sábado, 7 de janeiro de 2012

Contra o estrago do liberalismo, recuperar o Marx filósofo


O filósofo francês Dany-Robert Dufour refletiu sobre as mutações que esvaziaram o sujeito contemporâneo de relatos fundadores. Essa ausência é, para ele, um dos elementos da imoralidade liberal que rege o mundo hoje. Seu trabalho como filósofo crítico do liberalismo culmina agora em um livro que pergunta: que indivíduo surgirá depois do liberalismo? Talvez seja o caso, defende, de recuperar o Max filósofo, que defendia a realização total do indivíduo fora dos circuitos mercantis.


Alguns já o veem terminado, outros a ponto de cair no abismo, ou em pleno ocaso, ou em vias de extinção. Outros analistas estimam o contrário e afirmam que, embora o liberalismo esteja atravessando uma série crise, seu modelo está muito longe do fim. Apesar das crises e de suas consequências, o liberalismo segue de pé, produzindo seu lote insensato de lucros e desigualdades, suas políticas de ajuste, sua irrenunciável impunidade. No entanto, ainda que siga vivo, a crise expôs como nunca seus mecanismos perversos e, sobretudo, colocou no centro da cena não já o sistema econômico no qual se articula, mas sim o tipo de indivíduo que o neoliberalismo terminou por criar: hedonista, egoísta, consumista, frívolo, obcecado pelos objetos e pela imagem fashion que emana dele.

A trilogia da modernidade liberal é muito simples: produzir, consumir, enriquecer. O filósofo francês Dany-Robert Dufour refletiu sobre as mutações pós-modernas que esvaziaram o sujeito contemporâneo de relatos fundadores. Essa ausência é, para o filósofo, um dos elementos da imoralidade liberal que rege o mundo contemporâneo. Seu trabalho como filósofo crítico do liberalismo se desenvolveu em livros como “Le Divin Marché” (O Divino Mercado) e culmina agora em um apaixonante livro que coloca uma pergunta que poucos se fazem: como será o indivíduo que surgirá depois do liberalismo?

Dany-Robert Dufour não só lança mais uma diatribe sobre o sistema liberal, mas explora os conteúdos sobre os quais pode-se refundar a humanidade despois desse pugilato planetário do despojo e da estafa que é o ultra-liberalismo. Mas a humanidade não se funda no automatismo, mas sim através dos indivíduos. Seu livro, “L’individu qui vient...après le libéralisme” (O indivíduo que vem...depois do liberalismo) explora o transtorno liberal do passado e esboça os contornos de um novo indivíduo ao qual o filósofo define como “simpático”, ou seja, abertos aos outros que também o constituem.

O liberalismo, que se apresentou como salvador da humanidade, terminou levando a o ser um humano a um caminho sem saída. Você considera o fim desse modelo e se pergunta sobre qual tipo de ser humano surgirá depois do ultra-liberalismo?

Dany-Robert Dufour: No século passado conhecemos dois grandes caminhos sem saída históricos: o nazismo e o stalinismo. De alguma maneira e entre aspas, depois da Segunda Guerra Mundial fomos liberados desses dois caminhos sem saída pelo liberalismo. Mas essa liberação terminou sendo uma nova alienação. Em suas formas atuais, ou seja, ultra e neoliberal, o liberalismo se plasma como um novo totalitarismo porque pretende gerir o conjunto das relações sociais. Nada deve escapar à ditadura dos mercados e isso converte o liberalismo em um novo totalitarismo que segue os dois anteriores. É então um novo caminho sem saída histórico. O liberalismo explorou o ser humano.

O historiador húngaro Karl Polanyi, em um livro publicado depois da Segunda Guerra Mundial, demonstrou como, antes, a economia estava incluída em uma série de relações sociais, políticas, culturais, etc. Mas, com a irrupção do liberalismo, a economia saiu desse círculo de relações para converter-se no ente que procurou dominar todos os demais. Dessa forma, todas as economias humanas caem sob a lei liberal, ou seja, a lei do proveito onde tudo deve ser rentável, incluindo as atividades que antes não estavam sob o mandato do rentável.

Por exemplo, neste momento eu e você estamos conversando, mas não buscamos rentabilidade e sim a produção de sentido. Neste momento estamos em uma economia discursiva. Mas hoje, até a economia discursiva está sujeita ao “quem ganha mais”. Cada uma das economias humanas está sob a mesma lógica: a economia psíquica, a economia simbólica, a economia política, daí o derretimento da política. O político só existe hoje para seguir o econômico. A crise que atravessa a Europa mostra que, quanto mais ela se aprofunda, mais a política deixa a gestão nas mãos da economia. A política abdicou ante a economia e esta tomou o poder. Os circuitos econômicos e financeiros se apoderaram da política, A crise é, por conseguinte, geral.

O título de seu livro, “O homem que vem depois do liberalismo”, implica a dupla ideia de uma fase triunfal e de um fim do liberalismo...

DRD: Paradoxalmente, no momento de seu triunfo absoluto o liberalismo dá sinais de cansaço. Nos damos conta de que nada funciona e as pessoas vão tomando consciência desta falha e têm uma reação de incredulidade. Os mercados se propuseram a ser uma espécie de remédio para todos os males. Você tem um problema? Pois então recorra ao Mercado e este aportará a riqueza absoluta e a solução dos problemas. Mas agora nos damos contra de que o mercado acarreta devastações.

Assim, vemos como esse remédio que devia nos fornecer a riqueza infinita não traz senão miséria, pobreza, devastação. O capitalismo produz riqueza global, sim, mas ela é pessimamente repartida. Sabemos que há 20, 30 anos, as desigualdades têm aumentado pelo planeta. A riqueza global do capitalismo despoja de seus direitos a milhões de indivíduos: os direitos sociais, o direito à educação, à saúde, em suma, todos esses direitos conquistados com as lutas sociais estão sendo tragados pelo liberalismo. O liberalismo foi como uma religião cheia de promessas. Nos prometeu a riqueza infinita graças a seu operador, o Divino Mercado. Mas não cumpriu a promessa.

Em sua crítica filosófica ao liberalismo, você destaca um dos principais estragos produzidos pelo pensamento liberal: os indivíduos estão submetidos aos objetos, nãos aos seus semelhantes; ao outro. A relação em si, a sensualidade, foi substituída pelo objeto.

DRD: As relações entre os indivíduos passam ao segundo plano. O primeiro é ocupado pela relação com o objeto. Essa é a lógica do mercado: o mercado pode a cada momento agitar diante de nós o objeto capaz de satisfazer todos nossos apetites. Pode ser um objeto manufaturado, um serviço e até um fantasma construído pelas indústrias culturais. Estamos em um sistema de relações que privilegia o objeto antes do sujeito. Isso cria uma nova alienação, uma espécie de vício com os objetos. Esse novo totalitarismo que é o liberalismo coloca nas mãos dos indivíduos os elementos para que se oprimam a si mesmos através dos objetos. O liberalismo nos deixa a liberdade de alienarmos a nós mesmos.

Você situa o princípio da crise nos anos 80 através da restauração do que você chama de o relato de Adam Smith. Você cita uma de suas frases mais espantosas: para escravizar um homem é preciso dirigir-se ao seu egoísmo e não a sua humanidade.

DRD: Adam Smith remonta ao século XVIII e sua moral egoísta se expandiu um século e meio depois com a globalização do mercado no mundo. De fato, Smith demorou tanto porque houve outra mensagem paralela, outro Século das Luzes, que foi o do transcendentalismo alemão.

