sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Aplaudido na ONU, Abbas pede reconhecimento do Estado Palestino

Abbas entregou o pedido formal ao secretário-geral da ONU | Foto: Paulo Filgueiras/UN Photo
Da Redação do Sul21

Aplaudido antes mesmo de começar a falar, o presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Mahmoud Abbas, discursou nesta sexta-feira (23) no plenário da Asssembleia Geral das Nações Unidas, em Nova Work. Em seu discurso, Abbas cobrou mais esforços das Nações Unidas para o reconhecimento do Estado palestino, no momento que considerou ser “a hora da verdade”. “Meu povo está esperando a resposta do mundo”, declarou.

Abbas foi demoradamente aplaudido antes e após o seu discurso. Durante sua fala, cobrou esforços da ONU para a paz no Oriente Médio e criticou a postura de Israel durante a negociação com os palestinos, que não terminou em acordo.
“A questão palestina está intimamente ligada às Nações Unidas. Aspiramos que a ONU tenha um papel maior no esforço pela paz e até conseguir direitos e legitimidade para os palestinos”, afirmou.
Abbas acusou Israel por prejudicar as negociações com os palestinos e por continuar a construir colônias nos territórios palestinos. “O assunto principal aqui é que o governo de Israel se recusa a cumprir resoluções da ONU e continua a construir colônias no futuro Estado da Palestina. Estas políticas desrespeitam o direito internacional”, afirmou.
Ao final de seu discurso, Abbas mostrou o documento com o pedido formal para o reconhecimento do Estado palestino como membro pleno da Assembleia Geral da ONU, sendo novamente aplaudido pelo plenário.

Na Cisjordânia, manifestantes acompanharam discurso de Abbas | Foto: Reprodução/Al Jazeera

“Como presidente do Estado da Palestina, apresentei uma proposta para admissão da Palestina sobre as bases das fronteiras de 1967, com Jerusalém como capital, como membro pleno das Nações Unidas”, declarou.
“Depois de 63 anos de sofrimento, chega a hora de dizer já basta, já basta, já basta, chegou a hora de acabar com o sofrimento dos refugiados palestinos. Chegou também o tempo da ‘primavera palestina’, não só a primeira árabe, a hora da independência”, prosseguiu.
Mais cedo, Abbas entregou ao secretário-geral Ban Ki-moon a carta com o pedido formal de adesão do Estado da Palestina como 194º membro da Assembleia Geral da ONU. O pedido precisa ser chancelado por nove dos 15 países do Conselho de Segurança. Na condição de membro permanente, os Estados Unidos já anunciaram que vão vetar a solicitação, o que impede que ela siga para a Assembleia Geral.
Segundo o porta-voz da ONU, Martin Nesirky, o pedido será analisado “rapidamente” e enviado ao Conselho de Segurança. “As análises processuais apropriadas serão tomadas rapidamente no secretariado e em seguida serão transmitida ao presidente do Conselho de Segurança e ao presidente de Assembleia Geral”, disse Nesirky, após o encontro entre Abbas e Ban Ki-moon.
Em Ramallah, na Cisjordânia, manifestantes acompanharam o pronunciamento do presidente da ANP. Antes, soldados israelenses e manifestantes palestinos entraram em confronto em diferentes pontos da Cisjordânia. Pelo menos um homem morreu durante os confrontos, segundo o jornal israelense Yedioth Ahronoth.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

A Líbia pode desintegrar-se como a Somália

  Samir Amin   no CORREIO DA CIDADANIA
 
A Líbia não é a Tunísia nem o Egito. O grupo dominante (Kadafi) e as forças que o combatem são em tudo diferentes dos seus correspondentes tunisianos ou egípcios. Kadafi nunca passou de um palhaço, cujo vazio de pensamento está refletido no seu conhecido “Livro Verde”. Agindo numa sociedade arcaica e parada, Kadafi bem podia comprazer-se em sucessivos discursos “nacionalistas” e “socialistas” desligados da realidade e, no dia seguinte, se auto-proclamar como um “liberal”.

Ele só o fez para “agradar ao Ocidente”, como se a opção pelo liberalismo pudesse deixar de ter efeitos na sociedade. Mas tinha e, como toda a gente sabe, ela piorou as condições de vida da maioria dos líbios. Os benefícios do petróleo, antes amplamente redistribuídos, tornaram-se o alvo de pequenos grupos de privilegiados, entre eles a família do líder. Essas condições deram origem à bem conhecida explosão (social), de que os regionalistas e os políticos islamistas do país logo tiraram proveito.

Porque a Líbia nunca existiu realmente enquanto nação. É uma região geográfica que separa o mundo árabe ocidental do mundo árabe oriental (o Magrebe e o Mashreq). A fronteira de transição de um para o outro se situa bem no meio da Líbia. A Cirenaica era historicamente grega e helenística antes de se tornar mashrequiana. A Tripolitânia, por seu lado, era romana e tornou-se magrebina. Por isso o regionalismo sempre foi muito forte no país.

Ninguém sabe quem são realmente os membros do Conselho Nacional de Transição em Benghazi. Pode haver democratas entre eles, mas certamente há também islamistas, alguns deles da pior das estirpes, e ainda regionalistas. O presidente desse conselho é Mustafa Muhammad Abdeljelil, o juiz que condenou à morte as enfermeiras búlgaras (1) e foi premiado por Kadafi, que o nomeou ministro da Justiça entre 2007 e fevereiro de 2011. Foi por esse motivo que o primeiro-ministro da Bulgária, Boikov, se recusou a reconhecer o conselho, mas as suas razões não foram levadas em conta pelos EUA nem pela Europa.

Desde o seu início, o “movimento” da Líbia tomou a forma de uma revolta armada em combate contra o exército, e não de uma vaga de manifestações civis. E logo em seguida essa revolta chamou a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) em sua ajuda. Assim foi dada, às potências imperialistas, a oportunidade para uma intervenção militar.

O seu objetivo seguramente não era “a proteção dos civis” nem a “democracia”, mas sim o controle sobre os campos petrolíferos, os recursos aqüíferos subterrâneos e a aquisição de uma importante base militar no país. É claro que, tão logo Kadafi optou pelo liberalismo, as companhias petrolíferas ocidentais tiveram o controle sobre o petróleo líbio. Mas com Kadafi nunca se podia estar seguro de nada. E se, de repente, ele mudasse de orientação e começasse a jogar com a Índia e a China? Mais importantes são os recursos aqüíferos subterrâneos que poderiam ser usados em benefício dos países africanos do Sahel (2). Empresas francesas bem conhecidas estão interessadas nesses recursos (o que explica o imediato envolvimento da França). Vão usá-los de maneira mais “proveitosa” para produzir agrocombustíveis.

