terça-feira, 12 de abril de 2011

Caminhos para a descolonização da América Latina






110411_jornadas-2011IELA - [Elaine Tavares]

A sétima edição das Jornadas Bolivarianas discutiu este ano um tema árduo e muito pouco palatável: a presença imperialista na cultura latino-americana.

A idéia foi dar um panorama de como o império vai consolidando sua forma de ser na capilaridade da vida cotidiana através da escola, dos meios de comunicação, da vestimenta, da comida, da indústria do entretenimento, da moda etc... Como um conta-gotas, misturando-se aos diversos aspectos da vida cultural, grande parte das vezes sem usar a força bruta, o modo de vida do império toma conta das gentes, até parecer ser natural esquecer os mitos locais, os pratos típicos, a maneira de viver, as brincadeiras, e até a língua. A cultura, expressão material da realidade humana, na América Latina, segue cativa do colonialismo e a tarefa de descolonização mostra-se, às vezes, grande demais, para os países que continuam sem uma alternativa política nacional/popular. Nestas Jornadas, discutiu-se a situação dramática da América Central, as tentativas de mudança na América do Sul e a proposta ainda solitária de Cuba, que desde há 50 anos busca a criação de um pensamento próprio, baseado na cultura nacional. O totalmente novo ficou por conta da perspectiva indígena, que desde os anos 90, assoma na América Latina, recuperando elementos chave de sua cultura ancestral.
Poucas pessoas desconhecem a força da cultura estadunidense na vida da América Latina. Desde que proclamaram sua independência da Inglaterra, em 1776, os Estados Unidos da América do Norte decidiram trilhar o caminho da rapina e da dominação. Como foi o primeiro país a realizar o feito de se libertar da colônia em todo o território do "mundo novo", nada poderia ser mais natural que os demais povos o vissem como um exemplo a ser seguido. Mas, o que veio logo depois já deveria ter servido como um sinal de que as famosas "13 colônias", agora livres e unificadas, também iriam arvorar-se a disputar o cargo de donas do mundo. A doutrina do "destino manifesto" - que tinha por princípio defender a idéia de que os colonos norte-americanos de origem calvinista teriam sido eleitos por Deus para comandar todos os povos da terra, com a missão civilizatória de ocupar os territórios situados entre os oceanos Atlântico e Pacífico – levou à trágica conquista do Oeste, com a destruição de nações indígenas inteiras. O massacre dos povos locais expandiu o território e aguçou a pretensão de fazer daquele país um império. Naqueles dias, os governantes já faziam uso de armas químicas como bem mostra essa célebre frase do presidente Benjamin Franklin "Se faz parte dos desígnios da Providência extirpar esses selvagens para abrir espaço aos cultivadores da terra, parece-me oportuno que o rum seja o instrumento apropriado. Ele já aniquilou todas as tribos que antes habitavam a costa". E assim foi.
Poucos anos depois da independência, já no século XIX, outra doutrina expansionista iria ganhar corpo, a doutrina Monroe, que pregava a idéia de a "América para os americanos". No discurso, os governantes estadunidenses afirmavam a necessidade da independência das terras latino-americanas, mas, na verdade, tudo o que queriam era anexá-las aos seu círculo de poder, já configurado como imperialismo.
Assim, em 1820, quando a América Latina dava consequência ao sonho de libertação, o governo estadunidense invadia o que hoje é o Texas, ocupando também a Califórnia, o Novo México, Nevada, Arizona e Utah. Com esta segunda incursão expansionista (a primeira foi a que anexou os territórios indígenas do centro do país) roubava grande parte das terras mexicanas, conformando pela força das armas e da destruição o seu atual território. Nesse sentido, em 1850 os EUA já eram um império, no modo de operar e na política de disseminação da cultura de dominação.
Terminada a operação de ocupação das terras mexicanas, os dirigentes do país se voltaram para a América Latina recém liberada. As guerras de independência já tinham sido travadas e os estados-nação começavam a formar-se. Era necessário, na visão dos estadunidenses, que alguém ficasse no comando e esse alguém eram eles, coisa já definida por deus no destino manifesto. É a Nicarágua, em 1855, o primeiro país a ser ocupado pelas tropas do já formado império, pelas mãos do mercenário William Walker que desembarca e se faz presidente, distribuindo terras aos fazendeiros do sul dos EUA. Depois, em 1898, é a vez de Cuba, tirada da Espanha e transformada em quintal estadunidense, um protetorado que durou até 1933. No mesmo ano de 98, o Havaí também é ocupado, sendo colônia até hoje.
Quando o século XX nasceu, trouxe com ele a sede de expansão do império estadunidense, que nunca mais parou. Intrigas muito bem urdidas lograram a separação do Panamá da Colômbia e lá ficou o pequeno país, com a riqueza de um canal ligando os dois oceanos, nas mãos do império. Como bem lembrou Rafael Cuevas Molina, da Universidade Central da Costa Rica, presente nas Jornadas Bolivarianas, a América Central passou a ser um espaço estratégico para os Estados Unidos e desde então, nunca mais conseguiu caminhar com as próprias pernas. A cada tentativa de garantir soberania, os países eram invadidos e submetidos aos desejos dos governantes estadunidenses.
Pouco depois da Primeira Guerra Mundial, num mundo devastado pelo conflito, os Estados Unidos iniciaram outra estratégia de dominação na América Latina. A proposta era conquistar corações e mentes pela via da cultura. Enriquecido pela indústria da guerra, os EUA deram linha para a indústria cultural. Inicia-se um período de ouro no cinema, no qual os filmes eram produzidos para propagandear o "modo americano de ser". O mito do mundo livre, das oportunidades para todos, da democracia, vai se construindo e invadindo a América Latina. O círculo do far west (corrida para o oeste) demoniza os índios, transformando-os em assassinos sanguinários, enquanto os cowboys (vaqueiros) era pintados como heróis. A completa inversão de valores. Em toda América Latina esses produtos culturais se popularizaram e em pouco tempo as crianças sabiam mais de John Wayne do que de seus vizinhos. Estava aberta a veia da dominação "limpa". Igualmente, os açucarados filmes românticos mostravam o jeito de ser da sociedade estadunidense, gravando nas cabeças latino-americanas o desejo de ser como aqueles heróis que infestavam os cinemas de todos os países. No campo da comunicação de massa, o rádio também reproduzia a propaganda do "mundo livre" e com ela, introduzia nos países as megaempresas que iriam dominar economicamente cada pedaço desse chão. No Brasil, o repórter Esso, noticiário diário, era um fenômeno de audiência. Só o que se noticiava ali, sob a chancela da Esso, era considerado verdade.
E é essa forma de dominação - que ocorre num terreno aparentemente invisível - que as Jornadas Bolivarianas se propuseram discutir. Compreender qual o alcance desta política ainda hoje nos países latino-americanos e encontrar as brechas para sair do atoleiro da dominação cultural.

A América Central

Na franja de terra que separa as Américas do Sul e do Norte, a vida nunca foi fácil, desde a dominação espanhola. Depois, com a influência estadunidense, as condições de vida das gentes só pioraram. Sem os "patrões" europeus, os países da América Central e do Caribe passaram a ser dominados pelas grandes empresas estadunidenses, principalmente as chamadas bananeiras. No controle da economia, elas ainda tinham pleno domínio da política e elegiam e derrubavam governos ao seu bel prazer. Eram um estado dentro do estado. Assim, as regiões que antes eram espaços das culturas Caribe, Chicha, Maya, Kuna e outras, passam a receber mão de obra escrava vinda da Jamaica, já inoculada com a cultura britânica, a qual tinha absorvido com a colonização. Com o enclave bananeiro, o modo de vida que passou a ser hegemônico foi o estadunidense. "O planejamento urbano, a religião, a cultura, a arquitetura, a língua, tudo estava ligado com a vida nos Estados Unidos", diz o professor da Universidade Nacional da Costa Rica, Rafael Cuevas Molina.
Segundo ele foi Augusto César Sandino o primeiro a se insurgir contra essa dominação que já extrapolava o campo do território e se espraiava pela via da cultura. Quando no início do século XX os EUA invadem outra vez a Nicarágua para tomar conta do canal e desde ali frear a revolução mexicana, Sandino aparece com seu "pequeno exército louco", dando vida a um nacionalismo latino-americanista e antiimperialista, capaz de mostrar que seria possível a vida sem as megaempresas e sem o domínio do mal nominado "Tio Sam" (já que irmão de nossa pátria ele não, como dizia Alí Primera). E é essa idéia que vai incendiar as lutas populares nos anos 60 por toda a América Central com o surgimento dos movimentos armados de libertação nacional.
O resultado de décadas de lutas insurgentes, praticamente todas derrotadas, é o que se vê na realidade atual. A constituição de um Estado terrorista, que torna naturalizada a cultura da violência e da discriminação. Os anos 80, que marcaram o derrocamento das propostas revolucionárias, ainda trouxeram consigo as reformas neoliberais, esgarçando um pouco mais o frágil tecido social. O resultado disso é uma identidade cultural esfacelada, o que torna ainda mais fácil a dominação. E, se a bananeiras já não tem mais poder na América Central, o espaço foi tomado pelas empresas maquiladoras, que seguem trabalhando no mesmo velho ritmo: trabalho precário, produção de coisas que as gentes jamais usarão e esgotamento total das pessoas. O que sobra é a violência, a pobreza, o crime organizado e as gangues juvenis. Sem horizontes de futuro, os jovens ou se matam ou migram. E, de um jeito ou de outro vão se transformando em uma cópia mal feita dos jovens empobrecidos do centro do poder. "Na América Central, hoje, os ricos sonham com Nova Iorque, os de classe média sonham com Miami e os pobres com o que vêem na TV. Isso é uma mostra segura de que há um mal estar cultural. Todos, de alguma forma, imitam a vida dos EUA".

