segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Brasil: Sem pressão das forças progressistas, Comissão da Verdade não irá além da mera encenação

por Valéria Nader [*]
e Gabriel Brito [**]
Em vias de aprovação no Congresso, o projeto de lei que cria a Comissão da Verdade, resultante de iniciativas e do esforço de correntes políticas vitimadas pela ditadura civil-militar de 1964-1985, sofreu incontáveis mutilações em relação a seus objetivos iniciais. Entre as muitas aberrações, expandiu-se o período de investigação dos crimes políticos, que terá como data inicial o ano de 1946, quando o Brasil se encontrava sob regimes democraticamente eleitos, ainda que com as devidas tensões e violências políticas registradas – mas nunca assumidas como práticas oficiais do Estado.

O procurador de justiça do estado de São Paulo José Damião de Lima Trindade concedeu longa e detalhada entrevista ao Correio da Cidadania, na qual foi implacável em suas críticas a pontos substanciais do projeto. Vencedor do prêmio de Direitos Humanos João Canuto, concedido em 2008 pela ONG carioca Humanos Direitos, Trindade faz uma provocação que muito contribui para a compreensão do perverso caráter conciliatório que prevaleceu na Comissão, conforme manda a tradição brasileira: "Tenho suspeitas sobre essa quase 'unanimidade' entre reacionários de todos os tipos no Congresso em apoio ao projeto" – referindo-se também à base aliada do governo Lula, repleta de herdeiros e amigos da ditadura.

Ao longo de toda a entrevista, o procurador, também autor do livro História Social dos Direitos Humanos, desnuda as típicas facetas da classe dirigente nacional, sempre afeita às "conciliações por cima". "A Comissão deveria ser mais ampla e ser designada após amplíssima consulta pública à sociedade, para garantir-se que nela não tenham assento agentes duplos nem 'reconciliadores' pusilânimes", critica. E entre tantas ofensas aos preceitos dos Direitos Humanos e do Direito Internacional, destaca-se o trecho que estabelece o sigilo de dados, fatos e documentos que o Estado (inclusive o ditatorial) tenha, no passado, catalogado como confidenciais. Um paradoxo gritante para um projeto que se pretende (ou pretendia) não somente a elucidar, mas a publicizar a 'verdade'. "Se todas as informações recebidas pela comissão não forem tornadas públicas, estaremos diante de uma mera encenação ditada pela conveniência de comandantes militares e policiais ou por figurões da política que prestaram bons serviços à ditadura e pretendem manter seu colaboracionismo trancado no armário", sentencia.

Depreende-se com evidência, da avaliação de Trindade, o frustrante engodo em que pode se transformar uma comissão que foi criada sob aura de muita esperança para os vitimados pela ditadura e é comemorada com grande ufanismo pelos 'governistas'. O promotor questiona pautas essenciais da Comissão, explicando as razões que deixam clara sua intenção de praticar "jogo de cena para o público internacional". Basta, neste sentido, reavivar a memória para perceber que o governo Lula só se mexeu após a condenação, a ser reiterada em 2012, na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Além de ter nomeado a maior parte dos integrantes do STF, que no ano passado reinventaram o Direito Internacional ao votarem pela legitimidade da auto-anistia concedida pelos militares em 1979.

O procurador evidencia ainda uma Secretaria Nacional de Direitos Humanos (órgão criado e elevado a ministério pelo PT) como um "clube de segunda divisão", cujos objetivos são rotineiramente desprezados quando confrontados com os interesses políticos dominantes e retrógrados. Trata-se nada mais nada menos do que "uma opção política da Presidência da República", completa, sem poupar nenhum dos dois presidentes petistas, muito menos aquele egresso dos movimentos democráticos e populares.

O caminho que até agora se insinua como o mais provável para uma Comissão tão repleta de contorcionismos já é visto com bastante pessimismo e desilusão por correntes de esquerda, progressistas, humanistas e democratas. A 'Comissão do Brasil' parece, portanto, afastar-se inexoravelmente de processos semelhantes realizados com muito maior grau de justiça e transparência em países como Argentina, Chile e África do Sul. A não ser que haja uma retomada de manifestações por parte de movimentos democráticos e progressistas e uma vigilância e pressão sobre os poucos integrantes da Comissão, restará como uma miragem a verdadeira reconciliação brasileira com os princípios básicos de respeito aos direitos humanos e como uma farsa a tão repisada alusão à 'respeitabilidade internacional' de nosso país. "Se não cumpre os tratados internacionais de direitos humanos que subscreveu, e se não cumpre fielmente as decisões de Cortes Internacionais de direitos humanos a que aderiu, como o país espera ser respeitado internacionalmente?", indaga Trindade

A entrevista completa.

Correio da Cidadania: O projeto de lei que cria a Comissão da Verdade está em vias de aprovação definitiva no Congresso, com a finalidade de investigar o passado político do país entre os anos de 1946 e 1988. O que pensa da extensão do período de investigação para além da ditadura, do número de pessoas estabelecido para os trabalhos, ao lado do prazo proposto de dois anos para a duração da empreitada? Há alguma possibilidade de tal configuração confluir para uma Comissão da Verdade 'de verdade'?

José Damião de Lima Trindade Damião Trindade:
O projeto de lei 7376/2010, encaminhado ao Congresso pelo ex-presidente Lula em maio de 2010 e aprovado pela Câmara dos Deputados com duas emendas aditivas em 21 de setembro último, cria na Casa Civil uma Comissão Nacional da Verdade, composta de sete membros a serem designados pela Presidente da República e auxiliados por catorze assessores, com o mandato de dois anos, para investigar e apresentar um relatório sobre as graves violações aos direitos humanos cometidas entre 18/11/1946 e 05/10/1988. O projeto tramita agora no Senado sob o número 88/2011.

O número de componentes dessa Comissão parece mesmo insuficiente, assim como sua assessoria parece diminuta, dada a vastidão e complexidade do trabalho que está à sua espera, o período histórico muito lato a ser examinado – quase 42 anos – e o mandato de apenas dois anos de duração para os integrantes da Comissão. Mas a experiência internacional das Comissões da Verdade criadas em quase cinqüenta países ao final de ditaduras em todo o planeta nos ensina que, além dessas limitações reais, há também outros fatores – pelo menos mais três deles – que podem até se tornar mais importantes.

Correio da Cidadania: Quais são esses três outros fatores?

Damião Trindade:
Em primeiro lugar, importa decisivamente a composição dessas comissões, ou seja, a qualificação dos seus integrantes para investigar as violações, sua familiaridade com o tema e com o período histórico abrangido e, sobretudo, a completa independência política, a determinação e a intrepidez moral dos seus componentes. A Comisión Nacional sobre La Desaparición de Personas, na Argentina, teve apenas 11 integrantes e trabalhou durante apenas nove meses, investigando os sete anos da ditadura militar argentina, mas seus componentes eram inequivocamente comprometidos com a defesa dos direitos humanos e ela foi presidida por ninguém menos do que o escritor Ernesto Sábato. Já a Comisión Nacional de Verdad y Reconciliación, constituída no Chile por decreto do Presidente Patricio Ailwin para investigar os 17 anos da ditadura de Pinochet, teve 8 membros e 60 assessores, mas quatro dos membros nomeados eram antigos apoiadores da ditadura, que tentaram de tudo para emperrar os trabalhos – só não o conseguiram porque era monstruoso o volume e a profundidade das atrocidades encontradas. Na África do Sul, após vários meses de audiências públicas, foi constituída uma Comissão da Verdade e Reconciliação com 16 integrantes, sob a presidência do arcebispo Desmond Tutu, com o suporte de 300 assessores e quatro escritórios regionais distribuídos pelo país, para investigar, durante dois anos e meio, as violações cometidas ao longo dos 45 anos de apartheid.

No Brasil, ainda não sabemos se, antes de designar os membros da comissão, a Presidenta da República estará disposta a ser permeável a consultas públicas democráticas. Se a comissão sair apenas da algibeira do Palácio do Planalto, em meio a pressões da "base aliada" conservadora e a recados remetidos por generais, tudo poderá estar comprometido logo à partida.

Outro fator relevante é que o marco legal sob o qual trabalha a comissão faz toda a diferença. Na Argentina, foi revogada a anistia que a ditadura se auto-concedeu, e as informações e testemunhos recolhidos pela Comisión foram fundamentais nos julgamentos dos generais. No Chile, mesmo com idêntica lei de auto-anistia, o Poder Judiciário encontrou os meios jurídicos para levar às barras dos tribunais os militares assassinos e torturadores. No Brasil, estamos em situação pior: o Supremo Tribunal Federal – cuja maioria de Ministros foi indicada pelo Presidente Lula – já lavou as mãos quanto à infame auto-anistia da ditadura, mesmo após o Brasil haver sido condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que reiteradamente julga como inválidas tais leis de auto-anistias das ditaduras.

Por fim, se faltar autonomia financeira à comissão, ela pode estar condenada a caminhar o tempo todo com o pires na mão. O exemplo tragicômico a esse respeito foi a Comisión Nacional de La Verdad y la Justicia, do Haiti: após trabalhar sob inacreditável penúria financeira durante 10 meses, seu relatório final, de fevereiro de 1996, teve cópias distribuídas para organizações de defesa dos direitos humanos – assim mesmo, após todo um ano de pressões. Nunca foi efetivamente publicado, pois o Ministro da Justiça do país à época "explicou" que o preço da publicação era "proibitivo". O resultado foi que o relatório passou praticamente despercebido pela população e somente algumas de suas recomendações foram implementadas – anos depois, e somente por conta da pressão internacional.

Correio da Cidadania: O que o senhor pensa do fato de tal comissão poder vir a ter a participação de militares?

Damião Trindade:
O artigo 7º, parágrafos primeiro e segundo, do projeto em tramitação, admite expressamente que servidores públicos civis ou militares, de qualquer das esferas de Poder, poderão ser designados para integrar a Comissão Nacional da Verdade – o que deixa abertas as portas para o ingresso na Comissão, por exemplo, de um oficial militar ou de um policial, coisas assim. Por outro lado, o artigo 2º veda a participação na Comissão daqueles que estejam no exercício de cargos públicos em comissão ou função de confiança, ou daqueles que "não tenham condições de atuar com imparcialidade no exercício das competências da Comissão". Ou seja: sopesando os dois tipos de dispositivos, se a Presidenta da República quiser nomear para a Comissão um militar ou um policial, bastará escolher entre os que não estejam ocupando cargo de comando ou de assessoria, que não hajam mantido laços muito óbvios de colaboração com a ditadura, nem defendam em público posições de extrema-direita...