Em 1969, Kadafi exigiu que os britânicos e os estadunidenses retirassem as bases que mantinham no país desde a Segunda Guerra Mundial. Atualmente, os EUA precisam encontrar na África uma localização para o seu AFRICOM (o comando militar dos EUA para a África, parte importante da sua estratégia para o controle militar do mundo, mas que ainda continua baseado em Stuttgart – Alemanha!). A União Africana rejeitou-o e, até agora, nenhum país africano o aceitou. Um lacaio instalado em Trípoli certamente aceitaria todas as exigências de Washington e dos seus lugares-tenentes da OTAN. O que seria uma ameaça direta contra a Argélia e o Egito.

Dito isto, continua a ser difícil prever qual será o comportamento do “novo regime”. Não é de excluir a possibilidade de uma desintegração do país como na Somália.

Notas

1) Referência ao “caso das enfermeiras búlgaras”, ou “caso do HIV na Líbia”, em 1998, em que um médico interno palestino e cinco enfermeiras búlgaras do Hospital Infantil El-Fatih, em Benghazi, foram acusados de terem deliberadamente infectado cerca de 400 crianças com o vírus da aids. Foram condenados à morte, e por fim viram a sentença comutada em prisão perpétua por decisão de uma comissão de ministros. Em 2007, após complicadas negociações com a UE, foram extraditados para a Bulgária e acabaram por ser libertados depois de o presidente búlgaro lhes ter comutado as penas.

2) Faixa subsaariana que atravessa a África desde o Atlântico ao Mar Vermelho, de transição entre o deserto e a savana subtropical. Inclui, no todo ou em parte, Senegal, Mali, Burkina Faso, o sul da Argélia, Níger, o norte da Nigéria, Chade, Sudão (incluindo Darfur e o Sudão do Sul), o norte da Etiópia e a Eritreia.  

Original (em inglês) deste artigo no Pambazuka News.
Tradução do Passa Palavra.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Governo do Estado ainda debate aplicação do OP


Mecanismo não virá com a mesma força de outras gestões petistas; foco será em projetos regionais

Samir Oliveira no JORNAL DO COMERCIO

O governador Tarso Genro (PT) se elegeu com a ambição de tornar o Rio Grande do Sul uma referência mundial em participação popular. Mas, desde que assumiu, em 1 de janeiro, ainda não deu mostras de que irá retomar uma das mais marcantes experiências nessa área: o Orçamento Participativo (OP).

Implantado em Porto Alegre durante o governo do petista Olívio Dutra (1989-1992), o OP ganhou fama mundial sendo adotado em diversas cidades em outros continentes. Quando Olívio chegou ao Palácio Piratini, em 1999, reproduziu o mecanismo em nível estadual.

Com a vitória de Tarso Genro e a retomada do governo gaúcho pelo PT, parte do partido e da militância nutria a expectativa de que o Orçamento Participativo fosse novamente implantado no Estado.

Mas o OP - pelo menos, como era concebido em épocas passadas - não está no horizonte político do atual governo. A intenção do governador é unir diversos mecanismos para criar o chamado Sistema Estadual de Participação Popular.

A primeira discussão pública dessa concepção ocorreu no final de fevereiro deste ano, durante um seminário internacional organizado pelo Palácio Piratini. Já naquela ocasião, ficou evidente o desejo de alguns setores do PT de que o OP fosse retomado imediatamente por Tarso.

A interpretação de algumas lideranças é de que o governo não pode manter um mecanismo como a Consulta Popular em detrimento do Orçamento Participativo. O presidente do PT gaúcho, deputado estadual Raul Pont, é a principal voz na defesa do retorno do OP ao Estado.

“Continuo com a expectativa de que saia essa experiência da Consulta Popular e se caminhe para uma verdadeira democracia participativa, como já se praticou em Porto Alegre”, aponta o petista.

Na sua avaliação, a Consulta Popular é apenas um mecanismo de escolha de alocação de verbas em projetos que não foram elencados diretamente pela população. Além disso, ela dispõe um montante muito pequeno de recursos para as pessoas decidirem sua aplicação: neste ano, foram R$ 165 milhões - o que representa 0,47% do orçamento de R$ 35 bilhões.

Outro petista descontente com a pouca atenção dada ao OP é Ubiratan de Souza, que era secretário de Finanças do Orçamento Participativo durante o governo de Olívio Dutra.

Logo após a realização da Consulta Popular - que o atual governo rebatizou de Votação de Prioridades - Ubiratan lamentou a falta de vontade política do Palácio Piratini em retomar o OP.

“Predominou a mesma consulta dos governos Britto, Rigotto e Yeda. Apenas trocaram o nome. Atualmente, não existe Orçamento Participativo”, criticou.

O secretário estadual de Planejamento, Gestão e Participação Cidadã, João Motta (PT) - a quem cabe a tarefa de elaborar o novo sistema de participação popular -, diz que o governo está construindo uma concepção que contemple todas as experiências.

“Estamos discutindo internamente uma modelagem que tenha como base o OP e a Consulta Popular, mas que trabalhe com uma visão mais ampla.”

Ele avalia, entretanto, que o Orçamento Participativo se debruça muito mais sobre questões locais, não dando conta das demandas regionais.

“É impossível utilizarmos modelos que foram muito importantes e são referência, mas que na nossa opinião não dão conta da discussão dos programas regionais”, considera.

Entretanto, o secretário reconhece que a Consulta Popular é bastante limitada e não possibilita a incidência da cidadania sobre a maioria dos recursos do orçamento estadual. Ele defende uma síntese entre os dois modelos, ancorada na discussão de projetos nas regiões do Estado.

“Precisamos avançar para uma síntese que seja mais representativa da nova realidade e da expectativa da sociedade em incidir sobre os grandes programas do Estado capazes de redimensionar a infraestrutura da malha viária, por exemplo.”

Ex-governador Olívio diz que ‘OP não é uma invenção do PT’

O ex-governador Olívio Dutra (PT), que implantou o Orçamento Participativo (OP) durante suas gestões na prefeitura da Capital e no governo do Estado, acredita que a iniciativa não é uma invenção petista. Para ele, é uma conquista da cidadania “que deve ser aprimorada principalmente pelos governantes do PT e dos partidos de esquerda”. Nesta entrevista ao Jornal do Comércio, Olívio lembra a experiência do OP no Rio Grande do Sul e diz crer que o governador Tarso Genro (PT) retomará o processo. Porém, avalia que não se trata de uma simples transposição do modelo de uma época para outra. “O Orçamento Participativo não é uma receita pronta e acabada”, comenta.