A comunicação é a via de transmissão do imperialismo

Se nos anos 30 os EUA iniciaram sua corrida às mentes do povo latino-americano pode-se dizer que isso segue sendo feito num ritmo frenético. Usando a velha tática da repetição, a indústria cultural estadunidense continua hegemônica em praticamente todos os países. O cinema exporta o modo estadunidense de ser, os programas de televisão, as séries, os desenhos animados, as teorias culturais, os movimentos artísticos, a estética, a filosofia. Tudo é colonizado. E, os meios de comunicação bombardeiam o cérebro das pessoas diuturnamente. Romper essa dominação colonial requer mudanças drásticas na vida dos países, ensina o jornalista uriguaio/venezuelano Aram Aharonian, um dos formuladores da proposta da Telesur – um canal de televisão latino-americano.
Para Aram é impossível mudar qualquer coisa nos países que vivem dominados culturalmente, se não houver primeiro uma mudança radical de paradigma. "Há mais de 40 anos que não temos uma teoria nova na comunicação. Tudo copiamos dos gringos". Essa formulação teórica tem de ser própria, fruto da realidade local. Já basta de pensar com a cabeça mergulhada num mundo que não é nosso.
Mas, fazer isso tampouco é fácil, uma vez que o império, ao ser confrontado com novas teorias e paradigmas usa de todas as armas para absorver o impacto, usando-as para contra-atacar. "Nós pudemos ver isso quando na Telesur colocamos nossos apresentadores de maneira bem informal, como são os latino-americanos. Não passaram dois meses e lá estava a CNN em espanhol copiando nossa forma de fazer, e usando isso contra nós". Assim, nossa tarefa parece ser cada dia mais desafiadora.
Aharonian adverte que se no mundo da arte, da cultura e da comunicação estamos cada dia mais enfeitiçados pelo sistema hegemônico, a única saída parece ser liberar os 1.400 cm cúbicos de cérebro que cada um tem. É a capacidade de pensar com a própria cabeça que definirá o futuro. Aram mostrou que mesmo a comunicação dita alternativa, que fez sucesso em determinado momento, acabou se domesticando. "As rádios comunitárias se profissionalizaram e não são mais o espaço popular, os sindicatos se conformem em ter apenas um boletim, a palavra está sequestrada pelas empresas. Estamos cegos de nós mesmos. Não sabemos quem somos e não cremos em nós mesmos. É isso que precisa mudar".
Uma comunicação libertadora precisa ter o compromisso de manejar ela mesma a agenda informativa. Os espaços alternativos não podem ser marginais, precisam almejar ao universal. O grande desafio é deixar de copiar conteúdos e formas. Criar o próprio estilo e a partir daí criar redes de comunicação que possam chegar ao maior número de pessoas. "Nós vivemos a síndrome da praça sitiada. Ocorre que ela não está mais sitiada, nós podemos romper o sítio. Mas, para isso, temos de criar nosso próprio paradigma. Já basta de choramingar e de gritar palavras de ordem. Vamos produzir conteúdo de qualidade e formar redes. Assim, superaremos a dominação cultural".No campo do cinema a ordem parece ser a mesma. Sérgio Santeiro, cineasta brasileiro que bebe na proposta estética e filosófica de Glauber Rocha - como se pode ver no seu deslumbrante curta metragem "Paixão" (http://youtu.be/AS3Oep2cCsw ) - desafia a se constituir uma estética própria, fora dos padrões "roliudianos", que dêem conta da realidade latino-americana e que provoquem o desconforto gerador da mudança. Glauber, de alguma forma, conseguiu isso no seu tempo, mas a nova geração precisa encontrar outro caminho, original. Outra estética para vencer a lógica da violência e do medo imposta pela arte cinematográfica estadunidense. Igualmente a proposta do pensamento crítico e próprio, na senda do ensinamento de Simón Rodriguez, que pregava como um louco a máxima: "Basta de imitar. Há que criar".

A proposta cubana

Faz mais de 50 anos que a pequena ilha caribenha, Cuba, busca um caminho original. Até o triunfo da revolução, a mídia, comandada pelos EUA, confundia o mundo e os cubanos sobre o que passava no país. Na ilha se podia viver em inglês, como lembrou o vice-ministro da Cultura, Fernando Rojas. Depois não. A revolução, pela proposta de liberdade que carregava, foi definindo uma identidade que até então só aparecia nos escritos de José Martí. Hoje, depois de acertos e erros, a cultura cubana segue rechaçando o neocolonialismo que se expressa na invasão do ar via televisão desde Miami, mas busca estabelecer uma relação dialógica com a cultura dos EUA. "Nós acreditamos que é preciso conhecer muito bem essa cultura para podermos conformar um anti-imperialismo. Mas, a proposta é enfrentar a colonização cultural com o melhor do pensamento socialista, fazendo assomar a rumba, o guagancon e o balé nacional de Cuba".
Segundo Fernando, a ilha de Cuba já superou os tempos em que se buscava importar a experiência socialista do leste. Atualmente, incorporados os elementos da afro descendência, dos indígenas, dos descendentes dos colonizadores, as forças políticas do campo e a cultura popular urbana, tem-se a cultura cubana, tomada por uma liderança coletiva anticolonialista e anti-imperialista. "Em Cuba há uma questão que nos parece vital. Todas as pessoas têm acesso à cultura. Nós não dizemos: crê. Dizemos: lê. E, com isso, os cubanos recebem gratuitamente o melhor da cultura, inclusive a dos EUA. Fundamos escolas de arte em todo o país, na montanha e na capital. E esse acaba sendo nosso desafio. Afinal, temos de pensar em como sustentar isso economicamente".Em Cuba as políticas culturais significam esforços estatais e públicos. Vem daí a Casa das Américas, a escola de Cinema e outras milhares de instituições de cultura de base. "Como tudo isso custa, agora andamos pensando em cobrar do público para ver um teatro, por exemplo. Mas é coisa simbólica, nada comparada ao mundo capitalista no qual é praticamente impossível aos trabalhadores freqüentarem o teatro".
A polêmica em Cuba agora passa pela discussão do direito de autor. Segundo Fernando, existem manifestações da cultura popular que precisam de proteção e que não podem ser apropriadas por este ou aquele. São construções coletivas. "Mas esse ainda é um debate ainda inicial". Para o vice-ministro, a originalidade cubana está no fato de o governo ter uma política cultural que possibilita a liberdade criativa e a garantia do acesso ilimitado à cultura. É uma aposta na qualidade da vida das pessoas, pois, com isso, elas se tornam pessoas melhores. Ele ressaltou que Cuba vive sob bloqueio econômico, mas não cultural. Todo o lixo produzido no império chega às casas cubanas e, por isso, esse campo de batalha é tão importante. Vencer aí é fazer meio caminho no rumo da sustentação da nova sociedade.

O paradigma andino

Se a questão do enfrentamento do império passa pelo desafio de sermos originais, o mundo indígena tem muito a contribuir para esse debate. Foi o que mostrou a socióloga aymara Silvia Rivera Cusicanqui na sua exposição. Segundo ela os índios há muito que deixaram de ser estudo de caso e sua cosmovisão assoma como uma proposta de vida absolutamente diferente da que foi pregada pelo mundo ocidental, europeu. Muito antes da invasão já havia muitas culturas aqui nestas terras, com histórias milenares, que, mesmo sob a dominação, mantiveram-se vivas e hoje saem da obscuridade, oferecendo novas formas de viver no mundo. Sua originalidade consiste justamente na diferença radical. Enquanto a filosofia ocidental busca o uno, o mundo andino, por exemplo, trabalha com a idéia do terceiro incluído: ou seja, os contrários podem sim conviver e se encontrar. Silvia defende a idéia de que a cultura é um sistema de significados que não tem como passar pelo mercado. É o imaginário, o desejo das comunidades, mas ao mesmo tempo é o que se torna real pela força da arte humana. Segundo ela, na Bolívia, a esquerda não tem falado em imperialismo ao discutir as mazelas do tempo presente. "Falam em pós-colonialismo, mais encobrindo do que revelando o que está por trás de tudo isso". Ela conta que os povos indígenas da Bolívia sabem muito bem que a identidade naquele país é uma questão política de primeira grandeza. E tanto que conforme são os dirigentes mudam as cifras sobre a porcentagem de indígenas no país. Já houve momentos em que a porcentagem foi de 19%, pulando no ano seguinte para 68%. O trágico é que o racismo contra o índio é algo internalizado também na esquerda, até porque suas fileiras são formadas por gente que tem o pensamento colonizado também.
Nos Andes, as comunidades vivem sob outro paradigma, fora da dualidade maniqueísta ocidental. "Para nós é fundamental o conflito das dualidades, porque isso é a energia que nos move". Entre os indígenas das comunidades andinas a cultura é parte da forma de organizar a vida. Nos tempos mais remotos, mesmo as obras públicas sempre eram precedidas de grandes festas, de encontros com dança, música, imagens e gestos, tudo recheado do simbólico e do sagrado. Mesmo a religião é múltipla, com deuses de muitas faces, que são anjos e demônios ao mesmo tempo, porque é esse conflito que move a vida. Coisas bastante difíceis de serem assimiladas pelos cérebros formatados na mentalidade ocidental. Palavras desconcertantes para os 1.400 cm cúbicos de racionalidade instrumental. "Para nós o futuro é algo que está atrás, porque não sabemos dele, o passado é algo que está à frente, pois dele temos conhecimento. E o presente é o que de fato importa". Para Silvia a tarefa de descolonização dos estados na América Latina é árdua e difícil, mas esta é uma batalha que precisa ser travada. Derrubar o colonialismo, o racismo, o preconceito. No território que serpenteia junto à cordilheira dos Andes, as comunidades estão descobrindo suas potencialidades, estão recuperando suas formas de organizar a vida. "É bobagem pensar que não podemos ser modernos. Podemos sim. Comunitários e modernos. Temos nossos paradigmas e nossa cultura. Mas, o fato é que nós vimos o mundo ao contrário. Nossa lógica é "al revés". Isso precisa ser entendido e respeitado".

Desafios do presente

A experiência indígena pode parecer desconcertante num primeiro momento, já que coloca o mundo de pernas para o ar. Mas a idéia de convivência dos contrários parece ser a única possível num mundo onde as diferenças se afirmam cada vez mais. Transitar neste território conflituoso e desde aí criar o novo é também desafiador. A nova sociedade sonhada pela racionalidade marxista precisa levar em conta esse paradigma indígena, precisa incorporar as demandas destas comunidades que assomam cada dia com mais força. Desconhecer esse mundo é apostar no fracasso. Assim já foi com Simón Bolívar, quando subestimou a força dos lañeros venezuelanos e foi derrotado por eles. Só depois de voltar do Haiti, com os ensinamentos dos revolucionários negros sobre a necessidade de incorporar a cultura local é que Bolívar logrou a confiança dos indígenas e, com eles, abriu caminhos para a libertação. Foi assim com Artigas, na Banda Oriental, que, conhecendo e respeitando a cosmovisão Charrua, trouxe os indígenas para fazer real o sonho da liberdade. Tanto Bolívar quanto Artigas respeitaram de verdade a forma de viver dos indígenas, não fizeram mero uso instrumental, como se vê por aí. Esse pode ser o segredo.
Em toda a América Latina vive e pulsa uma Abya Yala, um espaço de propostas que exigem mudanças radicais na forma de raciocinar sobre a realidade. Outra episteme, outra forma de conhecer. Não necessariamente precisa-se aceitar toda a cosmovisão que vem destes povos milenares aqui nestas terras, mas fundamentalmente há que se incorporar essas formas de ver a realidade. Os indígenas querem estar no mundo, fazer parte da planetização da vida boa e bonita. Mas eles precisam ser compreendidos na sua cultura. Assim, no conflito destes contrários, mundo indígena X mundo colonizado, talvez se possa chegar ao novo tão esperado. Uma América Latina descolonizada, livre do imperialismo, aberta para o presente.

Elaine Tavares é jornalista e coordenadora do IELA/UFSC.

A estranha lógica do futebol

<br /><b>Crédito: </b> ARTE PEDRO LOBO SCALETSKY

Crédito: ARTE PEDRO LOBO SCALETSKY
A lógica do mundo do futebol é muito particular.
 
Juremir Machado da Silva no Correio do povo
 
Um treinador que sai muito mal de um clube, de onde foi demitido por ter sido, na opinião de torcedores e comentaristas, incompetente, pode ser contratado por outro clube como a salvação da lavoura.

Nenhuma empresa séria usaria esse método de avaliação profissional. Um executivo que leva uma empresa à falência ou a ficar muito longe de alcançar as suas metas dificilmente seria contratado para tirar outra empresa do buraco. Ou seria? O paradoxo do futebol é este: a culpa é sempre do treinador, tanto que, se os resultados não chegam, ele é demitido, mas, ao mesmo tempo, ele nunca é culpado de coisa alguma, pois, com frequência, é imediatamente contratado por outro clube, o qual aposta que, noutro contexto e com outros jogadores, tudo poderá dar certo. O culpado é prontamente absolvido. Que coisa!