Ao contrário das Luzes de Smith, as alemãs propunham a regulação moral, a regulação transcendental. Essa regulação podia se manifestar na vida prática através da construção de formas como as do Estado a fim de regular os interesses privados. A partir do Século das Luzes, há duas forças que se manifestam: Adam Smith e Kant. Esses dois campos filosóficos coexistiram de maneira conflitiva ao longo da modernidade, ou seja, através de dois séculos. Mas, em um determinado momento, o transcendentalismo alemão perdeu força e deu lugar ao liberalismo inglês, o qual adquiriu uma forma ultra-liberal. Pode-se datar esse fenômeno a partir do início dos anos 80. Há inclusive uma marca histórica que remonta ao momento em que Ronald Reagan, nos Estados Unidos, e Margaret Thatcher, na Grã-Bretanha, chegam ao poder a instalam a liberdade econômica sem regulação. Essa ausência de regulação destruiu imediatamente as convenções sociais, ou seja, os pactos entre indivíduos.

Daí provém a trilogia “produzir, consumir, enriquecer”. Você chama essa trilogia de pleonexía.

DRD: O termo “pleonexía” é encontrado na República de Platão e quer dizer “sempre ter mais. A República grega, a Polis, foi construída sobre a proibição da pleonexía. Pode-se dizer então que, até o século XVIII, toda uma parte do Ocidente funcionou com base nessa proibição e se liberou dela nos anos 80. A partir daí se liberou a avidez mundial, a avidez dos mercados e dos banqueiros. Lembre o discurso pronunciado por Alan Greenspan (ex-presidente da Reserva Federal dos Estados Unidos) ante à Comissão norteamericana depois da crise de 2008. Greenspan disse: “pensava que a avidez dos banqueiros era a melhor regulação possível. Agora, me dou conta de que isso não funciona mais e não sei por quê”. Greenspan confessou assim que o que dirige as coisas é a liberação da pleonexía. E já sabemos para onde isso conduz.

Chegamos agora ao depois, ao hipotético ser humano de depois do liberalismo. Você o enxerga sob os traços de um indivíduo simpático. Que sentido tem o termo simpático neste contexto?

DRD: Ninguém é bom ao nascer como pensava Rousseau, nem tampouco mau como pensava Hobbes. O que podemos fazer é ajudar as pessoas a serem simpáticas, ou seja, a não pensarem somente em si mesmas e a pensarem que, para viver com o próximo, é preciso contar com ele. O outro está em mim, as imagens dos outros estão em mim e me constituem como sujeito. A própria ideia de um indivíduo egoísta é sem sentido porque isso obriga a que nos esquecer de que o indivíduo está constituído por partes do outro. E quando falo de um indivíduo simpático não emprego o termo em sua acepção mais comum, alguém simplesmente simpático, digamos. Não, trata-se do sentido que a palavra tinha no século XVIII, onde a simpatia era a presença do outro em mim. Necessito então da presença do outro em mim e o outro precisa de minha presença nele para que possamos constituir um espaço onde cada um seja um indivíduo aberto ao outro. Eu cuido do outro como o outro cuida de mim. Isso é um indivíduo simpático.

Sigamos com a simpatia, mas sobre que bases se constrói o indivíduo que vem depois do liberalismo? A razão, a religião, o esporte, o ócio, a solidariedade, outra ideia de mercado?

DRD: Neste livro fiz um inventário sobre os relatos antigos: o relato do logos, da evasão da alma dos gregos, o relato sobre a consideração do outro nos monoteísmos. Dei-me conta de que em ambos relatos havia coisas interessantes e também aterradoras. Por exemplo, a opressão das mulheres no patriarcado monoteísta equivale à opressão da metade da humanidade. Por acaso queremos repetir essa experiência? Certamente que não.

Outro exemplo: no logos, para que haja uma classe de homens livres na sociedade é preciso que haja uma classe oprimida e escravizada. Queremos repetir isso? Não. Refundar nossa civilização após os três caminhos sem saída que foram o nazismo, o estalinismo e o liberalismo requer uma refundação sobre bases sólidas. Por isso realizei o inventário, para ver o que podíamos recuperar e o que não, quando do passado podia nos servir e quanto não. A segunda consideração diz respeito aquilo que poderia ajudar o indivíduo a ser simpático, ao invés de egoísta. Neste contexto, a ideia da reconstrução do político, de uma nova forma do Estado que não esteja dedicado a conservar os interesses econômicos, mas sim a preservar os interesses coletivos, é central.

Qual é, então, o grande relato que poderia nos salvar?

DRD: Deixamos no caminho os grandes relatos de antes e acreditamos cada vez menos no grande relato do mercado. Estamos a espera de algo que una o indivíduo, ou seja, um grande relato. Eu proponho o relato de um indivíduo que deixou de ser egoísta, que não seja tampouco o indivíduo coletivo do estalinismo, nem tampouco o indivíduo mergulhado na ideia de uma raça que se crê superior, como no nazismo e no fascismo. Trata-se de um relato alternativo a tudo isso, um relato que persiste no fundo da civilização.

Creio que o valor da civilização ocidental radica no fato de ter coloca o acento na individuação, ou seja, na ideia da criação de um indivíduo capaz de pensar e agir por si mesmo. Não é para esquecer a noção de indivíduo, mas sim reconstruí-la. Contrariamente ao que se diz, não creio que nossas sociedades sejam individualistas, não, nossas sociedades são lamentavelmente egoístas. Isso me faz pensar que há muita margem de existência ao indivíduo como tal, que há muitas coisas dele que não conhecemos.

Temos que fazer o indivíduo existir fora dos valores do mercado. O indivíduo do estalinismo foi dissolvido na massa do coletivismo; o indivíduo do nazismo e do fascismo foi dissolvido na raça, o indivíduo do liberalismo foi dissolvido no egoísmo. O indivíduo liberal é um escravo de suas paixões e de suas pulsões. Devemos nos elevar desse caminho sem saída liberal parar recriar um indivíduo aberto ao outro, capaz de realizar-se totalmente.

Há textos filosóficos de Karl Marx que não são muito conhecidos e nos quais Marx queria a realização total do indivíduo fora dos circuitos mercantis: no amor, na relação com os outros, na amizade, na arte. Poder criar o máximo a partir das disposições de cada um. Talvez seja o caso de recuperar esse relato do Marx filósofo e esquecer o do Marx marxista.

Tradução: Katarina Peixoto

"Liquidar o monopólio ocidental da tecnologia é também luta revolucionária"


por Domenico Losurdo
entrevistado por Tian Shigang [*]
Domenico Losurdo. Em 2005 foi publicado o seu livro "Fuga dalla storia? La rivoluzione russa e la rivoluzione cinese oggi" [1] . O que o levou a escrevê-lo?

A primeira edição do livro foi publicada em 1999. Era o momento em que o fim da guerra-fria era interpretado como o fracasso irremediável de toda tentativa de construir uma sociedade socialista, como o triunfo definitivo do capitalismo e inclusive com o "fim da história". No Ocidente, este modo de ver as coisas fazia mossa na própria esquerda: até os comunistas, ainda que declarassem querer permanecer fieis aos ideais do socialismo, na linha seguinte acrescentavam que não tinham nada a ver com a história da URSS nem com a história da China onde, diziam, se havia verificado a "restauração do capitalismo". Para me opor a esta "fuga à história" propus-me explicar a história do movimento comunista desde a Rússia da Revolução de Outubro até a China surgida das reformas de Deng Xiaoping.

No se entender, por que motivos se desmembrou a URSS?

Em 1947, quando enuncia a política da contenção, seu teórico, George F. Kennan, explica que é preciso "aumentar enormemente as tensões (strains) que a política soviética tem de suportar", a fim de "promover tendências que acabem por quebrar ou abrandar o poder soviético". Nos nossos dias não é muito diferente a política dos EUA para com a China, ainda que enquanto isso a China haja acumulado uma grande experiência política.

