domingo, 17 de abril de 2011

O Brasil na encruzilhada dos direitos LGBT

As organizações de direitos humanos condenaram o Brasil globalmente pelo assassinato de Priscila Brandão, mas seu caso é apenas mais um entre muitos crimes de ódio homofóbicos e transfóbicos que têm se acumulado nos últimos anos no Brasil. De acordo com o Grupo Gay da Bahia, entre 1980 e 2009, mais de 3.100 homossexuais foram assassinados a sangue frio em crimes de ódio no país.

Por Erica Hellerstein na Revista Forum

No dia 19 de março, o presidente Barack Obama iniciou, pelo Brasil, uma viagem a três países da América Latina. Sua visita de cinco dias a El Salvador, Brasil e Chile — países de uma região que é comumente chamada de “quintal dos Estados Unidos” — representava uma oportunidade para redefinir a política externa historicamente espinhosa dos EUA para a América Latina.

A viagem de Obama à América do Sul é amplamente considerada como um gesto na direção da potência crescente da América Latina. O Brasil, em particular, agora a oitava economia do mundo, é frequentemente elogiado por seu dramático progresso econômico. “Mais da metade desta nação é agora considerada de classe média”, notou Obama, dirigindo-se ao povo brasileiro no Teatro Municipal do Rio, no dia 20 de março. “Milhões de pessoas saíram da pobreza”. Num discurso feito em Brasília no dia anterior, Obama exaltou o Brasil por sua notável taxa de crescimento econômico e sua transição da ditadura para uma democracia aberta. Thomas Shannon, embaixador dos EUA no Brasil, ecoou esse ponto de vista, afirmando que “o Brasil não é mais um país emergente. Ele já emergiu”.

Entretanto, como observou a recém eleita presidenta brasileira Dilma Rousseff nas boas-vindas a Obama, “nós ainda encaramos enormes desafios”. Um desses desafios é o aumento alarmante e pouco discutido nos ataques e assassinatos a LGBTs no Brasil. De acordo com a Associação para os Direitos das Mulheres em Desenvolvimento, o Brasil tem a taxa de violência transfóbica mais alta do mundo, e é citado como o “lugar mais letal para ser um indivíduo transgênero”. No ano passado, pelo menos 250 LGBTs foram assassinados.

No dia 2 de março de 2011, uma câmera de vigilância em Belo Horizonte captou o brutal assassinato de Priscila Brandão, travesti de 22 anos de idade, baleada quando caminhava pela rua. Citando o crescimento da violência contra transgêneros no Brasil, as autoridades acreditaram que se tratava de um crime de ódio, e não de um ato aleatório de violência.

As organizações de direitos humanos condenaram o Brasil globalmente pelo assassinato de Priscila Brandão, mas seu caso é apenas mais um entre muitos crimes de ódio homofóbicos e transfóbicos que têm se acumulado nos últimos anos no Brasil. De acordo com o Grupo Gay da Bahia, entre 1980 e 2009, mais de 3.100 homossexuais foram assassinados a sangue frio em crimes de ódio no país.

Um relatório recém publicado pela Anistia Internacional sobre violência homofóbica afirma que “o Centro Latino-Americano de Sexualidade e Direitos Humanos identificou que os estados do Paraná e da Bahia têm os números mais altos de crimes contra homossexuais no país, e pelo menos 15 pessoas foram mortas em cada estado brasileiro em 2009, apenas por serem membros da comunidade LGBT”.

Em junho do ano passado, realizou-se em São Paulo a maior parada gay do mundo, com mais de 3 milhões de participantes. Mas, apesar dessa reunião pública gigantesca, o Brasil ainda está bem atrás de seu vizinho ao sudoeste, a Argentina, no reconhecimento dos direitos gay.

A Organização Pan-Americana de Saúde apontou, em seu relatório de 2008 “Campanha contra a Homofobia”, que “dentro da América Latina, a Argentina desfruta da reputação de maior tolerância à diversidade sexual” e em 15 de julho de 2010 se tornou o primeiro país latino-americano a legalizar o casamento entre pessoas do mesmo sexo. Enquanto os defensores da medida na Argentina enfrentavam abertamente os membros da Igreja Católica Romana que se opunham a ela de forma estridente, o Senado votava a favor da lei. Michael Shifter, presidente do Diálogo Inter-Americano, afirmou que a aprovação do casamento entre indivíduos do mesmo sexo “reflete a cultura socialmente liberal da Argentina de hoje”. Néstor Kirchner, ex-presidente da Argentina e então marido da atual presidenta Cristina Fernández de Kirchner, foi explícito em seu apoio à lei, apontando que “a Argentina deve deixar as medidas discriminatórias e a Idade das Trevas para trás” (A natureza progressista da Argentina não deve ser exagerada, no entanto — os direitos reprodutivos, tanto no Brasil como na Argentina, permanecem extremamente restritos).

Os formuladores de políticas públicas no Brasil não permaneceram completamente silenciosos no que se refere aos direitos gay. Em 4 de junho de 2010, o então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto estipulando que o Dia Nacional contra a Homofobia seria comemorado a cada ano no dia 17 de maio, em homenagem à data na qual, em 1990, a Organização Mundial de Saúde retirou oficialmente a homossexualidade da classificação internacional de doenças.

Em julho de 2010, as Nações Unidas, por iniciativa do governo Obama, reconheceram “status consultivo” à Comissão de Direitos Humanos de Gays e Lésbicas. O Brasil foi um dos membros da ONU a votar a favor da decisão. “Celebramos esta decisão”, disse Toni Reis, presidente da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT). “É fundamental que as ONGs LGBT tenham a oportunidade de participar no debate de direitos humanos da ONU”.

Na reunião altamente esperada do dia 19 de março, o presidente Obama e a presidenta Dilma Rousseff integraram as inciativas LGBT às suas agendas e concordaram em estabelecer um relator especial para direitos humanos LGBT na Organização dos Estados Americanos (OEA). Uma declaração feita pela Casa Branca afirmava: “foi feito um acordo para a cooperação no avanço da democracia, dos direitos humanos e da liberdade para todos os povos bilateralmente e através das Nações Unidas … promovendo o respeito pelos direitos humanos de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros através do estabelecimento de um relator especial na OEA”.

A convocação feita por Obama e Dilma pode ser uma força positiva de mudança em meio à barragem sinistra de crimes de ódio no Brasil. No entanto, como deixa claro o volume de crimes, os atos terão que falar mais alto que as palavras. Teremos que esperar para ver se, como promete a OEA, as medidas anti-violência falarão mais alto que os crimes e a retórica homofóbica contra LGBTs no Brasil.

Tradução de Idelber Avelar. Foto por Antonio Cruz/ABr. Publicado originalmente em http://www.thenation.com/article/159703/brazil-crossroads-lgbt-rights.

Graças a Gilmar Mendes, foge do país médico condenado a 278 anos por violentar 37 mulheres

Do blog do Mello

O médico Roger Abdelmassih, de 67 anos, já está no Líbano, segundo a Folha. E por lá deve ficar porque tem origem libanesa e o Brasil não tem tratado de extradição com o Líbano. E isso poderia ter sido evitado, caso o ministro Gilmar Mendes não concedesse o habeas corpus que o tirou da cadeia.

O médico estava preso, aguardando recurso de sua defesa diante da sentença que o condenou a 278 anos de cadeia por violentar 37 mulheres (suas pacientes, o que agrava os crimes) entre 1995 e 2008. E aguardava preso porque a Polícia Federal informou que ele tentava renovar seu passaporte. A juíza Kenarik Boujikian Felippe determinou que ele fosse preso para evitar sua fuga do país.

Seu advogado recorreu. Disse que Roger Abdelmassih não pretendia fugir do país, só estaria renovando o passaporte...

Sem ao menos perguntar ao advogado por que um homem de 67 anos condenado a 278 anos de cadeia renovaria o passaporte (seria um novo Matusalém?), Gilmar Mendes mandou soltar o passarinho, que agora vai passear sua impunidade no exterior, até que a morte o separe da boa vida.