Veja-se o rendimento dos principais treinadores brasileiros: quantos anos faz que Luxemburgo não ganha um título? Mesmo assim, continua recebendo uns R$ 500 mil por mês. E o Felipão? Dizem que ganha mais de R$ 1 milhão por mês. Não fatura um título desde 2002.

O futebol é talvez o único campo profissional em que nove anos de fracassos permitem novos contratos milionários e a renovação permanente da confiança em perdedores do presente que vivem de glórias do passado.

Celso Roth teve 56% de aproveitamento no Inter. Até uma porta, com o elenco do Inter, teria aproveitamento equivalente. Ganhou uma Libertadores da América em apenas quatro partidas. Qualquer outro treinador, ganhando R$ 20 mil, obteria o mesmo rendimento ou algo muito próximo.

Falcão, quanto treinou o Inter, se não me engano, ficou nos 50% de aproveitamento. O porteiro do clube alcançaria o mesmo desempenho. O que explica tão altos salários para tão baixos desempenhos? O futebol é irracional e o dinheiro é do clube, uma associação. O Inter contratou Falcão para resolver seus problemas.

Falcão não trabalha como treinador há, sei lá, 15 anos.

Como pode um profissional que não exerce sua atividade há 15 anos ser chamado para resolver uma situação de crise? Alguém chamaria um cirurgião parado há 15 anos para uma operação de alto risco? O pensamento mágico comanda o futebol. O Grêmio tem Renato, seu principal ídolo, como técnico. O Inter precisa ter Falcão. O futebol, a exemplo da vida, na frase do grande argentino Borges, gosta de leves simetrias. Não, no caso, de simetrias escancaradas.

O único técnico que pode apresentar um currículo recente com uma relação sólida entre salário e resultados é Muricy Ramalho. Ganhou quatro campeonatos brasileiros em cinco anos. Poderiam ser cinco em seis anos se o Inter não tivesse sido roubado em favor do Corinthians em 2005. Técnico existe para ser o sargento que policia a galera, jovem e rica, sedenta de sexo e emoções caras, e a motiva para vencer. Jogadores de futebol de clubes como o Inter ganham uma fortuna para empatar ou perder. A vitória custa prêmio extra. O treinador leva uma banana para escolher entre dois esquemas: 4-4-2 ou 3-5-2. É barbada. Falcão vai botar time faceiro. Pode se consagrar ou dar vexame. Ou alcançar 58% de aproveitamento. Uau!

segunda-feira, 11 de abril de 2011

Hugo Chávez para presidente do Peru? Zero Hora acha que sim


Alexandre Haubrich
O imperialismo, enquanto braço forte do capitalismo moderno, é a principal bandeira da velha mídia internacional quando a pauta é política exterior. No Brasil, da mesma forma como ocorre nos outros países da América Latina, o mundo ideal da mídia (ainda) dominante é aquele no qual o próprio país é entregue aos mais poderosos (EUA, por exemplo, no nosso caso) ao mesmo tempo em que domina e explora os países menos “competitivos”. Assim as empresas – nacionais e internacionais – que financiam esses conglomerados de mídia seguem crescendo, avançando sobre a autonomia das nações menos desenvolvidas, e os grupos de comunicação crescem junto. Ao mesmo tempo, é sabido que as influências políticas externas acabam, de uma forma ou de outra, chegando aos países próximos. A guinada à esquerda da América Latina na última década segue esse caminho.
É nesse contexto que cada eleição em qualquer país latino-americano é motivo de preocupação para os conglomerados de mídia brasileiros. A consciência de autonomia dos povos, o anti-imperialismo, o fortalecimento do Estado e o empoderamento do povo vêm, obviamente, acompanhados da perda de força dos grupos que historicamente dominam a política, a economia e, por consequência, a mídia. E é isso o que, em medidas diferentes, tem acontecido na América Latina. A tendência é flagrante.
A estratégia é aplicada em conjunto pela grande imprensa internacional aliada ao capital multinacional: vincular os candidatos de esquerda a Hugo Chávez ao mesmo tempo em que constroem em Chávez a imagem do demônio. Essa última construção já foi mostrada aqui no Jornalismo B por diversas vezes.
Nos mais diversas veículos da direita brasileira, Chávez é ridicularizado, apontado como louco, ignorante, ansioso por mais poder, autoritário, ditador, cruel, etc etc etc. Raríssimas reportagens dão conta das mudanças na sociedade venezuelana, na política do país, enfim, do que acontece de importante por lá. Apenas intriguinhas aparentemente infantilóides, que, no desespero por atacar os avanços da esquerda latino-americana, infantilizam os leitores ou a audiência como forma de criar uma imagem estereotipada do presidente venezuelano.
Agora, a eleição no Peru. No último domingo aconteceu a votação em primeiro turno, com o candidato da esquerda, Ollanta Humala, aparecendo à frente nas pesquisas, seguido de Keiko Fujimori (filha do ex-presidente, hoje presidiário, Alberto Fujimori), com Pedro Paulo Kuczynski e o atual presidente Alejandro Toledo logo atrás. Como o jornal gaúcho Zero Hora destacou o dia do pleito? Uma cobertura de duas páginas: na segunda, uma entrevista com Humala; na primeira, a matéria “Peru vota temendo o chavismo”.
Nessa reportagem, da página 16, Keiko é citada uma vez, assim como Kuczynski. Toledo é lembrado em duas oportunidades. O foco do texto é Humala, cujo nome é citado nove vezes. Mas e o que dizer de Chávez? Seu nome e a palavra “chavismo” estão presentes no texto em sete oportunidades. Chávez é mais importante para a eleição do Peru do que os próprios candidatos? Como disse o sociólogo Cristóvão Feil no domingo, “Quem ler Zero Hora (grupo RBS) de hoje vai achar que Hugo Chávez é candidato a presidente do Peru”.
Na entrevista com Humala, três das cinco perguntas se referem às ligações do presidenciável com Chávez ou com o PT! Sim, porque há também uma retranca à matéria principal que conta a participação de brasileiros na campanha do candidato esquerdista. O texto tenta dar a entender que o PT estaria intervindo nas eleições peruanas.
A cobertura de Zero Hora é inteira um desrespeito à autonomia e à capacidade do povo peruano de escolher seus representantes com independência. Usa a eleição peruana para voltar a atacar Chávez e colocar sobre os movimentos de esquerda da América Latina a sombra de uma grande conspiração “subversiva”, “autoritária”.
Em tempo: ao menos no primeiro turno a tentativa de amedrontar e despolitizar o processo não funcionou, e Humala venceu. Vai enfrentar Keiko Fujimori no segundo turno. A mídia internacional segue perdendo batalhas na América Latina. E os ataques deverão ser cada vez mais violentos, é o instinto do animal acuado.

*Ressalte-se que a cobertura da Folha de S. Paulo não foi por esse caminho. Nas edições de sábado e domingo, trouxe reportagens equilibradas e realmente informativas.

*Sobre quem são os candidatos à presidência do Peru, vale a leitura de artigo do Altamiro Borges.

Seduc-RS apresenta concepção da proposta de Alfabetização e Letramento nos anos iniciais do Ensino fundamental


O secretário de Estado da Educação, Prof. Dr. Jose Clovis de Azevedo, e o diretor pedagógico da secretaria, Sílvio Rocha, lançaram nesta segunda-feira (11) um desafio à Instituições de Ensino Superior (IES) do Estado: participação em um grande movimento de mobilização a favor da alfabetização e do letramento no Rio Grande do Sul, que constituem “prioridade zero” da gestão, segundo Azevedo. Este movimento, destaca o secretário, visa atender às diretrizes nacionais para os anos iniciais: a progressão continuada. “Somos favoráveis à medida, mas para implantá-la, precisamos qualificar o processo na rede estadual”, frisou.

A proposta, apresentada em encontro do Fórum Estadual Permanente de Apoio à Formação Docente, que representantes de Instituições de Ensino Superior (IES), está em formatação para ser aplicada aos três primeiros anos do ensino fundamental de nove anos e nas duas primeiras séries no ensino de oito anos. “Nosso objetivo é formatar um programa que atenda aos alunos que têm necessidades diferenciadas, acompanhando sua progressão. Não se trata de promoção automática”, frisa o diretor pedagógico da secretaria, Sílvio Rocha.

Boas práticas
 
A formatação do Programa de Alfabetização e Letramento a ser implantado nas escolas de ensino fundamental estaduais resultará do levantamento de Boas Práticas Educativas e, a partir delas, do diálogo com as IES que desejarem ser parceiras. A Secretaria de Estado da Educação (Seduc) trabalha com dois eixos de ação: um emergencial, para 2011, começando em maio; e outro a ser formatado ao longo deste ano, para o triênio 2012-2014. As IES terão até o final de abril para manifestar o interesse em integrar o Programa. A partir da primeira semana de maio, a Seduc levará a proposta às Coordenadorias Regionais de Educação (CREs).
 
Estrutura
 
De acordo com Sílvio Rocha, a proposta em construção busca superar o trabalho nas séries iniciais com as duas áreas, português e matemática. Para isso, a Seduc propõe que os alunos tomem contato – desde o primeiro ano/série – com um conhecimento que articule quatro áreas: as linguagens, a matemática, as ciências naturais e as ciências da natureza. Além disso, a ideia é avançar a concepção metodológica, trabalhando o contexto sociocultural dos alunos, regionalmente. Rocha especifica que a organização da metodologia em âmbito estadual pode ser construída em parceria com as IES. A estrutura do trabalho terá a coordenação estadual, a cargo da assessoria da Seduc; uma comissão permanente de estudo, reunindo representação da Coordenadoria Regional da Educação (CRE), dos municípios e IES; 30 multiplicadores, que seriam indicados pelas CREs, e tutores em cada município, a serem indicados pelas IES. Esses tutores seriam responsáveis pelo acompanhamento – pelo menos semanal – das atividades nas escolas, estabelecendo a relação “prática-teoria” entre academia e escola.

A definição da proposta curricular e pedagógica resultará, portanto, da caracterização das boas práticas educativas e do conceito de qualidade social da educação e da formação dos alfabetizadores. “Além disso, é preciso desdobrar as quatro grandes áreas de trabalho no cotidiano desses três primeiros anos de alfabetização e desenvolver uma dinâmica para acompanhar o aluno e as condições em que ele avança na aprendizagem; não se trata de um ‘vai pra frente’ sem trabalho efetivo“, destaca Rocha. O secretário Jose Clovis ressalta que o ciclo de alfabetização deve se constituir como uma política de estado conceitualmente definida a partir da pluralidade cultural do Rio Grande do Sul. 
 

Investimento nuclear no Brasil é determinado por ‘poderoso (e corruptor) lobby’

Escrito por Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação  do Correio da Cidadania 
 
O planeta voltou a se deparar com o fantasma nuclear após o terremoto seguido de tsunami que varreu principalmente o nordeste japonês, causando posteriormente a explosão e vazamento dos reatores da usina de Fukushima. O governo japonês tenta tranqüilizar o público, sempre reiterando que os níveis de radiação no ar se encontram aceitáveis, mas não há quem se satisfaça com tais explicações e durma em paz.

