apoiar a solução dos dois Estados”, acrescentou.

"Opressão à mulher árabe tem origens mais profundas e de classe"


Soraya Smaili
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Analisar o papel da mulher nas recentes revoltas árabes, com base no resgate histórico do processo de “ocidentalização” dessa cultura, que envolve desde a partilha do mundo árabe em 22 diferentes países até a imposição de ditadores aliados para garantir a exploração do petróleo. Esta é a proposta da diretora cultural e científica do Instituto da Cultura Árabe - ICArabe, Soraya Smaili, em entrevista concedida ao Informandes Online. De acordo com ela, é preciso se despir de preconceitos fomentados pelo ocidente para compreender bem como se dá a opressão à mulher no mundo árabe. “Como em outras situações históricas, em uma sociedade repressora, os mais profundamente afetados são as mulheres, crianças e idosos. Eles são alvos centrais, pois o regime é muito mais danoso aos que têm menos recursos físicos ou sociais”, argumenta.
A diretora acrescenta que é preciso considerar sempre que o mundo árabe é bastante diversificado, com realidades mais ou menos favoráveis à mulher nos diferentes países. Entretanto, mesmo nos países em que a mulher parece sofrer maior opressão, a condição para sua liberdade está bastante relacionada à classe social a que pertence. Mesmo na Arábia Saudita, considerada a pior ditadura do mundo árabe, as mulheres da realeza têm direito de viajar e estudar, enquanto as demais sofrem todo tipo de restrição de liberdade. “A opressão à mulher tem origens mais profundas e de classe”, resume ela.
Soraya Smaili, graduada pela Universidade de São Paulo, obteve Mestrado, Doutorado e Livre-Docência na Escola Paulista de Medicina, Universidade Federal de São Paulo e fez estudos de pós-doutorado no National Institutes of Health. É vice-presidente da Adunifesp-SSind, diretora regional do ANDES-SN e diretora cultural e científica do Instituto da Cultura Árabe - ICArabe (www.icarabe.org).
Confira a entrevista na íntegra:

Qual o papel das mulheres nas recentes mobilizações por democracia que, desde o final de 2010, têm sacudido o mundo árabe?

Embora a mídia em geral não tenha destacado ou mesmo analisado, o papel da mulher árabe nos recentes levantes ocorridos, a sua presença e participação têm sido e são fundamentais. A visão que o Ocidente tem da mulher árabe é de uma pessoa submissa ao extremo, sem educação formal e sem profissão. Muitas vezes acredita-se que os árabes e, consequentemente, as mulheres árabes são atrasadas e ignorantes. Isso faz parte de um imaginário criado cuja base ideológica está no pensamento Orientalista. O Orientalismo, iniciado como corrente de pensamento no século XIX, se desenvolveu plenamente no século XX e tratou de apresentar os árabes como seres exóticos, diferentes, inflamados, temperamentais, ignorantes e atrasados.
Ou seja, seres que eram diferentes dos homens e mulheres do Ocidente, ditos civilizados. Este Ocidente tratou de mistificar e discriminar esse povo apresentando-o como um “não-povo”, o que deu sustentação à colonização e partilha do Mundo Árabe em 22 países com fronteiras artificiais e à exploração brutal de petróleo tão necessário ao Ocidente. Uma análise sobre esse contexto do século XX foi feita de maneira clara e aprofundada por Edward Said em seu livro Orientalismo.
A mulher, neste cenário, sofreu as consequências das políticas implantadas para o Mundo Árabe, e como parte do pensamento Orientalista, também foi apresentada como um ser inferior. Somada às questões femininas primordiais, o Orientalismo reforçou a opressão e criou profundos esteriótipos para a mulher árabe, tendo sido escandalosamente ridicularizada. No entanto, do ponto de vista histórico, a mulher árabe desempenhou papel fundamental na base da organização social e impediu que uma maior degeneração social ocorresse durante a implantação dos colonizadores.
As revoltas no Mundo Árabe de hoje devem ser vistas a partir de uma análise da ocupação e colonização (Ocidentação) e da partilha dos árabes como povo em vários países, da imposição de didatores aliados para o controle da região e da exploração brutal de Petróleo.  Aos longo de algumas décadas, os ditadores do Mundo Árabe trataram de controlar com mão de ferro, opressão e pobreza, a organização social que existia, impedindo e massacrando a possibilidade de desenvolvimento. Portanto, o levante árabe que o mundo está assistindo neste momento é um movimento por direitos universais, pelo fim da opressão, pelo direito à manifestação, pelo direito ao trabalho e a dignidade. É um movimento popular e, neste contexto, o movimento de mulheres está presente, participa e se insere plenamente.
Com algumas diferenças regionais, as mulheres e os movimentos feministas locais têm tido participação fundamental nos levantes populares. No Egito e Tunísia, organizaram manifestações específicas, chamaram as mulheres às ruas, clamaram e se organizaram na luta pela democracia. Na Tunísia existem organizações importantes de mulheres que marcharam contra o ditador Bin Ali. Logo após a sua queda, elas se organizaram em comitês e reivindicam que o estabelecimento do estado democrático passa também pela conquista dos direitos das mulheres. Depois disso, estabeleceu-se lá um Comite especial para reivindicar os direitos das Mulheres Tunisianas na transição democrática.
No Egito, as mulheres marcharam, convocaram e organizaram grandes manifestações e entraram diretamente nos confrontos. As TVs do mundo exibiram imagens marcantes de mulheres de todos os tipos clamando por democracia e pelo fim da ditadura Mubarak, para espanto geral do Ocidente. Criaram o movimento chamado “As Mulheres da Praça Tahrir”, que reuniu centenas de ativistas, dentre estas, algumas feministas históricas, como Nawal Al Saadawi. Isso mostrou uma faceta do Mundo Árabe que estava obscurecida pela visão orientalista, ou seja, apresentou os movimentos seculares e boa parte deles compostos de mulheres intelectualizadas. E também vimos as mais jovens atuando na organização por meio da internet e utilizando ferramentas de comunicação chamadas modernas. Mais uma vez, desfazendo a idéia de que as mulheres não teriam acesso ou não saberiam utilizar tais recursos.
Porém, existe uma grande diversidade no Mundo Árabe e o papel das mulheres em alguns outros locais, como no Iemen, talvez não esteja tão evidente.  Mas é preciso lembrar que em alguns locais, os regimes ditatoriais foram ou são muito mais opressores para a população em geral, como ocorre na Líbia, no Iemen e em outros locais. De maneira geral, as mulheres têm tido grande destaque e são protagonistas dos movimentos, manifestações e atuam fortemente pela democracia, mesmo que isso nem sempre seja noticiado ou que esteja aparente para a mídia internacional. Portanto, é errada a idéia de que as mulheres árabes não participam, são alienadas ou reprimidas. Elas têm a consciência dos seus direitos e lutam por eles, como as mulheres do mundo.