Todavia, se tivermos em mente, tanto o forte espírito de corpo predominante entre militares e policiais, como a ideologia autoritária que está longe de haver se dissipado nessas corporações, o que poderíamos esperar de uma nomeação desse tipo? Mas, perguntemos: não haveria militares e policiais verdadeiramente democratas, convertidamente interessados em abrir o ventre imundo da ditadura, mesmo à custa de granjear antipatia entre seus pares, mesmo sob o risco de sofrer depois retaliações hierárquicas? Eu desejo sinceramente que haja. Mas ignoro se e quais foram os "entendimentos" previamente estabelecidos para que os altos comandos militares não "vetassem" o encaminhamento do projeto ao Congresso.

E tenho suspeitas sobre essa quase "unanimidade" entre reacionários de todos os tipos no Congresso em apoio ao projeto. Estará a Presidente da República disposta a correr o risco de, logo de partida, desmoralizar a Comissão perante a opinião pública com uma designação indefensável?

Correio da Cidadania: Como o senhor avalia a possibilidade de, aparentemente, o projeto de Comissão da Verdade admitir que sejam investigados militantes de lado a lado, torturados e torturadores, tal como pediram os setores mais conservadores?

Damião Trindade:
Quanto ao risco de a Comissão Nacional da Verdade vir vergar-se a pressões espúrias de saudosistas da ditadura e perder-se numa nova caça às bruxas contra os que combateram aquela ditadura, penso que isso dependerá da envergadura moral dos seus integrantes, de sua convicção democrática, de sua clareza histórica, de sua hombridade pessoal, de sua independência e coragem. Equiparar os golpistas de 1964 aos que resistiram ao golpe seria o mesmo que equiparar o exército de ocupação nazista aos guerrilheiros franceses que heroicamente o enfrentaram.

Ademais, as atividades dos combatentes contra a ditadura já foram sobejamente "reveladas" – foram extorquidas sob tortura, muitas vezes seguida de morte. O que ainda faz falta é revirar e revelar as "atividades" dos agentes da ditadura, as variadas e sempre dilacerantes práticas de tortura e de crimes hediondos que cometeram contra milhares de presos políticos, incluindo estupros contra meninas capturadas, execuções, "desaparecimentos", ocultação de cadáveres etc.

O projeto de lei em tramitação é muito aberto quanto ao objeto de trabalho da futura comissão, havendo, sim, o risco – se os integrantes da comissão forem tíbios ou desfibradamente "reconciliadores" – de ela descambar para a investigação de supostas "violações" assacadas contra os que resistiram à ditadura, como querem as forças mais reacionárias, só interessadas em embaralhar o assunto, como, de fato, aconteceu em boa medida com a comissão chilena, e em alguma medida com a comissão sul-africana.

Penso que só a pressão da sociedade, uma pressão organizada e insistente, com a multiplicação de seminários e debates por todo o país, com manifestações coletivas ao menos em todas as capitais, com o engajamento dos movimentos estudantil e sindical, dos artistas e intelectuais etc, poderá suscitar um sentimento de indignação e de exigência capaz de neutralizar as pressões das forças da escuridão que, com toda certeza, trabalham no sentido de tornar a Comissão Nacional da Verdade em não mais que uma encenação para a platéia internacional.

Correio da Cidadania: E quanto ao sigilo de dados estabelecido no projeto de lei que criou a Comissão, não se trata de um paradoxo gritante para um projeto que se pretende (ou pretendia) não somente a elucidar, mas a publicitar a 'verdade'?

Damião Trindade:
Será crucial a mais completa transparência e publicidade dos trabalhos da comissão. Todavia, há dispositivos, no projeto em tramitação no Senado, que admitem a realização sigilosa de atividades da comissão (artigo 5º) e que até obrigam a comissão a manter o sigilo dos documentos e informações que o Estado, de antemão, houver classificado como sigilosos (artigo 4º, parágrafo segundo). Isso configura, evidentemente, uma aberração risível. Se o propósito for revelar a verdade sobre as violações de direitos humanos daquele período, como respeitar "sigilos" previamente estabelecidos?

A comissão brasileira se prestará ao papel de censurar informações em seu relatório final ou, quiçá, de produzir um relatório "misto", em que uma parte poderá ser franqueada ao público e outra parte permanecerá sob chaves? Se todas as informações recebidas pela comissão não forem tornadas públicas, estaremos diante de uma mera encenação ditada pela conveniência de comandantes militares e policiais ou por figurões da política que prestaram bons serviços à ditadura e pretendem manter seu colaboracionismo trancado no armário.

Na África do Sul, as sessões da Comissão eram transmitidas ao vivo pela rádio estatal durante quatro horas por dias, todos os dias. Na Argentina, o relatório final da Comisión foi publicado na íntegra, sem qualquer censura, e após cerca de 30 reimpressões, já soma quase 500 mil exemplares vendidos.

Correio da Cidadania: No que diz respeito à ausência de poder de punição da Comissão, que poderá no máximo indicar caminhos a serem seguidos pelo Estado brasileiro, trata-se de critério aceitável mediante os preceitos judiciais brasileiros?

Damião Trindade:
A Comissão Nacional da Verdade, como todas as comissões congêneres dos demais países, não é um órgão jurisdicional, punitivo. Sua competência é apurar a verdade, toda a verdade, e entregá-la por completo, sem censura de qualquer espécie, à sociedade brasileira e ao Estado. A jurisdição constitucional para processar e punir pertence ao Poder Judiciário.

O problema é que, como já apontei, o Poder Judiciário brasileiro, por meio de sua Corte mais alta (insisto: cuja maioria de membros foi indicada pelo Presidente Lula), já decidiu que os crimes cometidos pelos agentes da ditadura estão cobertos pela auto-anistia que a ditadura concedeu a si mesma, malgrado toda a jurisprudência em sentido contrário emanada das Cortes internacionais de direitos humanos.

Em 2012, a Corte Interamericana de Direitos Humanos voltará a examinar a conduta do Estado brasileiro quanto ao cumprimento da sentença condenatória que exigiu a punição dos crimes da ditadura. E, mais uma vez, o Brasil será chamado às suas responsabilidades, sob pena de colocar-se como um Estado que prefere ficar à margem da comunidade internacional.

Correio da Cidadania: Como o senhor posicionaria a presidenta Dilma Rousseff nesse processo, especialmente à luz do fato de ter sido uma vítima notória da ditadura e de seu discurso de início de mandato, com forte ênfase na não tolerância de nenhuma espécie de violação aos direitos humanos?

Damião Trindade:
Em política, não se pode avaliar uma pessoa apenas por seu passado e, muito menos, por seus discursos. Conta mais a sua prática, as opções que adota a cada circunstância. Fiquemos atentos à conduta que ela adotará e logo teremos a resposta a essa pergunta.

Correio da Cidadania: Acredita que, mesmo enfraquecida e ao gosto dos militares e herdeiros da ditadura (políticos, empresários e órgãos de mídia), como se viu na repercussão do assunto, a Comissão da Verdade terá alguma serventia à elucidação, da história do país e ao estancamento das práticas autoritárias que ainda persistem em nosso sistema penal e judiciário? Em suma, ela pode colaborar minimamente para uma transição democrática ainda não concluída por aqui?

Damião Trindade:
A resposta a essa indagação depende da conjugação de vários fatores políticos que ainda estão em desdobramento. Portanto, ainda não é possível oferecermos uma resposta cabal e segura. Depende das modificações que o Senado vier a introduzir no projeto de lei – e devemos temê-las, pois o Senado está sob controle muito maior das classes dominantes conservadoras do que a Câmara dos Deputados. Se assim for, nenhum acerto de contas farão em relação ao nosso passado. Depende também dos eventuais vetos que a Presidente da República estiver disposta a contrapor ao texto final. Depende, ainda, do conteúdo do decreto presidencial que vier a regulamentar a lei – ele poderá facilitar ou dificultar os trabalhos da comissão. Também depende muito, muito mesmo, da composição que a Comissão Nacional da Verdade vier a ter – o que, por sua vez, depende da pressão que as forças democráticas e progressistas forem capazes de mobilizar na sociedade.

E depende, por fim, de outro fator ainda mais imponderável: um processo de busca da verdade, uma vez deflagrado, pode acabar escapando do controle dos seus planejadores, pode acabar transbordando de limites previamente "combinados". Um fato puxa outro, um depoimento acaba incriminando quem deveria ficar acobertado, e assim por diante. A caixa de Pandora pode, até inadvertidamente, ser destampada. Se a Comissão for idônea e politicamente independente, e se de fato desfrutar de independência operacional, poderá colocar o dedo em feridas sérias e acabar jogando luzes sobre o que "deveria" permanecer nas sombras, malgrado seu número pequeno de membros e de assessores, e apesar do prazo exíguo para as investigações.

Poderá, por exemplo, resolver focar seus trabalhos essencialmente no período da ditadura militar, entre 1964 e 1985, o que já reduziria para 21 anos o período investigado, até pela impossibilidade de investigar adequadamente todos os 42 anos previstos no projeto de lei. Ou, ao contrário, se seus membros forem politicamente pusilânimes, empenhados muito mais em "reconciliar" do que em desnudar verdades, poderão propositalmente diluir a investigação pelos 42 anos e esquivar-se de investigar fatos e denúncias que, eventualmente, possam vir a comprometer militares ou figurões da República. Os rumos da Comissão também poderão ser expressivamente influenciados pelo jogo de pressões e contrapressões que ela seguramente receberá durante todo o tempo de funcionamento.