 
Para falar desse tema cada vez mais polêmico em todas as discussões energéticas, o Correio da Cidadania entrevistou o mestre em Engenharia Nuclear e doutor em Energia Joaquim Francisco de Carvalho. Para o também ex-diretor industrial da Nuclen (atual Eletronuclear), Fukushima apenas revela que a indústria nuclear continua "uma caixa preta no mundo inteiro", o que se evidencia flagrantemente neste caso, pois, mesmo com o devido acompanhamento da AIEA (Agência Internacional de Energia Atômica), não se evitaram as falhas e negligências da empresa responsável.
 
No que se refere ao Brasil, Joaquim Francisco considera um despautério o investimento em novas usinas nucleares, uma vez que nossa matriz hidro-eólica folga em servir às necessidades de consumo interno. No entanto, o lobby nuclear, com espaço limitado nos países centrais, encontra guarida exatamente em países onde as instituições e políticos são mais vulneráveis. E num ministério aparelhado por Sarney não podemos esperar investimentos sensatos e voltados ao interesse público.
 
A íntegra da entrevista pode ser lida a seguir.
 
Correio da Cidadania: Como o senhor analisa o desastre nuclear de Fukushima, à luz dos fatos até agora revelados e admitidos pelo governo japonês?
 
Joaquim Francisco de Carvalho: O desastre de Fukushima confirma o que muita gente já sabe: a indústria nuclear é uma "caixa preta" no mundo inteiro.
 
Correio da Cidadania: O senhor comunga da convicção de boa parte da opinião pública de que o governo japonês sonega ou segura informações sobre a real situação da radiação e seus efeitos? É possível crer que a radiação do ar e do mar esteja em níveis aceitáveis e não nocivos à saúde humana, como alega o governo nipônico?
Joaquim Francisco de Carvalho: A Tokio Electric and Power Company (TEPCO), empresa proprietária da usina, é a responsável pela operação e pela segurança daquela instalação. O governo japonês é o responsável pela supervisão e controle da aplicação das normas de segurança das instalações nucleares. Assim, direta ou indiretamente, empresa e governo são responsáveis e todos omitem informações, de um lado para salvar o que resta da reputação da empresa, de outro lado para evitar que o pânico tome conta da população.
 
Correio da Cidadania: É possível projetar se a radiação emitida após o acidente pode ter alcance em outros continentes, de forma a afetar os respectivos ambientes e habitantes?
Joaquim Francisco de Carvalho: O vazamento de produtos de fissão pelas fendas abertas nas contenções de pelo menos um dos reatores de Fukushima vai diluindo na atmosfera, de modo que as retombadas em outros continentes não devem ultrapassar os limites toleráveis. O problema é mais sério no tocante aos mares próximos, nos quais os peixes, que constituem a principal fonte protéica do povo japonês, poderão ficar impróprios para o consumo. Mas eu ainda não tive acesso a dados quantitativos sobre isso.
 
Correio da Cidadania: Diante de incidente tão trágico, pode-se também questionar o papel da AIEA, a Agência Internacional de Energia Atômica, na regulação e acompanhamento das atividades nucleares?
 
Joaquim Francisco de Carvalho: A AIEA cumpre bem a sua função de regulamentar e acompanhar as ativadades nucleares no mundo. No caso de Fukushima, os jornais informam que a TEPCO falsificou documentos de vistorias técnicas, realizadas na usina. Ignoro se era da alçada do órgão fiscalizador do governo japonês ou da AIEA verificar se os documentos eram falsos.
 
Correio da Cidadania: Voltando o foco ao Brasil, como localiza a energia nuclear em nossa matriz energética? Pode ser, de algum modo, relevante, especialmente pelo fato de ser considerada uma energia limpa?
 
Joaquim Francisco de Carvalho: O Brasil pode cobrir seu consumo de energia elétrica apenas com fontes renováveis de energia primária, sem apelar para usinas nucleares. Isto não significa que se devam negligenciar as aplicações de radioisótopos na medicina, na agricultura, na indústria e na pesquisa científica. Estas aplicações têm importância crescente e deveriam ser tratadas prioritariamente nos orçamentos federais e estaduais, para ciência e tecnologia.
 
Correio da Cidadania: Quanto à estruturação e funcionamento do setor ligado à energia nuclear no Brasil, o que pensa da Eletronuclear, criada em 1997 com a finalidade de operar e construir as usinas termonucleares? Qual é o percentual de energia consumida no país pelo qual ela se responsabiliza atualmente?
 
Joaquim Francisco de Carvalho: A Eletronuclear, que na origem se chamava Nuclen (Nuclebrás Engenharia S.A.), era uma binacional, com 49% de capital alemão e 51% de capital brasileiro. Havia um diretor superintendente (que era um político), um diretor técnico (um engenheiro da KWU-Siemens), um diretor industrial (um engenheiro brasileiro) e um diretor comercial (um economista-contador alemão). No começo, era uma empresa razoavelmente enxuta e eficiente. Agora é 100% estatal e, com a moda da politização e aparelhamento do governo, eu não sei como vai aquela empresa.
 
Correio da Cidadania: E quanto à CNEN (Comissão Nacional de Energia Nuclear, uma autarquia federal vinculada ao Ministério de Ciência e Tecnologia), trata-se hoje do órgão mais relevante na regulação do setor? Tem uma composição e estruturação adequadas ao cumprimento deste papel?
 
Joaquim Francisco de Carvalho: O próprio ministro Mercadante respondeu a esta pergunta. Segundo o noticiário, há duas semanas ele demitiu toda a diretoria da CNEN. Foi o único que procedeu corretamente nessa história. Agora vamos ver se os diretores saem mesmo, ou se vão conseguir "apoio político" para continuarem "pendurados" nos empregos.
 
Correio da Cidadania: Neste sentido, o que dizer do fato de a usina de Angra 2 estar há mais de uma década em atividade sem a devida licença ambiental, além de envolvida até hoje em contestações do Ministério Público sobre a legalidade de sua atuação?
 
Joaquim Francisco de Carvalho: Tem-se por aí uma boa idéia da irresponsabilidade dos supostos responsáveis pelo setor, pela conivência e omissão da CNEN, que deveria fiscalizar e controlar as instalações nucleares. E pela atitude ilegal da Eletronuclear, que opera uma usina sem a devida licença do órgão competente.
 
Correio da Cidadania: Como imagina que nosso governo vá proceder de agora em diante com relação às políticas de energia nuclear? Acredita que haverá apoio para a expansão do setor, como declaram alguns integrantes do próprio governo?
Joaquim Francisco de Carvalho: A julgar pelas declarações das autoridades que deveriam ser responsáveis pelo setor, não vai mudar nada.
 
Correio da Cidadania: Por que tamanho ‘interesse’ do Brasil em investir em energia nuclear, a despeito de todos os riscos e dificuldades de manutenção, da existência de um enorme potencial hidro-eólico, além da incógnita sobre os rejeitos nucleares no futuro?
 
Joaquim Francisco de Carvalho: Na falta de alternativas para gerar energia elétrica, alguns países europeus, além do Japão e dos Estados Unidos, optaram pelas usinas eletro-nucleares, que custam muito caro, portanto geram eletricidade a custos que não podem ser suportados pelas indústrias desses países, que dependem desse insumo.
 
Uma das formas encontradas para amenizar esse problema foi a de ratear os custos dos investimentos nucleares em mercados expandidos sobre países que, embora dotados de fontes naturais abundantes, como a energia hidrelétrica, eólica e solar, são governados por políticos despreparados, que se deixam convencer pelo poderoso (e corruptor) lobby da indústria nuclear, que vende facilmente a ilusão de que "esse é o cara e esta é a solução".
 
Veja só a leviandade com que o ministro de Minas e Energia dizia em sua primeira gestão que o Brasil iria implantar 58 mil megawatts nucleares até 2030 e agora afirma que o Brasil vai construir quatro usinas nucleares no Nordeste...
 
Correio da Cidadania: Como o senhor enxerga a atual composição do Ministério das Minas e Energia? Imagina que o governo Dilma vá se distinguir, de alguma forma, do de Lula?
 
Joaquim Francisco de Carvalho: No tocante e este ministério, o atual governo é um prolongamento do anterior. Muitos cargos – a começar do ministro, um modestíssimo "jornalista-sarneysista" do Maranhão – foram preenchidos mediante indicações políticas, sem nenhum compromisso com a qualificação do nomeado. Basta dizer que o grande "padrinho" desse ministério é o lamentável senhor Sarney, personagem dos mais deletérios da cena política brasileira.
 
Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
 

domingo, 10 de abril de 2011

Revolta árabe: o sucesso das revoluções que fracassam

Ainda esse ano, haverá eleições na Tunísia e no Egito. Essa é mudança tremenda no mundo árabe. Eleições não resolvem todos os problemas, mas marcam novos parâmetros. Outros terão de ser conquistados. Novas formas de participação, novos espaços para participação, novos sonhos democráticos que acabarão por enterrar, de vez, os restos rançosos do neoliberalismo. Nem todas as transferências de lucros do petróleo do mundo substituem a vida social e politicamente digna. O artigo é de Jiajay Prashad.

 
1. Partilhas

A OTAN errou o tiro e atirou contra “rebeldes” em Benghazi. Os comandantes da OTAN dizem que a culpa é das fronteiras que não existem. Difícil saber quem é quem, dizem, líbios “rebeldes” ou líbios regulares. A Líbia, afinal está dividida entre leste e oeste.

Gaddafi continua no comando no oeste. Seu filho Saif-al-Islam disse à BBC que a família não se interessa por partir para a Arábia Saudita, Zimbabwe ou Venezuela. Saif e o irmão, Saadi, apresentaram proposta segundo a qual o pai consideraria deixar a posição em que diz que nunca esteve, desde que os filhos mantenham posição de autoridade (Gaddafi père realizou impressionante pluricentralização familiar do poder, chamando-a de descentralização). O ex-deputado dos EUA Curt Weldon, ao que parece, disse a Gaddafi que poderia continuar como chefe honorário da União Africana e que seus filhos poderiam concorrer à presidência em futuras eleições na Líbia. Os “rebeldes” de Benghazi enfureceram-se: não é o que esperavam. (...)

O lento avanço da “rebelião” é causa de tensões entre os líderes “rebeldes”. Os três principais líderes “rebeldes” odeiam-se: Khalifa Hefter, que deixou o estado de Virginia, EUA, direto para Benghazi, é inimigo figadal do ex-ministro do Interior general Abdul Fattah Younis e também de Omar el-Hariri. Dois dos líderes políticos dos “rebeldes” Mahmoud Jibril (que foi assessor muito próximo de Saif-al-Islam, no processo de privatização da Líbia) e Ali Essawi (ex-embaixador na Índia) permanecem na Europa, trabalhando para obter apoio internacional para o “Conselho Provisório”. Mas o descontentamento alastra-se, e o gambito de abertura da negociação de Trípoli não agradou a ninguém. Jibril e Hefter acalentam sonhos grandiosos, embora não tão grandiosos quanto os da comunidade dos direitos humanos. (...)

As terras do petróleo delimitam a fronteira entre as duas partes do país, junto às mutantes dunas do deserto, entre Ras Lanuf e Brega. Haja acordo, haja partilha ou haja divisão da Líbia, é indispensável que se decida quem se responsabilizará pela segurança dos oleodutos e gasodutos e pela partilha dos lucros entre leste e oeste. São assuntos espinhosíssimos, dos quais ninguém fala.