Jornal do Comércio - Como se deu a iniciativa de reproduzir no Estado o modelo adotado na prefeitura da Capital?
 
Olívio Dutra - No primeiro ano, tivemos um impedimento legal por interposição dos adversários do nosso projeto, que entraram na Justiça contra a implementação do OP. Demorou praticamente um ano para que derrubássemos isso, mas não impediu que tivéssemos reuniões pelo Estado afora, inclusive com a presença do governador, para apresentar o processo do OP. Passado esse primeiro momento, o projeto foi deslanchando. Praticamente todos os municípios tiveram assembleias do OP.

JC - E o senhor não encontrou resistências nas prefeituras?
 
Olívio - Tinha participação dos prefeitos nas assembleias, a grande maioria deles, inclusive, não era afinada com o projeto da Frente Popular. Alguns, que não realizavam em suas cidades a discussão dos próprios orçamentos, foram instigados com o OP a democratizarem os debates locais.

JC - Na sua avaliação, o OP é um mecanismo eficiente na construção do orçamento estadual?
 
Olívio - O orçamento é uma peça técnica, e precisa ter essa técnica, mas é, fundamentalmente, uma peça política. É lá que está sintetizada a visão de como se compõe a receita e como se orienta a despesa. Essa visão interessa aos cidadãos, porque o espaço público não é de um governante, tem que estar sob o controle da população, e isso o OP proporciona. As assembleias do OP não transformam o orçamento em lei, quem faz isso é o Legislativo. Mas antes de o Executivo encaminhar o texto, pode e deve fazer a mais ampla discussão com a cidadania.

JC - Aqui no Rio Grande do Sul, o OP ficou bastante identificado como uma bandeira petista.
 
Olívio - O Orçamento Participativo não é uma invenção do PT. As reuniões partiram de iniciativas dos movimentos sociais. Foi uma conquista da cidadania. Não foi favor ou boa vontade de algum governante, mas sim o desejo do cidadão de se apropriar dos recursos fundamentais para o funcionamento do Estado. O OP é uma provocação à cidadania. Através dele, determinam-se prioridades não pela vaidade do governante ou pelos interesses de grupos econômicos poderosos, mas por interesses da cidadania.

JC - E agora, com a retomada do governo do Estado pelo PT, o senhor acredita que o OP possa retornar?
Olívio - Foi um processo muito interessante, pena que nosso projeto não foi reeleito e não se tocou adiante. Naquela época, o OP estava ganhando corações e mentes na cidadania. O governo Tarso pode retomar, sim. O OP não é uma receita pronta e acabada. É um processo de democratização da coisa pública e de ampliação da cidadania. Não é uma experiência que pode ser simplesmente transferida de um tempo histórico para outro. Mas já há uma boa massa crítica em torno do processo. Há pessoas querendo que o cidadão tenha direito de influir na proposta orçamentária antes de ir ao Legislativo. Hoje, a conjuntura é outra, mas o que importa é a participação aberta da cidadania na peça orçamentária.

JC - Como isso poderia ser feito hoje?
 
Olívio - A cidadania precisa conhecer os números do Estado. É preciso ver a origem desses números, a forma como se chega até eles. Aí começam a se perguntar: “Quem paga os impostos? Quanto estão pagando? Qual a política tributária do governo? Porque alguns grupos econômicos recebem incentivos?” Então, o Orçamento Participativo significa abrir os números por inteiro, na receita e na despesa. É uma conquista da sociedade que todos os governantes têm que aprimorar, principalmente os do PT e dos partidos de esquerda.

terça-feira, 20 de setembro de 2011

Traição farroupilha

Artigo publicado na REVISTA DE HISTORIA

Documento que revela massacre de soldados negros por líderes farroupilhas gera polêmica até hoje 

Os gaúchos festejam no dia 20 de setembro o aniversário da Revolução Farroupilha. Entre discursos de parlamentares e exaltações nas redes sociais, uma polêmica sobre a Guerra dos Farrapos permanece até hoje:  teria o líder farroupilha Davi Canabarro (1796-1867) traído os soldados – em sua maioria, negros sonhando com a alforria à mão armada?
No artigo publicado na edição de outubro do ano passado da Revista de História da Biblioteca Nacional, os historiadores Vinicius Pereira de Oliveira e Cristian Jobi Salaini (*) narram o derradeiro ataque das tropas imperiais aos soldados rebeldes nos meses finais da Guerra dos Farrapos, na madrugada do dia 14 de novembro de 1844. Comandado pelo coronel Francisco Pedro de Abreu (1811-1891), o Moringue, o exército surpreendeu o acampamento farroupilha nas imediações do Cerro de Porongos, no atual município de Pinheiro Machado, no estado do Rio Grande do Sul, resultando na morte e na prisão de muitos. Em sua maioria, eram lanceiros negros, escravos que lutavam no exército farroupilha em troca da promessa de alforria. Anos depois, a divulgação de um documento que ficaria conhecido como Carta de Porongos, revelando um suposto acordo entre lideranças militares para dizimar esses lanceiros, inicia uma controvérsia que gera polêmica até hoje.

A Guerra dos Farrapos, ou Revolução Farroupilha (1835-1845), foi o maior dos conflitos internos enfrentados pelo governo imperial. Durante dez anos, uma parcela da elite pecuarista rio-grandense, motivada por fatores políticos e econômicos, sustentou uma revolta contra o poder imperial, chegando a proclamar a República Rio-Grandense em 1836.
Alforria à mão armada

Para arregimentar soldados, os farroupilhas incorporaram escravos às suas fileiras, prometendo em troca a liberdade após o fim do conflito. De olho na alforria, alguns negros fugiram das propriedades onde eram mantidos escravos para aderir à luta. Outros foram cedidos por senhores de terra que apoiavam a revolução. Já senhores contrários ao movimento podiam ter seus escravos capturados à força, como aconteceu nas charqueadas – propriedades rurais onde se produz o charque (carne salgada) – de Pelotas.