Por essas e outras, crimes contra as mulheres acontecem diariamente no país. Há o caso notório do jornalista Pimenta Neves, que matou fria e covardemente sua ex-namorada, a jornalista Sandra Gomide, e passeia sua impunidade, após ter destruído as vidas de Sandra e de sua família.

O que dirá Gilmar Mendes, o Simão Bacamarte do Judiciário, sobre seu habeas corpus que possibilitou a fuga do criminoso?

Cresce ofensiva para derrubar pensões vitalícias


Ilustração

Cresce a ofensiva contra um privilégio da classe política no país – as pensões vitalícias. O Ministério Público de Minas Gerais ajuizou ação civil pública, com pedido de liminar, para suspender as pensões vitalícias pagas a ex-governadores do estado, argumentando que a “inusitada situação” configura violação dos princípios constitucionais da administração pública.
Em Minas, atualmente recebem pensões os ex-chefes do Executivo Rondon Pacheco (Arena, 1971-1975), Francelino Pereira (PDS, 1979-1983), Hélio Garcia (PP, 1984-1987 e PMDB, 1991-1995) e Eduardo Azeredo (PSDB, 1995-1999). O benefício também é pago a Coracy Pinheiro, viúva de Israel Pinheiro (PSD), que governou o estado entre 1966 e 1971.
Não é só o contribuinte mineiro que paga essa conta. Em fevereiro, a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), defendeu a suspensão do pagamento de pensões a ex-governadores em todo o país. Ao votar a favor de uma ação na qual a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) contesta a concessão do benefício a ex-chefes do Executivo do Pará, a ministra concluiu que o pagamento é inconstitucional. Após o voto de Cármen Lúcia, o ministro José Antonio Dias Toffoli pediu vista, adiando a conclusão do julgamento. Apesar de o tribunal analisar apenas um pedido de liminar, que é uma decisão provisória, ministros sinalizaram que vão adiantar o mérito e que, possivelmente, vão declarar inconstitucional o benefício. No caso do Pará, a pensão equivale ao salário de desembargador, que é de cerca de 24 milreais.
Tramitam no tribunal outras oito ações contra a pensão de ex-governadores. Mais processos podem ser protocolados porque, de acordo com estimativas da OAB, legislações de quinze estados preveem aposentadoria para ex-chefes do Executivo. Em 2007, o STF já determinou a suspensão do pagamento de pensões a ex-governadores do Mato Grosso do Sul e a expectativa é de que confirme que se trata de um privilégio incompatível com a Constituição Federal.
Em MInas, os ex-governadores têm direito ao salário integral pago ao atual ocupante do cargo, de 10,5 mil reais. Já a viúva de Israel Pinheiro recebe metade do benefício. As pensões, concluiu o Ministério Público no inquérito civil, são concedidas com base numa lei estadual de 1957 – com alterações posteriores – e na revogada Constituição Estadual de 1967.
“A inusitada situação, portanto, da concessão de benesses vitalícias a ex-chefes do Poder Executivo Estadual e seus familiares, não pode permanecer, sem que se mantenha caracterizada a manifesta violação de tais princípios (constitucionais), dentre os quais relevam o princípio da igualdade, o princípio da impessoalidade, o princípio da moralidade administrativa, bem como aqueles atinentes à responsabilidade dos gastos públicos”, destaca o Ministério Púbico na ação.
Para a Promotoria de Defesa do Patrimônio Público, o estado deve ser condenado a suspender os pagamentos e “em hipótese alguma poderá ensejar invocação de direito adquirido por parte de quaisquer dos beneficiários”, pois a Constituição Federal de 1988 “não recepcionou a norma instituidora dos ‘benefícios’ em questão (Lei nº 1.654/67)”.
Diante da repercussão negativa dos pagamentos e após a instauração do inquérito pelo Ministério Público, o governador Antonio Anastasia (PSDB) encaminhou no início de fevereiro à Assembleia Legislativa projeto de lei que extingue as pensões vitalícias para ex-governadores e seus descendentes. O texto prevê o fim do benefício a partir de sua aprovação e não altera as aposentadorias já pagas, que custam mais de 560 mil reais por ano aos cofres públicos. A proposta não avança no Assembleia, pois o bloco de oposição alega que protocolou dias antes um projeto semelhante e reclama a paternidade da iniciativa.
A ação civil – assinada pelos promotores João Medeiros, Eduardo Nepomuceno, Maria Elmira, Leonardo Barbabela, Thaís Leite, Elisabeth Villela e Patrícia Medina – foi ajuizada no último dia 8 na 2.ª Vara da Fazenda Pública Estadual, onde tramita. Procurado, o governo estadual não comentou a ação e destacou que a posição do Executivo está contida na proposta encaminhada ao Legislativo.
PEC – O deputado federal Lelo Coimbra, do PMDB capixaba, ainda não desistiu de apresentar uma Proposta de Emenda à Constituição para acabar com as pensões vitalícias pagas a ex-governadores e ex-prefeitos. Ele precisa de 171 assinaturas, mas no começo do ano só havia obtido trinta. 30a. A maioria dos parlamentares tem se recusado a assinar justificando que tem parentes e amigos recebendo o benefício.

FONTE: Agência Estado

sábado, 16 de abril de 2011

Protestantismo e catolicismo na América Latina: desafios da democracia e do pluralismo religioso

 Entrevista especial com Paul Freston
 
Pesquisas recentes indicam o crescimento do pentecostalismo no Brasil. Há, portanto, e isso é inegável, uma mudança no status religioso nacional. Segundo o sociólogo Paul Freston, o motivo deste declínio da Igreja Católica se dá porque o pluralismo e a democracia se apresentam como os grandes desafios para a religião. “É difícil manter a hegemonia na sociedade civil porque ela é cada vez mais independente, autônoma e plural. Assim, as ditaduras, mesmo aquelas que perseguiram a Igreja, eram situações mais favoráveis para a manutenção da posição social da Igreja”, explicou durante a entrevista que concedeu à IHU(Institutos Humanitas Unisinos) On-Line, por telefone.

Paul Charles Freston nasceu na Inglaterra e é brasileiro naturalizado. Graduou-se em História e Antropologia Social pela University of Cambridge (Inglaterra) e fez mestrado em Latin American Studies pela University of Liverpool. Também é mestre em Christian Studies pela Regent College. Já no Brasil, fez doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas. Recebeu o título de pós-doutor pela University of Oxford. Atualmente, é pesquisador sênior da Baylor University (EUA) e professor na Universidade Federal de São Carlos (SP).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – O senhor destaca os desafios da democracia e do pluralismo religioso para a1 Igreja Católica. Como se dão esses desafios?

Paul Freston – A questão do pluralismo e da democracia é um grande desafio para a Igreja Católica. Nesse ponto, tenho usado muitos apontamentos de uma cientista política estadunidense Frances Hagopian [1] que trata bastante da democracia e do pluralismo religioso reforçando-se mutuamente para desafios relativos à Igreja Católica. Para ela, a democracia sem pluralismo religioso seria mais fácil para a Igreja manejar, ou o pluralismo sem democracia, mas as duas coisas ao mesmo tempo são um desafio maior.

IHU On-Line – A Igreja se encaminha para uma possível superação desses obstáculos?

Paul Freston – A questão é exatamente essa: que superação seria possível nesse momento? Não é fácil, porque, na realidade, os projetos da Igreja são muito ambiciosos e é difícil realizá-los. Nesse sentido, cada episcopado nacional acaba fazendo sua própria escala de prioridades. É difícil manter a hegemonia na sociedade civil porque ela é cada vez mais independente, autônoma e plural. Assim, as ditaduras, mesmo aquelas que perseguiram a Igreja, eram situações mais favoráveis para a manutenção da posição social da Igreja. Nesse período era mais fácil identificar o “inimigo” e era mais fácil a Igreja agir como “guarda-chuvas” de grupos oposicionistas. Nesse sentido, essa situação era mais favorável à manutenção da situação da Igreja em relação à realidade atual, que é mais democrática e pluralista.