A questão de gênero está pautada nesta revolução em curso? De que forma?

Sim, certamente. Como explicado anteriormente, os levantes populares devem ser vistos pelo prisma de um movimento pós-colonial e contra a implantação artificial de opressores e ditadores que foram impostos para controlar as manifestações da população árabe em geral. Esse povo foi colonizado por algumas décadas e depois controlado com mão de ferro pelas décadas seguintes. É um povo sedento por liberdade e pelo exercício dos seus direitos e dignidade. Portanto, todas as questões que dizem respeito às liberdades e aos direitos universais estão pautadas. A questão da mulher, dos seus direitos inalienáveis, faz parte deste contexto.

A opressão da mulher é maior no mundo árabe? Por quê?

Essa é uma pergunta bastante interessante, mas não dá para responder com um “sim” ou um “não”. Na verdade, podemos dizer que sim e que não. O Mundo Árabe é bastante diverso, são 22 países que vão da Península Arábica e se estendem a todo o Norte da África. Há questões culturais regionais importantes e que precisam ser consideradas. Há locais em que a mulher não tem direito ao voto, não tem direito à manifestação e várias outras coisas. É o que acontece na Arábia Saudita. Mas, novamente é preciso considerar o contexto social e político.
Nesse país, os homens também têm liberdades muito restritas, se comparados aos outros homens do mundo. Não é possível a livre manifestação de qualquer tipo, pois se trata de uma ditadura absoluta. Ou seja, homens e mulheres são reprimidos, porém, como em outras situações históricas, em uma sociedade repressora, os mais profundamente afetados são as mulheres, crianças e idosos. Eles são alvos centrais, pois o regime é muito mais danoso aos que têm menos recursos físicos ou sociais. Ainda na Árabia Saudita, a liberdade também depende da classe social, pois mulheres e homens da família real têm acesso à educação e recursos ilimitados. Há mulheres da realeza que pilotam aviões, que estudam, que viajam. Portanto, a opressão à mulher tem origens mais profundas e de classe.
Por outro lado, há outros locais em que as mulheres têm acesso à educação, trabalho e liberdade de expressão, como no Líbano e na Palestina, e as questões femininas que vivem são semelhantes às que as mulheres ocidentais enfrentam. Porém, no mundo árabe, há outros valores que o Ocidente não leva em consideração, mas que são valores humanos, como a dignidade e o respeito à mulher. Por exemplo, existe uma impressão generalizada de que todas as mulheres árabes são muçulmanas e usam o lenço (hijab). Não é verdade que todos os árabes sejam muçulmanos e também não é verdade que todas as mulheres sejam obrigadas a usar lenço, nem mesmo as muçulmanas. Existe a idéia de que as muçulmanas são reprimidas e obrigadas a usar o hijab, quando na verdade, em boa parte dos casos trata-se de uma opção pessoal.
No Líbano, Síria e Egito, por exemplo, as mulheres não são obrigadas a cobrir os cabelos e muitas muçulmanas cobrem por opção, porque faz parte dos costumes e da cultura. Em vários locais, como no Líbano e Tunísia, uma boa parte das muçulmanas não quer e não são obrigadas a se cobrir. Por terem a opção de usar o lenço, as mulheres árabes se sentem respeitadas, pois é um direito. Ao contrário do que ocorre em alguns países do Ocidente civilizado, onde as muçulmanas foram impedidas do seu direito de utilizar o hijab, o que é extremamente autoritário.

Qual o papel da religião no processo de opressão da mulher?

Inicialmente, é preciso salientar novamente que nem todas as mulheres árabes são muçulmanas. No Egito, por exemplo, uma parte da população é cristã copta. No Líbano, há católicos de várias igrejas e também judeus. Além disso, é preciso fazer uma distinção entre os países onde o Estado é teocrático, como na Arábia Saudita e Iêmen. Neste caso, a religião é usada para a opressão, embora a religião muçulmana, em seus preceitos fundamentais, não prega a opressão ou retirada de direitos. Ao contrário, no momento da fundação do Islã, as mulheres eram fortemente oprimidas em uma sociedade tribal. O Islã, como filosofia, trouxe a regulamentação de direitos femininos, como o acesso à educação e participação na expansão da civilização islâmica do século VII ao XIII. Portanto, é preciso separar o Islã da religião islâmica.
A religião, como outras doutrinas, sofreu adaptações e regionalizações e foi implementada de acordo com os costumes locais, sendo utilizada como instrumento de controle ideológico. Além disso, em muitos lugares onde chegou, se deparou com costumes tribais (não só na Península Arábica, mas também no Norte da África e Oriente). Por isso, hoje, em vários países de maioria muçulmana, são perpetrados costumes tribais que não têm a menor fundamentação religiosa, como por exemplo, a mutilação de órgãos genitais que ocorre em regiões da África (muçulmana ou não). O Islã proibiu fortemente essa prática, mas ela tem sido divulgada como uma prática muçulmana, mas na verdade é uma prática tribal, exercida por comunidades não muçulmanas também. A maior parte das práticas opressivas à mulher e que ocorrem em países árabes se deve mais aos costumes regionais ou às distorções criadas por fundamentalistas religiosos, que existem em todas as religiões, do que propriamente por conceitos do Islã.