Para além da contenção, o que determinou a derrocada da URSS foram as suas graves debilidades internas. Convém reflectir sobre a célebre tese de Lenine: "Não há revolução sem teoria revolucionária". O partido bolchevique, sem dúvida, tinha uma teoria para a conquista do poder, mas se por revolução se entender não só a destruição da velha ordem como também a construção da nova, os bolcheviques e o movimento comunista careciam substancialmente de uma teoria revolucionária. Portanto, não se pode considerar que uma teoria da sociedade pós capitalista por construir se reduza à espera messiânica de um mundo no qual hajam desaparecido por completo os Estados, as nações, o mercado, o dinheiro, etc. O PCUS cometeu o grave erro de não fazer nenhum esforço para preencher esta lacuna.

No seu entender, que carácter e que significado tem a revolução chinesa?

No princípio do século XX a China fazia parte do mundo colonial e semi-colonial, estava submetida ao colonialismo e ao imperialismo. Um marco histórico foi a Revolução de Outubro, que desencadeou e impulsionou uma onda anti-colonialista de dimensões planetárias. A seguir, o fascismo e o nazismo foram a tentativa de revitalizar a tradição colonial. Em particular, a guerra desencadeada pelo imperialismo hitleriano e o imperialismo japonês, respectivamente, contra a União Soviética e contra a China, foram as maiores guerras coloniais da história. De modo que Stalingrado na União Soviética e a Longa Marcha e a guerra de resistência contra o Japão na China foram duas grandiosas lutas de classe, as que impediram que o imperialismo mais bárbaro efectuasse uma divisão de trabalho baseada na redução de grandes povos a uma massa de escravos ao serviço das supostas raças dos senhores.

Mas a luta de emancipação dos povos em condições coloniais e semi-coloniais não acaba com a conquista da independência política. Já em 1949, a ponto de conquistar o poder, Mao Zedong havia insistido na importância da edificação económica. Washington quer que a China se "reduza a viver da farinha estado-unidense", com o que "acabaria por ser uma colónia estado-unidense". Ou seja, sem a vitória na luta pela produção agrícola e industrial, a vitória militar acabaria por ser frágil e vazia. De certo modo Mao havia previsto a passagem da fase militar à fase económica da revolução anti-colonialista e anti-imperialista.

O que acontece nos nossos dias? Os EUA estão transferindo para a Ásia o grosso do seu dispositivo militar. Em despacho da agência Reuters de 28 de Outubro de 2011 pode-se ler que uma das acusações de Washington aos dirigentes de Pequim é fomentam ou impõem a transferência de tecnologia ocidental para a China. Está claro: os EUA pretendem conservar o monopólio da tecnologia para continuar a exercer a hegemonia e inclusive um domínio neo-colonial indirecto. Por outras palavras, ainda nos nossos dias a luta contra o hegemonismo coloca-se também no plano do desenvolvimento económico e tecnológico. É um aspecto que, lamentavelmente, a esquerda ocidental sem sempre consegue entender. Há que sublinhá-lo com força: revolucionária não é só a longa luta com que o povo chinês pôs fim ao século das humilhações e fundou a República Popular; revolucionária não é só a edificação económica e social com que o Partido Comunista Chinês livrou da fome centenas de milhões de homens; também a luta para romper o monopólio imperialista da tecnologia é uma luta revolucionária. Foi-nos ensinado por Marx. Sim, ele nos ensinou que a luta para superar, no âmbito da família, a divisão patriarcal do trabalho já é uma luta revolucionária; seria muito estranho que não fosse uma luta de emancipação a luta para acabar à escala internacional com a divisão do trabalho imposta pelo capitalismo e o imperialismo, a luta par liquidar definitivamente esse monopólio ocidental da tecnologia, que não é um dado natural e sim o resultado de séculos de domínio e opressão!

Capa da edição brasileira Em 2005 foi publicado o seu livro Controstoria del liberalismo [2] , que alcançou um grande êxito (num ano foi reeditado três vezes e a seguir traduzido em vários idiomas). O que significa esse título?

O meu livro não desconhece os méritos do liberalismo, que põe em evidência o papel do mercado no desenvolvimento das forças produtivas e sublinha a necessidade de limitar o poder (ainda só a favor de uma reduzida comunidade de privilegiados). Contra-história do liberalismo polemiza com a auto-glorificação e a visão apologética dos que se entregam ao liberalismo e ao Ocidente liberal. É uma tradição de pensamento em cujo âmbito a exaltação da liberdade vai junto com terríveis cláusula de exclusão em prejuízo das classes trabalhadoras e, sobretudo, dos povos colonizados. John Locke, pai do liberalismo, legitima a escravidão nas colónias e é accionista da Royal African Company, a empresa inglesa que gere o tráfico e o comércio dos escravos negros. Mas, para além das personalidades individuais, o importante é o papel dos países que melhor encarnam a tradição liberal. Um dos primeiros actos de política internacional da Inglaterra liberal, nascida da Revolução Gloriosa de 1688-1689, é assumir o monopólio do tráfico de escravos negros.

Mais importante ainda é o papel da escravidão na história dos EUA. Durante 32 dos primeiros 36 anos de vida dos Estados Unidos, a presidência do país foi ocupada por proprietários de escravos. E isso não é tudo. Durante várias décadas o país dedicou-se a exportar a escravidão com o mesmo zelo com que hoje pretende exportar a "democracia": em meados do século XIX reintroduziram a escravidão no Texas, recém arrebatado ao México através de uma guerra.

É verdade que primeiro a Inglaterra e a seguir os Estados Unidos viram-se obrigados a abolir a escravidão, mas o lugar dos escravos negros foi ocupado pelos cules chineses e índios, submetidos a uma forma apenas dissimulada de escravidão. Além disso, depois da abolição formal da escravidão, os afro-americanos continuaram a sofrer uma opressão tão feroz que um eminente historiador estado-unidense, George M. Fredrickson, escreveu: "os esforços para preservar a "pureza da raça" no Sul dos Estados Unidos preludiavam alguns aspectos da perseguição desencadeada pelo regime nazi contra os judeus nos anos trinta do século XX".

Quando começa a enfraquecer nos EUA o regime de supremacia branca, de opressão e discriminação racial, sobretudo contra os negros? Em Dezembro de 1952 o ministro estado-unidense da Justiça envia ao Tribunal Supremo, em plena discussão sobre a integração nas escolas públicas, uma carta eloquente: "A discriminação racial leva a água ao moinho da propaganda comunista e também semeia dúvidas nos países amigos acerca da nossa devoção à fé democrática". Washington, observa o historiador estado-unidense que reconstrói este episódio (C. Vann Woodward), corria o risco de alienar o favor das "raças de cor" não só no Oriente e no Terceiro Mundo como também no seu próprio país. Só então o Tribunal Supremo decidiu declarar inconstitucional a segregação racial nas escolas públicas.

Há um paradoxo na história. Hoje Washington não se cansa de acusar a falta de democracia na China; mas convém assinalar um elemento essencial da democracia, a superação da discriminação racial, só foi possível nos Estados Unidos graças ao repto representado pelo movimento anti-colonialista mundial, de que a China fazia e faz parte.

No meu entender, entre as muitas edições italianas do Manifesto do Partido Comunista há três que se destacam: a de Antonio Labriola, a de Palmiro Togliatti e a sua de 1999. Na sua opinião, que significado tem esta obra fundamental de Marx e Engels para os marxistas de hoje?