2. Democracia

Há muitos anos, um amigo meu conversava com E. P. Thompson, o historiador marxista. Meu amigo, Dilip Simeon (autor de excelente romance, Revolution Highway), lastimava os limites da “democracia burguesa”. Dilip conta que Edward Thompson pediu-lhe que parasse de repetir o adjetivo “burguesa” ao lado de “democracia. “Esse adjetivo, ao lado de “democracia”, dá-me náuseas” – teria dito Edward Thompson. Esse adjetivo humilha a democracia.

O impacto dos desenvolvimentos das revoluções são quase imprevisíveis.

A contrarrevolução esmagou as revoltas de 1848, mas não lhe quebrou nem o espírito nem a dinâmica. A cultura do feudalismo morreu depois de o feudalismo estar morto, derrotada por novas identidades sociais. “Nossa era, a era da democracia, está raiando”, escreveu Frederick Engels em fevereiro de 1848. Um operário, pistola em punho, invadiu a Câmara Francesa de Deputados e declarou “Deputados, nunca mais! Somos os senhores.” A contrarrevolução foi feroz. “A burguesia, plenamente consciente do que faz, conduz guerra de extermínio contra eles”, comentou Marx. Mesmo assim, 1848 abriu um novo horizonte social, contra a servidão e a subserviência, marcou o meio do caminho entre a promessa de uma revolução anterior (1789) e a possibilidade de outra, depois (a Comuna de Paris de 1871). A Europa nunca mais voltou à era do chicote e das perucas empoadas. Aquele tempo havia passado.

Inúmeras outras revoluções tiveram impacto semelhante, quebrando a espinha dorsal de formas velhas de claustrofobia social, mas sem inaugurar imediatamente novas formas de liberdade social. O 1905 e o 1917 russos fortaleceram o ânimo dos movimentos anticoloniais. Gandhi, ainda advogado na África do Sul, escreveu, sobre a revolução russa de 1905: “os tumultos atuais na Rússia são grande lição para nós. Os trabalhadores russos e os servos declararam greve geral e pararam. Nem todo o poder do czar da Rússia conseguirá fazer os trabalhadores voltarem ao trabalho à ponta de baioneta. Nem o canhão reina, sem a cooperação dos humilhados.” Se os trabalhadores russos e os camponeses podiam fazer greve contra os autocratas, os indianos, os indonésios, os sul-africanos, os persas também podiam. A ideia de não-cooperação de Gandhi chegou-lhe via São Petersburgo.

O projeto dos movimentos de libertação nacional do Terceiro Mundo emergiu, cabeça erguida, nos anos 1920s; e saiu derrotado do palco da história nos anos 1980s. Mesmo assim, também aqui, parte do legado pesado do colonialismo fora despachado para sempre, porque os países, dali em diante, aprenderam que teriam de encontrar soluções suas para problemas seus, que só eles podem encontrar (nessa linha, Fanon escreveu em 1961, “O Terceiro Mundo hoje encara a Europa, como massa colossal cujo projeto tem de ser o de resolver os problemas para os quais a Europa não foi capaz de encontrar solução”). A desigualdade no Sul Global desmente qualquer sucesso que esse projeto suponha ter alcançado, mas, mesmo assim, o formidável exemplo da era do Terceiro Mundo ainda dá amparo e apoio a tantas lutas que germinaram no Sul.

Mais perto do nosso tempo, os levantes em todo o globo, em 1968, de Tóquio à Cidade do México, de Paris a Karachi, pareciam não ter tido grande impacto. Os sonhos revolucionários de trabalhadores e estudantes lá ficaram, degradados, quando tantos meiaoitistas trocaram os slogans da revolução pelas griffes da hora, boemia ou cursos de desenvolvimento pessoal e ganância. Mesmo assim, o impacto social de 1968 é imenso, se por mais não for, pelos horizontes que abriu nas lutas pela igualdade de direitos entre gêneros e raças. Muitos dos meiaoitistas migraram, sim, para o mundo das corporações e academias, e esse afinal, sempre foi o limite daquela revolução. Mas nem por isso apagaram-se das lutas sociais os novos compromissos com a igualdade.

Ainda esse ano, haverá eleições na Tunísia e no Egito. Essa é mudança tremenda no mundo árabe. Uma das muitas lições que ficaram para o mundo depois do experimento dos sovietes e das lutas de libertação nacional é que nos dois casos subestimou-se o anseio dos povos por vida democrática. Não há dúvidas de que Gaddafi transferiu para a população da Líbia parte importante dos ganhos do petróleo; a Líbia vive com altos padrões de desenvolvimento humano avaliado por indicadores de desenvolvimento (o que, sim, diminuiu nos últimos dez anos). Mas nem todas as transferências de lucros do petróleo do mundo substituem a vida social e politicamente digna. Verdade essa que os emires do Golfo um dia também aprenderão, ensinada pelo povo. Eleições não resolvem todos os problemas, mas marcam novos parâmetros. Outros terão de ser conquistados. Novas formas de participação, novos espaços para participação, novos sonhos democráticos que acabarão por enterrar, de vez, os restos rançosos do neoliberalismo.

Não se sabe o que acontecerá na Líbia. O comandante do AFRICOM general Carter Ham já anda dizendo que, por menos que a ideia atraia os EUA, a ocupação por terra talvez seja a única via para ajudar dos “rebeldes”. Guerra prolongada, desse tipo, favorecerá a contrarrevolução, porque enfraquecerá a posição dos que buscam via política, para fazer florescer os novos horizontes criados pelos levantes populares. Como sempre, ante qualquer impasse, os que só sabem de guerras, querem mais guerras. Outros procuram um cessar-fogo, negociações e meios para fazer render o que já foi obtido, que é considerável.

As terras árabes nunca mais serão como antes.

Tradução: Coletivo Vila Vudu

Fonte: http://www.counterpunch.org/prashad04082011.html

Ollanta Humala era tido como o mais fraco no início

Janaína Figueiredo – O GLOBO, via blog do Saraiva

Ollanta Humala/AP

BUENOS AIRES – As últimas pesquisas confirmaram a vantagem de Humala, com 30% das intenções de voto, e colocaram, pela primeira vez, a filha do ex-presidente Fujimori (1990-2000) em segundo lugar, com 22%. No entanto, a distância entre Keiko, PPK (17%) e Toledo (15%) ainda é estreita (Castañeda ficou fora da parada), considerando-se a margem de erro e os indecisos. Com isso, qualquer um dos três candidatos poderia comemorar a passagem ao segundo turno. No Peru, dizem analistas locais, tudo é possível. Em meados de 2010, o Prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa disse que uma eleição entre Keiko e Humala seria como optar entre “câncer e Aids”. Na época, Toledo era o favorito e ninguém acreditava que o cenário ironizado pelo escritor poderia virar realidade.
” O Peru é uma caixa de surpresas, mas é verdade que Toledo cometeu muitos erros que favoreceram Humala e Keiko (Carlos Novoa) “
Confiante nas primeiras pesquisas, o ex-presidente adotou pose de vencedor antes do tempo e mergulhou em disputas de baixo nível com PPK e o presidente García, deixando espaço para Humala e Keiko crescerem sem obstáculos. A estratégia foi um desastre, e hoje Toledo está pagando as consequências.
- O Peru é uma caixa de surpresas, mas é verdade que Toledo cometeu muitos erros que favoreceram Humala e Keiko – assegurou o jornalista Carlos Novoa, do “El Comercio”.
A lista de tropeções do ex-presidente inclui ataques e contra-ataques em discussões públicas com García e PPK. Durante a campanha, a imprensa local informou, por exemplo, que no governo Toledo o Executivo comprou 1.753 garrafas de uísque. O ex-presidente ficou furioso e acusou o presidente de estar por trás “de uma palhaçada”. Toledo chegou a dizer que “Alan García é uma ameaça para a democracia”. Quinta passada, Toledo, que nos últimos dias usou sua artilharia contra Humala, convocou García para “defender a democracia” diante da possibilidade de um segundo turno entre o nacionalista e Keiko.
Carlos Bruce, chefe de campanha do ex-presidente, reconheceu que a estratégia de confronto adotada por Toledo foi equivocada. Mas o mea-culpa chegou tarde.
- No Peru, muitos eleitores acabam ficando do lado das vítimas – argumentou Novoa.
Para o analista político Augusto Álvarez, “os candidatos mais moderados acabaram se dando bem”. De fato, Humala e Keiko evitaram entrar nas briguinhas entre Toledo, PPK e García. Ambos os candidatos privilegiaram o contato com a população e decidiram baixar as armas. Na última semana, Toledo cansou-se de denunciar o “perfil autoritário” de Humala, questionar sua proposta para os meios de comunicação e seu suposto vínculo com o presidente da Venezuela, Hugo Chávez. A resposta do candidato nacionalista, com assessoria de estrategistas brasileiros que exportaram para o Peru o vitorioso “Lulinha paz e amor”, foi serena:
” Os peruanos expressam essa insatisfação votando num candidato antissistema (Toledo) “
- A esperança vai derrotar o medo.
Em fevereiro, Humala era considerado o adversário menos perigoso, já que tinha, com muito esforço, 10% das intenções de voto. Seus rivais não se interessavam por seu plano de governo e o nome de Chávez mal era mencionado. Após semanas de bate-bocas sem sentido, o silencioso dirigente nacionalista subiu nas pesquisas e mudou radicalmente o cenário eleitoral.
Na reta final, Humala virou o principal alvo de ataques e Chávez entrou na jogada. Toledo começou a denunciar uma “ameaça à democracia”, apesar de reconhecer que o militar reformado conseguiu captar o voto dos peruanos que se sentem excluídos de um modelo econômico com taxas de crescimento entre 7% e 8%.
- Os peruanos expressam essa insatisfação votando num candidato antissistema – declarou o ex-presidente.
Hoje, o candidato considerado por Toledo, PPK e o governo García um perigo para uma democracia recuperada há apenas 12 anos é o único que tem a tranquilidade de contar com os votos necessários para ir ao segundo turno. Seus adversários sofrerão até o último minuto.

Vida e morte do bêbado equilibrista

Escrito por Otto Filgueiras   no Correio da Cidadania
 
Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos...
A lua, tal qual a dona do bordel, pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel
E nuvens! Lá no mata-borrão do céu chupavam manchas torturadas
Que sufoco! Louco!
O bêbado com chapéu-coco fazia irreverências mil prá noite do Brasil
Meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil com tanta gente que partiu num rabo de foguete
Chora a nossa Pátria mãe gentil, choram Marias e Clarisses no solo do Brasil...
Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente
A esperança... dança na corda bamba de sombrinha e em cada passo dessa linha pode se machucar...
Azar! A esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar...
(O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc)
 
O operário aposentado Antonio Norival Soave, ex-militante da Ação Popular (AP), morreu na madrugada de 5 de abril de 2011 no Hospital das Clínicas de Porto Alegre e foi finalmente jogado para fora da ponte da vida.
 
Seu corpo foi cremado. Mas os sonhos desse operário que viveu rebelde, bêbado e equilibrista não serão queimados pelos antigos companheiros que continuam acreditando na esperança, vermelha, socialista.
 
Ele estava com a vida por um fio, lutando e tentando ludibriar a morte. Nos últimos sete meses, por conta de um tumor cancerígeno em um dos pulmões, ele emagrecera mais de dez quilos e perdera toda a massa muscular do lado esquerdo do corpo, pois o tumor inflamou, cresceu e pressionava algumas vértebras junto à coluna cervical.
 