Os países árabes também têm a tradição de comemorar o Dia Internacional da Mulher?

Sim. Há movimentos muito fortes e sérios no mundo árabe e as mulheres estão organizadas e concatenadas com outros movimentos feministas do mundo inteiro. Há inúmeras organizações em diversos países e há uma corrente feminista que irmana as mulheres árabes entre elas (já que estão distribuídas em diferentes regiões) e com as mulheres de todo mundo. Neste sentido, as mulheres árabes estão muito mais avançadas e há muito participam da internacionalização dos movimentos sociais universais, que incluem o movimento feminista.
Fonte: Andes-SN

Globo terá que explicar contratos para o CADE





Jorge Seadi no Sul21



A disputa pelos direitos de transmissão por tevê do campeonato brasileiro a partir de 2012 continua acontecendo nos bastidores, apesar de a Rede Globo falar que já acertou com 18 clubes, embora somente 11 tenham assinado com a emissora carioca. O último foi o Palmeiras, que não revelou detalhes do acerto.

Na semana passada, o Conselho de Administração dos Direitos Econômicos (CADE) notificou o Clube dos 13 e a Rede Globo para prestar explicações sobre o andamento das negociações. Do Clube dos 13, o CADE quer detalhes da concorrência em que só a Rede TV participou e da Globo quer analisar os contratos já assinados com os clubes.

Para o CADE, haveria aparentemente um item nos contratos que a Rede Globo assinou com os clubes que contraria o determinado pelo próprio CADE, com a concordância da Globo, no ano passado. A Globo terá que explicar porque assinou contratos individualmente e por todas as mídias, quando as negociações deveriam ser feitas separadamente.

Se o CADE não aceitar as explicações da Rede Globo, poderá determinar a nulidade dos contratos, além de multar a Rede Globo e os clubes. No acordo assinado no ano passado entre a Globo, o Clube dos 13 e o CADE, estava prevista a abertura de uma concorrência para a escolha da empresa que ficaria com os direitos para cada plataforma de transmissão — tv aberta, tv fechada, pay per view, internet e celular. A Globo não participou da licitação e ainda fechou contrato por todas as mídias.

O Clube dos 13 aguarda um chamado do CADE com uma definição do que vai acontecer a seguir. O presidente Fábio Koff acredita que a ação da rede Globo é ilegal e que o contrato assinado pelo Clube dos 13 com a Rede TV é o que deve ser colocado em prática.

No Rio Grande do Sul,apenas o Grêmio confirmou que assinou com a Globo. A decisão do presidente Paulo Odone provocou bate-boca na última reunião do Conselho Deliberativo, com o presidente deixando a sala intempestivamente sem dar detalhes do contrato assinado. Já o Internacional confirmou estar negociando com a Rede Globo e de também ter ouvido proposta da Rede Record. O clube não informou ainda se assinou com alguma das redes. A Globo acertou com o Grêmio por R$ 40 milhões ao ano entre 2012 a 2015, incluíndo todas as plataformas. Pagou ao Grêmio como “luvas” R$ 7 milhões, dinheiro que o Grêmio já teria recebido. A proposta para o Internacional seria a mesma. Já clubes para como o Corinthians a Globo irá pagar R$ 140 milhões por ano também pelo período de 4 anos.

Desde que o campeonato brasileiro teve os direitos de transmissão de seus jogos negociados com a televisão, a Rede Globo foi a única emissora que comprou estes direitos. Em 1997, o SBT tentou comprar os direitos, fez uma proposta maior que a da Globo, mas a emissora carioca exerceu uma cláusula que lhe dava a preferência para cobrir propostas da concorrência. E foi o que fez. Inconformado com o previlégio, Silvio Santos acionou o CADE que discutiu o assunto por longos 13 anos. No final do ano passado, em razão deste processo iniciado por Silvio Santos, o CADE, a Globo e o Clube dos 13 assinaram o acordo em que acabava com a “cláusula de preferência”.

Aproveitando a determinação do CADE pela realização de concorrência, a Rede Record entrou nas discussões preliminares anunciando que cobriria qualquer proposta. Em resposta, a emissora carioca trabalhou nos bastidores para não perder um dos melhores produtos que tem em sua grade de programação, com ótimo retorno financeiro e de audiência.

Enquanto o CADE obrigava a Globo a se preparar para uma concorrência, a CBF tentou derrubar o presidente Fábio Koff da direção do Clube dos 13. Apoiou abertamente Kléber Leite, ex-presidente do Flamengo, com a ajuda de alguns clubes, dentre eles o Corinthians. Usou toda a sua “máquina” e mesmo assim perdeu a eleição. Passou, então, a trabalhar também nos bastidores em parceria com a Rede Globo. E o resultado de tudo isto é uma importate briga de bastidoresa em que clubes, Globo, e Clube dos 13 travam pelos direitos de televisão.