IHU On-Line – O que caracteriza e o que define, especialmente no Brasil, o pluralismo religioso?

Paul Freston – No Brasil, o pluralismo pode ser destacado em vários sentidos. Temos o declínio de declaração católica, de adesão nominal. Nós ainda não temos os dados religiosos do mais recente censo. Seria interessante ver isso. Mas os censos anteriores e pesquisas mais recentes indicam que na adesão nominal a Igreja vem perdendo cerca de 1% da população por ano. Aí temos o crescimento, principalmente, do pentecostalismo, do protestantismo histórico – menos, mas também impresso – e o crescimento dos chamados "sem religião”. Estes últimos formam um grupo muito heterogêneo. As outras religiões crescem menos, pelo menos em termos de declaração no censo. Sabemos que há muita dupla filiação que não aparece no censo.

Além disso, tem o aspecto da questão do pluralismo interno católico, ou seja, pluralismo nas maneiras de ser católico, nas maneiras de crenças entre aqueles que se declaram católicos e isso é uma coisa que também vem crescendo cada vez mais. Então, temos vários tipos de pluralismo religioso.

IHU On-Line – O senhor afirma que, diante do "pluralismo multidimensional", a Igreja Católica perderá seu status de "igreja no sentido weberiano". Como isso acontece?

Paul Freston – Em parte por uma questão numérica. Quando você representa uma porção cada vez menor da população, torna-se mais difícil justificar que certos privilégios sejam formalizados, justificados. A ideia de igreja é de algo que se confunde com a nacionalidade e reivindica um certo status preferencial dentro da sociedade. É isso que está cada vez mais ameaçado.

Além do declínio numérico, depende também de outros fatores como o peso histórico da instituição dentro de cada país e dentro da América Latina há diferenças nesse sentido. Há países onde a Igreja tem um peso histórico maior do que em outros. Também depende da questão de prática. Ou seja, não é apenas uma questão de adesão nominal. Nesse sentido, é claro que o catolicismo vem se transformando na medida em que, perdendo devotos, as pessoas que permanecem tendem a ser mais atuantes, praticantes e identificadas. O catolicismo, então, vai se tornando, cada vez mais, uma religião de escolha no Brasil e não mais uma religião simplesmente herdada culturalmente. O sentido de ser católico, portanto, vai mudando.

IHU On-Line – O senhor fala de um projeto católico comum, a Nova Evangelização, adotado oficialmente em 1992. Poderia explicá-lo?

Paul Freston – É um pouco vago, na realidade, porque é um projeto de reconquistar a influência junto à sociedade civil, de ter uma influência não tanto diretamente do Estado. Isso é complicado. É justamente aí que o pluralismo e a democracia se complicam, porque limitam o alcance e a possibilidade de a igreja ter essa influência que ela deseja. A sociedade civil vai se portando cada vez mais de forma autônoma. Então, esse projeto de uma reconquista da cultura vai se tornando menos viável, o que complica também, obviamente, a porcentagem da população católica e a debilidade institucional, ou seja, a falta de clero. Essa é uma questão crônica na América Latina.

IHU On-Line – Grande parte dos estudos sobre o fenômeno religioso tem como ponto de partida o cenário europeu ou anglo-saxônico, como os desafios do esvaziamento das igrejas, do islamismo crescente, do desaparecimento do sentido religioso. Na América Latina, ao contrário, que pontos o senhor destacaria como centrais para compreender o cenário religioso?

Paul Freston – Na Europa há um crescente pluralismo, mas ele advém do processo de secularização e também do processo de imigração de pessoas mais religiosas. Obviamente, imigrantes muçulmanos vêm logo à mente. Mas há imigrantes hindus e cristãos nessa “leva” para a Europa, sejam africanos, latino-americanos... Então, isso é o que marca a questão do pluralismo na Europa.

Já a América Latina não tem esse aspecto da imigração e a secularização, ou seja, não existe no mesmo patamar que acontece na Europa. O que ocorre aqui é um processo interno de fragmentação religiosa a partir de um passado de hegemonia católica muito marcado pelo monopólio oficial. A América Latina se distanciou bastante porque produziu esse setor protestante, principalmente pentecostal, que a Europa latina não produziu. Por outro lado, a América Latina não produziu o secularismo antirreligioso que é encontrado em várias partes do sul da Europa. A situação aqui é bem diferente. Então, cada vez mais a América Latina vai se distanciando de tais partes da Europa.

IHU On-Line – Que fatores culturais e sociais diferem do cenário europeu-americano do cenário latino-americano?

Paul Freston – A América Latina é uma terceira coisa: não é nem o processo que teve no norte da Europa (que foi o processo de reformas nacionais e depois uma fragmentação dentro do campo protestante) nem o processo do sul da Europa (que foi de continuação da hegemonia católica). Porém, criou um setor antirreligioso muito forte. Depois, basicamente as outras formas religiosas permaneceram fracas. Também não foi o processo americano de um processo de pluralismo já de saída na própria formação da nação. Por causa disso, houve a decisão de separar a Igreja e o Estado, a aproximação com a ideia de nacionalismo e a criação do fenômeno da denominação. A Igreja Católica nos Estados Unidos teve que se enquadrar nisso e acabou adquirindo várias características das denominações protestantes.

IHU On-Line – Por trás da "descatolização" e da "protestantização" da AL, não estaria também a questão da relevância do discurso (das linguagens, das gramáticas) de cada uma dessas correntes religiosas no contexto atual?

Paul Freston – Não é isso que está acontecendo. O que ocorre é uma mudança no status público da Igreja Católica, mas também de uma transição protestante que é o fato de que muito dificilmente o protestantismo vai chegar a ser maioria em algum país latino-americano. Certamente, no Brasil a perspectiva não é essa. Prevejo que nas próximas décadas o crescimento protestante vai estabilizar, vai chegar num patamar e se estabilizar. Ficaremos entre 20 e 35%. Quando estabilizar aí tudo muda. Essa é a questão.

Teremos um quadro religioso totalmente transformado nesse país; teremos um protestantismo que já não cresce como hoje. Não vai haver o mesmo triunfalismo e o mesmo jeito aguerrido. Vão ser produzidos outros tipos de líderes, outras relações entre as diferentes religiões e com a política. Vai ser muito diferente do que é hoje.

Ao mesmo tempo, a Igreja Católica vai estabilizar. Porém, de uma forma diferente do que sempre foi. Pode até ser minoria; é possível que o censo do ano passado já dê uma minoria católica no estado do Rio de Janeiro, não no país todo. E quando estabilizar os “fiéis” da Igreja serão descritos como mais praticantes, identificados, compromissados.

As relações entre católicos e protestantes serão bem diferentes e, além disso, teremos um setor razoavelmente grande de pessoas adeptas a outras religiões ou “sem religião”. Essa situação pluralista vai ser mais difusa e não vai haver uma protestantização.

IHU On-Line – Nessa sociedade pós-moderna, e especialmente no contexto brasileiro, as igrejas estão sabendo encontrar o seu lugar?

Paul Freston – Tudo indica que sim. Algumas mais do que outras. Além disso, outras vão surgir totalmente novas. A princípio, a pós-modernidade não é mais nem menos favorável: é diferente. A tendência é produzir outros tipos de igreja ou a transformação de igrejas existentes que vão se adequar à nova situação.

IHU On-Line – Quais são as questões socioculturais mais importantes às quais as igrejas deveriam prestar mais atenção nesse cenário?