Estima-se que em alguns momentos os lanceiros negros, como ficaram conhecidos estes soldados, tenham representado metade do exército rio-grandense. O africano José, de nação angola, foi um desses homens que sonharam em conquistar a liberdade pegando em armas. Em dezembro de 1837, José foi preso e interrogado pelas autoridades imperiais em Porto Alegre, informando que quase toda a “infantaria dos brancos” já havia desertado e que naquele momento os combatentes seriam quase exclusivamente “pretos, uns com armas e outros com lanças”. Estas eram as principais armas do conflito, já que as de fogo ficaram restritas a uma minoria. Além disso, pelo próprio caráter de guerra móvel, muitas vezes os lanceiros negros entravam nos batalhões sem maiores treinamentos.


Acordo para tratado de paz
No final da década de 1850, o político, charqueador e ex-líder farroupilha Domingos José de Almeida (1797-1859) denunciou publicamente o conteúdo da correspondência que teria sido enviada pelo então barão de Caxias (1803-1880) a Francisco Pedro de Abreu. A Carta de Porongos conteria evidências de um acordo prévio entre Caxias (comandante do Exército imperial no conflito) e o líder farroupilha Davi Canabarro (1796-1867). O objetivo seria favorecer a vitória imperial no combate do Cerro de Porongos. Em determinado trecho, Caxias informaria a Francisco Pedro o local, o dia e o horário para o ataque, garantindo-lhe que a infantaria farroupilha estaria desarmada pelos seus líderes.

A partir de então, o Combate de Porongos gerou uma acalorada controvérsia entre os historiadores e estudiosos que se debruçaram sobre o tema da Guerra dos Farrapos. Com base na Carta de Porongos, surgiram acusações de que o general Davi Canabarro – comandante do destacamento de negros – teria traído a causa farroupilha ao desarmar e facilitar a derrota dos lanceiros. Essa atitude teria como objetivo facilitar a assinatura do tratado de paz que vinha sendo negociado, já que o governo imperial era contra a ideia farroupilha de conceder a alforria aos escravos que lutaram como soldados. Por outro lado, negar a liberdade e mandar os lanceiros de volta às senzalas era algo não cogitado nem por alguns farroupilhas, devido ao temor de que um grande contingente de escravos militarizados, politizados e insatisfeitos com o não cumprimento da prometida alforria insuflasse levantes – a quantidade de escravos na província do Rio Grande do Sul em 1846, um ano após o término da Guerra dos Farrapos, correspondia a 20,9% da população.

Relatos da época, como o de Manuel Alves da Silva Caldeira, farroupilha presente em Porongos, afirmam que Canabarro teria sido avisado da aproximação de tropas inimigas e, mesmo assim, não teria tomado providência alguma. Pelo contrário, teria propositalmente desarmado e separado os lanceiros do resto das tropas acampadas perto do Cerro de Porongos. Dando crédito a estes argumentos, o episódio teria sido uma traição aos soldados negros.
Documento questionado
A autenticidade da Carta de Porongos, no entanto, é questionada por alguns estudiosos, já que a versão que se tornou pública é uma cópia, e a original nunca foi encontrada. Uma das explicações é que o documento teria sido forjado pelo coronel Francisco Pedro de Abreu após o combate para desmoralizar Canabarro, único chefe farroupilha que ainda teria condições de reaglutinar as desgastadas forças rebeldes. Félix de Azambuja Rangel, subordinado ao coronel Francisco Pedro, afirma ter presenciado o momento em que seu comandante levou a carta para Caxias assinar e em seguida distribuir cópias entre os adversários. Por essa versão, os lanceiros negros não teriam sido traídos, e sim pegos de surpresa pelas tropas imperiais, assim como seus comandantes.

Parece haver consenso entre os pesquisadores de que os lanceiros foram atacados em condições extremamente desfavoráveis, com inferioridade de armamentos, e que acabaram eliminados em quantidade considerável.

Somente nos últimos anos a importância e a dimensão da participação negra neste conflito têm recebido maior atenção. Hoje é possível afirmar com segurança que negros, índios e mestiços desempenharam papel fundamental na Guerra dos Farrapos não somente como soldados, mas também trabalhando em diversos outros setores importantes da economia de guerra, como nas estâncias de gado, na fabricação de pólvora e nas plantações de fumo e erva-mate cultivadas pelos rebeldes.
Promessas não cumpridas

Apesar das promessas, em nenhum momento a República Rio-Grandense libertou seus escravos. A questão da abolição era controversa entre seus líderes. Ao mesmo tempo em que o governo rebelde prometia liberdade aos escravos engajados e condenava a continuidade do tráfico de escravos, seu jornal oficial, O Povo, estampava anúncios de fugas de cativos. Houve uma tentativa de abolição por meio de projeto apresentado na Assembleia Constituinte de 1842 por José Mariano de Mattos (1801-1866), que foi recusado. Anos após o fim do conflito, vários líderes farroupilhas ainda tinham escravos, como Bento Gonçalves (1788-1847), que morreu deixando 53 cativos para seus herdeiros.

O destino dos lanceiros negros no fim do conflito também é tema controverso. As negociações de paz, que resultaram na assinatura do Tratado de Ponche Verde em 1845, definiram que os escravos ainda engajados deveriam ser entregues ao barão de Caxias e reconhecidos como livres pelo Império. Sabe-se que, juntamente com outro grupo feito prisioneiro em batalhas, foram enviados ainda em 1845 para o Rio de Janeiro na condição de libertos, como noticiaram o Jornal do Commercio e o Diário do Rio de Janeiro de 26 de agosto daquele ano. Se de fato receberam a liberdade ao chegarem a seu destino, não se tem certeza. O ex-farroupilha Manuel Caldeira levantou suspeitas de que tenham sido novamente escravizados e levados para a Fazenda de Santa Cruz, no Rio de Janeiro, agora como propriedade do Estado.

Alguns soldados negros podem ainda, ao longo do conflito, ter escapado para o Uruguai, formado quilombos ou mesmo buscado refúgio nas cidades, onde tentaram se passar por homens livres. Muitos permaneceram escravos no próprio Rio Grande do Sul. Um sobrinho-neto do general Antônio de Souza Netto (1801-1866) relata que, após a batalha de Porongos, uma parte dos lanceiros negros teria acompanhado seu antepassado farroupilha até sua propriedade no Uruguai, e que descendentes destes soldados viveriam até hoje nessa área rural conhecida como Estância “La Gloria”, na região de Paissandu.


* Vinicius Pereira de Oliveira é autor de De Manoel Congo a Manoel de Paula: um africano ladino em terras meridionais (EST Edições, 2006); Cristian Jobi Salaini é autor da dissertação “Nossos heróis não morreram: um estudo antropológico sobre as formas de ‘ser negro’ e de ‘ser gaúcho’ no estado do Rio Grande do Sul” (UFRGS, 2006).