O campeonato deste ano não terá alterações nos direitos. A Rede Globo vai continua transmistindo em tv aberta, tendo a Band como parceira, a Sportv estará na tv fechada e o pay per view segue com a Globo. A única mudança é o do número de jogos de alguns clubes que terão transmissão por tv aberta. O esquivo São Paulo, por exemplo, terá uma grande redução do número de jogos transmitidos pela Globo e aqui em Porto Alegre, o Grêmio terá maior número de partidas transmitidas pela RBS (afiliada da Rede Globo) que o Internacional.



Com informações da Folha de S.Paulo

Agronegócio não garante segurança alimentar



De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Agrário, 70% do que comem os brasileiros vem da agricultura familiar

Por Raquel Júnia

No Assentamento Americana , no município de Grão Mogol, região norte de Minas Gerais, há de tudo um pouco - hortaliças, legumes, frutas, frutos típicos do bioma cerrado que cobre a região, criação de animais. De acordo com o Centro de Agricultura Alternativa do Norte de Minas (CAA NM), que presta assessoria aos assentados desde o início da ocupação da área, tecnicamente o que está sendo desenvolvido na região é o que se chama de sistemas agroflorestais e silvipastoris - ou seja, a conciliação de atividades agrícolas com a criação de animais e o extrativismo, de forma a garantir a preservação do bioma cerrado e também a produção de alimentos saudáveis.  A situação dos moradores do assentamento Americana, onde, segundo eles próprios, "há de tudo um pouco", é um exemplo de como a agricultura familiar, sobretudo a prática agroecológica, podem garantir a segurança e a soberania alimentar.
Mas o que significa segurança alimentar? De acordo com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), órgão consultivo ligado à Presidência da República, a concretização da segurança alimentar "consiste na realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a alimentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas alimentares promotoras da saúde, que respeitem a diversidade cultural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sustentáveis". Outra característica da produção em Americana que garante a segurança alimentar da população é que, além da diversidade de produtos e da convivência com o meio ambiente, os agricultores praticam a agroecologia - um conjunto de princípios que balizam a agricultura, entre eles a não utilização de agrotóxicos. A EPSJV participou da visita ao assentamento Americana durante a programação da Oficina Territorial de Diálogos e Convergências do Norte de Minas, que reuniu experiências dos agricultores familiares locais como etapa preparatória a um encontro nacional.
Na mesa dos brasileiros: resultados da agricultura familiar
De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), é a agricultura familiar a grande responsável pela alimentação da população brasileira, garantindo em torno de 70% do que é consumido. "É a agricultura familiar que produz feijão, arroz, leite, verdura, é a produção diversificada que consumimos todos os dias. Tem uma importância muito forte para a segurança alimentar e também para a soberania alimentar", afirma o secretário nacional de agricultura familiar do MDA Laudemir Muller. Ele diz que a produção da agricultura familiar tem crescido muito, acompanhando o consumo de alimentos, que também aumentou. Laudemir explica que a soberania alimentar também é garantida com este modelo de agricultura. "É a agricultura familiar que preserva as tradições, que tem uma produção diversificada, que mantêm a tradição das sementes. Então, na escolha do que nós comemos, a agricultura familiar é o grande bastião dessa diversidade, seja dos povos da floresta, do cerrado, dos grupos de mulheres", comenta.
Entretanto, dados do próprio Consea mostram que o agronegócio cresce mais do que a agricultura familiar e, de acordo os participantes da Oficina Territorial de Diálogos e Convergências do Norte de Minas , este modelo de produção tem ameaçado a segurança e a soberania alimentar do país por vários motivos. Entre os problemas do agronegócio estão a concentração de terras e a consequentemente a diminuição das áreas destinadas à agricultura familiar; a baixa diversidade de produção, pois há regiões inteiras com apenas uma espécie plantada - como as monoculturas de eucalipto, cana de açúcar e soja; e a utilização de tecnologias como a dos agrotóxicos e transgênicos, que apresentam um risco para a saúde.
Um relatório do Consea lançado no final de 2010, que avalia desde a Constituição de 1988 até a atualidade a segurança alimentar e nutricional e o direito humano à alimentação adequada no Brasil, apresenta dados que confirmam este problema. De acordo com o estudo, o ritmo de crescimento da produção agrícola destinada à exportação é muito maior do que para o consumo interno. "A área plantada dos grandes monocultivos avançou consideravelmente em relação à área ocupada pelas culturas de menor porte, mais comumente direcionadas ao abastecimento interno. Apenas quatro culturas de larga escala (milho, soja, cana e algodão) ocupavam, em 1990, quase o dobro da área total ocupada por outros 21 cultivos. Entre 1990 e 2009, a distância entre a área plantada dos monocultivos e estas mesmas 21 culturas aumentou 125%, sendo que a área plantada destas últimas retrocedeu em relação a 1990. A monocultura cresceu não só pela expansão da fronteira agrícola, mas também pela incorporação de áreas destinadas a outros cultivos", diz o documento.
O relatório também faz um alerta sobre o uso de agrotóxicos. "O pacote tecnológico aplicado nas monoculturas em franca expansão levou o Brasil a ser o maior mercado de agrotóxicos do mundo. Entre as culturas que mais os utilizam estão a soja, o milho, a cana, o algodão e os citros. Entre 2000 e 2007, a importação de agrotóxicos aumentou 207%. O Brasil concentra 84% das vendas de agrotóxicos da América Latina e existem 107 empresas com permissão para utilizar insumos banidos em diversos países. Os registros das intoxicações aumentaram na mesma proporção em que cresceram as vendas dos pesticidas no período 1992-2000. Mais de 50% dos produtores rurais que manuseiam estes produtos apresentam algum sinal de intoxicação", denuncia o Consea.
Para a presidente do Conselho Federal de Nutricionistas, Rosane Nascimento, não é necessário que o Brasil lance mão de práticas baseadas no uso de agrotóxicos e mudanças genéticas para alimentar a população. "Estamos cansados de saber que o Brasil produz alimento mais do que suficiente para alimentar a sua população e este tipo de artifício não é necessário. A lógica dessa utilização é a do capital em detrimento do respeito ao cidadão e do direito que ele tem de se alimentar com qualidade", protesta. Ela explica por que os transgênicos ameaçam a soberania alimentar. "O alimento transgênico foi modificado na sua genética e gerou uma dependência de um produto para ser produzido, então não é soberano porque irá depender de uma indústria de sementes para produzir aquele alimento, quando na verdade ele deve ser crioulo, natural daquela região, daquela localidade, respeitar os princípios da soberania", afirma.