Estarão as forças do progresso social e político amadurecidas para se unir, somar e coordenar esforços, ocupar espaços e exercer uma mobilização aguerrida e uma cobrança de resultados sem qualquer comiseração de natureza partidária? Porque as forças das sombras, dos armários trancados, dos arquivos escondidos, e dos crimes ignominiosos que ocultam, essas forças conhecem muito bem quais são os seus interesses, e reconhecem muito bem os momentos em que devem se unir e se acobertar mutuamente.

Correio da Cidadania: O senhor tem uma opinião já formada sobre a atual Secretaria Nacional dos Direitos Humanos (SNDH), ligada diretamente à presidência? Como o senhor a avalia, à luz da atuação do ministro anterior, Paulo Vannuchi, o primeiro ocupante dessa secretaria, com status ministerial, criada no governo Lula?

Damião Trindade:
Passa a impressão de que a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, não importa o status legal de que desfrute, continua sendo um órgão de segundo escalão, um clube relegado à segunda divisão, que não tem força ou respeitabilidade para, em momentos cruciais, convencer o governo federal de suas posições.

Bastam alguns exemplos. O Congresso Nacional editou a lei 10.559/02 que, dentre outras matérias, obrigou o Estado a indenizar as vítimas ou seus familiares pelos crimes cometidos por agentes públicos durante a ditadura. Em decorrência, o Estado vem indenizando os sobreviventes e as famílias dos mortos/desaparecidos, isto é, vem reconhecendo, nesses casos bem documentados, que o Estado tolerou/promoveu condutas criminosas de seus agentes, condutas essas que estão agora gerando efeitos financeiros contra o próprio Estado. Esse dinheiro das indenizações saiu e continua a sair do erário. A rigor, a União estaria juridicamente obrigada, ela mesma, a ingressar diretamente com ações judiciais contra os agentes criminosos identificados, para compeli-los a repor ao erário esses valores que, por culpa deles, o erário está sendo obrigado a desembolsar. Esse tipo de procedimento ocorre todos os dias, em todas as esferas da Administração Pública, contra servidores que causam prejuízos à Administração.

Por que o governo federal não aplicou o mesmo critério no caso das indenizações políticas? Por que a própria União não processou os agentes da ditadura para que ressarcissem ao erário as despesas com as indenizações pagas? Pois foi necessário o Ministério Público Federal tomar essa iniciativa, na defesa do patrimônio público federal. O MP federal ajuizou, em 2008, uma ação contra dois ex-comandantes do DOI-CODI de São Paulo, para responsabilizá-los financeiramente (não penalmente) por cerca de 60 indenizações pagas pela União relativas a mortos/desaparecidos naquele centro de horrores durante o período em que aqueles dois militares o dirigiram. Ou seja: a ação foi em defesa do patrimônio da União. Os réus são os dois militares, não a União. Chamada a pronunciar-se no processo, a União, representada por sua Advocacia Geral, deveria ter endossado a iniciativa do MP. Mas, para assombro e estarrecimento dos próprios meios jurídicos do país, a AGU... defendeu os réus! Colocou-se contra o próprio interesse patrimonial da União! Na ocasião, o Secretário Nacional de Direitos Humanos pronunciou-se em público no sentido de que o Presidente da República deveria determinar à AGU a mudança de posição. E ele tinha inteira base jurídica e processual para defender isso. Mas o Presidente da República não se moveu e a AGU manteve sua posição horrível.

Mais recentemente, houve o vergonhoso episódio das amputações no III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH). Bastou os comandantes militares torcerem o nariz, a ala conservadora da Igreja protestar, o agronegócio reclamar e os monopólios da grande mídia denunciarem ameaças à "liberdade de imprensa", e o III PNDH, mesmo após debatido e votado democraticamente por milhares de pessoas e de entidades reunidas em conferências por todo o país, foi unilateralmente amputado pelo Presidente Lula de pontos importantíssimos. A Secretaria Nacional dos Direitos Humanos, que era contra essas amputações, foi novamente derrotada.

Por fim, os arquivos militares secretos sobre o período da ditadura, cuja abertura a SNDH sempre defendeu, continuam lacrados e escondidos. Aliás, quanto a isso, como a futura Comissão Nacional da Verdade saberá quais informações deverá requisitar às Forças Armadas, uma vez que não saberá quais informações aqueles arquivos contêm? Como a Comissão poderá requisitar informações que, estando classificadas como sigilosas, ela não faz a menor idéia do que tratam? Na realidade, a coisa toda está toda invertida, pois, primeiramente, os arquivos deveriam ser abertos. Mas, em se tratando de assuntos assim "sensíveis", a SNDH não consegue fazer valer suas posições. É um órgão que vem sendo mantido em posição de fraqueza – o que, é claro, configura, nada mais, nada menos, do que uma opção política da Presidência da República.

Correio da Cidadania: O senhor fez referências a alguns processos de transição democrática mundo afora, os quais, em analogia com nosso país, parecem deixá-lo em uma categoria de muito maior pusilanimidade. Como deve ficar a imagem do Brasil no exterior?

Damião Trindade:
A pergunta já embute uma resposta óbvia. Se não cumpre os tratados internacionais de direitos humanos que subscreveu, e se não cumpre fielmente as decisões de Cortes Internacionais de direitos humanos a que aderiu, como o país espera ser respeitado internacionalmente? Se esse processo de vacilações de passos em falso e de contorcionismos, para não desagradar comandos militares e figurões da política e da alta finança, não for revertido, esse constrangimento internacional do Brasil só crescerá.

O que temia o Presidente Lula, o que tem a temer a Presidenta Dilma? Um novo golpe de Estado? Não há o menor ambiente político ou social para isso. Quando está em jogo completar o processo de transição democrática, o medo, ainda mais o medo deslocado da realidade, é o pior dos conselheiros. A menos que não se trate apenas de medo, mas da reincidência da atávica vocação de nossas classes dominantes e de nossos dirigentes políticos de sempre conciliar pelo alto, de colocar panos quentes nas questões "delicadas", de modo a não perturbar a continuidade da dominação.

Correio da Cidadania: Consideradas as atuais circunstâncias históricas e políticas do país, como deveria ser, na opinião do senhor, uma verdadeira Comissão para elucidar e tomar providências a respeito dos chamados crimes contra a humanidade, imprescritíveis e impassíveis de auto-anistias, nos moldes dos preceitos consagrados pelo direito internacional?

Damião Trindade:
A Comissão deveria ser mais ampla e ser designada após amplíssima consulta pública à sociedade, para garantir-se que nela não tenham assento agentes duplos nem "reconciliadores" pusilânimes, capazes de torcer ou de conter as investigações por medo de desagradar aos poderosos de ontem e de hoje. A comissão deveria contar com ao menos o dobro ou o triplo de assessores e com retaguarda financeira e administrativa assegurada na própria lei. Também deveria ter a sua missão definida mais claramente na lei: investigar e tornar públicas as violações de direitos humanos cometidos por agentes do Estado com farda e sem farda, e por seus comparsas civis, durante os 21 anos da ditadura militar, com todos os arquivos militares e policiais daquele período previamente abertos à sociedade.

Todos os trabalhos da Comissão deveriam ser transparentes e públicos, amplamente divulgados, sem qualquer possibilidade de sessões secretas ou de cumplicidade com sigilo documental. E, para dar conseqüência às revelações a que a Comissão chegasse, deveríamos poder contar com um Poder Judiciário disposto a cumprir sua responsabilidade de oferecer aos criminosos da ditadura que forem identificados exatamente o que eles negaram às suas vítimas: acusações penais justas, isto é, não baseadas em "provas" extorquidas sob tortura, com garantia de amplo direito de defesa, o devido processo legal assegurado e, por fim, sentenças judiciais com direito a todos os recursos previstos na lei processual.

Enquanto isso não acontecer, estaremos "fazendo de conta" que aqueles crimes também não aconteceram, ou que, mesmo após revelados, devem ser "esquecidos" – o que, além de ser por si mesmo abominável, configura um estímulo poderoso, e renovado todos os dias, para que as detenções extrajudiciais, a tortura dos presos pobres e seu assassinato se reproduzam interminavelmente nos dias de hoje. A impunidade dos criminosos da ditadura funciona como uma espécie de "garantia" de impunidade para a violência policial de hoje. Isso já foi demonstrado até em trabalhos acadêmicos.

Correio da Cidadania: Finalmente, por que motivos, políticos ou outros, o governo não seguiu neste rumo, em sua visão? Acredita que a presidente Dilma ainda possa retomá-lo?

Damião Trindade:
O atual projeto de lei sobre a Comissão Nacional da Verdade é fruto da correlação de forças políticas estabelecida no interior do governo Lula e da sua "base aliada" no Congresso, que incorporou, inclusive, setores reacionários da sociedade e antigos colaboradores e simpatizantes da ditadura. E, talvez mais importante que isso, o projeto é fruto do débil grau de convencimento daquele e deste governo em relação à necessidade histórica de desvendar-se todos os crimes e criminosos da ditadura. Fosse esse convencimento maior, e o governo Lula teria adotado essa e outras medidas arejadoras já no início do seu governo, e não apenas no último ano do seu segundo mandato presidencial. Fosse esse convencimento maior, e a atual Presidenta já haveria retirado o projeto do Congresso para consultas à sociedade, visando ao seu aperfeiçoamento. Fosse esse convencimento maior, e Lula ou Dilma já teriam determinado a completa abertura dos arquivos públicos referentes à ditadura – como, aliás, fizeram há vinte anos os governos de São Paulo, Rio Grande do Sul e de outros estados em relação aos arquivos dos respectivos DOPS.

Na Argentina, apenas uma semana após tomar posse, o Presidente Raúl Alfonsín, que estava longe de ser de esquerda, já criou, por decreto mesmo, a Comisión Nacional sobre La Desaparición de Personas. No Chile, o Presidente Patricio Ailwin, que também nunca foi de esquerda, só demorou um mês e meio após sua posse para também criar sua Comisión Nacional de Verdad. Na África do Sul, o Presidente Nelson Mandela demorou pouco mais de um ano para criar a sua Comissão. Sob esse ponto de vista, Lula ficou muito aquém desses líderes que eram meramente liberais. Faltaram ao governo Lula convicção e vontade política para adotar rapidamente uma atitude que, além de ser uma aspiração de todas as forças democráticas, além de ser uma necessidade histórica para superarmos realmente os resquícios da ditadura, era também uma promessa eleitoral. Abrir todos os arquivos, esclarecer e tornar públicos os crimes da ditadura e punir judicialmente os seus criminosos são pontos que sempre constaram de todos os programas do partido capitaneado por Lula.