Saiba Mais - Bibliografia

CARRION, Raul K. M. “Os lanceiros negros na Guerra dos Farrapos”. In: Ciências e Letras nº 37, jan. 2005. Porto Alegre: Faculdade Porto-Alegrense de Educação.

CARVALHO, Daniela Vallandro de; OLIVEIRA, Vinicius Pereira de. “Os lanceiros Francisco Cabinda, João Aleijado, preto Antônio e outros personagens negros na Guerra dos Farrapos”. In: SILVA, Gilberto F.; SANTOS, José A. dos (orgs). RS Negro: cartografias sobre a produção do conhecimento. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.

FLORES, Moacyr. Negros na Revolução Farroupilha: traição em Porongos e farsa em Ponche Verde. Porto Alegre: EST Edições, 2004.

LEITMAN, Spencer. “Negros farrapos: hipocrisia racial no sul do Brasil”. In: DACANAL, José Hildebrando. (org.). A Revolução Farroupilha: história e interpretação. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1985.


Saiba Mais - CD e DVD

BARCELLOS, Daisy M. (Et all.). Lanceiros Negros: herança de Porongos (DVD). Porto Alegre: Iphan/12ª Superintendência Regional, 2007.

BARCELLOS, Daisy M. (Et all.). Lanceiros Negros: guia de referências históricas (CD-ROM). Porto Alegre: Iphan/12ª Superintendência Regional, 2007.


Saiba Mais - Filme

“Netto perde sua alma”, de Tabajara Ruas e Beto Souza, 2001.

Saiba Mais - Internet

CARVALHO, Ana Paula Comin de. “O memorial dos lanceiros negros: disputas simbólicas, configurações de identidades e relações interétnicas no sul do Brasil”. In: Sociedade e cultura. Vol. 8, nº 2. Goiânia: UFG, 2005.
http://redalyc.uaemex.mx/redalyc/pdf/703/70380211.pdf

SATÃ TRIUNFANTE - 1917 - YAKOV PROTAZANOV - filme russo


SATÃ TRIUNFANTE
1917
YAKOV PROTAZANOV


SINOPSE:
O filme divide-se em duas partes:

Na primeira parte, em uma pequena cidade, o pastor Talnoks vive uma dócil rotina junto à Esfir, jovem e bela irmã de sua falecida esposa, e ao seu esposo Pavlov, um pintor corcunda. Ambos habitam uma mesma casa, cegos um para o outro, devotos apenas a Deus. Contudo, durante uma determinada noite tempestuosa, um estranho baterá à porta deles revelando prazeres e tentações jamais sondados, com consequências trágicas.

Na segunda parte, vários anos se passaram. Esfir aparece mais velha e viúva, mãe de Sandro, um jovem puro e talentoso pianista. Entretanto, novamente determinados resquícios do passado voltarão a desequibilibrar a bondade quase bovina da família.

LEGENDAS POR: Chevalier_de_pas (MKO)

Créditos: CINE-CULT-CLASSIC  

Espírito do Mal, ó deus perverso
 

Que tantas almas dúbias acalentas,
Veneno tentador na luz disperso
Que a própria luz e a própria sombra tentas.

Símbolo atroz das culpas do Universo,
Espelho fiel das convulsões violentas
Do gasto coração no lodo imerso
Das tormentas vulcânicas, sangrentas.

Toda a tua sinistra trajetória
Tem um brilho de lágrima ilusória,
As melodias mórbidas do Inferno...

És Mal, mas sendo Mal és soluçante,
Sem a graça divina e consolante,
Réprobo estranho do Perdão eterno!
Cruz e Souza




NOTAS:
Protazonov aproveitou o afrouxamento da censura em vista do conturbado ano de 1917 para transgredir os valores impostos pela Igreja Ortodoxa e Império Russo, explorando o satanismo como demonstração da degradação moral vivida.

Yakov Aleksandrovich Protazanov dirigiu mais de 50 filmes na carreira.
Nascido em 04 de fevereiro de 1881 em Moscou faleceu em 09 de agosto de 1945.
Entre suas obras, além de Satã Triunfante, destaca-se, em especial o clássico "Aelita - A Rainha De Marte", considerado o primeiro filme de ficção científica da história do cinema.

ELENCO:
Pavel Pavlov
Aleksandr Chabrov
Nathalie Lissenko
Ivan Mozzhukhin
Vera Orlova

FICHA:

Título Original: Satana likuyushchiy
País De Origem: Rússia
Ano De Lançamento: 1917
Gênero: Drama
Duração: 1h 26Min
Idioma: Mudo

DADOS DO ARQUIVO:

Qualidade: TVRip
Formato: AVI
Tamanho: 1.2 GB
Servidor: Megaupload
Legendas: PT/BR

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Operação Rodin: TRF mantém José Otávio Germano como réu na ação civil por improbidade


Deputado federal entrou com recurso invocando foro privilegiado e questionando a maneira como os indícios contra ele foram obtidos

A desembargadora federal Silvia Goraieb, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), negou um recurso da defesa do deputado federal José Otávio Germano (PP) e o manteve como réu da Operação Rodin na ação civil por improbidade administrativa movida pelo Ministério Público Federal (MPF).

A defesa do parlamentar entrou com um recurso no tribunal após ter o pedido negado pela juíza federal Simone Barbisan Fortes, da Justiça Federal de Santa Maria. O deputado invocou o direito a foro privilegiado (por ser parlamentar) e alegou que as provas apuradas foram obtidas de forma ilícita e emprestadas do processo criminal.

Segundo a desembargadora, o foro privilegiado é prerrogativa do cargo de deputado só nas ações penais, e não nas de natureza civil. A desembargadora ainda entendeu como lógico e razoável que o MPF tenha buscado o processo criminal para buscar indícios sobre Germano, que teve o nome citado em gravações interceptadas pela Polícia Federal.
[...]
A Operação Rodin investigou, em 2007, o suposto desvio de R$ 44 milhões do Detran gaúcho. Para o procurador geral da República, Roberto Gurgel, Germano foi o pivô do esquema por ter trocado, na época em que era secretário estadual da Segurança, a Fundação Carlos Chagas pela Fatec, ligada à Universidade Federal de Santa Maria, para a realização das provas teóricas da carteira de motorista. A Fatec subcontratava empresas como a Pensant, que deu origem ao nome da operação da Polícia Federal, o que contrariava o contrato de licitação.

O processo na Justiça Federal de Santa Maria soma 46 réus, entre empresas e pessoas físicas.
 