A biópsia comprovou que se tratava do tumor maligno carcinoma. E os médicos que o atenderam disseram não ser recomendável cirurgia e sim tratamento com rádio e quimioterapia, mas sem possibilidade de cura.
 
Quando ele ainda estava morando no ABC paulista falava com Soave por telefone todos os dias e num domingo de setembro do ano passado fui até Santo André, onde ele residia sozinho numa velha casa na rua Guadalupe 490, no bairro Parque das Nações, e constatei sua magreza esquelética, sentindo muitas dores e com o braço esquerdo praticamente paralisado. Vi um homem de 63 anos, mas que aparentava ter mais de 75, fragilizado pela doença.
 
Na visita encontrei sua filha Semíramis e a neta Camile, de um ano e meio de idade, que vieram de Porto Alegre dispostas a levar o pai e o nono para a capital do Rio Grande do Sul e assim tentar tratá-lo da terrível moléstia no Hospital das Clínicas gaúcho.
 
Por conta da sua aparência envelhecida, doente e pelas informações que obtive com a filha e irmãs de Soave, fiquei com a certeza de que o operário estava sem força física para prolongar o tempo que lhe foi concedido nesta terra.
 
No Hospital das Clínicas de Porto Alegre ele foi tratado com quimioterapia e radioterapia, até que os médicos identificaram que o câncer se ramificara para o cérebro, onde surgiram outros dois tumores malignos.
 
Um dos muitos personagens do livro que estou terminando de escrever sobre a organização de esquerda Ação Popular, Antonio Norival Soave nasceu em família operária, em Santo André, na região metropolitana paulista, em 24 de agosto de 1947. É o único varão entre quatro irmãs – Iracema, Aparecida, Tereza e Hilda -, filhos de José Soave e Roma Carolina Fantanesi, já falecidos e descendentes de migrantes do norte da Itália que vieram para o Brasil no final do século 19.
 
Em Santo André, a família Soave construiu os seus sonhos, primeiro vendendo frutas, verduras e legumes em feiras livres, e depois com macacões nas fábricas do ABC paulista, onde José Soave e Roma Carolina tornaram-se operários e trabalharam quase quarenta anos nas caldeiras e tecelagens de indústrias têxteis.
 
Da mesma forma que os pais operários, e morando em Santo André, no ABC paulista, desde que nasceu, Antonio Norival Soave começou a trabalhar ainda menino. Com apenas 11 anos já levantava às 3 horas da madrugada para trabalhar na feira. Depois, já com 14 anos tornou-se operário na linha de montagem da Pirelli, onde fazia moldes de colchões de espuma látex. A empresa também produzia pneus, cabos, fios, entre outros produtos.
 
Em 1 de abril de 1964 ele tinha 16 anos, quando o então presidente da República, João Goulart, foi deposto pelo golpe civil-militar e trabalhava na Cooperativa da Rhodia. Um ano depois foi demitido por participar de greve por melhores salários, mas em seguida conseguiu trabalho como preparador de máquinas na metalúrgica Cima (Companhia Industrial de Materiais Automobilísticos) e se filiou no Sindicato dos Metalúrgicos de Santo André.
 
A partir de 1966, além de atuar no movimento sindical, ele começou a militar na organização política de esquerda Ação Popular, que também atuava entre os operários no ABC paulista, com origem principalmente na JUC (Juventude Universitária Católica), e tinha sido fundada em Salvador (BA), em 1963.
 
A partir de 1966 é que ele foi entender melhor as coisas da política e a mecânica da vida, suas leis e contradições. Ele viveu aquele momento do Brasil da resistência ao golpe militar e em 1968 já estava trabalhando como inspetor de qualidade na Chrysler do Brasil, em São Bernardo do Campo, quando explodiram greves, manifestações estudantis e populares contra a ditadura pelo país. Na Chrysler ele participou da organização de paredes por melhores salários e melhores condições de trabalho. E teve atuação destacada no Primeiro de Maio de 1968, na Praça da Sé.
 
Em Santo André, ele e seus camaradas começaram a organizar o primeiro de maio de 1968 com uma passeata de 20 mil pessoas pelas ruas da cidade. E depois alugaram vários ônibus para trazer os trabalhadores de São Bernardo e de Santo André até a Praça da Sé, onde já estavam operários de Osasco, de São Paulo e do interior paulista, além de muitos estudantes.
 
Soave estava à frente dos operários da Mercedes Benz que romperam o cerco dos agentes do DEOPS, na Praça da Sé, e ocuparam o palanque onde estavam os representantes da ditadura, entre os quais o então governador Abreu Sodré, seu Secretário de Finanças, Delfim Neto, e os pelegos das diretorias do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e da Federação dos Metalúrgicos, que tinham preparado uma comemoração oficial e festiva para o regime militar.
 
No momento em que os operários ocuparam o palanque, pelegos e representantes da ditadura saíram correndo, o microfone foi entregue ao líder sindical da oposição e militante da AP José Nanci, que discursou e denunciou o regime militar, conclamando o povo a enfrentá-lo, exigindo democracia e liberdades democráticas, liberdade de atuação sindical e o fim do arrocho salarial.
 
Depois os operários saíram em passeata, com milhares de pessoas, até a Praça da República, onde o líder metalúrgico de São Bernardo do Campo, José Barbosa, militante da AP e recentemente falecido, também discursou, denunciando a ditadura.
 
A partir de então José Nanci, o operário José Barbosa, além de outros sindicalistas de oposição e muitos de militantes da AP passaram a ser perseguidos pela polícia política da ditadura. Ainda assim eles conseguiram realizar greves na Chrysler, na Mercedes Benz, na Volkswagen, na Wyllis Overland do Brasil que hoje é Ford, e em algumas outras indústrias menores do ABC, onde a AP tinha atuação.
 
A repressão não tardou a chegar. No final daquele ano de 1968, quando a ditadura baixou o Ato Institucional número 5, centenas de operários foram sendo demitidos e perseguidos no ABC, a exemplo do que aconteceu com Antonio Norival Soave, em janeiro de 1969, quando foi dispensado da Chrysler por causa das lutas que ele e outros operários estavam levando adiante.
 
O cerco da ditadura aos movimentos sindical e popular ficou ainda pior com a nova Lei de Segurança Nacional que entrou em vigor em setembro de 1969, e depois que Emílio Garrastazu Médici foi escolhido para ser o novo general-presidente da ditadura desde dezembro daquele ano. Além disso, em maio de 1970, a famigerada Operação Bandeirantes, de São Paulo, foi legalizada e passou a se chamar DOI-CODI.
 
Organizados em várias capitais brasileiras, os DOI-CODI se tornaram uma espécie de campos de concentração, de tortura e assassinatos praticados pelo regime militar e, junto com o Centro de Informações da Aeronáutica (CISA), Centro Nacional de Informações da Marinha (CENIMAR) e Serviço de Informação do Exército (CIEX) e os DEEOPS, estabelecem um regime ainda mais sanguinário contra os brasileiros, contra as organizações políticas de esquerda e os movimentos de oposição à ditadura.
 
Era o tempo do "milagre econômico" dos militares, que precisavam de um Brasil sem resistência à nova etapa de brutal acumulação capitalista no país. Um "milagre" baseado no arrocho dos salários dos operários, com o aviltamento de suas condições de vida, com a retenção ao máximo da mais-valia do trabalho produzido.
 
Depois de demitido da Chrysler, Antonio Norival Soave fez testes de inspetor de qualidade na Volkswagen, passou com as notas mais altas, passou nos testes da Wyllis Overland do Brasil, mas não foi admitido em nenhuma delas porque havia uma lista negra entre as indústrias, que perseguiam os operários que ousavam lutar. Muitas vezes ele chegou a entrar na fila de emprego da Mercedes Benz, mas o chefe do departamento de pessoal já o tinha identificado e sempre o mandava sair.
 
Apesar de toda a repressão, o operário e seus companheiros continuaram a lutar e o preço disso foi a perseguição e prisão de centenas e centenas de pessoas pela polícia política da ditadura.
 
Antonio Norival Soave estava entre elas e a sua prisão ocorreu em 20 de outubro de 1973, quando foi seqüestrado por agentes do DOI-CODI, sob armas, por volta das 19 horas, na rua Oratório, no bairro Parque das Nações, em Santo André, próximo à casa dos seus pais. Naquele dia tinha passado na casa da família, que estava sendo vigiada e não sabia.
 
Depois de imobilizado pelos agentes do Exército, foi colocado num carro e levado para a rua Tutóia, onde funcionava uma delegacia de polícia do estado de São Paulo e utilizado pelo DOI-CODI, também chamado de OBAN - Operação Bandeirantes -, que aplicava os meios mais hediondos de tortura para obter informações e liquidar a oposição ao regime militar.
 
Lá chegando, ele foi colocado em um compartimento debaixo de uma escada que servia de depósito dos cavaletes usados na tortura do pau-de-arara. Pouco tempo depois, foi retirado desse compartimento por dois torturadores com tapas e socos e levado até a sala de torturas.
 
Sob o comando do "Capitão Ubirajara", chefe da equipe B da OBAN, e com a permissão do então major do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra, comandante do DOI-CODI e conhecido como "o carniceiro da rua Tutóia", ele foi colocado na "cadeira do dragão", onde ficou levando choques elétricos nos dedos e braços. Em seguida, foi despido e colocado no pau-de-arara onde por toda a noite os torturadores intercalavam socos e pontapés, batiam com palmatória nas nádegas e aplicavam choques elétricos nos testículos, pênis, anus, dedos das mãos e dos pés, na garganta, língua, orelhas e no interior dos ouvidos, quando perfuraram seus tímpanos.
 
No início da manhã, após dois desmaios, ele foi medicado por um médico do Exército e levado para uma sala totalmente vedada e com iluminação por 24 horas, lá ficando completamente isolado durante uns 40 dias, e saindo somente para a sala de torturas.
 
Depois desse período, foi levado para a cela X 1, onde estavam outros presos, e os interrogatórios e tortura psicológica continuaram. Em 29 de novembro de 1973, conduziram-no para prestar o depoimento formal no DEOPS e no mesmo dia trazido de volta para o DOI CODI, onde continuou incomunicável até os dez primeiros dias do mês de dezembro daquele ano, quando a sua prisão foi finalmente admitida e os torturadores permitiram que sua família o visitasse.
 
Na segunda quinzena de dezembro de 1973, foi transferido com outros companheiros para o presídio do Hipódromo, onde continuou preso sem assistência médica, o que agravou o problema nos ouvidos perfurados durante as torturas.
 
Somente em março de 1974 é que a ditadura encaminhou para a 1ª Auditoria da 2ª Circunscrição Judiciária Militar a denúncia contra ele e outros presos, acusados e processados por militância na organização política de esquerda Ação Popular Marxista Leninista do Brasil.
 
Em 9 de abril daquele ano foi qualificado e interrogado na Auditoria Militar, quando denunciou as torturas a que foi submetido, denunciou o desaparecimento e assassinatos dos seus companheiros Paulo Stuart Wright, José Carlos da Mata Machado e Gildo Macedo Lacerda, militantes da Ação Popular, mortos pela ditadura de Emílio Garrastazu Médici.
 