Vê-se, como sempre, que se conhece melhor o homem – e seu partido – quando chegam ao poder. Assim, não há como apagar a impressão de que o governo Lula só se animou a remeter esse projeto ao Congresso, mesmo com as limitações apontadas, quando ficou evidente que o Brasil estava na iminência de ser condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, o que de fato aconteceu meses depois, no final de 2010. Quanto à Presidente Dilma, também não demorará para sabermos se, nessa questão, haverá ou não convergência entre discurso e prática.


  • Ver também: PCdoB perdoa os assassinos de todos os que lutaram contra a ditadura!

    [*] Economista, editora do Correio da Cidadania ; [**] Jornalista.

    O original encontra-se em www.correiocidadania.com.br/...


    Essa entrevista encontra-se em http://resistir.info/ .

  • domingo, 9 de outubro de 2011

    Tirem o crucifixo do STF. O Cristo Redentor pode ficar

    Leonardo Sakamoto no seu blog


    O Cristo Redentor completa 80 anos na próxima quarta (12), feriado de Nossa Senhora Aparecida.
    Poucas pessoas que visitaram o monumento não ficam maravilhadas com a vista, lá de cima, do Morro do Corcovado, de uma das mais belas cidades do planeta. O que não impede, contudo, de muitos terem achado um tremendo exagero a eleição da estátua como uma das sete novas maravilhas do mundo – concurso realizado por uma fundação suíça, que também elegeu o Taj Mahal (!), o Coliseu (!!) e Machu Picchu (!!!), entre outros monumentos históricos. Perceberam a desproporcionalidade histórica e a paulada no significado da palavra “maravilha”?
    Mas como a votação foi pela internet e houve até campanha de veículos de comunicação brasileiros inflamando o que há de pior em nosso ufanismo patriótico (se é que há algo de bom nesse caldo), era claro que o monumento de gosto estilístico duvidoso fosse entrar nesse hall da fama.
    Em um país de maioria católica (não praticante, é claro, e que apela para todas as forças do universo em um sincretismo fascinante nos momentos de dificuldade), a estátua, que fica sob os cuidados da Arquidiocese do Rio de Janeiro, tem sua importância. Se aquela referência faz bem à grande maioria das pessoas e não ofende uma minoria, não há problema. O difícil não é ter que conviver com um símbolo de uma crença que não é a sua na rua – a isso damos o nome de tolerância, que deveria ser melhor cultivada por estas bandas, o que protegeria o direito de culto em igrejas, templos e terreiros. O ruim é saber que a presença desses símbolos em prédios que pertencem ao poder público mostram que a saudável e necessária separação entre fé e Estado não ocorre por aqui.
    A questão da retirada de crucifixos, imagens religiosas e afins de repartições públicas gerou polêmicas ao longo da história a partir do momento em que um Estado se afirma laico (e não desde o lançamento do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, no ano passado, que previa essa ação). A França retirou os símbolos religiosos de sedes de governos, tribunais e escolas públicas no final do século 19. Nossa primeira Constituição republicana já contemplava a separação entre Estado e Igreja, mas estamos 120 anos atrasados em cumprir a promessas dos legisladores de então.
    Em janeiro de 2010, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) lançou uma nota em que rejeitou “a criação de ‘mecanismos para impeder a ostentação de símbolos religiosos em estabelecimentos públicos da União’, pois considera que tal medida intolerante pretende ignorar nossas raízes históricas”.
    Na época, auto-intitulados representantes de Deus, afirmaram que se o governo quisesse tirar símbolos religiosos, então deveria começar pelo Cristo Redentor. Chantagem besta, do mesmo DNA de: “se for para começar a discutir as regras do jogo, levo a minha bola embora – humpf”. Particularmente, pode demolir a estátua que não dou a mínima (e, com essa frase iconoclasta, selo a excomunhão deste que já foi até coroinha). Mas sei que a sociedade, que tem apreço por ela, não deixaria meia dúzia de “iluminados” sacerdotes tomar tal medida uma vez que o monumento pertence, na prática, à cidade do Rio e não à Cúria. Em tempo: não é o governo que sugere a retirada dos símbolos religiosos de repartições públicas, mas foi a Conferência Nacional de Direitos Humanos, que derivou de conferência estaduais, reunindo a sociedade brasileira em um debate longo e democrático.
    Adoro quando alguém apela para as “raízes históricas” para discutir algo. Na época, lembrei que a escravidão está em nossas raízes históricas. A sociedade patriarcal está em nossas raízes históricas. A desigualdade social estrutural está em nossas raízes históricas. A exploração irracional dos recursos naturais está em nossas raízes históricas. A submissão da mulher como mera reprodutora e objeto sexual está em nossas raízes históricas. As decisões de Estado serem tomadas por meia dúzia de iluminados ignorando a participação popular estão em nossas raízes históricas. Lavar a honra com sangue está em nossas raízes históricas. Caçar índios no mato está em nossas raízes históricas. E isso para falar apenas de Brasil. Até porque queimar pessoas por intolerância de pensamento está nas raízes históricas de muita gente.
    Quando o ser humano consegue caminhar a ponto de ver no horizonte a possibilidade de se livrar das amarras de suas “raízes históricas”, obtendo a liberdade para acreditar ou não, fazer ou não fazer, ser o que quiser ser, instituições importantes trazem justificativas para manter tudo como está.
    Como foi noticiado neste blog, em 2009, o Ministério Público do Piauí solicitou a retirada de símbolos religiosos dos prédios públicos, atendendo a uma representação feita por entidades da sociedade civil e o presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro mandou recolher os crucifixos que adornavam o prédio e converteu a capela católica em local de culto ecumênico. Algumas dessas ações têm vida curta, mas o que importa é que percebe-se um processo em defesa de um Estado que proteja e acolha todas as religiões, mas não seja atrelado a nenhuma delas.
    É necessário que se retirem adornos e referência religiosas de edifícios públicos, como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional. Não é porque o país tem uma maioria de católicos que espíritas, judeus, muçulmanos, enfim, minorias, precisem aceitar um crucifixo em um espaço do Estado. Além disso, as denominações cristãs são parte interessada em várias polêmicas judiciais – de pesquisas com célula-tronco ao direito ao aborto. Se esses elementos estão escancaradamente presentes nos locais onde são tomadas as decisões sem que ninguém se mexa para retirá-las, como garantir que as decisões serão isentas? O Estado deve garantir que todas as religiões tenham liberdade para exercer seus cultos, tenham seus templos, igrejas e terreiros e ostentem seus símbolos. Mas não pode se envolver, positiva ou negativamente, em nenhuma delas.
    E não sou eu quem diz isso. Em Mateus, capítulo 22, versículo 21, o livro sagrado do cristianismo deixa bem claro o que o pessoal de hoje quer fazer de conta que não entende: “Dai, pois, a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus”.

    Estado é Estado. Religião é religião. Simples assim.