Créditos: 14º Núcleo do CPERS

http://www.camera2.com.br/noticia_ler.php?id=289201

Márcio Pochmann defende 10% do PIB em educação e aponta caminhos para elevação do investimento

Atenção, abrir em uma nova janela.
O presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), Márcio Pochmann, defendeu, em entrevista ao Observatório da Educação, a elevação dos investimentos públicos em educação para o patamar de 10% do Produto Interno Bruto (PIB). Para ele, há ao menos três grandes possibilidades de, pela tributação, financiar a efetivação do direito à educação: imposto sobre grandes fortunas; adequação dos tributos diretos praticados no Brasil e combate ao desvio de recursos pelos subsídios e isenções. 

“É evidente que há mais fontes, por exemplo, a realocação dos fundos públicos brasileiros. São gastos não justificáveis, como o gasto com juros no pagamento dos serviços da dívida, que atinge 5,7% do PIB. Poderiam ser reduzidos. É recurso importante e desnecessário, um mau uso do recurso público”, defende.

Em julho, Pochmann já havia apresentado, em audiência Pública na Câmara Federal, a visão de que é possível ampliar o volume de recursos para a educação. “Apresentamos algumas alternativas de financiamento: é insuficiente propor elevação sem dizer de onde provêm os recursos”.
Na ocasião, ele explicou as três possibilidades acima apontadas de, pela tributação, financiar a educação. “Uma fonte seria, sobretudo, a introdução no Brasil do imposto sobre grandes fortunas. É uma lacuna do sistema tributário brasileiro”. Pochmann afirma que o atual investimento poderia ser reparado com a introdução, no Brasil, dessa taxação que é praticada em países desenvolvidos e prevista na Constituição Federal de 1988. “Não há razão para que não venha a ocorrer, e proporciona um ingresso de algo equivalente a pouco mais de 1% do PIB”.

Outra fonte está relacionada ao uso inadequado dos tributos diretos praticados no Brasil, como do Imposto sobre a Propriedade Território Rural (ITR). “A propriedade rural, na prática, não é tributada no Brasil. É um país reconhecido pelos latifúndios que, porém, não pagam os impostos devidos. Esta é uma fonte de recursos”. Também o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) não é devidamente praticado. “As prefeituras não praticam tributação progressiva, de modo que há sub-arrecadação. Os moradores de favela pagam, proporcionalmente à renda, mais do que a taxação sobre mansões”.
Por fim, o pesquisador ressaltou como fonte de recursos os subsídios e isenções feitas para pagamento de saúde e educação privadas, por abatimentos de tributação, no imposto de renda. “Há o abatimento pela apresentação de recibos de educação, saúde e previdência privadas. Isso é desvio de recursos que poderiam financiar área social, principalmente a educação”. Ele também destaca que a Desvinculação das Receitas da União (DRU), cuja prorrogação está em pauta no Congresso Nacional, não se sustenta. “Esta é mais uma informação de como se poderia utilizar recursos de outra forma. A DRU não se justifica, principalmente no gasto social”.

Pochmann lembra que o processo de universalização da oferta de ensino fundamental se deu em um quadro de ausência de crescimento substancial de recursos destinados à educação, o que explica a universalização incompleta, com ampliação de acesso, porém sem garantia de condições adequadas para a efetivação do direito. “Isto resulta em baixa qualidade do ensino. O recurso é condição necessária para universalização do ensino e elevação de qualidade”, finaliza.
 
Clique aqui para baixar a apresentação de Marcio Pochmann – Financiamento da Educação para o desenvolvimento

Fonte: observatório da educação

Máquinas hostis


Apresentada como meio de reduzir as tarefas monótonas, a automação não valoriza o livre-arbítrio ou a competência (o modo de proceder não é atribuição do agente), mas sim a capacidade de conter o estresse e a agressividade. Tudo é feito não para resolver problemas, mas p/ impedir que os responsáveis sejam atingidos
por *Jean-Noël Lafargue no LEMONDE-BRASIL
Nao é raro passar pela experiência de violência nos portões automáticos do metrô parisiense. Uma distração, uma mochila meio grande ou de mãos dadas com uma criança... e a tenaz de borracha esmaga os ombros ou bate nas têmporas. A aventura faz rir os que aprenderam a se adaptar às máquinas. As vítimas simplesmente culpam-se por serem desastradas. Mas, por um instante, imaginemos que esses portões sejam substituídos por vigilantes encarregados de distribuir tapas ou golpes nos usuários que não circulam na velocidade adequada. Seria escandaloso. Porém, aceitamos que isso seja feito pelas máquinas, elas não pensam. Deduzimos que não tenham má intenção. Errado: embora os autômatos sejam inconscientes, sempre obedecem a um programa resultante de uma regulagem intencional.

A aparente lógica do controle dos bilhetes cria outros constrangimentos. As barreiras delimitam zonas precisas para o público: ou ele está dentro ou fora. Na estação da SNCF (companhia de trens da França) de meu vilarejo nos arredores de Paris, a recente instalação de portões impede que os usuários saiam da plataforma para comprar um jornal ou voltar ao guichê e pedir uma informação. O viajante pode utilizar apenas a cara máquina que vende refrigerantes e guloseimas instalada na plataforma. Para ler, contente-se com painéis publicitários.
Inúmeros dispositivos programados gerenciam ou acompanham nosso dia a dia.

Quem nunca ficou louco diante de um desses aparelhos interativos que articulam com voz in-te-li-gí-vel expressões grotescas? – “Se você deseja informações, diga ‘informação’”. – “Informação”. – “Sinto muito, não compreendi sua resposta, tentar novamente”. – “Informação”. – “Favor chamar novamente mais tarde”.
Ao nos comunicarmos apenas por uma interface textual, como saber se nosso interlocutor é uma pessoa ou um programa bem concebido? As práticas do marketing telefônico ou dos serviços de suporte técnico por telefone acrescentam um parâmetro a esse problema: com quem realmente falamos durante essas interações programadas? Em muitos casos, os empregados das centrais de atendimento seguem um programa “de inteligência artificial” e não dispõem de margem de manobra. Esses automatismos são concebidos com a ideia de que a grande maioria das perguntas são mais ou menos as mesmas para todo o mundo.

Os empregados “robotizados” servem de filtro e evitam a mobilização de técnicos para problemas menores. Muitas vezes o filtro se revela tão poderoso que é totalmente impossível chegar à pessoa competente. Mas se são seres humanos que respondem e não programas interativos é também porque, quando seus problemas não são resolvidos, os usuários têm o sentimento de ter uma certa empatia com seu interlocutor ou, na pior das hipóteses, têm a possibilidade de desabafar.