Enquanto o MDA aposta na agricultura familiar e procura desenvolver políticas públicas para fortalecer esta atividade, segundo afirma o próprio ministério, outro ministério - o da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), aposta no agronegócio. O MAPA confirma, por meio da assessoria de imprensa, o alto desempenho da agricultura para exportação no Brasil. "O Brasil alcançou recorde nas exportações brasileiras do agronegócio nos últimos 12 meses. O número chegou a US$ 78,439 bilhões, um valor 19,8% acima do exportado no mesmo período do ano passado (US$ 65,460 bilhões)", afirma o ministério. Segundo dados do MAPA, em janeiro de 2011, a exportação de carnes foi a mais lucrativa, seguida pelos produtos do complexo sucroalcooleiro (açúcar e álcool), produtos florestais (que incluem borracha, celulose e madeira), café e o complexo soja (farelo, óleo e grãos).
Questionado sobre o uso abusivo de agrotóxicos na agricultura brasileira, o MAPA responde: "O que podemos dizer é que em 2010, os fiscais federais agropecuários do Ministério da Agricultura analisaram 650 marcas de agrotóxicos, em 197 indústrias do país. Do total, 74 produtos apresentaram irregularidades, o que representou 428,9 toneladas apreendidas. O resultado aponta que 88,6% dos agrotóxicos estavam dentro dos padrões". E continua: "O papel do Ministério da Agricultura é assegurar que os agrotóxicos sejam produzidos por empresas registradas e entrem no mercado da forma que consta no registro. Fazemos a fiscalização para verificar, desde a qualidade química do produto até o processo de fabricação e rotulagem".
Já o MDA alerta que a monocultura de uma forma exagerada, com grandes proporções, pode trazer problemas. "O ministério tem trabalhado para apoiar  e viabilizar, com políticas públicas, este modelo de agricultura familiar, que é um modelo diversificado. Nós não achamos interessante a monocultura, seja a grande monocultura ou a pequena monocultura. Para a nós a diversidade é muito importante. Para nós, o modelo mais adequado e mais necessário para o país é o da agricultura familiar", reforça Laudemir Muller. O secretário destaca também que é um entusiasta da agroecologia. "Nós sabemos que infelizmente o país está com este título (de maior consumidor de agrotóxicos do mundo), e isso é uma das conseqüências da expansão da monocultura em nosso país. É preciso apoiar firmemente quem quer produzir de uma forma agroecológica", diz.
Populações tradicionais e indígenas correm mais risco
Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS), as populações indígenas e quilombolas são as que mais sofrem com a insegurança alimentar e nutricional. O relatório elaborado pelo Consea critica a demora na demarcação das terras indígenas e quilombolas, o que prejudica o direito a alimentação adequada. "Verifica-se que a morosidade para a demarcação das terras indígenas tem impactado negativamente a realização do direito humano à alimentação adequada dos povos indígenas, desrespeitando a forte vinculação entre o acesso à terra e a preservação dos hábitos culturais e alimentares desses povos", diz o documento.
A secretária nacional de segurança alimentar e nutricional do MDS, Maya Takagi, afirma, por exemplo, que os índices de crianças com baixa estatura em relação à idade é maior nas comunidades indígenas e quilombolas, situação decorrente da quantidade insuficiente de alimentos. "Nesses grupos específicos ainda temos o problema da quantidade de alimentos. Mas nosso desafio é também o da qualidade, conseguir ofertar alimentos de maior qualidade, de forma que as famílias de modo geral possam se alimentar de produtos saudáveis e naturais. Então, temos ainda um problema duplo, com o problema da quantidade mais localizado por grupos e regiões", descreve.
Maya cita os dados presentes no próprio relatório do Consea, segundo o qual 6,7% da população brasileira de crianças abaixo de cinco anos sofre com problemas de insegurança alimentar. Indicadores, segundo ela, considerados aceitáveis internacionalmente. Entretanto, o problema se agrava quando o dado é analisado por região e por grupos. A região norte é a que apresenta mais risco com 14,8% da população infantil sofrendo insegurança alimentar, o índice é de 26% na população indígena, 15% entre os quilombolas e 15,9% entre as famílias mais pobres.  No caso dos adultos, o déficit de peso brasileiro diminuiu: passou de 4,4% em 1989 para 1,8% em 2010. Maya considera que é necessário haver muitas políticas públicas para resolver a situação. "Regularização fundiária, acesso à terra, apoio para a produção, banco de sementes, assistência técnica, políticas de proteção social. Um conjunto grande de políticas", elenca.
11,2 milhões de pessoas com insegurança alimentar grave
O estudo do Consea mostra que os desafios para ser alcançada a segurança alimentar no Brasil ainda são grandes. "Em 2009, a proporção de domicílios com segurança alimentar foi estimada em 69,8%, com insegurança alimentar leve 18,7%, com insegurança alimentar moderada 6,5% e com insegurança alimentar grave 5,0%. Esta última situação atingia 11,2 milhões de pessoas".
O relatório também afirma que há diferenças na alimentação dos mais pobres e mais ricos. "Comparando-se a maior e menor faixa de rendimento, a participação dos alimentos é 1,5 vezes maior para carnes, 3 vezes maior para leite e derivados, quase 6 vezes maior para frutas e 3 vezes maior para verduras e legumes, entre os mais ricos. Além dessas diferenças, também ocorre maior consumo de condimentos, refeições prontas e bebidas alcoólicas à medida em que ocorre o crescimento da renda".
No assentamento Americana, onde não se pode dizer que as pessoas tenham alto poder aquisitivo, um almoço foi preparado pelos camponeses do local para receber os visitantes. Nas grandes panelas em cima do fogão à lenha, havia feijão andu - uma das quatro espécies de feijão produzidas no local - com farinha, arroz, carne de porco, mandioca e couve temperada com óleo de pequi. Para acompanhar, três tipos de suco de frutas e, de sobremesa, marmelada. De tudo o que foi servido, apenas o arroz não foi produzido na localidade. No entorno do assentamento, há muitas terras destinadas à monocultura do eucalipto. "Conseguimos avançar bastante e entendemos que para termos uma vida digna é preciso ter alimentação, educação e saúde", aposta Aparecido de Souza, assentado do local e diretor do Grupo Extrativista (do Cerrado, uma organização criada pelos moradores.
Para Rosane Nascimento, outro desafio é também garantir uma mudança no perfil de consumo de alimentos. "A pesquisa de orçamento familiar do IBGE corrobora uma tendência crescente do surgimento das doenças crônico-degenerativas, tais como diabetes, hipertensão, obesidade. São doenças causadas principalmente por uma má alimentação e estilos de vida não saudável. Com o crescimento econômico e uma possibilidade de promover o acesso a essa alimentação, temos uma classe que aumentou o acesso em termos de consumo mas isso não foi associado a uma boa escolha dos alimentos que estão indo para a sua mesa", analisa, destacando, entretanto, que o problema da obesidade está em todas as classes. A nutricionista acredita que deve haver políticas públicas que ataquem o problema.
Lúcio Moreira, também morador do assentamento Americana, diz que na comunidade já há uma conscientização quanto a isso. "Não trazemos mais tanto refrigerante e dizemos para as pessoas que muitas vezes elas consomem veneno quando compram no supermercado", diz.