    Os intelectuais no pós-lulismo

    Idelber Avelar na REVISTA FÓRUM
    Há dez anos, nascia a Revista Fórum. Há dez anos, os ataques terroristas a Nova York e Washington—embora não diferentes moralmente de incontáveis ataques realizados pelo terrorismo de Estado ocidental no mundo árabe—inauguravam um momento histórico distinto, caracterizado pelo declínio da aura de invencibilidade dos Estados Unidos e pela lógica perversa da guerra sem fim. Na América Latina, a eleição de Hugo Chávez, três anos antes, e de Lula, um ano depois, dava início à guinada à esquerda que caracterizou a década no continente. Nos ataques de 11 de setembro de 2001, apareceram em tempo real para o grande público, pela primeira vez, testemunhos pessoais compilados em ferramentas de publicação online que então começavam a serem conhecidas como “blogs”. Coincidentemente, a década conclui com enormes protestos populares no mundo árabe, em Israel, Chile, Inglaterra e Espanha, nos quais as novas tecnologias cumpriram papel central. Onde estão os intelectuais que pensaram esta década? Onde é que o pensamento tem se encontrado com a práxis?
    O termo “intelectual” é usado em vários sentidos, alguns deles, inclusive, pejorativos. Em seu sentido estrito, ele remete ao “caso Dreyfus”, na França. O jornal L’Aurore publicou, em 13 de janeiro de 1898, uma carta aberta do então já renomado escritor Émile Zola, dirigida ao presidente da República, com o título que se tornaria célebre: J’accuse (Eu acuso). O texto era um potente ataque ao processo militar que havia injustamente condenado o oficial judeu Alfred Dreyfus por crime de traição. Evocando a verdade e a justiça, denunciando o anti-semitismo do caso, lembrando a França dos direitos do homem, a carta de Zola criou uma mobilização sem precedentes entre artistas e escritores, que logo publicaram textos em apoio a Dreyfus. Foi a retaliação dos adversários que usou pejorativamente, como neologismo para se referir a eles, o termo “intelectuais”, que até então não tinha circulação em francês. Desde então, a palavra se firmou para, nesse sentido estrito, definir aqueles sujeitos sociais que, trabalhando com o pensamento, intervêm para além das suas especialidades particulares, de forma pública, em temas que dizem respeito à pólis como um todo. Seu grande modelo, durante o século XX, também foi francês, Jean-Paul Sartre, mas as últimas décadas nos deram vários indícios de esgotamento do modelo humanista e orgânico do intelectual sartriano, questionado duramente a partir da explosão anárquica e horizontal de Maio de 1968.
    No Brasil, como de resto em outros países da América Latina, a reforma universitária impôs uma tecnificação e uma compartimentalização que limitaram a possibilidade de que a universidade produzisse intelectuais com condições e disposição de intervir publicamente, para além das suas áreas de especialização. Privilegiou-se aqui a produção de um outro espécimen, o técnico, que tem em relação ao intelectual uma diferença marcante: o técnico jamais apresenta suas opções como resultado de escolhas políticas, e sim de uma racionalidade instrumental lógica. O técnico, portanto, não se coloca na posição de ter que assumir as consequências políticas do que preconiza, já que todo o processo de escolha é situado numa arena supostamente externa à política. Seu grande modelo brasileiro, nas últimas décadas, foram os economistas do tucanato, que apresentaram a privatização, a desregulamentação dos mercados e a descapitalização do Estado como produtos de uma escolha puramente racional, técnica, que seguia uma inexorabilidade científica. Foi preciso que um outro modelo se impusesse para que ficasse claro quão ideológicas eram aquelas escolhas. Mas ao longo dos anos 90, os economistas da privatização não se apresentavam, e não eram percebidos por grande parte da população, como representantes de um projeto político. Falavam em nome da ciência.
    Em virtude do enorme grau de concentração e homogeneidade política da mídia brasileira, as figuras que nela falam como intelectuais tendem a ser, em geral, as mesmas. O leque dos chamados a opinar é notavelmente estreito: sobre ações afirmativas, se escutará Yvonne Maggie ou Demétrio Magnoli (de nenhuma produção acadêmica séria sobre o tema) dizendo que elas “racializam” a sociedade; sobre qualquer episódio da história moderna do Brasil, aguarde a entrevista com Marco Antonio Villa. E assim por diante, com a lista completa disponível num texto anterior que publiquei aqui na Fórum (“Acadêmicos Amestrados”, edição 80). Há exceções que desafiam o coro, como mostram as recentes contratações de José Miguel Wisnik por O Globo e Vladimir Safatle pela Folha de São Paulo. Mas, em geral, a intelectualidade que fala na mídia brasileira é bastante homogênea.
    A partir de 2003 e, em especial, do final de 2005, que marca a recuperação do Presidente Lula do episódio do mensalão e o aparecimento mais nítido de indicadores do sucesso sócio-econômico do governo, a reação da intelectualidade alinhada com o lulismo centrou todo o seu poder de fogo na crítica da mídia. Dada a virulência com que os conglomerados de mídia brasileiros atacaram o lulismo com moralidade seletiva e, em muitos casos, com pura e simples falsificação (como na montagem publicada pela Folha como se fosse a ficha do DOPS de Dilma), essa reação era esperável, mas ela também solapou severamente a capacidade dessa intelligentsia de produzir pensamento crítico sobre o Brasil. A proliferação do termo “PiG”, que se fundamenta numa teoria de mídia patentemente ultrapassada, favoreceu atos de leitura seletiva que confundiam com golpismo qualquer crítica ao governo, mesmo as legítimas (como muitas críticas ambientalistas, ou as restrições às nomeações ao STF, ou o lamentável compadrio com Ricardo Teixeira na gestão do futebol). Daí foi um pulo para declarações em que, mesmo confessando ignorância sobre um tema, o intelectual alinhado descartava, por exemplo, com o argumento de que o tema não tinha transcendência. São os momentos em que o intelectual abdica dessa condição para se transformar em puro apparatchik.
    Talvez o grande legado dos últimos anos para a renovação do papel do intelectual no Brasil tenha sido a experiência dos Pontos de Cultura do Ministério de Gilberto Gil e Juca Ferreira. Mais de quatro mil centros produtores e difusores de cultura, em todo o território nacional, revolucionaram a concepção que regia a relação entre a esquerda e as culturas populares no Executivo. Em vez de “levar” um produto cultural ao povo, os Pontos de Cultura potencializaram expressões já desenvolvidas pelas próprias comunidades, valorizando-as. Quando, por exemplo, os índios ashaninka, da aldeia Apiwtxa, no Acre, produzem um filme como A gente luta, mas come fruta (2006), mostrando o trabalho de manejo agroflorestal e a luta contra os madeireiros, e depois passam a ser uma das primeiras trinta aldeias contempladas como Pontos de Cultura indígenas (2009), é toda uma formação de intelectuais não tradicionais que vai se gerando por disseminação descentralizada. Infelizmente, como a Fórum tem debatido à exaustão nos últimos meses, a restauração conservadora no Ministério da Cultura de Dilma, retomado pelo ECAD, pelo lobby dos direitos autorais e da propriedade intelectual e pela “classe artística” tradicional, tem causado um dano considerável a esse legado. Ele sobrevive no ativismo, mas foi completamente desalojado do aparato estatal e não há perspectiva de que ele encontre grandes brechas ali num futuro próximo.
    O brutal retrocesso no Ministério da Cultura, a intensificação do paradigma desenvolvimentista herdado de Lula, com a consequente destruição ambiental (da qual a Usina Belo Monte é o maior, mas nem de longe o único exemplo) e a timidez do governo na regulamentação das telecomunicações são só alguns indicadores de que a intelectualidade de esquerda terá que ter jogo de cintura para se descolar do governismo sempre que necessário, sem fazer, evidentemente, o jogo da oposição de direita. Estão aí os recados do mundo contemporâneo: Wikileaks, Revoluções Árabes, M-15 espanhol, revoltas de consumidores excluídos em Londres, o radicalizado movimento estudantil no Chile, as surpreendentes manifestações de massa em Israel. Quais serão os pensadores ativistas brasileiros que entenderão que a simples manutenção do atual paradigma não será suficiente por muito tempo mais? Quem será capaz de articular pontes entre o ambientalismo e o combate à desigualdade social, de tal forma que a nova Classe C seja permeável à urgente mensagem de que fazer hidrelétricas e exportar soja até a água e o solo acabarem não é exatamente um bom plano? Quais serão os intelectuais que entenderão o recado das comunidades digitais, da disseminação do comum na internet, do potencial político da troca, cópia e circulação infinita de arquivos? Quais serão os acadêmicos que saberão romper os muros da universidade e vincular suas pesquisas específicas com os interesses gerais em conflito na pólis? As tarefas que se apresentam para a intelectualidade de esquerda são enormes, e repetir a eterna cantilena de atacar e corrigir as distorções de Globo e Folha não é o caminho para enfrentá-las. Embora a luta pelas democratizações continue sendo uma das mais urgentes entre essas mesmas tarefas.

    PS: Como preparação para esta coluna, fiz em meu Twitter (@iavelar) uma breve enquete: quais são os intelectuais que, na última década, o ajudaram a pensar, entender e planejar o Brasil? Deixo para o leitor da Fórum uma seleção dos mais votados, como convite a que se conheçam suas obras. Em primeiro lugar, o meu próprio voto: Maria Rita Kehl, José Miguel Wisnik, Eduardo Viveiros de Castro, Luiz Antonio Simas, Vladimir Safatle, Nei Lopes, Gilberto Gil, Luiz Felipe de Alencastro, Raquel Rolnik, Maria da Conceição Tavares, Márcio Pochmann, Tostão e Lorenzo Mammi. Outros bem votados foram: Roberto DaMatta, Luiz Fernando Veríssimo, Jessé de Souza, Rodrigo Naves, Marcos Nobre, Alexandre Nodari, Raúl Antelo, Marilena Chauí, Pádua Fernandes, Ronaldo Lemos, Sérgio Amadeu, João Reis, Ana Maria Gonçalves, Luiz Costa Lima e Francisco Foot Hardman.

    Este artigo é parte da Edição 102 da Revista Fórum.

    Naomi Klein: Ocupa Wall Street é o movimento mais importante do mundo hoje


    “Por que eles estão protestando?”, perguntam-se os confusos comentaristas da TV. Enquanto isso, o mundo pergunta: “por que vocês demoraram tanto? A gente estava querendo saber quando vocês iam aparecer.” E, acima de tudo, o mundo diz: “bem-vindos”. Dez anos depois, parece que já não há países ricos. Só há um bando de gente rica. Gente que ficou rica saqueando a riqueza pública e esgotando os recursos naturais ao redor do mundo. Leia o pronunciamento de Naomi Klein em Nova York.


    ]Foi uma honra, para mim, ter sido convidada a falar em Occupy Wall Street na 5ª-feira à noite. Dado que os amplificadores estão (infelizmente) proibidos, e o que eu disser terá de ser repetido por centenas de pessoas, para que outros possam ouvir (o chamado “microfone humano”), o que vou dizer na Praça Liberty Plaza terá de ser bem curto. Sabendo disso, distribuo aqui a versão completa, mais longa, sem cortes, da minha fala.

    Occupy Wall Street é a coisa mais importante do mundo hoje[1]

    Eu amo vocês.

    E eu não digo isso só para que centenas de pessoas gritem de volta “eu também te amo”, apesar de que isso é, obviamente, um bônus do microfone humano. Diga aos outros o que você gostaria que eles dissessem a você, só que bem mais alto.

    Ontem, um dos oradores na manifestação dos trabalhadores disse: “Nós nos encontramos uns aos outros”. Esse sentimento captura a beleza do que está sendo criado aqui. Um espaço aberto (e uma ideia tão grande que não pode ser contida por espaço nenhum) para que todas as pessoas que querem um mundo melhor se encontrem umas às outras. Sentimos muita gratidão.

    Se há uma coisa que sei, é que o 1% adora uma crise. Quando as pessoas estão desesperadas e em pânico, e ninguém parece saber o que fazer: eis aí o momento ideal para nos empurrar goela abaixo a lista de políticas pró-corporações: privatizar a educação e a seguridade social, cortar os serviços públicos, livrar-se dos últimos controles sobre o poder corporativo. Com a crise econômica, isso está acontecendo no mundo todo.

    Só existe uma coisa que pode bloquear essa tática e, felizmente, é algo bastante grande: os 99%. Esses 99% estão tomando as ruas, de Madison a Madri, para dizer: “Não. Nós não vamos pagar pela sua crise”.

    Esse slogan começou na Itália em 2008. Ricocheteou para Grécia, França, Irlanda e finalmente chegou a esta milha quadrada onde a crise começou.

    “Por que eles estão protestando?”, perguntam-se os confusos comentaristas da TV. Enquanto isso, o mundo pergunta: “por que vocês demoraram tanto? A gente estava querendo saber quando vocês iam aparecer.” E, acima de tudo, o mundo diz: “bem-vindos”.