Paul Freston – Aí já é uma coisa mais normativa para as igrejas que eu não ousaria fazer. É claro que alguma coisa irá acontecer e que já sabemos que está em curso: a questão do envelhecimento da população. O Brasil vai passar a ter um outro perfil demográfico, com uma população mais estável, se não houver imigração. É possível que haja, porque o Brasil pode virar um país de imigração novamente. Se isso não ocorrer, a população vai estabilizar, vai ficar mais envelhecida, e isso trará desafios diferentes para todas as religiões. Essa situação irá exigir outras abordagens e outras formas mais apropriadas para esse perfil demográfico.

Além do mais, creio que, se as coisas continuarem como estão, com uma democracia consolidada e uma situação econômica melhor, a tendência vai ser que a política e a vida pública terão espaços para outras questões. Nas ultimas eleições vimos um início disso: a presença da questão do aborto adquirindo uma proeminência nos debates que não tinha antes nas eleições brasileiras. Isso pode ser um reflexo de uma situação de maior estabilização econômica e consolidação democrática.

Não creio que essa questão do aborto tenha mudado o curso das eleições, como algumas pessoas dizem. Um dia depois do primeiro turno fui perguntado por muitos meios de comunicação sobre isso e falei que seria improvável que essa questão teria sido a razão de haver um segundo turno. Depois, a pesquisa do Datafolha mostrou isso de fato. Mostrou que o debate acerca do aborto não foi o suficiente para mudar a situação. De toda forma, foi um tema que teve mais visibilidade em eleições brasileiras do que em momentos anteriores. Isso pode ser um prenúncio do que vem por aí, se a situação geral do país continuar melhorando.

Notas:
[1] Frances Hagopian é doutora em Ciência Política e professora e diretora de Estudos Brasileiros da Harvard University

Massacre apoiado por EUA mancha primavera árabe no Bahrein


No discurso de condenação ao governo de Kadafi, Obama justificou os recentes ataques militares a Líbia com estas palavras: “Assassinaram pessoas inocentes. Atacaram hospitais e ambulâncias. Prenderam, agrediram e assassinaram jornalistas”. Agora ocorre o mesmo no Bahrein e Obama não tem nada a dizer. “Centenas de pessoas estão presas e são torturadas por exercer sua liberdade de expressão. E tudo por vingança, porque um dia, há um mês, quase a metade da população do Bahrein foi para as ruas exigir democracia e respeito pelos direitos humanos”, diz Nabeel Rajab, presidente do Centro pelos Direitos Humanso do Bahrein. O artigo é de Amy Goodman.


Três dias depois da renúncia de Hosni Mubarak e do fim de sua longa ditadura no Egito, o povo do Bahrein, pequeno estado do Golfo, se lançou massivamente às ruas de Manama, capital do país, e se reuniu na Praça da Perla, sua versão da praça egípcia de Tahrir. O Bahrein vem sendo governador pela mesma família, a dinastia de Khalifa, desde a década de 1780, há mais de 220 anos. Com as manifestações, a população do país não pedia o fim da monarquia, mas sim uma maior representação em seu governo.

Após um mês de protestos, a Arábia Saudita enviou forças militares e policiais por meio da ponte de mais de 25 quilômetros que une o território continental saudita à ilha de Bahrein. A partir desse momento, reprimiu-se cada vez com mais força e violência os manifestantes, a imprensa e as organizações de direitos humanos.

Uma valente jovem ativista bahreiní a favor da democracia, Zainab al-Khawaja, viu a brutalidade de perto. Para seu horror, foi testemunha de como seu padre, Abdulhadi al-Khawaja, um destacado ativista pelos direitos humanos, foi golpeado e preso. Ela descreveu o ocorrido, desde Manama:

“Forças de segurança atacaram minha casa. Chegaram sem aviso prévio. Derrubaram a porta do edifício, derrubaram a porta de nosso apartamento e atacaram diretamente meu pai, sem explicar os motivos de sua prisão nem dar-lhe oportunidade para falar. Arrastaram meu pai pelas escadas e o golpearam na minha frente. Bateram nele até que ficou inconsciente. A última coisa que ouvi-lo dizer foi que não podia respirar. Quando tratei de intervir, tentei dizer-lhes: “Por favor, deixem de bater nele, ele irá com vocês voluntariamente. Não precisam golpeá-lo assim”. Basicamente me disseram que calasse a boca, me agarraram e me arrastaram escadas acima até o apartamento. Quando voltei a sair, o único rastro que havia de meu pai era seu sangue na escada”.

A organização de direitos humanos Human Rights Watch pediu a imediata libertação de Al-Khawaja. O esposo e o cunhado de Zainab também foram presos. Zainab publica no twitter como “angryarabiya” e, em protesto pelas prisões, iniciou uma greve de fome, ingerindo apenas líquidos. Também escreveu uma carta ao presidente Barack Obama, na qual diz: “Se algo acontecer com meu pai, com meu esposo, meu tio, meu cunhado ou comigo, declaro-o tão responsável como o regime de Al Khalifa. Seu apoio a esta monarquia faz com que seu governo seja cúmplice de seus crimes. Todavia, abrigo a esperança de que você se dê conta de que a liberdade e os direitos humanos significam o mesmo para uma pessoa do Bahrein do que para uma pessoa dos Estados Unidos”.

No discurso de condenação ao governo de Kadafi, Obama justificou os recentes ataques militares a Líbia com estas palavras: “Assassinaram pessoas inocentes. Atacaram hospitais e ambulâncias. Prenderam, agrediram e assassinaram jornalistas”. Agora ocorre o mesmo no Bahrein e Obama não tem nada a dizer.

Do mesmo modo que ocorreu no Egito e na Tunísia, o sentimento é nacionalista e não religioso. O país é 70% xiita, mas governador por uma minoria sunita. No entanto, uma das principais consignas presentes nos protestos tem sido: “Nem xiita, nem sunita, bahreiní”. Isso desmoraliza o argumento esgrimido pelo governo do Bahrein, segundo o qual o atual regime seria a melhor defesa contra a crescente influência do Irã, um país xiita, no rico em petróleo Golfo Pérsico. Some-se a isso o papel estratégico do Bahrein: é ali que se encontra a base da 5ª Frota Naval dos EUA, encarregada de proteger os “interesses estadunidenses” como o Estreito de Ormuz e o Canal de Suez, e de dar apoio às guerras no Iraque e no Afeganistão. Não está também entre os interesses estadunidenses o de apoiar a democracia e não os ditadores?

Nabeel Rajab é presidente do Centro pelos Direitos Humanos do Bahrein, organizado que foi dirigida pelo recentemente sequestrado Abdulhadi al-Khawaja. Rajab pode enfrentar um julgamento militar por publicar a fotografia de uma manifestante que morreu enquanto permanecia preso. Rajab me disse: “Centenas de pessoas estão presas e são torturadas por exercer sua liberdade de expressão. E tudo por vingança, porque um dia, há um mês, quase a metade da população do Bahrein foi para as ruas exigir democracia e respeito pelos direitos humanos”.

Rajab observou que a democracia no Bahrein poderia implicar a luta pela democracia nas ditaduras vizinhas do Golfo Pérsico, especialmente na Arábia Saudita. É por isso que a maioria dos governos regionais têm interesse no fim dos protestos. A Arábia Saudita está bem posicionada para tarefa já que é recente beneficiária do maior acordo de venda de armas na história dos EUA. Apesar das ameaças, Rajab foi firme: “Enquanto respirar, enquanto viver, vou seguir lutando. Acredito na mudança. Acredito na democracia. Acredito nos direitos humanos. Estou disposto a dar minha vida. Estou disposto a dar o que for preciso para alcançar essa meta”.

(*) Amy Goodman é editora e apresentadora do Democracy Now.