* Texto publicado originalmente no site da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio

segunda-feira, 4 de abril de 2011

Por que o Capital financia Luciana Genro e o MES?

Escrito por Mário Maestri   no Correio da Cidadania
 
Desde que os trabalhadores ingressaram na arena política e social, pondo a questão de sua representação, a degeneração de suas lideranças e organizações tornou-se acontecimento recorrente, que assumiu enormes dimensões nos momentos em que as classes exploradas recuaram diante da ofensiva dos exploradores. Karl Marx abordou esse fenômeno nas páginas luminares de O 18 de Brumário de Luís Bonaparte, ao dissecar as razões da degeneração que definiu de "cretinismo parlamentar".
 
A primeira grande defecção de lideranças socialistas deu-se no início da II Guerra, quando as principais lideranças operárias européias aprovaram os créditos militares, levando a que os trabalhadores fossem arrastados ao holocausto imperialista, sem oposição efetiva. A submissão ao militarismo burguês fora salto de qualidade em ruptura anterior, ocorrida na esteira da expansão do capitalismo e das concessões da representação sindical e parlamentar, conquistadas pelos trabalhadores.
 
Os principais paladinos dos oprimidos europeus acomodaram-se gostosamente às benesses das posições ocupadas nos sindicatos, parlamento, administração, universidades, aparelho dos partidos. Passaram a lutar para aprofundar a integração ao Estado que ainda juravam querer destruir. Já não se dispunham a arriscar a posição a que haviam sido elevados na imprescindível e implacável luta contra o capital.
 
A Essência e a Consciência
 
No exercício do mandato objetivo e subjetivo outorgado pelo mundo do trabalho, direções operárias passaram a expressar as necessidades de segmentos médios e da aristocracia operária que se aninhavam igualmente à sombra do prestígio e força que os oprimidos adquiriam em duras e longas batalhas. Não mais representavam os setores que, segundo Marx e Engels, "nada tinham a perder, e tudo a ganhar" com a revolução. Queriam, podiam e progrediam no capitalismo, que passaram a defender, sob os olhares complacentes dos exploradores, que lhes apoiaram na estrada da traição que embocavam.
 
A teoria leninista do partido construiu-se na luta contra a expropriação do mandato delegado pelos trabalhadores por parte de lideranças seduzidas pelo colaboracionismo. Para garantir direção aos oprimidos à altura das suas necessidades, os bolcheviques propuseram que os partidos operários se construíssem, política e organicamente, a partir de trabalhadores de vanguarda nucleados.
 
Para impedir a infiltração, mesmo inconsciente, do partido da revolução pelo cretinismo parlamentar e o colaboracionismo, afastavam dos órgãos máximos da direção seus dirigentes, enquanto ocupassem postos parlamentares, e não aceitavam militantes que vivessem da exploração do trabalho – industrialistas, latifundiários, comerciantes, banqueiros etc. Aplicavam o princípio de que, no geral, a existência material determina a consciência política e ideológica.
 
Em 1923, León Trotsky denunciou no opúsculo Curso Novo a burocratização do Partido Bolchevique, que levaria, décadas mais tarde, ao fim da URSS. Nessa obra premonitória, assinalava que aquele partido perdia sua consistência, por se encontrarem os trabalhadores ligados à produção em minoria, dominando entre os militantes os membros do aparato administrativo, militar, diplomático, comumente ex-trabalhadores desligados da produção.
 