    Muitos já estabeleceram paralelos entre o Ocupar Wall Street e os assim chamados protestos anti-globalização que conquistaram a atenção do mundo em Seattle, em 1999. Foi a última vez que um movimento descentralizado, global e juvenil fez mira direta no poder das corporações. Tenho orgulho de ter sido parte do que chamamos “o movimento dos movimentos”.

    Mas também há diferenças importantes. Por exemplo, nós escolhemos as cúpulas como alvos: a Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, o G-8. As cúpulas são transitórias por natureza, só duram uma semana. Isso fazia com que nós fôssemos transitórios também. Aparecíamos, éramos manchete no mundo todo, depois desaparecíamos. E na histeria hiper-patriótica e nacionalista que se seguiu aos ataques de 11 de setembro, foi fácil nos varrer completamente, pelo menos na América do Norte.

    O Ocupa Wall Street, por outro lado, escolheu um alvo fixo. E vocês não estabeleceram nenhuma data final para sua presença aqui. Isso é sábio. Só quando permanecemos podemos assentar raízes. Isso é fundamental. É um fato da era da informação que muitos movimentos surgem como lindas flores e morrem rapidamente. E isso ocorre porque eles não têm raízes. Não têm planos de longo prazo para se sustentar. Quando vem a tempestade, eles são alagados.

    Ser horizontal e democrático é maravilhoso. Mas esses princípios são compatíveis com o trabalho duro de construir e instituições que sejam sólidas o suficiente para aguentar as tempestades que virão. Tenho muita fé que isso acontecerá.

    Há outra coisa que este movimento está fazendo certo. Vocês se comprometeram com a não-violência. Vocês se recusaram a entregar à mídia as imagens de vitrines quebradas e brigas de rua que ela, mídia, tão desesperadamente deseja. E essa tremenda disciplina significou, uma e outra vez, que a história foi a brutalidade desgraçada e gratuita da polícia, da qual vimos mais exemplos na noite passada. Enquanto isso, o apoio a este movimento só cresce. Mais sabedoria.

    Mas a grande diferença que uma década faz é que, em 1999, encarávamos o capitalismo no cume de um boom econômico alucinado. O desemprego era baixo, as ações subiam. A mídia estava bêbada com o dinheiro fácil. Naquela época, tudo era empreendimento, não fechamento.

    Nós apontávamos que a desregulamentação por trás da loucura cobraria um preço. Que ela danificava os padrões laborais. Que ela danificava os padrões ambientais. Que as corporações eram mais fortes que os governos e que isso danificava nossas democracias. Mas, para ser honesta com vocês, enquanto os bons tempos estavam rolando, a luta contra um sistema econômico baseado na ganância era algo difícil de se vender, pelo menos nos países ricos.

    Dez anos depois, parece que já não há países ricos. Só há um bando de gente rica. Gente que ficou rica saqueando a riqueza pública e esgotando os recursos naturais ao redor do mundo.

    A questão é que hoje todos são capazes de ver que o sistema é profundamente injusto e está cada vez mais fora de controle. A cobiça sem limites detona a economia global. E está detonando o mundo natural também. Estamos sobrepescando nos nossos oceanos, poluindo nossas águas com fraturas hidráulicas e perfuração profunda, adotando as formas mais sujas de energia do planeta, como as areias betuminosas de Alberta. A atmosfera não dá conta de absorver a quantidade de carbono que lançamos nela, o que cria um aquecimento perigoso. A nova normalidade são os desastres em série: econômicos e ecológicos.

    Estes são os fatos da realidade. Eles são tão nítidos, tão óbvios, que é muito mais fácil conectar-se com o público agora do que era em 1999, e daí construir o movimento rapidamente.

    Sabemos, ou pelo menos pressentimos, que o mundo está de cabeça para baixo: nós nos comportamos como se o finito – os combustíveis fósseis e o espaço atmosférico que absorve suas emissões – não tivesse fim. E nos comportamos como se existissem limites inamovíveis e estritos para o que é, na realidade, abundante – os recursos financeiros para construir o tipo de sociedade de que precisamos.

    A tarefa de nosso tempo é dar a volta nesse parafuso: apresentar o desafio à falsa tese da escassez. Insistir que temos como construir uma sociedade decente, inclusiva – e ao mesmo tempo respeitar os limites do que a Terra consegue aguentar.

    A mudança climática significa que temos um prazo para fazer isso. Desta vez nosso movimento não pode se distrair, se dividir, se queimar ou ser levado pelos acontecimentos. Desta vez temos que dar certo. E não estou falando de regular os bancos e taxar os ricos, embora isso seja importante.

    Estou falando de mudar os valores que governam nossa sociedade. Essa mudança é difícil de encaixar numa única reivindicação digerível para a mídia, e é difícil descobrir como realizá-la. Mas ela não é menos urgente por ser difícil.

    É isso o que vejo acontecendo nesta praça. Na forma em que vocês se alimentam uns aos outros, se aquecem uns aos outros, compartilham informação livremente e fornecem assistência médica, aulas de meditação e treinamento na militância. O meu cartaz favorito aqui é o que diz “eu me importo com você”. Numa cultura que treina as pessoas para que evitem o olhar das outras, para dizer “deixe que morram”, esse cartaz é uma afirmação profundamente radical.

    Algumas ideias finais. Nesta grande luta, eis aqui algumas coisas que não importam:

    Nossas roupas.

    Se apertamos as mãos ou fazemos sinais de paz.

    Se podemos encaixar nossos sonhos de um mundo melhor numa manchete da mídia.

    E eis aqui algumas coisas que, sim, importam:

    Nossa coragem.

    Nossa bússola moral.

    Como tratamos uns aos outros.

    Estamos encarando uma luta contra as forças econômicas e políticas mais poderosas do planeta. Isso é assustador. E na medida em que este movimento crescer, de força em força, ficará mais assustador. Estejam sempre conscientes de que haverá a tentação de adotar alvos menores – como, digamos, a pessoa sentada ao seu lado nesta reunião. Afinal de contas, essa será uma batalha mais fácil de ser vencida.

    Não cedam a essa tentação. Não estou dizendo que vocês não devam apontar quando o outro fizer algo errado. Mas, desta vez, vamos nos tratar uns aos outros como pessoas que planejam trabalhar lado a lado durante muitos anos. Porque a tarefa que se apresenta para nós exige nada menos que isso.

    Tratemos este momento lindo como a coisa mais importante do mundo. Porque ela é. De verdade, ela é. Mesmo.

    [1] Discurso originalmente publicado no The Nation, em http://www.thenation.com/article/163844/occupy-wall-street-most-important-thing-world-now. Tradução para o português do Brasil, de Idelber Alvelar, da Revista Fórum, em http://www.revistaforum.com.br/conteudo/detalhe_noticia.php?codNoticia=9518/a-coisa-mais-importante-do-mundo-.
    Fonte
    http://www.commondreams.org/view/2011/10/07-0

    Bancários reclamam de silêncio dos banqueiros



    Trabalhadores entendem que fechamento ao diálogo vai apenas fortalecer a greve, que já é vista como a maior dos últimos 20 anos, com a adesão dos funcionários de quase nove mil agências em todos os estados.


    A greve dos bancários em todo o país se aproxima do 14º dia, na segunda-feira (10), sem que haja sinalização por parte da Federação Nacional de Bancos (Fenaban) de uma reabertura das negociações. Nenhuma nova reunião é marcada desde o fim de setembro, e a carta enviada pelo comando da paralisação à Fenaban na última semana ainda não foi respondida.

    A Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro (Contraf) calcula que esta já seja a maior greve dos últimos 20 anos, com o fechamento de 8.951 agências nos 26 estados e no Distrito Federal. O movimento teve início em 27 de setembro, quando os trabalhadores rejeitaram a proposta de reajuste salarial de 8%, o que significaria um aumento real de 0,56%.

    “Os bancos, cujo lucro cresceu 20% apenas no primeiro semestre do ano, com ganhos de R$ 26,5 bilhões entre as sete maiores instituições financeiras, têm condições de retomar as negociações, melhorar essa proposta e atender às reivindicações da categoria. Os bancários estão abertos à negociação, está nas mãos dos bancos por fim à greve”, disse Juvandia Moreira, presidenta do Sindicato dos Bancários de São Paulo, Osasco e Região.

    Os bancários querem reajuste de 12,8%, o que resultaria em aumento real de 5%, aumento da participação nos Lucros e Resultados, mais contratações, além de uma série de iniciativas para melhorar as condições de trabalho, como o fim das metas consideradas abusivas, o combate ao assédio moral e um atendimento mais cuidadoso dos clientes.

    “Os bancários estão indignados com o silêncio e a hipocrisia dos bancos”, critica Carlos Cordeiro, presidente da Contraf-CUT e coordenador do Comando Nacional dos Bancários, que acusa a Fenaban de divulgar informações falsas na tentativa de desgastar a greve e demonstrar intransigência da categoria. "Além de ignorar as reivindicações da categoria, os bancos desrespeitam o direito constitucional de greve ao utilizar práticas antissindicais, pressionando e intimidando seus funcionários para que furem o movimento. Eles chegam a utilizar helicópteros para levar bancários para os centros administrativos."

    A Fenaban não se manifestou a respeito e não divulgou nova data para a negociação. O último comunicado da entidade a respeito da greve foi emitido em 29 de setembro.

    Fonte: Rede Brasil Atual

    Falta de emprego é pior problema em Bagé; prefeito recebe nota 6,6


    Centro administrativo de Bagé | Foto: Prefeitura de Bagé/Divulgação
    Centro administrativo de Bagé | Foto: Prefeitura de Bagé/Divulgação

    Da Redação do Sul21

    A falta de emprego é o principal problema de Bagé, de acordo com os entrevistados pela pesquisa Kepeler/Sul21. Por outro lado, se fossem sugerir uma ação à prefeitura, os eleitores do município pediriam mais investimentos em saúde. O atual prefeito, Dudu Colombo (PT), recebeu nota média de 6,6 da população.