(**) Denis Moynihan colaborou na produção jornalística desta coluna


Tradução: Katarina Peixoto

Carajás 15 anos, o massacre presente


Aniversário da chacina lembra a necessidade de punição aos assassinos e de tratamento e indenização às vítimas


Márcio Zonta
de Eldorado dos Carajás (PA) no Brasil de Fato

Ao andar pelas ruas da vila do assentamento 17 de abril em Eldorado dos Carajás, ainda escuta-se muitas histórias sobre a marcha que culminou no massacre da curva do S, na rodovia PA 150, em Eldorado do Carajás, há 15 anos. Os sobreviventes ainda têm dúvidas quanto ao número oficial de mortos divulgados pelo Estado, pois há crianças, homens e mulheres desaparecidos que não estavam na lista dos mortos e, tampouco, foram encontrados depois. As marcas do massacre persistem tanto na simbologia da conquista das cinco fazendas, parte das 15 existentes no complexo Macaxeira, quanto no corpo dos mutilados ou na cabeça de muitos que viveram aquele 17 de abril de 1996.
“Foi a tarde mais sangrenta da minha vida”, recorda Haroldo Jesus de Oliveira, o primeiro sobrevivente a conversar com a reportagem. Quem o vê trabalhando atencioso e calmo na Casa Digital 17 de abril, monitorando jovens e crianças no manuseio da internet, não imagina as recordações que ele guarda. “Acordamos felizes naquela manhã do dia 17, pois o Coronel Pantoja, junto a uma comissão, do então governador Almir Gabriel (PSDB), disse que daria os ônibus para que fossemos até Belém, onde pressionaríamos o governo para desapropriação dessas terras. Inclusive, já tínhamos desobstruído a rodovia na noite anterior, já que esse era nosso acordo, e preparado a alimentação para as famílias que participavam da marcha”, diz Oliveira.
Onze horas da manhã venceu o prazo do acordo, e em vez de chegar os ônibus, que levariam cerca das 1,8 mil famílias da marcha, chegou o batalhão da Polícia Militar, o que fez com que as famílias retomassem a estrada. “Eu me lembro como se fosse hoje. Estávamos de prato na mão, almoçando, sob uma chuvinha leve, um sereninho bom. Muitos homens começaram a descer dos ônibus da polícia e montar o acampamento, por volta de três da tarde, e ficaram cerca de 90 minutos preparando-se, como se fossem para uma guerra”, relata Oliveira.
Depois de estabelecidos os policiais no local, a mesma comissão disse que não providenciaria os ônibus e que tinha ordens do governador para retirar as famílias da via. “Nós nunca pensamos que poderia acontecer aquilo. Perto das 17 horas, começaram a jogar bombas de efeito moral contra as pessoas e a atirar no chão. Pessoas tomavam tiros nas pernas e caiam. Mas aqueles que iam para cima, eles atiravam no peito mesmo”. A carnificina começou naquele momento e pelas contas de Oliveira durou cerca de cinquenta minutos.
“Tive que sair pelo chão me arrastando para o miolo de gente junto à água da chuva, que se misturava com sangue, tinha muita gente no asfalto ferida, gritando, chorando...”, lembra emocionado Oliveira.

Premeditado
Amanhece no assentamento 17 de abril e, enquanto, muitos agricultores já estão na roça, as 7h, começa a entrada das crianças na escola que leva o nome de Oziel Alves Pereira, sem-terra de 17 anos espancado até a morte no hospital pelos policiais, por gritar palavras de ordem do MST, na noite do dia 17 de abril, em Curianópolis (PA), para onde foram levados os feridos.
Zé Carlos, companheiro de linha de frente junto a Oziel no dia do massacre, confere a mochila do filho na frente da escola, passa algumas recomendações e o beija ao se despedir. Sobre o dia da chacina, que lhe custou uma bala alojada na cabeça e a perda de um olho, Zé Carlos é enfático: “utilizaram-se de táticas de guerra”. Zé lembra que um caminhão que estava parado na estrada, por causa do bloqueio, foi oferecido às famílias como proteção. “O motorista chegou e disse: ‘vou atravessar esse caminhão na pista para ajudar vocês’. Mas estranhamente toda a ação policial iniciou-se atrás desse veículo, sendo o escudo principal deles, tapando nossa visão. Foram os policiais que pediram”, garante.
Zé conta que os policiais vinham do sentido de Parauapebas e Marabá, ambas cidades paraenses interligadas pela rodovia, além dos que saíam do meio da mata dos dois lados da pista. “Nos cercaram para matar mesmo, pois vinham de todas as direções atirando”. Segundo Zé, é difícil para quem esteve no dia aceitar o número de apenas 21 mortos ditos pelo Estado.“Isso é brincadeira. Morreu muita gente, entre homens, mulheres e crianças. Vi muita gente morta, não pode ser, Tenho até medo de falar, deixa isso para lá. Mas garanto que foi muito mais”.

Ao apagar das luzes
Como se um espetáculo tivesse acabado, ao anoitecer no dia 17 de abril, as luzes do município de Eldorado do Carajás foram apagadas e seu cenário de morte, desmontado. Essa é a sensação que teve a jovem Ozenira Paula da Silva, com 18 anos na época do acontecido. “Apagaram as luzes para desmontar o que tinham feito, para limparem a via. Jogavam corpos e mais corpos em caçambas de caminhão, que tomavam rumos diferentes”.
Após os primeiros disparos, Ozenira só teve tempo de pegar os seus três filhos, todos com menos de cinco anos, e correr para a mata ao lado, percebendo momentos depois que tinha sido baleada na perna esquerda, na altura da coxa. “Tinha muita gente escondida na mata, próximo às margens da rodovia e foi justamente essas pessoas que viram muitos corpos sendo desviados para fora do caminho do Instituto Médico Legal (IML), de Marabá, para onde eram levados os mortos”.
Ozenira diz que algo lhe intriga até hoje. “Depois que terminou a matança, uma criança branquinha de uns dois anos foi achada na escuridão do mato, aos prantos, por uma mulher que procurava seus familiares. Essa mulher a recolheu. Sei que essa criança viveu com ela bastante tempo em Curianópolis, mas depois perdi o contato”.
Onde estariam os pais da criança naquela noite? Ozenira responde: “Não tenho como provar, mas tenho quase certeza que estavam em algum caminhão de remoção de cadáveres”, finaliza.

O massacre continua
Poucos mutilados receberam seus direitos de indenização e até hoje, quinze anos depois, muitos nem recebem a pensão mensal de R$346. Ozenira é uma delas. “Fui atendida no hospital apenas no dia do acontecido, depois nunca mais tive atendimento médico, tenho dias de dores horríveis e outros de dormência na perna”, conta.
Já Zé, hoje aos 32 anos, foi um dos únicos a receber, em 2008, uma indenização de R$ 85 mil reais, mais a pensão mensal no valor citado acima. Hoje vive do que seus irmãos plantam em seu lote, já que tem dificuldades para trabalhar em função das sequelas do tiro na cabeça.
Mas, um caso em especial entre os mutilados chama a atenção. Mirson Pereira, um dos únicos que conseguiu uma cirurgia, no Hospital Regional de Marabá, para retirar uma bala alojada na perna esquerda. “Pensei que seria o fim das dores, mas quando voltei da sala de cirurgia o médico disse que havia errado e feito o corte na perna errada, disse que no outro dia realizaria o procedimento na perna certa, mas desisti, fiquei com medo e saí do hospital”. Pereira continua com a bala na perna e ainda aguarda sua indenização.
O descaso do Estado brasileiro em relação ao massacre de Eldorado dos Carajás já gerou contra o governo um processo, em 1998, na Corte Interamericana de Direitos Humanos, com sede nos Estados Unidos, feita pelo Centro pela Justiça e o Direito Internacional (CEJIL). “O governo brasileiro agiu de duas formas quando foi notificado pela entidade internacional. Primeiramente, culpou os próprios marchantes pelo ocorrido e, num segundo momento, por força da opinião pública, disse que já fazia coisas no assentamento, o que compensava o ocorrido”, explica Viviam Holzhacker, advogada assistente da CEJIL, que acompanha o caso.
No entanto, por pressão internacional, a advogada diz que o governo brasileiro aderiu a um processo, recentemente, de buscar acordo com os mutilados. “São feitas propostas de ambos os lados até chegar a um acordo. Deve levar mais uns cinco anos para ser resolvido o caso de todos”, explica.
Diante deste imbróglio, na ausência de um tratamento médico adequado que cuide do corpo e da mente dos participantes da marcha, Índio, um dos mutilados, com duas balas alojadas na perna esquerda desabafa: “Aconteceu o massacre em 1996. Mas ele terminou? Não! Pois esse grupo [do assentamento] ficou apenas porque o Estado não deu conta de matar no dia. Ficamos para contar a história, sofrer e ir morrendo aos poucos num massacre diário, que só terminará por completo com nossa morte”.