Em agosto de 1974, no julgamento do tribunal militar, ele foi condenado a dois anos de prisão e, portanto, reconduzido ao presídio do Hipódromo para cumprir a pena, de onde foi transferido depois para a Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru), e mais adiante para o Presídio da Justiça Militar Federal (Romão Gomes), que funcionava no interior do Quartel da Polícia Militar do Estado de São Paulo, no bairro Barro Branco.
 
Finalmente, na segunda quinzena de maio de 1975, após julgamento no Superior Tribunal Militar (STM), que em sessão realizada em 16 de maio de 1975 decidiu reduzir sua pena para 16 meses de reclusão, Soave foi libertado depois de passar 19 meses na prisão, incluindo o período em que esteve encarcerado e torturado no DOI-CODI.
 
Quando saiu da cadeia Antonio Norival Soave estava com uma perda acentuada de audição, problema que foi relatado por mim na época em carta dirigida ao advogado Hélio Navarro, em 13 de maio de 1975, que denunciou o fato no STM e entregou a carta ao Congresso Nacional. Posteriormente, em 1978, trecho da carta foi publicado pela revista IstoÉ.
 
Depois de sair da prisão, Soave se apaixonou e casou com Nilce Azevedo Cardoso, também ex-militante da AP, e mudou para Porto Alegre (RS), onde tiveram dois filhos, Semíramis e Paulo.
 
Nesse período, Soave combateu com o povo brasileiro na luta da anistia, pela volta do irmão do Henfil com tanta gente que saiu... Ainda atuou na organização e fundação do Partido dos Trabalhadores e trabalhou no jornal O Companheiro.
 
Mas o seu casamento com Nilce fracassou e, embora continuassem amigos e solidários, eles se separaram. Morando sozinho em Porto Alegre, com problemas de saúde, incluindo a perda de muitos dentes, deprimido e praticamente sem amigos, Soave voltou para Santo André em 1997, foi morar com seu pai José, que estava muito doente e com o mal de Alzheimer.
 
Em junho de 1998, o operário sofreu um acidente quando pintava a casa, teve o globo ocular esquerdo perfurado por uma faca e desde então estava completamente cego de um olho e enxergando apenas 40% com o olho direito, assim mesmo com ajuda de óculos e lente de contato.
 
De lá para cá o pai José terminou morrendo, velhinho, mas sempre amparado e bem cuidado pelo filho e filhas até o instante final.
 
Mais uma vez morando sozinho, embora sempre visitado por suas irmãs, pelos filhos Semíramis, Paulo e a ex-mulher Nilce, Antonio Norival Soave ou Ernesto e Bento (nomes pelos quais seus amigos da AP o conheceram) teve pneumonia e outros graves problemas de saúde.
 
Ernesto Soave sobrevivia materialmente com muitas dificuldades e contava apenas com aposentadoria de pouco mais de um salário mínimo. Seu plano de saúde era o SUS, a exemplo do que acontece com os brasileiros pobres, a imensa maioria da população do Brasil privatizado.
 
Na verdade, Ernesto Soave vivia igual ao Bêbado e o Equilibrista, da canção de João Bosco, Aldir Blanc e eternizada na voz de Elis Regina.
 
Mas o homem não desistia da caminhada, solitária, embora aos tropeços, desequilibrando-se e lutando para não ser jogado fora da ponte da vida.
 
Retraído e solitário, política, pessoal e socialmente, ele sentia falta dos velhos amigos, antigos camaradas e não conseguiu fazer novas amizades para compartilhar alegrias, tristezas e dores inerentes à vida.
 
Mas esse bêbado equilibrista permanecia embriagado pelos sonhos socialistas e teimava com teimosia vermelha no direito de sonhar.
 
E continuou sonhando até o dia em que tombou, seu sangue coalhou, ele dormiu para sempre e nunca mais vai acordar.
 
Viverá na eternidade e despertará apenas no derradeiro sonho, quando estará mais uma vez com o macacão sujo de graxa, caminhando pelas fábricas do ABC paulista e lutando com a sua gente contra a espoliação capitalista, pela revolução socialista e libertação da sua classe.
 
Nesse derradeiro sonho, com certeza, Ernesto Soave lembrará aos seus antigos camaradas, e aos que virão depois de nós, que os revolucionários socialistas não podem perder a ternura jamais. Mas ainda assim esse operário, que lutou e viveu com a mesma brandura e suavidade que carregava no sobrenome, dizia que os revolucionários de ontem e de hoje não podem se esquecer de que a vida dos pobres na sociedade capitalista é dura, pesada.
 
Por isso mesmo, homens e mulheres precisam sonhar. Mas com a condição de acreditar nos seus sonhos, de examinar atentamente a vida real e de confrontar seus sonhos com a realidade. Aí, então, dizia o operário rebelde, bêbado e equilibrista, mulheres e homens conseguirão finalmente realizar as suas fantasias.
 
Otto Filgueiras é jornalista.

István Mészáros e a imperiosa necessidade do pluralismo socialista

Escrito por Demetrio Cherobini   no Correio da Cidadania
 
Resisto a tudo menos minha própria diversidade,
Sou vasto... contenho multidões.
Walt Whitman
 
A afinidade eletiva existente entre o Partido dos Trabalhadores e o capital é visível desde já um bom tempo. Em 2004, por exemplo, num gesto de autoritarismo extremo acompanhado de um discurso cínico e oportunista, o partido expulsou quatro de seus parlamentares que não concordavam com as determinações da cúpula acerca da famigerada reforma da previdência, então em curso (1).
 
Esta atitude - a imposição dos interesses de uma parte do partido sobre o todo de que é composto -, muito aquém de afirmar uma virtude política indispensável para os tempos atuais, configurou apenas a ilustração exemplar do imperativo prático que tem orientado as ações do PT ao longo dos últimos anos: a busca fetichista da unidade, realizada com vistas a neutralizar as energias críticas dos trabalhadores e a promover a ampla e irrestrita conciliação das classes estruturalmente antagônicas da presente sociedade (2). Demonstrou, acima de tudo, como o referido partido expressa, em sua forma de ser e de se comportar, a maneira de se estruturar do próprio capital, com seus respectivos interesses e contradições.
 
Ora, o capital, explica-nos István Mészáros (2002), é justamente esse modo totalizante de controle sobre a atividade produtiva humana, que se configura de maneira hierárquica e autoritária, visando eliminar toda e qualquer postura que seja diferente do propósito de levar a efeito a mais elevada extração praticável do trabalho excedente, num movimento perene, sempre acumulativo e auto-expansivo. Nesse contexto, diz o filósofo, a única alternativa viável é a crítica radical, feita pelo trabalho, de tal conjunto de relações sociais, uma crítica que promova a negação das determinações materiais do sistema e a conseqüente afirmação de novas maneiras de mediar o metabolismo social humano - a negação, portanto, do modo de ser hierárquico e excludente do capital e a afirmação de uma forma de relacionamento genuinamente associativa e horizontal entre os "produtores livremente combinados" (3). Tal alternativa se encontra delineada em torno daquilo que Mészáros denomina de pluralismo socialista, um princípio de organização que visa superar as contradições inerentes à imposição da unidade e as infelizes mistificações de que essa proposta vem acompanhada.
 
Nesse sentido, argumenta o autor de Para além do capital, é possível observar que já Marx e Engels em sua época estavam atentos para o fato de que a unidade não é pré-requisito para o êxito do projeto revolucionário dos trabalhadores. Duas breves passagens dos referidos autores, listadas por Mészáros, servem para demonstrar o posicionamento de ambos sobre o assunto. A primeira é de uma carta de Engels a August Bebel, datada de 1º-2 de maio de 1891, condenando a influência de Wilhelm Liebknecht sobre a redação do Programa de Gotha: "Da democracia burguesa ele (Liebknecht) trouxe e manteve uma verdadeira mania de unificação" (ENGELS, apud Mészáros, 2002, 811). A segunda é de uma carta de Marx a Wilhelm Bracke, escrita em 5 de maio de 1875, onde se lê que "é um engano acreditar que este sucesso momentâneo (isto é, a unidade em redor de um movimento político) não será comprado a um preço muito alto" (MARX, apud Mészáros, ibid., 811).
 
Para Marx e Engels, a suspeita em relação à exigência da unidade se devia ao fato de que tal proposta costumava levar os partidos e as organizações de esquerda a conseqüências prejudiciais, entre elas a supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios. Isto era, evidentemente, um preço alto demais a ser pago pelas forças que lutavam pela realização de uma comunidade humana livre do jugo do capital, onde homens e mulheres pudessem desenvolver ao máximo as suas potencialidades. Ciente desse dilema, Mészáros estabelece uma reflexão que pretende apontar uma saída para o labirinto no qual se perdem muitos dos movimentos socialistas da atualidade.
 
A unidade política, explica o filósofo, não pode ser um objetivo porque a classe trabalhadora não é, por sua própria condição, unificada. Na verdade, ela constitui um complexo de setores variados - muitas vezes antagonicamente estruturado - em contraposição à pluralidade de capitais em torno da qual se baseia o sistema vigente (4). Por isso, o que é desejável no movimento revolucionário é a articulação pluralista – e não a unidade, que pressupõe camuflar diferenças artificialmente - dos diversos grupos que combatem pela causa dos trabalhadores.
 
Como explica Mészáros, "Assim como naqueles dias (isto é, nos tempos de Marx e Engels), mais uma vez este assunto é de suprema importância. Pois hoje – talvez mais que nunca, em vista das experiências amargas do passado recente e do não tão recente – não é mais possível conceber as formas imprescindíveis de ação comum sem uma articulação consciente de um pluralismo socialista, que não só reconhece as diferenças existentes, mas também a necessidade de uma adequada 'divisão do trabalho' na estrutura geral de uma ofensiva socialista. Em oposição à falsa identificação da 'unidade' como o único meio de patrocinar princípios socialistas (enquanto, na realidade, a perseguição irreal e a imposição de unidade trouxeram com elas as necessárias concessões sobre princípios), permanece válida a regra de Marx: não pode haver barganha sobre princípios" (2002, 812).
 
De acordo com Mészáros, somente o pluralismo socialista pode impedir que, dentro de um movimento de luta social e política complexo e multifacetado, ocorra a imposição do interesse de uma das suas partes sobre as demais – imposição esta que, justamente, como o citado caso do PT o demonstra, origina a supressão da autocrítica e a barganha sobre princípios, que tanto beneficiam a ordem de reprodução sócio-metabólica vigente (5).
 
A práxis pluralista, no sentido que o filósofo atribui ao termo, é aquela que reconhece e combina as diferenças e as particularidades concretas inerentes aos variados setores do proletariado (6) em função do seu objetivo maior. Ao assim proceder, cria uma forma de ação conjunta que possibilita o combate do próprio fundamento de hoje haver os particularismos antagônicos de classe, a saber: a dinâmica – sempre acumulativa e auto-expansiva - da exploração do trabalho excedente que configura o sistema do capital.
 
As implicações políticas de tal proposta são claras: o agente social da transformação revolucionária não pode ser definido como sendo composto unicamente por este ou por aquele ramo específico dos trabalhadores. Ao contrário: precisa ser buscado no trabalho como um todo, que, reconhecendo sua constituição múltipla e heterogênea, age no sentido de realizar o – também reconhecido - interesse que permeia a classe em sua totalidade.
 