Na introdução da edição italiana do Manifesto do Partido Comunista tentei reconstruir o século e meio de história transcorrido desde a publicação em 1848 deste texto extraordinário. Uma confrontação pode nos ajudar a entender o seu significado. Oito anos antes, outra grande personalidade da Europa do século XIX, Alexis de Tocqueville, publica o segundo livro da Democracia na América e, num capítulo central, afirma já no título que "as grandes revoluções serão cada vez menos frequente". Mas se nos fixarmos no século e meio posterior ao ano (1840) em que o liberal francês faz esta afirmação, vemos que se trata do período talvez mais abundante em revoluções da história universal.

Não há dúvida: ao prever a rebelião contra o capitalismo, contra um sistema que implica a "transformação em máquina" dos proletários e a sua degradação em "instrumentos de trabalho", em "acessórios da máquina", um apêndice "dependente e impessoal" do capital "independente e pessoal", ao prever tudo isto, o Manifesto do Partido Comunista soube olhar mais longe. Quando descrevem com extraordinária lucidez e clarividência o que hoje chamamos globalização, Marx e Engels sabem bem que se trata de um processo contraditório, caracterizado (no âmbito do capitalismo) por crises colossais de superprodução que provocam a destruição de enormes quantidades de riqueza social e a miséria de massas ingentes de homens e mulheres. Além disso é um processo eriçado de conflitos que podem desembocar, inclusive, numa "guerra industrial de aniquilação entre as nações". O que nos leva a pensar na primeira guerra mundial.

Contra todo este mundo, o Manifesto do Partido Comunista evoca tanto as revoluções proletárias como as "revoluções agrárias" e de "libertação nacional". De modo que Marx e Engels se anteciparam a um cenário que se verificará no Terceiro Mundo, como por exemplo na China.

A propósito da China pode-se fazer uma última consideração. O Manifesto do Partido Comunista prevê a aparição de uma economia globalizada caracterizada por "indústrias novas, cuja introdução passa a ser uma questão de vida ou morte para todas as nações civilizadas, indústrias que já não elaboram matérias-primas locais e sim matérias-primas procedentes das regiões mais remotas e cujos produtos consomem-se não só no interior do país como também em todas as partes do mundo". Portanto, ainda que centre o olhar sobre a Europa, o texto de Marx e Engels acaba por dar indicações muito valiosas para os países do Terceiro Mundo que querem alcançar um desenvolvimento económico independente.

Quais são, no seu entender, as contribuições de Antonio Gramsci à teoria marxista?

Creio que as contribuições da obra deste grande pensador foram pelo menos quatro:

a) Gramsci evidenciou a importância da "hegemonia" para a conquista e conservação do poder político. Num texto de 1926 explica: o proletariado só dá mostras de possuir uma consciência de classe madura quando se eleva a uma visão da sua classe de pertença como núcleo dirigente de um bloco social muito mais amplo, chamado a conduzir a revolução à vitória.

b) Em segundo lugar, Gramsci mostra-se plenamente consciente da complexidade que implica o processo de construção do socialismo. A princípio será "o colectivismo da miséria, do sofrimento". Mas não podo ficar nisso, tem que enfrentar o desenvolvimento das forças produtivas. É neste âmbito que deve ser situada a importante tomada de posição de Gramsci a propósito da NEP (a Nova Política Económica introduzida após o "comunismo de guerra"). A realidade da URSS daquele momento coloca-nos na presença de um fenómeno "nunca visto na história": uma classe politicamente "dominante" encontra-se "globalmente em condições de vida inferiores às de certos elementos da classe dominada e submetida". As massas populares, que continuam a padecer uma vida de privações, estão desorientadas diante do espectáculo do "nepman" [o homem da NEP] afundado no seu casaco de peles, que tem à sua disposição todos os bens da terra", mas isto não deve ser motivo de escândalo ou repulsa, pois o proletariado, o mesmo que não pode conquistar o poder, tão pouco pode mantê-lo se for incapaz de sacrificar interesses particulares e imediatos aos "interesses gerais e permanentes da classe". Trata-se, naturalmente, de uma situação transitória. O que Gramsci sugere aqui pode ser útil à esquerda ocidental para compreender a realidade de um país como a China actual.

c) Gramsci dá-nos algumas indicações valiosas sobre outro aspecto. Devemos imaginar o comunismo como a dissipação total não só dos antagonismos de classe como também como do Estado e do poder político, assim como das religiões, das nações, da divisão do trabalho, do mercado, de qualquer fonte possível de conflito? Questionando o mito da extinção do Estado e da sua dissolução na sociedade civil, Gramsci assinala que a própria sociedade civil é uma forma de Estado. Também destaca que o internacionalismo não tem nada a ver com o desconhecimento das peculiaridades e identidades nacionais, que subsistirão muito depois da queda do capitalismo. Quando ao mercado, Gramsci considera que conviria falar de "mercado determinado", ao invés de mercado em abstracto. Gramsci ajuda-nos a superar o messianismo, que dificulta gravemente a construção da sociedade pós capitalista.

d) Finalmente, ainda que condenem o capitalismo, as Cartas do cárcere evitam interpretar a história moderna e as revoluções burguesa como um tratado de "teratologia", ou seja, um tratado que se ocupa de monstros. Os comunistas devem criticar os erros, por vezes graves, de Staline, Mao e outros dirigentes, sem reduzir nunca estes capítulos da história do movimento comunista a uma "teratologia", uma história de monstros.
15/Dezembro/2011
1. Fuga da História? A Revolução Russa e a Revolução Chinesa vistas hoje, Ed. Revan , Rio de Janeiro, 2004, 206 p., ISBN: 8571063052
2. Contra-história do liberalismo, Ed. Ideias e Letras , S. Paulo, 2010, 400 p., ISBN: 8598239755
3. Do liberalismo ao "comunismo crítico", Ed. Revan, Rio de Janeiro, 2006, 288 p., ISBN 8571063400


[*] Da revista Chinese Social Sciences Today

O original em italiano encontra-se em domenicolosurdo.blogspot.com/... , a versão em castelhano em http://albared.org/node/89 e a versão em francês em http://www.jolimai.org/?p=177


Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/ .

A filosofia da revolução de Che Guevara

A filosofia da revolução de Che Guevara

Por Eduardo Mancuso (publicado originalmente na Carta Maior

"Marx pensava na liberação do homem e via o comunismo (como a solução das contradições que produziram a sua alienação) como um ato consciente. Vale dizer que não se pode ver o comunismo meramente como o resultado de contradições de classes em uma sociedade altamente desenvolvida; o homem é o ator consciente da história. Sem esta consciência, que engloba a consciência do ser social, não pode haver comunismo". 
                                          (Ernesto Che Guevara)