Começa o Congresso do Partido Comunista Cubano. Modelo econômico do país vai mudar

Raul Castro anunciou, em 2010, anunciou a necessidade de reduzir o paternalismo estatal - Foto: "Manu Dias/Flickr/AGECOMBA

Stela Pastore / Especial no Sul21

Cuba está às vésperas de aprovar importantes medidas para a atualização do modelo econômico. Deste sábado até terça (16 a 19) ocorre o 6º Congresso do Partido Comunista Cubano, o primeiro em 14 anos. As mudanças econômicas vêm sendo tratadas em todo o país desde meados de 2010, quando o presidente Raul Castro anunciou a necessidade de reduzir o paternalismo estatal e garantir maior equilíbrio econômico. “A revolução é mudança permanente”, lembrou o dirigente que promoveu um amplo debate sobre a proposta em todo o país. “Temos o dever essencial de corrigir os erros que cometemos durante essas cinco décadas de construção do socialismo em Cuba”, explicou o presidente, que sucedeu o irmão Fidel Castro.
Associações, sindicatos, cooperativas, os Comitês de Defesa da Revolução e meios de comunicação da ilha realizaram intensas discussões sobre o projeto para abranger os 11,2 milhões de cubanos. Serão medidas duras, mas necessárias. Devem ser demitidos cerca de 500 mil cubanos inicialmente e mais de 1,2 milhão nos próximos anos.
Estima-se que 20% de um total aproximado de 5 milhões de servidores públicos estejam em funções obsoletas. A proposta é que sejam realocados para outras atividades estatais ou estimulados a atuar em 178 serviços privados, atuando por conta própria. Cerca de 300 mil “cuentapropistas” já estão registrados, sendo que a metade se inscreveu depois da abertura de novas condições de trabalho em outubro.
Também está na pauta a criação de uma rede de cooperativas urbanas e rurais para estimular a ida para este modelo associativo; maior autonomia das empresas estatais, descentralização do setor agroalimentar, redução dos subsídios e estabelecimento de um sistema fiscal. Talvez a mudança mais substancial seja a eliminação da cartela de abastecimento — “libreta” — uma cesta de alimentação subsidiada.
“Não podemos seguir adiante sem estas transformações. Precisamos produzir mais comida e mais bens”, reforça o líder da Central de Trabalhadores de Cuba, Raymundo Fernandez. E esclarece: ”É uma atualização do socialismo”.
O bloqueio econômico mantido pelos Estados Unidos há meio século, os impactos climáticos e a crise do capitalismo mundial são fatores que estimulam as mudanças. Na última década, 16 furacões devastaram a ilha, com grandes prejuízos. A crise mundial reflete-se na redução do preço pago ao níquel, produto número um na balança comercial de exportação de Cuba, que reduziu de 54 mil dólares para 8 mil dólares a tonelada no mercado internacional.
Por outro lado, a expectativa de vida aumentou: passou de 51, em 1955, para 78 anos, o que também obrigou a ampliar a idade de aposentadoria de 60 para 65 anos, já em vigor. Em 1989, havia sete cubanos ativos para um aposentado. Atualmente, este número reduziu para a metade.
Para muitos cubanos, as medidas são a regularização de algo que hoje de alguma maneira já ocorre com a atuação paralela de muitos cubanos em atividades não estatais.
Porém, estão resguardadas várias políticas igualitárias que destacam Cuba no mundo. Não está prevista qualquer mudança por exemplo, nos sistemas de saúde e educação, que continuam integralmente gratuitos, de qualidade e referência global.
Há tranquilidade em áreas fundamentais que dão ao país os melhores dados no Índice de Desenvolvimento Humano. Antes da Revolução, a taxa de analfabetismo era de 18% e atualmente é zero; o número de professores subiu de nove mil para 137 mil. O total de médicos aumentou de 6.280 para 72 mil. A mortalidade infantil, que era de 60 a cada mil nascidos vivos, reduziu para 4,5 em 2010, uma das menores do mundo.
Os salários baixos — entre 15 a 20 euros –, a circulação de duas moedas — peso cubano e o peso “convertível” — torna desproporcional a diferença entre os quem tem acesso à moeda pareada ao euro e dificultam a sobrevivência a quem está restrito ao peso local. Déficit habitacional e qualidade dos serviços também são temas candentes aos cubamos, que devem ser abordados neste encontro, que reúne mais de mil delegados eleitos em todas as províncias. O 6º Congresso do PCC também elegerá os membros do comitê central, que designarão os membros do secretariado e do birô central.
Bloqueio econômico é mantido apesar da ONU
O bloqueio econômico americano, vigente desde 1962, já causou um prejuízo estimado em US$ 751 bilhões ao pequeno país, distante 180 quilômetros dos EUA. A Assembleia-Geral da ONU condenou, em outubro, o embargo comercial americano. Foi a 19ª vez que isso ocorreu, sem qualquer avanço. A resolução teve apoio de 187 dos 192 países membros. Antes da revolução de 1959, 70% das importações vinham dos EUA, país destino de 67% dos produtos cubanos.
O embargo proíbe que empresas americanas tenham relações comerciais com Cuba, ou se associem a outras, de outros países, que mantenham comércio com Cuba. Um estudo recente divulga os danos do bloqueio (www.cubavsbloqueo.cu). “Estas sanções são as mais prolongadas da história e privam o povo cubano de desenvolver-se como poderia. Castiga-se também os que comerciam conosco”, registra a subdiretora para a América do Norte do Ministério das Relações Exteriores, Johana Tablada.