Lemos, assim, em O poder da ideologia, que o sujeito social da emancipação "só estará apto para criar as condições do sucesso se abranger a totalidade dos grupos sociológicos capazes de se aglutinarem em uma força transformadora efetiva no âmbito de um quadro de orientação estratégica adequado. O denominador comum ou o núcleo estratégico de todos esses grupos não pode ser o 'trabalho industrial', tenha ele colarinho branco ou azul, mas o trabalho como antagonista estrutural do capital. Isto é o que combina objetivamente os interesses variados e historicamente produzidos da grande multiplicidade de grupos sociais que estão do lado emancipador da linha divisória das classes no interesse comum da alternativa hegemônica do trabalho à ordem social do capital. Pois todos esses grupos devem desempenhar seu importante papel ativo na garantia da transição para uma ordem qualitativamente diferente" (2004, 51).
 
Ou seja, mesmo a classe trabalhadora sendo composta de uma miríade de setores, cada qual com interesses correspondentes às suas posições particulares, há, por trás disso, pela própria situação atual do trabalho enquanto atividade subordinada ao capital, uma condição e um interesse compartilhado por todos: isto é, respectivamente, a exploração fetichista do trabalho excedente e a necessidade de superá-la em direção a uma sociedade emancipada.
 
No processo revolucionário, portanto, todos os grupos terão papel fundamental, mas é preciso que estejam alertas para o fato de que, para uma emancipação realmente digna deste nome, a luta não pode se realizar com um dos segmentos afirmando o seu interesse sobre os demais. O pluralismo exige horizontalidade entre os movimentos de trabalhadores. Somente dessa maneira os socialistas poderão aspirar à radical e efetiva superação do sistema do capital.
 
O novo modo de operação dos revolucionários não deverá, então, espelhar a maneira de se estruturar do próprio capital – isto é, como o PT o faz: hierarquicamente e afirmando o interesse da parte sobre o todo, com vistas a eliminar as energias combativas dos trabalhadores. A emergente força social emancipadora conseguirá ter êxito em seus propósitos apenas se se articular a partir de princípios radicalmente diferentes de ação e de organização. A reconstrução das mediações sociais e políticas em torno das quais estarão reunidos os socialistas já necessitará, pois, estar baseada naquilo que Mészáros chama de igualdade substantiva, (7) em contraposição à igualdade meramente formal da atual ordem vigente.
 
Isto quer dizer, em outras palavras, que a estruturação interna do movimento terá que apresentar, em seu próprio processo constitutivo, "prenúncios de uma nova forma – genuinamente associativa – de cumprir as tarefas que possam se apresentar" (8) - 2004, 52. E para que tudo isso possa, enfim, se realizar, é imprescindível, diz Mészáros, a formação de uma "consciência de massa socialista", a ser desenvolvida no processo mesmo de confrontação prática com a ordem do capital (9).
 
A proposta mészáriana do pluralismo socialista é, portanto, de fundamental importância para a esquerda brasileira nos dias atuais. Depois do tsunami de pelegos que assolou o país com o governo do PT, as novas forças socialistas a se constituírem precisarão se reformular sem repetir as mesmas contradições. PSOL, PCB, PSTU e todos os demais grupos políticos imbuídos do objetivo da superação do capital necessitarão se articular de forma crítica e pluralista daqui por diante, ou estarão condenados ao fracasso e à impotência.
 
Mais do que a falsa unidade – calcada, como vimos, na imposição da parte sobre o todo e na barganha sobre princípios –, é imperioso coadunar grupos diversificados, com as suas respectivas particularidades, em redor do objetivo comum: derrotar o capital e instaurar a comunidade dos homens e mulheres verdadeiramente emancipados - ou a "associação livre dos produtores", como a chamou Marx.
 
Em tempos históricos de profunda crise, torna-se imprescindível que construamos essa capacidade de atuar em conjunto de forma horizontal. Se continuarmos mergulhados na inépcia no que diz respeito a travarmos esse tipo de ação coletiva, estaremos com toda certeza perdidos. Se, ao contrário, conseguirmos envidar esforços articulados, mesmo que tenhamos entre nós algumas eventuais diferenças, teremos, quem sabe, alguma chance.
 
Notas:
 
1) Os parlamentares em questão eram a senadora Heloísa Helena e os deputados federais Luciana Genro, João Fontes e Babá. Eles alegavam que a reforma tinha viés privatizante e retirava dos trabalhadores direitos conquistados historicamente, indo assim em direção contrária ao ideário mantido pelo PT ao longo da sua trajetória passada. Para um maior entendimento sobre o caráter conservador da referida reforma, ver Oliveira (2006).
 
2) Por meio, entre outras coisas, da administração de políticas assistencialistas e da cooptação de centrais sindicais, o imperativo da conciliação de classes foi tão intenso no período das duas primeiras gestões petistas que o sociólogo Francisco de Oliveira (2010) não hesitou em afirmar que "se FHC destruiu os músculos do Estado para implementar o projeto privatista, Lula destrói os músculos da sociedade, que já não se opõe às medidas de desregulamentação". O mesmo, ao que tudo indica, está a se reproduzir no governo Dilma.
 
3) Este conceito de crítica – articulação material de negação e afirmação no sentido de promover a "transcendência positiva da auto-alienação do trabalho" – é desenvolvido pelo filósofo húngaro em praticamente todas as suas obras. Ver, por exemplo, a esse respeito: Mészáros (2008).
 
4) Conforme as palavras de Mészáros: "Na realidade, temos uma multiplicidade de divisões e contradições e o 'capital social total' é a categoria abrangente que incorpora a pluralidade de capitais, com todas as suas contradições. Ora, se olharmos para o outro lado, também a 'totalidade do trabalho' jamais poderá ser considerada uma entidade homogênea enquanto o sistema do capital sobreviver. Há, necessariamente, inúmeras contradições encontradas sob as condições históricas dadas entre as parcelas do trabalho, que se opõem e lutam umas contra as outras, que concorrem umas com as outras, e não simplesmente parcelas particulares do capital em confronto. Essa é uma das tragédias da nossa atual situação de apuro. (...) Essas divisões e contradições restam conosco e, em última instância, devem-se explicar pela natureza e funcionamento do próprio sistema do capital" (2007, 66).
 
5) A expressão, na forma de atuação prática do Partido dos Trabalhadores, das exigências materiais do capital deve ser entendida, evidentemente, a partir dos múltiplos complexos de mediação que permeiam a relação entre essas duas estruturas, especialmente a crise estrutural do capital e a crise estrutural da política, que acometem o sistema sócio-metabólico vigente. Em razão das limitações do presente artigo, não poderemos nos aprofundar acerca desses temas. Para uma maior compreensão das crises estruturais do capital e da política, ver Mészáros (2002). Para uma boa visão das transformações do PT ao longo dos últimos anos, ver Oliveira (2006, 2010 e 2010b).
 
6) Segundo Mészáros (2007), proletário não pode ser definido meramente como o operário de fábrica ou o trabalhador manual. Proletariado, enquanto categoria social, diz respeito a todos os grupos sociais que, sofrendo a ação usurpadora do capital em relação aos meios de produção, se encontram alijados da possibilidade de controle consciente sobre o sócio-metabolismo humano. Proletarizar-se, nesse sentido, é perder esse controle.
 
7) A igualdade substantiva é definida por Mészáros qualitativamente, com base nas teses de Babeuf que foram endossadas por Marx: "A igualdade deve ser medida pela capacidade do trabalhador e pela carência do consumidor, não pela intensidade do trabalho nem pela quantidade de coisas consumidas (grifo nosso). Um homem dotado de certo grau de força, quando levanta um peso de dez libras, trabalha tanto quanto outro homem com cinco vezes a sua força que levanta cinqüenta libras. Aquele que, para saciar uma sede abrasadora, bebe um caneco de água, não desfruta mais do que seu camarada que, menos sedento, bebe apenas um copo. O objetivo do comunismo em questão é igualdade de trabalhos e prazeres, não de coisas consumíveis e tarefas dos trabalhadores" (BABEUF, apud Mészáros, ibid., 42). Tais são os princípios de organização da produção e da distribuição a serem implementados na fase superior da sociedade socialista: não a igualdade de coisas consumidas, nem de tarefas ou horas de trabalho realizadas, mas a igualdade medida pelas capacidades e carências não alienadas dos indivíduos sociais.
 
8) Nessa forma de organização política - horizontal e radicalmente pluralista -, é fundamental, afirma Mészáros, que os trabalhadores saibam articular as suas demandas parciais com as exigências gerais de superação do sistema. Vale a pena, mais uma vez, ler o que escreve o autor de Para além do capital acerca de sua proposta: "as demandas mais urgentes de nossa época, que correspondem diretamente às necessidades vitais de uma grande variedade de grupos sociais – empregos, educação, assistência médica, serviços sociais decentes, assim como as demandas inerentes à luta pela libertação das mulheres e contra a discriminação racial -, podem, sem uma única exceção, ser abraçadas sem restrições por qualquer liberal genuíno. Entretanto, é absolutamente diferente quando não são consideradas como questões singulares, isoladamente, mas em conjunto, como partes do complexo global que constantemente as reproduz como demandas não realizadas e sistematicamente irrealizáveis. Desse modo, o que decide a questão é a sua condição de realização (quando definidas em sua pluralidade como demandas socialistas conjuntas), e não o seu caráter considerado separadamente. Por conseguinte, o que está em jogo não é a enganosa 'politização' destas questões isoladas, pela qual poderiam cumprir uma função política direta numa estratégia socialista, mas a efetividade de afirmar e sustentar tais demandas 'não-socialistas', tão largamente auto-motivadoras no front mais amplo possível" (2002, 818). Ou seja, as "demandas urgentes de nossa época" – empregos, educação, saúde etc. – são todas importantes e não devem deixar de ser reivindicadas. Mas o essencial, diz Mészáros, não é a "politização destas questões isoladas" e sim a integração de tais demandas dentro de um quadro reivindicatório mais amplo, que combata o fundamento real de a sociedade se ver hoje majoritariamente privada dessas condições básicas: o sistema de controle sócio-metabólico do capital.
 
9) Daí a importância atribuída pelo filósofo húngaro (2008b) à educação revolucionária, que necessita se realizar em meios formais e não formais, a fim de proporcionar o desenvolvimento contínuo da consciência e dos valores socialistas exigidos para a efetivação da nova forma histórica.
 
Referências:
 
MÉSZÁROS, István. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
MÉSZÁROS, István. O poder da ideologia. São Paulo: Boitempo, 2004.
MÉSZÁROS, István. O desafio e o fardo do tempo histórico. São Paulo: Boitempo, 2007.
MÉSZÁROS, István. Filosofia, ideologia e ciência social. São Paulo: Boitempo, 2008.
MÉSZÁROS, István, A educação para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2008b.
OLIVEIRA, Francisco de. O momento Lenin, 2006.
OLIVEIRA, Francisco de. O avesso do avesso. in OLIVEIRA, Francisco de, BRAGA, Ruy e RIZEK, Cibele (orgs.). Hegemonia às avessas: economia, política e cultura na era da servidão financeira. São Paulo: Boitempo, 2010.
OLIVEIRA, Francisco de. Consenso conservador cria falsa divergência entre Serra e Dilma (entrevista a Valéria Nader e Gabriel Brito). 2010b. Disponível em http://www.correiocidadania.com.br/content/view/5102/9/. Acesso em 03/01/11.
 
Demetrio Cherobini é cientista social (UFSM) e mestre em Educação (UFSC).