Apropriar-nos de forma criativa da herança guevarista, resgatando a atualidade que esta conserva frente às grandes mudanças globais e as metamorfoses sociais, políticas e culturais que marcaram a passagem do século XX ao XXI, é um desafio bastante estimulante. Nas palavras do próprio Che, “se novos fatos determinam novos conceitos, não se tirará nunca sua parte de verdade daqueles que tenham passado.”
Muitos não percebem a atualidade do pensamento guevarista. Porém, quando nos debruçamos sobre ele, descobrimos que muitas das mudanças ocorridas nas últimas décadas, encontram respostas no legado do Che, tanto programáticas quanto estratégicas. A “filosofia da revolução” do Che é, nos dias de hoje, absolutamente contemporânea, tão vívida como a permanência icônica e universal de sua imagem.
“A real capacidade de um revolucionário se mede por saber encontrar táticas revolucionárias adequadas em cada mudança de situação, em ter presente todas as táticas e explorá-las ao máximo..”.
O intelectual cubano Luiz Salazar propõe uma tese muito interessante. Diz ele que voltar à obra do Che nos permite ver no significado de suas utopias as “verdades do futuro” (Vitor Hugo). Defende que podemos encontrar no acervo político do Che, novas “soluções revolucionárias”.
O socialismo para nós continua sendo pré-condição para que a humanidade possa constituir uma nova civilização, alternativa a barbárie moderna. E o Che ensinava: “Para construir o comunismo simultaneamente com a base material há que construir o homem novo.” Não devemos esquecer, também, que para o Che, “o dever de todo o revolucionário é fazer a revolução”, lutar por isso persistentemente. Para o Che, a construção do socialismo exige uma radical revolução democrática, participativa, além de uma grande revolução cultural.
A práxis revolucionária guevarista buscou sempre recuperar a essência subversiva dos clássicos do marxismo. Por exemplo, o maior marxista latino-americano da primeira metade do século XX, o peruano José Carlos Mariátegui, escrevia em 1928: “Contra uma América do Norte capitalista, plutocrática, imperialista, só é possível opor de maneira eficaz uma América, latina ou ibérica, socialista”. Quatro décadas mais tarde, Che Guevara retoma esta bandeira socialista e antiimperialista, concluindo sua famosa “Mensagem a Tricontinental” afirmando: “ou revolução socialista ou caricatura de revolução”!
Mas qual socialismo o Che defendia? Cada vez mais crítico nos seus últimos anos em relação às experiências socialistas “reais”, européia e chinesa, Guevara buscava um novo caminho para Cuba e para nossa América Latina. Para enfrentar esse desafio ele também coincidia com as idéias de Mariátegui, que havia declarado: “Não queremos, certamente, que o socialismo seja nas Américas calco e cópia. Deve ser criação heróica. Temos que dar vida, com nossa própria realidade, com nossa própria linguagem, ao socialismo indo-americano.”
Boa parte da reflexão do Che e de sua prática política, sobretudo nos anos 60, tinha como meta sair do impasse que a caricatura de socialismo burocrático do modelo soviético impunha aos povos na América Latina e no Terceiro Mundo.
Segundo Michael Lowy, “o motor essencial desta busca de um novo caminho – mais além de questões econômicas específicas – é a convicção de que o socialismo não tem sentido – e não pode triunfar – se não representa um projeto de civilização, uma ética social, um modelo de sociedade totalmente antagônico aos valores do individualismo mesquinho, do egoísmo feroz, da competição, da guerra de todos contra todos da civilização capitalista”.
Como lembra Lowy, o Che tinha perfeitamente claro que a construção do socialismo é inseparável de certos valores éticos. Na famosa entrevista de Guevara a um jornalista francês em julho de 1963, ele insistia: “o socialismo econômico sem a moral comunista não me interessa. Lutamos contra a miséria, mas ao mesmo tempo contra a alienação. (...) Se o comunismo passa por cima dos fatos de consciência, pode ser um modo de distribuição, mas não será mais uma moral revolucionária”. O Che sabia que se o socialismo tentasse competir com o capitalismo no terreno do adversário, o terreno do produtivismo e do consumismo, utilizando suas próprias armas – o mercado e a concorrência – estava condenado ao fracasso.
O socialismo para o Che era o projeto histórico de uma nova sociedade, baseada em valores de igualdade, solidariedade, livre discussão e ampla participação popular. Lowy salienta que tanto suas críticas crescentes ao modelo soviético quanto sua prática como dirigente político e sua reflexão teórica sobre a experiência cubana são inspirados por esta utopia revolucionária. Em seus escritos econômicos a questão da planificação socialista ocupa um lugar central, e nos seus últimos anos a concepção de democracia socialista na planificação começa a aparecer como essencial. Quando critica o Manual de Economia Política da Academia de Ciências da URSS, Che Guevara avança um princípio democrático fundamental, capaz de colocar de cabelos em pé os burocratas stalinistas (e de outros tipos também): numa verdadeira planificação socialista é o próprio povo, os trabalhadores, as massas que devem tomar as grandes decisões econômicas.
Contra a monopolização das decisões por tecnocratas ou burocratas “comunistas”, o Che insistia na necessidade de uma verdadeira participação popular: os grandes problemas sociais e econômicos de uma sociedade são políticos e devem ser objeto de debate e decisão democrática pela maioria. Fica claro que a reflexão de Guevara sobre o socialismo não se limita unicamente a Cuba ou América Latina: ela é universal, mundial, internacionalista. Para o Che o verdadeiro socialista é aquele que considera sempre os grandes problemas da humanidade como seus problemas, que não se sente alheio a eles, muito pelo contrário.
Numa bela síntese apresentada por Michael Lowy no Fórum Social Mundial de Porto Alegre encontramos o “espírito” da filosofia da revolução guevarista : “O internacionalismo para Guevara – ao mesmo tempo modo de vida, fé profana, imperativo categórico e pátria espiritual – era inseparável da idéia mesmo de socialismo, enquanto humanismo revolucionário, enquanto emancipação dos explorados e oprimidos do mundo inteiro, numa luta sem tréguas nem fronteiras com o imperialismo e a ditadura do capital.” E segundo Lowy, os herdeiros do Che, a esquerda marxista e revolucionária, nas últimas décadas, “aprendemos a enriquecer nossa idéia do socialismo com a contribuição do movimento das mulheres, dos movimentos ecológicos, das lutas de negros e indígenas contra a discriminação. Assim é o processo de construção do projeto socialista: não um edifício pronto e acabado, mas um imenso canteiro de obras, onde se trabalha para o futuro, sem esquecer as lições do passado.”
Ao fim e ao cabo, como disse o velho Marx, o mais importante é a luta.

Afinal, como gostavam de lembrar, realisticamente, tanto Lenin como Walter Benjamin: o capitalismo não vai morrer de morte natural.

* Eduardo Mancuso é Historiador e membro do comitê organizador do FSM Grande Porto Alegre.