Para completar, os teleoperadores cuja conversa segue um roteiro programado têm a vantagem de serem substituíveis. Proletarizados (privados de suas experiências acumuladas), os empregados das centrais de atendimento não têm a possibilidade de tomar iniciativas, nem sequer de adquirir (e ganhar dinheiro com) conhecimentos ou uma experiência: não há o menor risco de tal empregado se tornar indispensável. De maneira aleatória, outros programas robotizados (dessa vez, 100% mecânicos) solicitam que os clientes confirmem seu grau de satisfação. Raramente, as perguntas se referem ao serviço, mas à qualidade da conversa: “O atendente foi educado? Falou corretamente?”. Esse questionário passa o controle do trabalho para o usuário que se torna auxiliar do supervisor de equipe e é colocado em posição de apoio ao patrão, desempenhando o papel de coprodutor.

Apresentada como meio de reduzir as tarefas monótonas, a automação não valoriza o livre-arbítrio ou a competência, mas sim a capacidade de conter o estresse e a agressividade. Tudo parece ser feito não para resolver problemas, mas para impedir que responsáveis por eles sejam atingidos.
Observemos nossa carteira de identidade. Nela, nossa fotografia é irreconhecível: sem sorriso, os olhos vagos, uma imagem triste, que não se parece conosco e na qual ninguém nos reconhecerá. São diretrizes oficiais do Ministério do Interior francês: o sujeito deve “olhar para a objetiva. Adotar uma expressão neutra e ter a boca fechada” (Norma ISO/IEC 19794-5). O ministério da tristeza tem um bom motivo: essa imagem não se destina a olhares humanos, mas a programas biométricos complexos, que só reconhecem as pessoas em condições padronizadas. Assim, a fisionomia oficial de cada um é definida pelas necessidades de um programa que, nela, vê apenas uma soma de dimensões e uma imagem da qual qualquer brilho expressivo deve ser banido.

Atualmente, estão testando programas que leem os lábios das pessoas filmadas, analisam gestos, a postura e os deslocamentos. Um indivíduo parado em uma plataforma deixando passar vários trens é suspeito. Outro, caminhando no sentido oposto da multidão, também. Cada acontecimento desviante desencadeia uma sirene e provoca um controle. Pior ainda: o Departamento de Segurança Interna dos Estados Unidos pretende equipar os aeroportos com um sistema chamado Fast (Tecnologia para detectar atribuições futuras, na sigla em inglês), cujo objetivo é identificar atitudes precursoras de más ações: olhar fugaz, batimentos acelerados etc. Como no filme de Steven Spielberg, Minority Report, o crime é conhecido antes de ter sido cometido.
Dispositivos numéricos aparentemente bem mais neutros podem ter também uma característica coercitiva. A informática individual modificou radicalmente inúmeras práticas profissionais, tornando obsoletos alguns conhecimentos acumulados. Antigamente, era preciso anos para formar um retocador de fotos, pois ele deveria ter uma destreza particular nas mãos, conhecer o material e as ferramentas utilizados. Hoje, a técnica é desviada para um programa, o artesão é proletarizado: torna-se dependente de decisões tomadas pelos engenheiros das empresas Adobe ou Apple. Como explica o artista e designer John Maeda, ninguém pode pretender ser um “grande mestre do Photoshop”: “Quem de fato detém o poder? A ferramenta ou o mestre?” Para ele, a saúde do criador passa pela posse de seus meios de produção.

Como voltar a deter nosso “destino numérico” numa época em que, sendo todos usuários de ferramentas programadas, corremos o risco de nos tornar objeto delas? Os debates em torno das questões do hacking (utilizar uma ferramenta numérica mais do que sua funcionalidade), do programa livre (nada ignorar sobre o funcionamento de um programa e poder melhorá-lo) e do amadorismo (faça você mesmo) são bem mais políticos do que tecnológicos.

*Produtor multimídia, professor da Université Paris 8 e autor, com Jean-Michel Géridan, de Processing: Le code informatique comme outil de création, Pearson, Paris, 2011.

Urgência na saúde


O momento atual é de defesa do SUS como modelo inspirador para uma rede pública para a saúde, com atendimento universal e gratuito. A urgência do momento é assegurar, no mínimo, condições para o funcionamento do SUS. E para tanto, torna-se essencial a aprovação de uma fonte específica de recursos orçamentários para a Saúde.


Ao longo do processo de reconstrução da ordem político-institucional, no período que sucedeu ao fim da ditadura militar, o Brasil ofereceu ao mundo um exemplo significativo de arranjo na ordem social. Caminhando na contracorrente de todo o movimento desregulamentador e mercantilizador que se apoiava nas idéias e propostas do chamado neoliberalismo, os consensos construídos para a votação do texto da nova Constituição no final da década de 1980 tentavam recuperar as propostas de um Estado de Bem Estar Social.

No caso específico da saúde, o processo também chama a atenção, principalmente se analisado numa perspectiva histórica e levando em consideração as dificuldades ideológicas daquele momento. Mas o fato é que a defesa de um modelo de saúde que fosse público e de atendimento universal ultrapassou os muros da polêmica político-partidária, em função da atuação fundamental de uma articulação que passou a ser conhecida como “PS” - o chamado “partido dos sanitaristas”.

Reunindo políticos de diversas orientações e filiações, sua ação unitária dava-se na defesa do modelo que veio a ser incorporado ao texto constitucional, entre os capítulos 196 e 200, que trata justamente da Seção da Saúde, no Capítulo da Seguridade Social. O Brasil apresentava ao mundo o Sistema Único de Saúde - SUS, com base naquilo que havia sido construído a partir da articulação de distintos setores da sociedade interessados em montar um sistema de natureza pública, com um amplo atendimento, com financiamento público e fundado num sistema federativo de repartição de atribuições e recursos. Apesar de sintético, o texto dos 5 capítulos é bastante claro quanto às intenções dos representantes na Constituinte. A seguir, alguns exemplos:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”

“O sistema único de saúde será financiado (...) com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes” [1]

Porém, as dificuldades começaram já mesmo a partir da implementação do modelo do SUS. Havia - e ainda há! - uma série de questões complexas a serem solucionadas, tais como: i) a garantia de fontes orçamentárias de financiamento; ii) a definição clara da repartição entre as atribuições e as origens de recursos entre União, Estados e Municípios; iii) os limites e as tangências entre a presença do setor privado e o setor público na oferta de serviços de saúde; entre outras. Exatamente por estar sendo construído num período em que o paradigma hegemônico da ordem social e econômica no mundo era baseado na idéia da supremacia absoluta do privado sobre o público e na tentativa de reduzir a presença do Estado a uma dimensão mínima, o SUS já nasceu sendo bombardeado por setores comprometidos com tal visão reducionista das políticas públicas.