No Brasil e no Rio Grande do Sul
 
Nos anos 1980, a polêmica no PT entre "partido de massa" e "partido de quadros" foi vencida pelos que se opunham à nucleação dos militantes, defendendo organização fluída, controlada e dirigida por parlamentares, administradores, profissionais etc. Os resultados são conhecidos: hoje, antigos sindicalistas classistas e militantes revolucionários dedicam-se de corpo e alma às necessidades do capital, que os remunera regiamente em bens materiais e imateriais. Nessa safra de trânsfugas engordados pelos bons serviços ao Estado, encontram-se ex-trotskistas lambertistas, mandelistas, morenistas; maoístas, guevaristas, autonomistas; todos arrependidos dos pecados da juventude.
 
Quando da fundação do PSOL, repetiu-se ritualmente a disputa entre "partido de quadros" e "de massas", vencendo fulminantemente a desnecessidade da nucleação. Sem o impulso classista das lutas de fins dos anos 1970 conhecido pelo PT, o PSOL construiu-se no geral em torno das tendências de deputados ex-petistas e de frágeis segmentos organizados e não organizados dedicados a verdadeiro trabalho de Sísifo, para dar àquela organização impulsão classista, socialista e marxista.
 
No Rio Grande do Sul, o operariado industrial e urbano encontrou sempre enorme dificuldade para organizar-se autonomamente, levando a que o movimento social tivesse como eixo, sobretudo, a luta dos camponeses sem terra, dos bancários e do professorado da rede pública estadual. Nos últimos anos, regrediu fortemente a mobilização dos sem terra, em favor de outras regiões, e a dos bancários, golpeados pela racionalização do setor. Sob a depressão do mundo do trabalho na sociedade sulina, o PSOL regional nasceu e cresceu especialmente nas classes médias, sob a hegemonia da ex-deputada Luciana Genro e de sua tendência, o MES (Movimento Esquerda Socialista), de fortes traços colaboracionistas.
 
Ficando e saindo do PT
 
Luciana Genro elegeu-se como deputada estadual, pelo PT, em 1995, com 24 anos, alavancada pelo prestígio eleitoral de seu pai, Tarso Genro, então prefeito da capital. Integrava então pequena tendência estudantil que rompera com a Convergência Socialista (depois PSTU), que se negara a abandonar o PT. Nos anos seguintes, construiu-se como liderança da juventude, estudantes e professores da rede pública radicalizados.
 
Com a formação do PSOL, consolidou a hegemonia de seu grupo no Sul e estendeu a influência a outros estados, já com prática eleitoreira, uma das razões que levou ao afastamento das principais direções combativas do professorado que confluíram no MES. A crescente social-democratização do MES levou-o a priorizar o denuncismo da corrupção, fenômeno agora endêmico no Rio Grande, marginalizando a organização e propaganda classista e socialista. Viveu ativamente a proposta dos Fóruns Mundiais, de transformar a sociedade no interior do capitalismo. Apoiou acriticamente o nacional-populismo da Venezuela, Bolívia e Equador.
 
O MES defende agora que as revoluções do norte da África não ultrapassem as reivindicações democrático-burguesas. "Sendo revoluções democráticas, aqueles que levantam a bandeira do socialismo estão absolutamente descontextualizados. Hoje não há a possibilidade de criar uma alternativa de massas sob esta bandeira" (psol50.org.br). Os importantes escores eleitorais de Luciana Genro, para deputada federal, em 2002 e 2006, e à prefeitura de Porto Alegre, em 2008, facilitaram a arregimentação de vocações parlamentares e administrativas, algumas realizadas, outras à espera de realização. 
 
De braços dados com o Capital
 
Em outubro de 2008, candidata à prefeitura da capital, Luciana Genro foi de chapéu na mão receber cem mil reais da GERDAU, o principal grupo transnacional rio-grandense, ferindo os próprios estatutos do PSOL. Roberto Robaina, presidente do PSOL sulino, dirigente máximo do MES, companheiro desde sempre de Luciana, afirmou nada haver de mais na iniciativa e estar pronto para outras contribuições semelhantes. A militância socialista e de esquerda do PSOL pataleou, bufou e o coreto seguiu adiante.
 
Nas passadas eleições, o MES contava com votação estrondosa a reeleger Luciana Genro ao Congresso, Roberto Robaina à assembléia e, talvez, mais um ou dois deputados. Durante o período anterior e na campanha, Luciana, Robaina, Pedro Ruas e o MES centraram obsessivamente a agitação política na denúncia da corrupção do governo Yeda Crusius, que dera muito pano pra manga, nesse relativo.
 
Ao igual que nos anos anteriores, a campanha de Luciana comportou infindáveis referências, fotos, afagos e declarações positivas a Tarso Genro, ex-ministro da Educação e, a seguir, da Justiça, candidato a governador. A deputada pousou sentada no colo do papai, para constrangimento da militância psolista. Propondo tratar-se de relação entre pai e filha, apareceu na propaganda televisiva de Tarso Genro ao governo!
 
A ver navios!
 
Nas últimas eleições, o resultado eleitoral do MES no Sul foi pífio. O escore eleitoral de Luciana Genro despencou, perdendo 56 mil votos em relação à eleição anterior, não se elegendo para a Câmara. Robaina, que se dava por eleito, sequer morreu na praia. Foram muitas as razões apontadas do desastre. A fragilidade do programa do PSOL sulino, centrado na denúncia da ex-governadora, esvaziou-se com a sua rejeição eleitoral, que a relegou a uma humilhante terceira colocação.
 