O brilho haragano do astro Jerônimo Jardim


Ainda com aquele ímpeto de centroavante varzeano | Ramiro Furquim/Sul21

Geraldo Hasse no SUL21

Nos últimos quatro anos, depois de se aposentar como alto funcionário da Justiça do Trabalho, o bacharel em leis Jerônimo Jardim vem peleando com uma tropilha de males, remédios e internações hospitalares. Ainda na última quinta (5/1), foi ao hospital marcar mais uma cirurgia, mas continua levando a vida com o ímpeto juvenil do centroavante que pintou como profissional na várzea de Bagé no início dos anos 1960, quando os bambas da posição eram o “cerebral” Larri no Internacional e o “tanque” Juarez no Grêmio.
Além de deixar sequelas dolorosas, a artrite reumatoide, que se instalou de repente numa manhã dos seus 63 anos, exige doses cavalares de analgésicos, inclusive morfina, de tal forma que o veterano autor de sucessos da música popular como Purpurina e Astro Haragano precisou usar bengala por mais de um ano. Numa manhã dessas, ao sair para caminhar cedinho, já sem bengala, cambaleou ao atravessar a rua no bairro Floresta e teve de ouvir um “Te cuida, gambá!” lançado por um motorista. Contra seus hábitos ancestrais engoliu o desaforo, consciente de que o jogo está numa espécie de prorrogação. “Me salvei por muito pouco”, diz ele, lembrando que esteve sob os cuidados de 12 médicos da Unimed e do anjo-da-guarda que mora com ele, Clair Jardim, sua mulher nos últimos dez anos. Quando foi levado ao hospital, sua pressão arterial estava em 6/3. Ficou 15 dias na UTI e depois passou um ano na cama.
Jerônimo e seu anjo-da-guarda | Ramiro Furquim/Sul21
Na aparência, tudo bem. Ele continua com sua bela estampa de Mastroianni caboclo, bem aprumado, vasta cabeleira de poucos fios brancos. Na realidade, sofre de dores e alguma insensibilidade, mas o astro não se entrega. A música emana naturalmente, é uma forma de expressão incorporada ao seu modo de vida. Após encostar o violão durante os anos de tratamento médico, voltou a compor e na virada do ano aprontou uma canção que premedita inscrever num dos festivais remanescentes da música nativa gaúcha.
exatamente um ano, fiel à compulsão musical, gravou ao vivo com casa cheia na Sala Álvaro Moreyra em Porto Alegre o CD De Viva Voz, com músicas suas e letras próprias e de parceiros diversos como Luiz Coronel, Greice Morelli e Clair Jardim. Três dias antes do show havia morrido o pianista Geraldo Flach (1945-2011), seu amigo de mais de 30 anos e parceiro em Abolerado Blues, inspirado pela cantora Cida Moreira. Ainda no ano passado, perdeu outro parceiro, Rui Biriva (1958-2011), cujo último CD trouxera cinco parcerias deles.
Vida marvada que ele atravessa sem queixas, apenas com algumas broncas, a maior delas contra a mídia gaúcha, mais aberta para os forasteiros do que para a qualidade artística existente em Porto Alegre. “Nunca o Rio Grande do Sul teve uma geração musical tão boa quanto essa que está atuando aqui”, diz Jardim, “mas a mídia é tão provinciana que só fala do que vem de fora”. Saudoso de outros tempos, ele acha que ao ignorar ou esconder os artistas gaúchos o diário Zero Hora trai a memória do seu fundador, Maurício Sirotsky. “Ele circulava na noite e mandava abrir espaço para os artistas.”
Nesse seu oitavo disco, em que se destacam belos arranjos e execuções de sax de Pedrinho Figueiredo, o compositor sobrevivente percorre 14 canções singelas em ritmo de choro e samba. O veterano crítico musical Juarez Fonseca, que acompanhou toda sua carreira, qualificou-o como seu melhor show em palco. Com esse CD, ele completou 98 músicas gravadas, que se dividem entre temas campeiros e urbanos. Em todas, aparecem suas marcas registradas: letras fortes com boas rimas, melodias singelas e arranjos rebuscados, muitos deles buscando harmonias do jazz.
Um imerecido "Te cuida, gambá" | Ramiro Furquim/Sul21

Filho mais velho de pai militar, Jerônimo tem cinco irmãos nascidos em diferentes cidades do Rio Grande do Sul. Viu a luz em Jaguarão, mas se achou adolescente em Bagé, onde começou a tocar violão e participar de conjuntos musicais que animavam bailinhos juvenis. Amador na música, cantou muita serenata diante dos sobrados da Rainha da Fronteira. Quase profissional no futebol em Rio Grande, concluiu ali o curso de direito e voltou para Bagé casado com a riograndina Mara Ferreira, com quem abriu um escritório de advocacia. Tinha tanta gana profissional que em apenas um ano participou de cinco júris. Nas viagens de serviço a Porto Alegre, entretanto, caiu nas rodas da boemia, tanto que acabou trocando a carreira jurídica pela vida artística.
Para sobreviver na capital, começou fazendo jingles para a agência do amigo Luiz Coronel. Em pleno “milagre econômico brasileiro” (1967/1973), conheceu o compositor Lupicínio Rodrigues (1914-1974), apresentado pelo radioator Walter Ferreira. Já em fim de carreira, o velho Lupi vivia na noite mas sobrevivia graças aos proventos do emprego público como bedel da Faculdade de Direito da UFRGS. Era um exemplo de sobrevivência que JJ seguiria muitos anos mais tarde, mas enquanto sentiu pulsar a juventude em suas artérias o garotão de Bagé foi tocando a vida como se não houvesse diferença entre o dia e a noite.
Ganhou muito, muito dinheiro como diretor da house agency da Rainha das Noivas ao longo da maior parte da década de 1970. Quando as três lojas do começo chegaram a 12, JJ ganhava mais do que os diretores graças a uma participação de 0,25% nas vendas da rede. Teria ficado rico nessa rendosa atividade se não tivesse cedido ao desafio lançado por uma cantora gaúcha que fazia sucesso no Rio de Janeiro no final dos anos 1970. Quem tivesse sangue nas veias e música na alma não resistiria ao sotaque acariocado de Elis Regina. No auge, ela tinha acabado de gravar os melhores discos de sua carreira. Aos 36 anos, após instalar a família (mulher e um casal de filhos) num apartamento recém-comprado em Porto Alegre, o artista sonhador foi morar numa pensão do Leblon, onde dividia o quarto com meia dúzia de marmanjos.
O Mastroianni caboclo | Ramiro Furquim/Sul21

Animado, ligou para Elis. A amiga estava na fossa. Bad trip. Tinha sido dispensada pela gravadora por vender muito pouco, apenas 30 mil discos enquanto outras recém-chegadas do Nordeste passavam de 200 mil. “Não posso te arranjar nada”, disse a estrela, “mas vou te apresentar a umas pessoas”. Foi assim que conheceu o casal Lucinha-Ivan Lins. Eles gravavam jingles e participavam de shows no Rio e arredores. Havia outros gaúchos lutando por um lugar na ribalta carioca. Kleiton e Kledir. Bebeto Alves. Sem contar estrelas cadentes como Nelson Gonçalves. Pouco tempo depois de chegar, JJ já jogava bola com a turma de Chico Buarque.
No batidão das rodas de samba morou por cerca de quatro anos no Rio de Janeiro, entre 1980 e 1984, voltando a Porto Alegre após concluir que havia embarcado tarde demais no trem da MPB. “Quando eu procurava meu lugar, o público virou para o rock”, explica ele. Enquanto os artistas consagrados como Chico Buarque e Tom Jobim refugiavam-se no exterior, onde tinham demanda, o espaço em discos, palcos e emissoras de rádio e TV era ocupado pelo Barão Vermelho, Blitz, Legião Urbana e diversas personalidades do rock, de Erasmo Carlos a Rita Lee passando por Cazuza e Renato Russo.
Aos temporões como JJ sobravam migalhas do banquete do showbiz da Cidade Maravilhosa. Um dos saldos positivos de sua vida no Rio foram gravações de músicas suas por Elis Regina (1945-1982), uma delas (Roda de Sangue) usada como trilha de duas novelas da TV Globo. O maior brilho carioca foi a vitória no Festival MPB Shell da TV Globo de 1981 com a canção Purpurina. Cantada por Lucinha Lins, a composição classificou-se naturalmente entre as finalistas mas foi recebida por uma vaia interminável após o anúncio dos vencedores (a canção preferida do público era Planeta Água de Guilherme Arantes).
Astro Haragano foi recebido em silêncio pelas 15 mil pessoas presentes na Cidade de Lona... | Ramiro Furquim/Sul21

Jerônimo Jardim ganhou US$ 300 mil, remeteu a maior parte para a família e ficou na Cidade Maravilhosa, agora num apartamento, tentando virar estrela. Gravou um disco produzido por Ivan Lins e concorreu novamente ao Festival Shell de 1982, mas desta vez, neca. Quando as reservas acabaram, ele não teve outra saída senão voltar para o antigo ninho. Bem nessa época os irmãos K&K emplacaram “Deu Pra Ti/Baixo Astral/Vou pra Porto Alegre/Tchau”. Era o fim de uma época.
Insistindo em viajar na contramão do convencional, montou com Ivaldo Roque e outros parceiros a Pentagrama, um produtora de música com que se lançou a novos desafios. Foi marcante mas durou apenas três anos.
Com a garra de sempre, JJ compôs solito a canção Astro Haragano, cuja letra recordava a passagem do cometa de Halley — uma decepção para a maioria das pessoas. Na noite de 7 de dezembro de 1985, o cometa aparecia no céu como um pequenino chumaço de algodão no céu; no palco ao ar livre da XV Califórnia da Canção Nativa em Uruguaiana, Jerônimo Jardim soltou o vozeirão ao cantar uma de suas melhores obras musicais.