Jornalismo e economia uma combinação perigosa




Para alguns, economia pode ser uma ciência de difícil compreensão, ainda mais quando se usa o economês, ao relatar ou comentar um processo econômico, este, em sua maioria, é realizado por jornalistas, mas pouquíssimos, com raríssimas exceções, procuram fazer uma análise mais detalhada e criteriosa e, também, por que não dizer, relativamente mais acessível.
Ao comentar sobre a crise européia, a única justificativa que se tem, são os altos gastos do governo, como a previdência, saúde, educação etc., mas esquecem-se de relatar o alto grau de financeirização da economia européia.
Ou no caso brasileiro, nos faz parecer que o único remédio para a inflação é o aumento dos juros, ou então, os gastos do governo precisam ser reduzidos, mas jamais afirmam qual gasto é o mais alto, ou onde cortariam, sem contar que; não diferenciam os tipos de inflações e se realmente vivemos um surto inflacionário. O contexto internacional é completamente escanteado do noticiário, quando o fazem, é de maneira errática.
Ao falar de orçamento público, é uma tragédia, tentam comparar um orçamento familiar ou de uma empresa, com o público, são ambientes e peças diferentes, por uma razão muito simples, o Estado tem o poder de emitir moeda e títulos públicos, ou seja, tem a capacidade de auto-financiar, evidentemente, haverá conseqüências, mas não se pode negar jamais essa solução.
Neste sentido, é importante lembrar que a economia não possui um único pensamento, e, por isso, o tecnicismo puro é inexistente. É mais do que necessário levar em conta as relações sociais e de classe, a história e a política. Não que a economia seja uma ciência menor, é justamente o contrário, é por conta da economia que os interesses afloram, divergem e comungam.
Ao emitir uma opinião, os veículos de comunicação têm uma determinada opção política e social e isto é importante e necessário, mas seria de relevante importância e honestidade, se afirmassem de que lado estão, para que os ouvintes, os(as) leitores(as), ou telespectadores saibam suas causas e conseqüências de um determinado pensamento econômico e jornalístico.
Portanto, ao se encontrarem, o jornalismo e a economia, atrelado a política, podem fazer estragos incomensuráveis em uma determinada sociedade.  Por exemplo, no Brasil, a quem interessa propagar que existe um surto inflacionário?
Desde 1999, com a introdução da política de metas de inflação, em nenhum momento atingiu-se o centro da meta, algo tão desejado pelos governos e, em particular, pelo Banco Central. Façamos a seguinte constatação: Em 2001 a meta de inflação, conforme resolução do Banco Central era de 4% a.a., mas atingiu 7,67%a.a. praticamente o dobro, no ano seguinte; em 2002, a meta inflacionária foi audaciosa, ou porque não dizer, irresponsável, era de 3,5% a.a. e bateu a casa dos dois dígitos, com 12,53%a.a. 3,6 vezes maior do que o almejado.
Nesses dois momentos, pelo menos grande parte da mídia, nunca se falou em surto inflacionário, ou até mesmo, em riscos de volta da inflação como se fala atualmente, um reflexo claro de que há lado nessa história, não há isenção da notícia ou da análise econômica. Isso não quer dizer que vivemos um período de não inflação, mas é importante constatar que atualmente a inflação é um fenômeno global. Para citar os BRICs, na Rússia há uma projeção de 9%a.a, na Índia 7%a.a, na China 5%a.a e no Brasil poderemos chegar a 6%a.a.
Uma sociedade se desenvolve não somente só, com uma única opinião, mas sim, com suas divergências e convergências, para tanto, é mais do que urgente jornalistas e economistas  ao comentarem um processo econômico, tenham no mínimo a honestidade de dizerem que pensamento econômico estão inseridos. Informação é poder! Por isso, pode-se desejar compartilhar ou concentrar de acordo com os interesses estabelecidos.

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Para dirigente político da Tunísia, sindicatos e juventude foram os protagonistas da revolução



Igor Natusch no Sul21

Porto Alegre recebeu, durante a quinta-feira (14), a visita de uma pessoa que ajudou a mudar o panorama político da Tunísia e abrir caminho para uma série de revoltas que está redefinindo o mundo árabe. Amami Nizar, dirigente sindical da Federação de Correios e Telégrafos da Tunísia e integrante da Liga de Esquerda Operária, participou de palestra na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, promovida pela Fundação Lauro Campos com apoio da Secretaria de Relações Internacionais do PSol. Durante sua fala, o dirigente descreveu o processo que conduziu à Revolução de Jasmim, além de explicar o atual momento do país, que aguarda as eleições para uma nova Assembleia Constituinte, marcadas para 24 de julho.
Amami Nizar atua politicamente desde os anos 70, quando era estudante secundarista. Ajudou a fundar a Liga Comunista Revolucionária, no início dos anos 80, entidade filiada à Quarta Internacional. Passou a atuar no meio sindical a partir de 1990, quando ingressou nos correios e acabou tornando-se secretário-geral do sindicato da categoria. Nessa época, lutou contra a privatização dos correios na Tunísia e contra a precarização das condições de trabalho de vários setores. Como dirigente da Liga da Esquerda Operária, Amami Nizar participou diretamente das mobilizações que resultaram na queda de Zine al-Abidine Ben Ali, e atualmente participa da mobilização política que busca garantir uma mudança efetiva nos rumos da política tunisiana.
Antes da palestra, Amami Nizar concedeu uma entrevista coletiva para blogueiros e representantes de veículos alternativos de mídia. Durante cerca de uma hora, falou do clima tenso que imperava na Tunísia antes da revolução, e criticou o governo de transição, que descreveu como uma representação da burguesia do país árabe. Falou também da importância das redes sociais em estimular a revolta popular, além de criticar a postura dos países ocidentais, que teriam apoiado durante anos as ditaduras que oprimem vários países da região. A seguir, os principais trechos da coletiva.

A ditadura de Zine al-Abidine Ben Ali

“Como qualquer ditadura, a da Tunísia foi regida por um processo imperialista, economicamente submissa ao FMI. Essa crise na Tunísia foi, no fundo, a falência desse sistema baseado no Fundo Monetário Internacional. A taxa de desemprego era muito grande, cerca de 130 mil pessoas que saíram das universidades sem perspectivas de emprego. A desigualdade de desenvolvimento entre as diferentes regiões da Tunísia também contribuiu na decadência do regime. A gente observava, na realidade política da Tunísia, um espaço muito restrito para as pessoas se manifestarem, além de um controle total dos mecanismos de poder. Os donos do poder eram corruptos, e havia muita repressão. Mesmo os partidos organizados de oposição não podiam usufruir de liberdades constitucionais, não tinham liberdade de reunião, por exemplo. A polícia não deixava as pessoas se reunirem, a repressão era forte, e isso criou uma tensão tão grande que a vida política tornou-se quase inexiste”.
As mobilizações contra o regime
“Mesmo nesse contexto, algumas revoltas e manifestações aconteciam, especialmente da parte dos estudantes, pedindo bolsas de estudo, e das centrais sindicais. Essas organizações impulsionaram os protestos de muitos setores, como os correios, professores, médicos e bancários. Trabalhadores do setor têxtil e operários também fizeram protestos, já que sofriam muitas arbitrariedades. Temos também um grupo feminista, chamado Associação de Mulheres Pela Democracia, que faz esforços para lutar, mas sempre sofreu muita repressão. Então, durante os 30 anos de governo de Ben Ali – na verdade mais de 30, porque ele representava um regime que comanda o país desde a independência – tivemos muitas mortes e repressão muito violenta dos opositores. Então, as revoltas surgiram de forma espontânea, mas há também um acúmulo de anos, promovidos pelos partidos e pelas organizações de esquerda. Talvez não haja uma cabeça por trás da revolução, mas as organizações sindicais e a juventude certamente foram os grandes protagonistas”.

"Temos ministros que são independentes, mas que estão inseridos na burocracia do Estado" | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

O processo de transição para a democracia

“Após duas quedas de presidente, agora temos a volta de um velho presidente, que é representação da burguesia tunisiana. Além disso, temos diversos ministros que são independentes, mas estão inseridos na burocracia do Estado. Em relação às perspectivas para as eleições, foi votada há poucos dias uma lei especial na assembleia constitucional, votada e aprovada por quase todos os partidos que lutaram contra Ben Ali. Essa lei tem três aspectos principais. Primeiro, paridade de homens e mulheres nas listas de votação. Em segundo lugar, a proibição, durante 23 anos, de Ben Ali e qualquer outro que esteve no governo concorrer a cargos eletivos. Por fim, uma eleição por lista, mas com uma proporcionalidade que favoreça a consolidação e o crescimento dos partidos políticos na Tunísia. Outro ponto positivo é que teremos um poder independente para fiscalizar as eleições, com a presença de representantes internacionais”.
A atuação das potências ocidentais nos conflitos árabes
“Falando de forma concreta e especificamente de países como a França, há uma espécie de jogo dúbio, uma via de mão dupla. Na verdade, eles adotam um discurso de democracia, mas a França só foi apoiar de fato a revolta depois do dia 14 de janeiro, depois que já tínhamos derrubado Ben Ali do governo. A então ministra de Relações Internacionais da França chegou a prestar solidariedade a Ben Ali, e depois foi obrigada a se demitir por causa disso. Quanto à intervenção da Otan no governo de (Muammar) Kadafi, a Liga da Esquerda Operária tem como postura apoiar iniciativas independentes. Claro que Kadafi precisa sair o mais rápido possível, não há nenhuma dúvida disso. Mas acreditamos que essa intervenção da Otan é uma tentativa de alguns países ocidentais de achar um ponto de fixação dentro da Líbia, para a partir daí encontrar formas de acessar recursos do país. A Otan sempre defendeu regimes ditatoriais no mundo árabe. Os EUA, por exemplo, mandou soldados para o Bahrein, para conter a revolta popular no país”.