    Leia mais:
     
    Os dados constam da pesquisa da Kepeler Consultoria, publicada nesta sexta-feira (6) em parceria com o Sul21. A pesquisa apontou a intenção de voto para a prefeitura de Bagé a um ano da eleição municipal.

    problemass e investimentos

    A pesquisa perguntou aos eleitores quais os piores problemas do município. A falta de emprego foi a primeira resposta da maioria dos entrevistados – 52,3% deram essa resposta. Para 14,3%, o pior problema de Bagé é a falta de segurança. Os salários baixos são o pior problema para 12,8% dos entrevistados. Outros 8,3% apontaram a má qualidade de assistência médica como pior problema do município.
    A pesquisa também perguntou qual seria o pedido ou sugestão que os entrevistados fariam ao prefeito de Bagé. “Investir em saúde” foi a resposta de 13,3% dos entrevistados. Para 11,7%, o mais importante são os investimentos em infraestrutura. Investir em pavimentação foi a resposta de 10,4% dos entrevistados. Para 7,8%, investimentos em segurança são os mais prioritários. Para 7,5%, aumentar os empregos é o mais importante.

    Maioria está satisfeita

    A pesquisa perguntou aos entrevistados sobre como se sentem em relação à própria vida. A maioria (56,8%) se disse satisfeita com a vida que leva hoje, sendo que 20,5% dos entrevistados disseram estar muito satisfeitos. Outros 19,3% informaram estar pouco satisfeitos em relação à vida que levam hoje. O índice de nada satisfeitos foi de 3%. Não souberam responder ou não informaram 0,6% dos entrevistados.
    Fonte: Kepeler Consultoria

    Questionados se a vida em Bagé melhorou ou piorou nos últimos cinco anos, 51,5% responderam que a vida mudou para melhor. Para 10,3%, mudou para pior. Dos entrevistados, 36,5% responderam que a vida em Bagé nem melhorou, nem piorou nos últimos cinco anos. Não souberam responder ou não informaram 1,8% dos entrevistados.
    Fonte: Kepeler Consultoria

    Aprovação do prefeito é de 51%

    A pesquisa da Kepeler Consultoria também questionou os entrevistados sobre como avaliam a administração do prefeito Dudu Colombo e também o desempenho do prefeito.
    Aprovam a administração municipal 51% dos entrevistados – para 41%, a administração é boa e para 10%, é ótima. Consideram regular a administração 30,3% dos entrevistados. A reprovação da atual administração ficou em 18% – para 7,5% a administração é ruim e para 10,5% é péssima.
    Fonte: Kepeler Consultoria

    O desempenho do prefeito também foi avaliado. A aprovação ficou nos mesmos 51%. Para 35,3% dos entrevistados, o desempenho do prefeito Dudu Colombo é regular. A reprovação ficou em 10,3% – 3% consideram ruim o desempenho do prefeito e 7,3%, péssimo.
    Fonte: Kepeler Consultoria

    Avaliação de Dilma e Tarso

    A aprovação do governo Dilma Rousseff é de 60% – para 49% dos entrevistados, o governo Dilma é bom e, para 11%, é ótimo. Consideram regular o governo 33,5% dos entrevistados. A reprovação do governo Dilma em Bagé é de apenas 3,8%.
    Em relação ao governo Tarso, a aprovação da população de Bagé é de 54,1%. Para 33,8%, o governo Tarso é regular. A reprovação do governo ficou em 6,8%.

    Análise dos dados

    Por Benedito Tadeu César

    Satisfeitos com a vida que levam atualmente e entendendo que as condições de vida melhoraram no município nos últimos cinco anos, os bageenses estão preocupados com o desemprego, a violência e a qualidade da assistência médica que recebem. Nada muito diferente do que ocorre na maioria dos municípios brasileiros, com exceção do que diz respeito à preocupação com o desemprego, que não aparece com tanta intensidade nas regiões com economia mais dinâmica. Hoje, em quase todos os municípios, a saúde aparece como a primeira preocupação, ficando o desemprego em terceiro ou quarto lugar.
    A satisfação com a vida se expressa também na aprovação do desempenho dos governantes de todos os níveis. Dilma Roussef, Tarso Genro e Dudu Colombo aparecem bem avaliados, sendo que a aprovação que recebem é proporcional à distância de mantém da vida cotidiana dos moradores. Desta forma, a presidenta da república é a mais bem avaliada, seguida do governador do estado. O prefeito, a quem cabe resolver os problemas mais concretos dos cidadãos, ainda que bem avaliado, recebe o menor índice de aprovação.
    No que se refere às questões eleitorais, os bageenses revelam-se divididos, segundo os dados da pesquisa Kepeler/Sul21. O atual prefeito lidera com folga as menções espontâneas, mas aparece em empate técnico com a vereadora Adriana Lara nos dois cenários testados. Os demais possíveis candidatos não atingem índices significativos. O que desperta atenção é o percentual de menções espontâneas consignadas ao ex-prefeito Luiz Fernando Mainardi. Já tendo declarado que não será candidato, ele aparece em segundo lugar na pesquisa espontânea. Ao que parece, se as eleições ocorressem hoje, Maninardi seria o grande eleitor do município, ou seja, seu apoio definiria o resultado.
    Nunca é demais lembrar, entretanto, que os cenários eleitorais são dinâmicos. Há cerca de um ano das eleições, nada está ainda definido.

    Benedito Tadeu César é cientista político, especialista em pesquisas de opinião pública e professor aposentado da UFRGS.

    quinta-feira, 6 de outubro de 2011

    A luta cubana contra o terrorismo

    Por Nildo Ouriques, no sítio da Adital:
    Créditos: Blog do Miro
     
    O primeiro livro sobre Cuba que eu li foi A Ilha, de Fernando Morais, no final da década de setenta. Em perspectiva, aquele livrinho – que na época cumpriu extraordinário papel educativo – hoje seria desnecessário. O acesso a internet, a possibilidade de viajar diretamente a Havana, a presença de intelectuais e dirigentes políticos cubanos em eventos no Brasil, permite conhecimento mais preciso sobre um país que durante nossa longa ditadura – 21 anos – seria impossível. A Ilha, na verdade, uma espécie de livro-reportagem, introduzia o leitor no conhecimento das reformas iniciadas pela Revolução Cubana, este fenômeno histórico que é um verdadeiro divisor de águas na política e na consciência mundial e latino-americana.


    Atualmente, a "imprensa livre” segue em uníssono a campanha contra o sistema político cubano sem mudar um átomo daquele enfoque típico do período chamado de "guerra fria”. Exceto pelo fato de que qualquer pessoa pode ler na edição dominical do Estadão os textos de Yaomy Sánchez, a "dissidente” que publica artigos com todo tipo de críticas ao sistema político cubano (falsas e/ou verdadeiras), um verdadeiro luxo que nenhum proscrito pela ditadura brasileira jamais teve.

    Nestes dias, li de "um tirón” o novo livro de Fernando Morais. À exemplo de A Ilha, do qual minha memória guarda apenas uma cálida recordação, "Os últimos soldados da guerra fria. A história dos agentes secretos infiltrados por Cuba em organizações de extrema direita nos Estados Unidos” é também um livro reportagem, embora de muito maior fôlego, repleto de informação –e pesquisa– acesso privilegiado a documentos de Estado, pitadas de novela, estilo direto e agradável. E mais importante, é também um livro de análise das relações internacionais (sobre o poder dos estados nacionais), sobre o terrorismo de estado e as formas de combatê-lo.

    Como de costume, "Os últimos soldados da guerra fria” foi recebido pela crítica brasileira com ceticismo e desaprovação. O jornal Folha de São Paulo sugeriu que se tratava de um livro débil e indicou como prova cabal duas ou três informações errôneas, como se fosse possível realizar um trabalho relativamente longo e importante de pesquisa sem erros. Eu mesmo encontrei que Luis Miguel, o cantor de boleros mexicanos nasceu, segundo Morais, em Porto Rico. Apesar de errônea, qual a importância desta informação para o argumento central da trama?

    Há, em quase todos os livros sobre América Latina, grandes e pequenos erros, especialmente quando se trata de relatos que envolvem muitos personagens e longos períodos históricos. Recordo a respeito que "A utopia desarmada”, de Jorge Catañeda, foi um livro aclamado com enorme entusiasmo pelo jornalismo nacional e contém –este sim!– graves erros históricos e não poucas falsificações que comprometem derradeiramente seu argumento central. O livro não poderia ser mais desastroso e a crítica recebeu bastante bem, mas obviamente fazia parte da campanha mundial contra o radicalismo de esquerda na América Latina.

    De minha parte, creio que Fernando Morais, vacilou na questão central. Seu precioso relato sobre os agentes cubanos infiltrados nas organizações terroristas –ele as denomina de "extrema direita”– que se proliferam em Miami é, de fato, um capítulo heróico de pessoas dispostas a arriscar a própria vida na defesa de seu povo. É também uma demonstração inequívoca de que os cubanos sempre atuaram de maneira inflexível contra qualquer ato terrorista e não mediram esforços para combatê-lo mesmo em território estadunidense.

    Contudo, ainda com a abundância de provas e o conhecimento que qualquer latino-americano medianamente informado possui sobre a importância de Miami para a chamada "comunidade latina” nos Estados Unidos –e sua infinita cumplicidade para receber não somente terroristas, mas também os piores ditadores do continente como "exilados”– Fernando Morais não concluiu com uma obviedade: ao contrário da propaganda que indica os Estados Unidos como vítima do terrorismo, a potência imperialista é, na verdade, o maior patrocinador do terrorismo de estado, muitas vezes mais letal e poderoso que as chamadas "organizações terroristas” que eles se empenham, algumas vezes, em combater.

    Neste contexto, os agentes secretos infiltrados pela inteligência cubana nas organizações terroristas que se proliferaram na década de sessenta e seguem operando nos Estados Unidos, especialmente em Miami, não representa como de certa forma pretende Fernando Morais, o epílogo da "guerra fria”, mas lamentavelmente, mais um capítulo da ofensiva estadunidense pela destruição da independência e soberania de Cuba. De fato, predominou durante muito tempo na análise das relações internacionais o "paradigma” da Guerra Fria que, em muitos casos, ocultava em grande medida temas mais importantes e duradouros como a dependência e, especialmente, o colonialismo. Ora, é fácil perceber que mesmo tendo desaparecido o mundo criado pela chamada "Guerra Fria”, a ofensiva estadunidense contra Cuba permanece mais forte do que nunca antes.