Astro Haragano
(Jerônimo Jardim)
É fogo, é gelo, verdade, ilusão
Vento de prata/escarcéu
Varando a noite campeira
repontando estrelas
na estância do céu
Chispa de sonho,
galope de luz,
mistério na imensidão
pingo tordilho cigano
qual boitatá na escuridão
Astro haragano
esperança fugaz
passando em meu coração
de encontrar meu menino
tropa de osso
roda pião
roda pião
Com acordes dissonantes e um arranjo sofisticado, Astro Haragano foi recebido em silêncio pelas 15 mil pessoas presentes na Cidade de Lona, a seis quilômetros do centro de Uruguaiana. Quando se proclamou o resultado final e JJ ficou com o primeiro lugar, o público vaiou e começou um bochincho que se estendeu até de madrugada. A maioria foi embora, mas um grupo de pessoas cercou o palco, exigindo que o compositor devolvesse o troféu, representado pela calhandra, ave galhofeira quiçá lembrada por Atahualpa Yupanqui nos versos “yo soy pajaro corsario que no conoce el alpiste”.
A prova de que Jerônimo não entregou o que era seu | Ramiro Furquim/Sul21

JJ não entregou a Calhandra de Ouro. Houve um momento em que, estimulado por um fotógrafo ávido de sangue, esboçou sair no braço com os revoltosos, mas foi contido por outros músicos. “Fica quieto, esses caras te matam”, disse-lhe o músico Dilan Camargo. De madrugada, os ânimos mais serenos, ele saiu da Cidade de Lona abraçado por duas prendas e escoltado por dois brigadianos. No caminho para a cidade, teve de ouvir do representante da sua gravadora: “Estou aqui porque me mandaram, mas tua música é uma merda”. Acabou indo dormir na casa de amigos, pois também mo hotel os revoltosos haviam armado um piquete contra o autor do Astro Haragano.
Heroísmo e trauma | Ramiro Furquim/Sul21

Contado assim, 26 anos depois, parece tranquilo, mas foi um baita trauma. Dias dias depois, em Porto Alegre, o herói da XV Califórnia teve uma tremedeira antes de subir a um palco, seu habitat predileto ao longo da vida. Por pouco não fugiu da raia. Cumpriu o compromisso, mas resolveu dar um tempo. Depois daquele show do final de 1985 na capital, ficou oito anos sem tocar violão, sem compor e sem se apresentar publicamente. Voltou a dedicar-se ao lado B — de bacharel em direito, atividade que combinaria com bicos em vendas e publicidade. Só reassumiu o lado A – de artista — em 1993, quando a milonga Portal, composta em 1984 durante uma viagem a Bagé e apresentada pela cantora Muni, ganhou um festival regional patrocinado pelo Carrefour.
Na década de 1990, o lado B se impôs. Em busca de estabilidade, ele participou de um concurso para servidor da Justiça do Trabalho. Aprovado, trabalhou dez anos nos bastidores das disputas trabalhistas, assessorando juizes, procuradores e desembargadores. Foi nesse ofício espinhoso que ele legou à Justiça do Trabalho um manual de procedimentos que zerou a pilha de recursos não julgados em tribunais regionais. Com esse trabalho desenvolvido em Porto Alegre nos primeiros anos do século XXI, Jerônimo Jardim ganhou o respeito dos pares e a gratidão da desembargadora Rosa Maria Weber, recentemente elevada ao cargo de ministra do TST.
Uma centena de canções, mais cinco livros infantis e dois para adultos | Ramiro Furquim/Sul21

Nesses anos hard na JT, faltou tempo para as atividades light, até que venceu o tempo da aposentadoria. A partir de 2005, JJ acabou organizando suas memórias, abertas ao público no site www.jeronimojardim.com. Já sua vida cotidiana está exposta no blog http://jeronimojardim.zip.net. Aqui e ali ele vem brigando pelo pagamento de direitos autorais sobre obras veiculadas na Internet. Não pensa só na sua centena de canções, mas nos seus cinco livros infantis e dois livros de ficção para adultos, o último deles – Serafim de Serafim (Editora Alcance) – lançado na Feira do Livro de Porto Alegre em novembro de 2011.
No final do ano passado, participou de um seminário em Porto Alegre sobre o assunto, mas acabou se retirando antes do final, revoltado com os que defendem a liberdade de apropriação das obras artísticas. “Eu também quero chegar na farmácia e no supermercado e levar as coisas sem pagar”, diz ele, ironizando os “comunistas ávidos pelo alheio”. Nessa briga pessoal/coletiva, um dos seus parceiros é o músico Raul Ellwanger.
Na primeira semana de 2012, ele vibrou ao saber que a Espanha preparou o caminho para que se respeitem os direitos dos criadores de músicas e obras literárias. Se é viável lá, por que não fazê-lo aqui? Há pouco ele encaminhou ao Escritório de Cobrança de Direitos Autorais (ECAD) um anteprojeto de lei impondo o pagamento de direitos autorais veiculados na internet. Duvida que algum parlamentar tenha coragem de colocar o guizo na cauda dos leões da mídia digital, mas não desiste. “Acho que o projeto vai ter de ser apresentado pelo Executivo ou pelo Judiciário”, diz ele.
Nessa sua última luta, Jerônimo Jardim une finalmente os lados A e B: o bacharel em ciências jurídicas assume a defesa do(s) artista(s). Uma bela síntese existencial para alguém que levou a vida acolherando duas atividades fundamentais: a arte que gratifica e a lei que garante os direitos humanos.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Quilombola marcado para morrer

Do jornal Vias de Fato:


Uma semana depois de denunciar que o poço da comunidade em que mora foi criminosamente envenenado, o Sr. José da Cruz, liderança quilombola de Salgado, Pirapemas-MA, denuncia que dois pistoleiros foram até o quilombo para matá-lo, seu José só escapou porque não estava em casa.
No dia 16 de dezembro, seu José da Cruz acompanhado de José Patrício outro morador do quilombo de Salgado, participaram em São Luís, de uma entrevista coletiva realizada pela Comissão de Direitos Humanos da OAB, onde foi denunciado que no dia 04.12.2011, os dezoito animais que ele criava para seu sustento, foram envenenados e mortos, e que no dia 14.12.2011 o poço que a comunidade utiliza foi envenenado para matar quem bebesse da água.
Os trabalhadores rurais trouxeram mostra da água para análise e os depósitos de veneno encontrados dentro do poço.
Os acusados de toda essa violência são dois homens – Ivanilson Pontes de Araújo e seu pai Moisés Araújo que desde 1982 travam um conflito possessório com a comunidade. Em outubro  de 2010, o juiz da Comarca de Cantanhede concedeu manutenção de posse em favor das famílias, no entanto, os dois acusados insistem em desrespeitar a ordem judicial.
Durante a entrevista coletiva, José Patrício denunciou que Ivanilson o teria ameaçado dizendo que se ele e outros moradores da comunidade continuassem a fazer roças iriam “pagar caro” por isso.
A situação é ainda mais preocupante, porque há dois dias a delegacia de Pirapemas está fechada e os quilombolas não conseguem registrar qualquer ocorrência policial. Além de tudo isso, o escrivão de polícia foi visto dirigindo o carro de um dos acusados.
Comunidade quilombola de Itapecuru-Mirim, Maranhão. (Foto: Fórum Carajás)