A orientação política de Luciana, nos últimos anos e na campanha, afastou-a do eleitorado mais combativo. Ela também perdeu contato com o eleitorado mais jovem e menos politizado que, ajudado pelo refluxo social, votou na candidata progressista que parecia expressar a juventude, segundo os padrões mais alienados: ou seja, a candidata mais simpática, mais jovem, mais bonita. Já quarentona e com filho da idade de seu ex-eleitorado, Luciana viu-se substituída por Manuela D’Ávila, do PC do B, de 30 anos, rosto bonito e cabeça vazia, cuja campanha estava centrada na palavra de ordem: "E aí, beleza?". Manuela obteve o mais alto escore eleitoral na eleição – quase 500 mil votos!
 
Para o militante social, o parlamento é posição transitória e eventual. Luciana ressentiu-se fortemente da perda de mandado mantido havia dezesseis anos. A situação de cidadã comum comprometia toda uma futura trajetória, em direção à prefeitura da capital e, quem sabe, ao governo do estado. A derrota agravava-se com a lei anti-nepotismo que proíbe candidatura de parentes até segundo grau de governantes. Por quatro – e, caso Tarso Genro se reeleja, oito – anos, encontrava-se proibida de concorrer a cargo legislativo, em partido sem administração de prefeituras e governos.
 
Filha não é parente!
 
Apenas derrotada, Luciana saiu em campanha, buscando apoios, até mesmo entre políticos direitistas, para reivindicar o direito de candidatar-se, em 2010, a vereadora da capital para, certamente em 2012 tentar retorno à câmara. Tratava-se de convencer a Justiça Eleitoral de sua excepcionalidade, pois não é do partido de seu pai e diz não depender politicamente dele. Qualquer coisa como "filha" não é "parente", na esteira da campanha brizolista dos anos 1960, de que "cunhado" não era parente – como realmente não é!
 
Mas retomar a campanha, após dois anos longe dos holofotes e recursos permitidos pelo parlamento, concorrendo contra dois vereadores de sua tendência, requer indubitavelmente recursos ingentes, impossíveis de obter em tendência de muitos capa-preta e pouquíssimos soldados e peões. Sob o signo da Gerdau, Luciana saiu em busca do dinheiro onde está, esquecendo que toda a mulher de César não deve apenas ser honesta, como deve parecer honesta! E vice-versa.
 
Sob o guarda-chuva de cursinho pré-vestibular para cem alunos carentes, "Projeto Emancipa", arrancou financiamento quase milionário de grandes empresas privadas. Piorando tudo, sediou inicialmente sua empresa em duas salas do mais tradicional colégio público estatal sulino, o Júlio de Castilhos, agora sob a autoridade paterna. Um prato feito para a revista Veja, que lhe dedicou página inteira, na edição de 9 de março, espinafrando a ela, ao seu pai, ao PSOL e à esquerda revolucionária e classista, que nada tem a ver com essa operação estranha.
 
O Capital e a Revolucionária
 
O curso é gratuito para os alunos, mas quem paga a coordenação de Luciana, os professores, o aluguel etc. são cinco grandes empresas capitalistas, entre elas a PANVEL (rede de farmácias), o ZAFFARI (rede de supermercados), a Icatu Seguros. Em resposta à revista Veja, Luciana jura que os, segundo parece, quinhentos mil reais recebidos, a fundo perdido, não se devem ao "prestígio" do governador, seu pai, mas ao seu "próprio prestígio"!
 
Luciana não esclarece por que representante de partido que se define anticapitalista e pró-socialista possui suficiente prestígio junto ao grande capital para arrancar-lhe, segundo parece, quinhentos mil reais, ou seja, cinco mil reais por cada aluno! Mensalidade superior à de muito curso de pós-graduação estrito senso! Dinheiro que apoiará, no melhor dos casos, indiretamente, a campanha de Luciana, em 2012. No Sul, a Justiça Eleitoral proibiu os tradicionais albergues gratuitos que deputados sulinos mantinham para professores e alunos do interior, por constituir aliciamento disfarçado de voto.
 
A operação pode não ser ilegal – sobretudo se Luciana não concorrer a cargo em 2012. Tratar-se-ia apenas de mais uma das doações, apoios e facilitação de negócios, de grandes empresas para familiares de políticos poderosos que querem agradar. Como a que celebrizou o Lulinha Júnior. Isso porque não há dúvida de que, se Yeda ou Fogaça tivesse vencido, Luciana não obteria as graças da Secretaria da Educação para o aluguel das salas e o financiamento das grandes empresas, com destaque para a Icatu Seguros, que opera através do Banrisul, banco público estadual.
 
Privatizando a Educação
 
Mesmo legal, a operação é certamente imoral, do ponto de vista dos princípios defendidos pelo mundo do trabalho, pelo PSOL e, até há algum tempo, pela ex-deputada e pelo MES. Financiando políticos, o capital compra-lhes a simpatia, a condescendência, e os favores, já que "é dando que se recebe". Por que esse processo não funcionaria também no caso de Luciana Genro?
 
A ex-deputada rompe, igualmente, com o princípio da luta pela escola livre, gratuita e pública, impulsionando a suplência das carências públicas com a benevolência do capital, sempre interesseira. Fere gravemente a proposta do não envolvimento do Estado, através de seus funcionários e bens, em iniciativas privadas. Ou seja, contribui para a privatização do Estado.
 
Sobretudo, Luciana Genro dá enorme tiro no seu próprio pé. Nenhum juiz eleitoral vai acreditar que não é favorecida, mesmo materialmente, pela posição de seu pai como governador, com ou sem o conhecimento do mesmo. Tarso Genro se afastou há muito das posições classistas e socialistas, mas jamais rompeu com o respeito republicano estrito aos bens públicos. Salvo engano, até agora ele não se pronunciou sobre a operação empresarial de sua filha, à sombra do Estado.
 
Mário Maestri é historiador.