    Caso fosse um capítulo a mais naquela trama, por que a ofensiva contra Cuba ainda não desapareceu se a URSS sucumbiu? Ademais, exceto durante a conhecida "crise dos mísseis”, jamais a Revolução Cubana representou uma ameaça militar para os Estados Unidos. Cuba nunca foi, de fato, nem mesmo na cabeça do mais fanático anticomunista, uma ameaça à segurança da potência imperialista. Portanto, ao inscrever a ofensiva permanente dos Estados Unidos contra Cuba no contexto da chamada "Guerra Fria”, Fernando Morais permite, ainda que involuntariamente, o reforço do enfoque liberal dominante no Brasil sobre as relações entre os Estados Unidos e os países latino-americanos. Segundo este enfoque, os Estados Unidos aparecem como defensores da "democracia e dos mercados” e o regime cubano não passa de um anacronismo de um período que não mais existe, razão pela qual precisa se reformar na direção indicada por Washington.

    A reflexão crítica sobre o terrorismo de estado jamais foi admitida como programa para as ciências sociais no Brasil. Com o fim da ditadura na metade da década de oitenta, os liberais impuseram o tema da democracia e os críticos – socialistas ou não – aceitaram a pauta sem reparos. Portanto, a tematização do terrorismo de estado parecia obsoleta, sendo também extinta na análise das relações internacionais. Contudo, importantes cientistas sociais em outros países latino-americanos seguiram estudando o terrorismo de estado – caso da Colômbia, especialmente – e também dos Estados Unidos.

    Caso os Estados Unidos estivessem realmente interessados no efetivo combate a toda e qualquer modalidade de terrorismo, deveriam condecorar os agentes cubanos, mas, ao contrário, cinco foram condenados a longas penas e, dois deles, Gerardo Hernández Nordelo e Ramón Labañino, à prisão perpétua. No momento em que escrevo esta crônica, René González, que no dia 7 de outubro será liberado após permanecer 13 anos na cadeia, pensava em regressar imediatamente para Cuba. Contudo, sua defesa acaba de ser comunicado pela juíza encarregada do caso que ele deverá permanecer mais três anos nos Estados Unidos em "liberdade supervisionada”, decisão que constitui uma penalidade adicional não prevista e rigorosamente ilegal.

    A análise deste juízo oferece pistas importantes sobre o colapso do sistema jurídico estadunidense, especialmente golpeado durante os dois mandatos de George Bush. É uma pena que Morais não nos forneceu mais informação sobre as aberrações jurídicas que orientaram este "julgamento” e que, por isso mesmo, revelam o que sobrou do sistema jurídico após a ofensiva republicana contra os tribunais nos EUA. Este mesmo sistema de justiça continua em frangalhos e, em aspectos decisivos, é bastante clara a completa submissão da justiça à razão de estado como se viu no "julgamento” realizado nas cortes de Miami. Lamentavelmente não há indícios de que Barack Obama esteja dando passos firmes em sua reconstrução. Como admitir, por exemplo, que uma figura como Posada Carriles, terrorista confesso, goze de tanta proteção e liberdade dentro dos Estados Unidos? Como admitir a transmissão da Rádio e TV Martí, criada no governo de Ronald Reagan, em completa violação da legislação estadunidense e que, não obstante, funciona plenamente a partir do ridículo mecanismo de balões dirigíveis na Florida, permitida pelo Departamento de Estado?

    Eu tenho clareza que o estudo sobre o terrorismo de estado não constitui uma hipótese aceitável para a bem comportada ciência social universitária. Como nós sabemos, no Brasil a categoria "imperialismo” deixou de ser utilizada na análise das relações internacionais. Ainda assim, do impecável jornalismo de Robert Fisk às sólidas interpretações de Noam Chomsky, o tema do terrorismo de estado é central para todo aquele interessado na política externa estadunidense e a relação imperialista que mantém com o continente latino-americano.

    Em nosso país, a linha editorial dominante –assumida como ordem unida para todo aquele que pretende freqüentar a grande mídia– eliminou sem constrangimento algum os estudos sobre o terrorismo de estado e, em conseqüência, foca quase que exclusivamente, como recomenda a razão de estado, somente o terrorismo de organizações políticas. Ninguém pode desconhecer a capacidade de destruição de uma organização como a Al Qaeda, obviamente. Mas poderemos ignorar que a capacidade de destruição de um Estado é muitas vezes superior ao de qualquer organização terrorista? Acaso podemos ignorar que os Estados Unidos praticam em larga escala o terrorismo de estado?

    Talvez Fernando Morais tenha preferido deixar para o leitor concluir que, ao permitir a livre atuação de organizações de "extrema direita” em território estadunidense, a potência imperialista –especialmente em Miami– não pode ser considerada senão como santuário de terroristas. Morais revela com abundância de informação como as organizações situadas em Miami e composta majoritariamente por cubanos exilados, violam sistematicamente as leis estadunidenses e a soberania cubana com ações terroristas contra Cuba de maneira desinibida e com tácita permissão das autoridades políticas, dos órgãos de segurança e do mundo partidário estadunidense (republicanos e/ou democratas).

    De qualquer forma, minha crítica não ignora a notável contribuição que uma vez mais Fernando Morais oferece aos brasileiros para entender algo sobre a realidade latino-americana. A ignorância nacional sobre a realidade cubana é parte integrante de nossa ignorância sobre temas, dramas e desafios que também são nossos. Além das críticas rasteiras, estou seguro que conspirará contra o livro de Fernando Morais o silêncio, esta eficaz arma da classe dominante brasileira e de nossa intelectualidade educada contra qualquer tentativa de latino-americanização de nossa nacionalidade.

    A imprensa brasileira –que dúvida pode existir!– desqualificará este importante livro por duas vias conhecidas. A primeira é desmerecê-lo, como alimento para a ignorância brasileira sobre a Revolução Cubana e sua luta contra qualquer modalidade de terrorismo, especialmente o terrorismo estatal estadunidense. A segunda, provavelmente mais eficaz, é a produção de um silencio sobre o livro como se ele jamais tivesse existido. Não seria, certamente, a primeira vez que esta política é colocada em prática. O silêncio também conspirou contra o livro de Florestan Fernandes sobre a Revolução Cubana. Vânia Bambirra também escreveu um luminoso livro que sequer possui tradução em português, embora tenha sido editado em vários países da região e em Portugal. Enfim, o desprezo do "mundo culto” brasileiro pela política cubana revela não somente um reacionarismo deplorável, mas, sobretudo, uma ignorância desmedida.

    É claro que a luta de Cuba por manter-se soberana e independente é um péssimo exemplo para a elite brasileira, pois esta se especializou em vender o país no mercado mundial com a mesma serenidade com que manda seus filhos adolescentes à Disneylândia. Portanto, a saga de um país pequeno que se revela gigante nas relações internacionais, capaz de desafiar o poder imperialista e indicar ao mundo que é tão necessário quanto possível atuar no conflito das nações com política própria, zelando pela soberania e autodeterminação, não poderia senão receber como resposta o silêncio da elite brasileira. Em poucas palavras: a luta cubana não existe, simplesmente.

    Minha esperança é que a leitura de Os últimos soldados da guerra fria desperte em milhares de brasileiros o desejo de buscar de maneira permanente mais informação sobre o destino de cinco homens cubanos de especial grandeza. Nós poderemos perceber –o relato de Fernando Morais deixa muito claro este ponto– que precisamente gente aparentemente comum pode atuar de maneira íntegra e decidida mesmo no piores momentos de suas vidas pessoais e em circunstancias bastante adversas. Não dever ser fácil para qualquer pessoa –como não foi para nenhum dos cinco agentes cubanos– manter-se firme diante das piores situações e renunciar –uma vez descobertos e presos nos Estados Unidos– a qualquer acordo com as autoridades estadunidenses. Alguns agentes sucumbiram –reconheceram que pertenciam a Rede Vespa e que, portanto, eram efetivamente espiões– entraram nos "programas de delação premiada e de proteção a testemunhas” e permanecem até hoje livres nos Estados Unidos.

    Outros cinco, a fim de manter firme suas convicções mesmo conscientes que poderiam, por razoes de estado, terminar seus dias numa prisão, longe de suas mulheres, filhos, pais e, também, longe de sua cultura e de seu país, negaram nos tribunais qualquer vínculo com espionagem. Deve parecer muito difícil para um brasileiro médio, doutrinado na adesão anedótica da defesa da pátria, compreender as razoes que levam pessoas com vidas muito semelhantes as nossas, a tomar tão decidida opção. No mundo atual parece ser que não existe mais motivo para este tipo de comportamento e tudo que restaria a qualquer pessoa racional que se importa com política seria, portanto, o elogio da cautela e a condenação de qualquer heroísmo, mesmo quando este não represente, na verdade, mais que a defesa de nossas próprias convicções.

    O estado cubano –e os cubanos de maneira geral– destinam aos agentes infiltrados nas organizações terroristas de Miami o tratamento de "heróis”. Não creio tratar-se de exagero. A trama política reconstruída pelas qualidades literárias de Fernando Morais revela o quanto é difícil para um homem cubano simples, a nobre tarefa de defender seu povo dos ataques que todos os dias, durante os últimos 40 anos, são planejados e executados pelos terroristas confortavelmente instalados em Miami, chamados orwelianamente de "exílio cubano” pela imprensa estadunidense. Neste caso, os heróis cubanos são homens que possuem uma vida austera, amam, choram, sofrem e se divertem, virtudes, que como recorda Morais, estão bem distantes do colonialismo hollywoodiano plantado em nossa cultura pelo glamour do "agente 007”, cuja função política e estética é a eliminação do sacrifício por uma causa política.

    O caso dos "cinco heróis” que Cuba reclama imediata e justa liberdade é uma luta que não terminou. Na verdade, somente poderá ter fim quando desaparecer a política estadunidense contra a autodeterminação e soberania cubana. Neste contexto, enganam-se aqueles que comodamente supõem que esta luta é exclusivamente daqueles que optaram por este caminho. Aquele heroísmo e aquele drama –ambos– dizem respeito a todos nós.