Os conceitos teóricos que algumas correntes da economia haviam criado em torno da idéia de bens públicos (saúde, educação, saneamento, etc) sofreram forte oposição e a idéia de transformar todos esses direitos da cidadania em simples mercadoria passou a ganhar força. O mercado privado atuante na área da saúde recebeu grande impulso, a partir da idéia de “complementaridade” ou “suplementaridade” à ação do Estado. Ao lado das antigas e tradicionais instituições da filantropia, cresceu bastante a atuação de grupos empresariais privados, que passam a operar no setor com a lógica pura e simples da acumulação de capital e da obtenção de lucros. E o acesso a esses hospitais, maternidades, laboratórios, centros clínicos passa a contar com a sofisticação dos planos privados de saúde e os seguros de saúde. Tudo baseado em preços, contratos, condições, exceções, carências e outros elementos que confluem para reduzir a despesa e aumentar a receita. A saúde deixa cada vez mais de ser um direito e se transforma numa mercadoria.

O espaço de disputa desse novo campo de negócio, obviamente, dá-se com a própria rede do SUS. Colabora para tanto um processo de sucateamento do sistema público, cujo principal instrumento de atuação ocorre por meio de redução de seus recursos orçamentários. Com isso, a rede pública não consegue avançar a contento em termos de equipamentos e de pessoal. E os meios de comunicação complementam com seu papel de desconstruir o modelo, apontando as falhas e as ineficiências de atendimento da população, com a mensagem sub-reptícia de que isso ocorre em função de sua natureza pública, estatal.

Mas o fato é que pouco a pouco vão sendo reduzidos os gastos estatais com a saúde, enquanto que os gastos privados passam a crescer a cada ano. A política de ajustes fiscais a qualquer custo - que se tornou mais evidente a partir do Plano Real, em 1994 - terminou por estrangular os orçamentos da seguridade social como um todo, aí incluído o drama da saúde. Assim, em 1997 o governo federal acaba por lançar mão de um tributo específico e emergencial para dar conta da falta de recursos orçamentários para essas áreas. Foi aprovada a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), mas parte dos recursos ficava retida para contingenciamento e outros dribles com objetivo de contribuir para o superávit primário. Após compartilhar a dotação com previdência e assistência social, menos da metade dos recursos ficava com a área da Saúde.

Esse tributo resistiu por quase 10 anos, quando foi finalmente suspenso em 2007, em votação ocorrida no âmbito do Congresso Nacional. O discurso generalizado dos setores ligados ao mundo empresarial e das forças conservadoras em geral acabou prevalecendo, na figura da falsa imagem da “elevada carga tributária”. Na verdade, o grande incômodo do sistema financeiro era mesmo a possibilidade de rastreamento de todas as suas operações, uma vez que a contribuição incidia sobre as mesmas. E isso permite ao poder público uma maior capacidade de controle e fiscalização, inclusive para reduzir a prática de operações ilegais, Tendo perdido essa fonte de recursos, o SUS voltou a sofrer ainda mais o risco do sucateamento. Desde 2008 tramita no legislativo um projeto para recriar uma fonte específica para a Saúde (não mais para o conjunto da Seguridade Social). O princípio é bastante semelhante à CPMF: trata-se da Contribuição Social para a Saúde (CSS). Tal tributo incidiria sobre as transações financeiras, a exemplo da anterior, mas teria uma alíquota inferior: 0,10% ao invés de 0,38%.

Alguns especialistas já apontam a necessidade de um índice mais elevado, dada a urgência de recursos para o SUS. De qualquer maneira, o mais importante é assegurar que as verbas sejam direcionadas para o gasto na ponta do sistema e não fiquem esquentando o caixa do Tesouro Nacional para formar o superávit primário e pagar os juros da dívida. Além disso, faz-se necessário criar algum mecanismo para atenuar a regressividade implícita na CSS. Isso porque todas as camadas de renda da população sofrem a incidência do tributo, pois vivemos em um mundo marcado pela generalização das atividades bancárias e financeiras. Assim, seria importar promover uma medida de justiça tributária e isentar as faixas de renda mais baixa.

A situação é de extrema urgência! Caso contrário, corre-se o risco da saúde sofrer processo análogo ao do ensino fundamental e médio. Ao longo das últimas décadas, em razão do sucateamento da rede pública de ensino, setores expressivos da classe média passaram a optar por estabelecimentos privados de educação para seus filhos. A rede pública, salvo raras exceções, padecia de falta de verbas, com baixo investimento na construção, equipamento e, principalmente, no estímulo aos professores. Estes setores médios tendem a ser vistos como “caixa de ressonância da opinião pública” e com maior capacidade de pressão sobre os representantes políticos. Como eles deixaram de pressionar pela melhoria da qualidade do ensino público pré-universitário, isso contribuiu para a situação ter chegado ao quadro atual de difícil e urgente recuperação.

O momento atual é defesa do SUS como modelo inspirador para uma rede pública para a saúde, com atendimento universal e gratuito. Um direito de cidadania, um dever do Estado. É claro que muito ainda há para ser realizado no sentido de aperfeiçoar a sua gestão, com o intuito também de reduzir as perdas do sistema. O mesmo vale para a necessidade de redefinir os cálculos dos gastos com saúde, tal como previsto pela famosa Emenda Constitucional n° 29, que estabelece percentuais orçamentários mínimos para que os governos federal, estaduais e municipais apliquem no sistema. E também para introduzir maior grau de justiça social na forma de apropriação dos recursos, inclusive físicos do SUS. E aqui entram aspectos como a atual renúncia tributária para setores que gastem com saúde privada, o uso descontrolado da rede privada dos setores de excelência da rede pública nas áreas de alta complexidade a baixo custo, as facilidades de isenção tributária para os grupos empresariais que operam no sistema privado de saúde, entre tantos outros aspectos.

Enfim, as tarefas são muitas e complexas. Mas a urgência do momento é assegurar, no mínimo, condições para o funcionamento do SUS. E para tanto, torna-se essencial a aprovação de uma fonte específica de recursos orçamentários para a Saúde.

Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.

VIVA A LUTA PELA CAUSA PALESTINA!!


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