Uma onda de mudanças no mundo árabe?

“É uma região comum, e certamente existem pontos que unem esses países. A questão palestina, por exemplo. Há também um inimigo comum, que é o sionismo, o que acaba sendo claramente um ponto de unidade dos países árabes. Mas existem muitas diferenças políticas, com relação às organizações, ao grau de consolidação dos partidos políticos e outros pontos semelhantes. No caso da Tunísia, temos três elementos que podem ser citados como diferenciais políticos. Primeiro, tivemos uma constituinte em 1860, que foi a primeira constituinte (do mundo árabe) e teve um caráter bastante reformista. Segundo, temos um espaço sindical consolidado desde os anos 1920, e essas entidades tiveram papel importante na independência da Tunísia. E, em terceiro lugar, o fato de termos, desde 1959, um código de defesa das mulheres. São três particularidades que nos diferencia

Um partido em busca do povo tunisiano

“A Liga da Esquerda Operária herda uma cultura da Liga Comunista Revolucionária. Queremos ser abertos à população. Queremos manter a tradição da Quarta Internacional, queremos manter os princípios trotskistas, mas também queremos ser um partido de massas, com um diálogo direto com a população, para que possamos estar ao lado delas na busca de uma situação melhor para o país”.

A importância da internet para a Revolução de Jasmim

“No caso da Tunísia, o principal impacto foi de redes sociais como o Facebook, que foram meios alternativos para disseminar informação. Certamente essas redes tiveram papel fundamental para que mais pessoas soubessem do massacre, das arbitrariedades do regime. Mesmo porque a mídia oficial sempre teve um caráter de desinformação, de tirar a atenção da população para o que estava acontecendo e até de inverter as coisas, colocando os revolucionários como inimigos da nação. Policiais colocavam fogo em escolas, em estabelecimentos públicos, e a mídia do governo dizia que eram os revolucionários que estavam fazendo isso, para jogar a população contra os que estavam fazendo a revolta. Hoje, a mídia continua sendo toda do Estado, e está de acordo com o governo: uma mídia liberal, burguesa, que não está realmente comprometida com o povo e com quem provocou a revolução em nosso país. Mas há um anseio da população para que se abra novos espaços, para que a mídia não fique apenas nas mãos do governo e possam surgir novos espaços além dos oficiais”.

quarta-feira, 13 de abril de 2011

O ensino do agronegócio na escola pública


Setor aposta na educação para manter sua influência, ou alienação, sobre a futura geração de trabalhadores



Eduardo Sales de Lima da Redação do Brasil de Fato

O cantor e compositor Alceu Valença é um ilustre admirador da cana-de-açúcar. A pequena Quirinópolis, no sul de Goiás, nunca mais foi a mesma depois da chegada de duas usinas de açúcar e etanol. O etanol não compete com os alimentos. A cana-de-açúcar já é segunda maior fonte de energia limpa do país.
Essas e outras informações positivas sobre setor sucroalcooleiro estão compiladas numa cartilha. O problema é que essa propaganda está sendo trabalhada como disciplina em escolas públicas no interior do Brasil. O Projeto Agora é de responsabilidade da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (única) e atinge educandos da 7ª. e 8ª. séries, com idade entre 12 a 15 anos, em uma parceria público-privada entre instituições governamentais, sindicatos e empresas como Itaú, Monsanto e Basf.
Cem municípios da região centro-sul, espalhados por São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e Goiás, contam com o projeto. Resumidamente, a apostila usada em sala de aula foca o desenvolvimento do setor canavieiro no Brasil e o empreendedorismo dos grandes latifundiários sob a ótica do progresso, sem apresentar aos alunos qualquer exemplo que venha desvelar contradições trabalhistas ou ambientais. A apostila não pondera, por exemplo, as contradições do trabalho escravo e a superexploração dos cortadores de cana-de-açúcar em tempos atuais. E que a monocultura e o latifúndio sempre foram “avessos à diversidade produtiva”.
No mínimo, um problema pedagógico para a economista e educadora Roberta Traspadini. “Não aparecem as lutas ocorridas nos territórios, as disputas reais vividas pelos diversos sujeitos sociais, e a produção de processos políticos antagônicos sobre a apropriação do trabalho”, critica, em recente artigo.
Ela reforça ainda que o ensino do agronegócio dentro da escola pública passa por uma “validação da lógica dominante voltada para os grandes projetos, para a incorporação de um ser pertencente à vantagem competitiva do grande capital, ou um ser excluído desta possibilidade”. Não só isso, denuncia-o como um processo de construção da intencionalidade “educativa” do capital que objetiva formar um “exército industrial de reserva consciente de sua necessidade de inclusão dentro da ordem”.

Naturalização

Não é apenas a Unica que tem seguido essa estratégia de propaganda dentro do ensino público. Em Ribeirão Preto (SP), as concepções do agronegócio estão sendo repassadas aos estudantes por meio do projeto “Agronegócio na Escola” e têm gerado polêmica na cidade. O Conselho Municipal de Educação entrou na briga e pediu detalhes sobre o projeto pedagógico. Desenvolvido em parceria com a Associação Brasileira do Agronegócio da região de Ribeirão Preto (Abag-RP), o programa é utilizado nas aulas a alunos do 8º e do 9º ano desde 2009. Anteriormente, o projeto foi aplicado por dez anos na rede estadual. Cerca de 112 mil estudantes da região já passaram pelo curso.
A Abag-RP oferece cartilhas aos estudantes e um vídeo, que é utilizado por professores nas aulas. A cartilha aborda temas como o surgimento da agricultura e sua modernização. Professores são levados para conhecer usinas e são capacitados pela entidade.
A Secretaria da Educação do município e a entidade patronal defendem que o conteúdo aborda temas regionais importantes, tanto do ponto de vista econômico, quanto do ponto de vista social, e que trabalham simplesmente com a realidade em que os alunos estão imersos.
Mas não é assim que enxerga a integrante do Conselho Municipal de Educação de Ribeirão Preto, Ana Paula Soares da Silva. Na visão dela, é importante que as crianças e adolescentes conheçam o agronegócio; o problema ocorre quando o material auxilia na naturalização dos problemas gerados nesse meio. “Esse material ajuda a naturalizar as desigualdades, as relações de propriedade e de dominação”, argumenta. Mesmo dentro da linha da educação contextualizada, segundo ela, outras práticas deveriam ser abordadas, como a agroecologia, por exemplo.

Dominação”

Outro programa pedagógico polêmico, o Projeto Escola no Campo, a exemplo dos já mencionados, nasceu em 1991, por meio de uma parceria da Syngenta, transnacional do ramo de sementes, com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Ampliou-se para outros estados e até 2007 já havia atingido cerca de 405 mil crianças de comunidades rurais do país.
Maria Cristina Vargas, do setor de educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), relata o quão grave é a transmissão dessas ideias à população jovem do campo. Segundo ela, por meio desse projeto tenta-se convencer os estudantes, por exemplo, da positividade da relação entre sustentabilidade e utilização dos agrotóxicos. “Eles trabalham que o saudável é o bonito, é a plantação limpa, sem ter a diferenciação de outras espécies, a diversidade de culturas”, denuncia a educadora.
Segundo Ana Paula Soares da Silva, não é necessário ir muito a fundo no debate para concluir que os materiais pedagógicos distribuídos pelo agronegócio tentam esconder diferenças e intenções de “classe”. “A intenção é de que as pessoas vão aceitando isso, deixando de ser o sujeito histórico, com a possibilidade de mudar a história. Não são projetos que incluem, não são projetos de justiça social; mas de dominação”, arremata.
O Brasil de Fato entrou em contato com assessoria de imprensa da Unica, que afirmou ainda não haver um posicionamento sobre as críticas ao Projeto Agora.