Hoje na História: 1852 - Morre Louis Braille, o inventor do alfabeto para cegos


Com apenas 16 anos, francês já era professor de diversas disciplinas em um colégio para deficientes visuais


Louis Braille morre em 6 de janeiro de 1852, aos 42 anos, vítima de tuberculose. Seus restos mortais seriam transferidos um século mais tarde para o Panthéon de Paris, aonde estão personalidades homenageadas pela França.
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Nasceu em 4 de janeiro de 1809 em Coupvray, uma pequena cidade a leste de Paris. Aos 3 anos, quando brincava com uma tesoura de cortar couro na oficina de selaria de seu pai, feriu-se gravemente num dos olhos. Após alguns meses, o outro olho seria contaminado e o pequeno Louis perderia completamente a visão.
Freqüentou a escola da cidade e depois, aos 10 anos, foi admitido no Instituto Real de Jovens Cegos de Paris. Passaria ali 24 anos de sua vida, primeiro como aluno e depois como jovem professor de 16 anos. Aplicado, inteligente, trabalhador e tenaz, foi lá que produziu seu alfabeto enquanto Lecionava uma enorme gama de disciplinas.
Em 1821, o capitão Nicolas Barbier de la Serre apresenta à instituição seu sistema fonético em alto-relevo, a “escrita noturna”, um útil instrumento ao exército em locais com pouca luz. Braille, então com apenas 12 anos, propõe aperfeiçoamentos à técnica e, em 1824, apresenta seu próprio sistema alfabético.
Redige um procedimento para escrever palavras, música e o canto gregoriano por meio de pontos dispostos pelos cegos. O sistema Braille nasce oficialmente com a primeira edição desse processo em 1829. Uma segunda edição viria a público em 1837 com a introdução de melhoramentos. O sistema está em vigor ainda nos dias de hoje.
Sendo um sistema eficaz, tornou-se, por fim, popular. Hoje, o método simples e engenhoso elaborado por Braille torna a palavra escrita disponível a milhões de deficientes visuais graças aos esforços que aquele rapaz empenhou há quase 200 anos.
O braille é lido da esquerda para a direita, com uma ou ambas as mãos. Cada célula braille permite 63 combinações de pontos. Assim, podem-se designar combinações de pontos para todas as letras e para a pontuação da maioria dos alfabetos. Vários idiomas usam uma forma abreviada de braille, na qual certas células são usadas no lugar de combinações de letras ou de palavras. Algumas pessoas ganharam tanta prática em braille que conseguem ler até 200 palavras por minuto.
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As primeiras dez letras só usam os pontos das duas fileiras de cima.
Os números de 1 a 9, e o zero, são representados por esses mesmos dez sinais, precedidos por um sinal especial.
As dez letras seguintes acrescentam o ponto no canto inferior esquerdo a cada uma das dez primeiras letras.
As últimas cinco letras acrescentam ambos os pontos inferiores às cinco primeiras letras. A letra w é uma exceção porque foi acrescentada posteriormente ao alfabeto francês.
As combinações restantes, ainda possíveis são utilizadas para pontuação, contrações e abreviaturas especiais. Estas contrações e abreviaturas às vezes tornam difícil a aprendizagem do braille. Isto acontece especialmente no caso de pessoas que ficam cegas numa idade mais avançada, visto que a única forma de aprender braile é memorizar todos os sinais.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Livro A PRIVATARIA TUCANA ameaça reabrir CPI inconclusa


Por Cristine Prestes no Valor Econômico, via Agência de Notícias da PF e Brasil que vai
Não há, na história da República, um escândalo financeiro tão longevo e de tantas ramificações quando o caso Banestado. Alvo de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) no Congresso Nacional em 2003 e de uma força-tarefa formada por 40 procuradores, delegados, agentes e peritos do Ministério Público federal e da Polícia federal, a descoberta de um esquema ilegal de uso das contas CC5 – criadas pelo Banco Central para permitir transferências legais para o exterior – no banco do Estado do Paraná foi a precursora de uma série de outras investigações – muitas delas ainda em curso nos gabinetes de procuradores, delegados e juízes.
Um pedido de CPI protocolado junto à mesa diretora da Câmara dos Deputados levantou as expectativas de que uma parte do caso Banestado, até agora mantida em segredo nos arquivos do Congresso, volte à tona. O deputado Protógenes Queiroz (PCdoB-SP) conseguiu em dezembro 206 assinaturas para pedir a abertura de uma nova CPI, desta vez para investigar as privatizações promovidas durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP).
Ao receber o pedido de abertura da CPI, o presidente da Câmara, Marco Maia (PT-RS), não foi conclusivo sobre as perspectivas de sua instalação.
O pedido foi motivado pelas revelações do livro “A Privataria Tucana”, lançado pelo jornalista Amaury Ribeiro Júnior. Nele, o autor regressa à época das privatizações e relata os passos – e a movimentação das contas bancárias – de personagens importantes do contexto político e econômico nacional, muitos deles ligados ao ex-governador José Serra (PSDB-SP).
Apesar de muitos governistas terem assinado o pedido de CPI, ainda não se conhece o interesse do governo e do PT na instalação efetiva desta investigação. O desinteresse de ambos na abertura de uma investigação poderia ser explicado pela informação que consta da página 75 do livro: “Os arquivos ocultavam informações capazes de constranger tanto o governo Lula quanto o de FHC”.
A devassa no Banestado partiu de uma denúncia feita contra um dos gerentes do banco, que havia enviado dinheiro ao exterior ilegalmente por meio das CC5 e, em depoimento, relatou o esquema montado na instituição. De uma forma inédita na história do país, foram abertas duas frentes de investigação.
De um lado, a CPI do Banestado foi instalada em 2003 para apurar a evasão de divisas por meio do banco estatal. De outro, uma força-tarefa do Ministério Público federal e da Polícia federal foi montada no Paraná no mesmo ano para abrir inquéritos e investigar os clientes do banco que haviam incorrido no crime.
A força-tarefa resultou em inúmeras operações da PF para investigar o uso do câmbio ilegal no Brasil e acabou varrendo diversos doleiros do mercado. Resultam dela as mais importantes operações da PF já realizadas – como Farol da Colina, Suíça, Kaspar I e II e Satiagraha. O conjunto de ações integradas entre a PF e a MP foi encerrado em setembro de 2007 após ter denunciado 684 pessoas, obtido 97 condenações, investigado mais de 1.170 contas bancárias no exterior e bloqueado R$ 380 milhões no Brasil e R$ 34,7 milhões fora do país. Após seu término, os inquéritos ainda em andamento foram remetidos para procuradores em diversos Estados e geraram novas investigações.
A CPI do Banestado foi encerrada em 27 de dezembro de 2004 sem a aprovação de seu relatório final. Na época, os partidos fizeram um acordo para encerrar as investigações, após a comissão ter recebido dos Estados Unidos um lote de documentos sobre a movimentação de brasileiros em contas bancárias abertas no MTB Bank, outro escritório de lavagem de dinheiro americano. Segundo Ribeiro Júnior, a revelação dos dados do MTB foi determinante para que fosse desencadeada a “operação abafa” na CPI.
O livro, no entanto, não se dedica às razões por que o PT resolveu colaborar para sepultar a CPI. Seu foco é na tese de que a era das privatizações – inaugurada durante o governo Collor e ampliada e intensificada no governo FHC – patrocinou a venda de estatais brasileiras a “preço de banana” e enriqueceu políticos e empresários por meio de um esquema de pagamento de propinas. Segundo o autor, a venda de empresas como Vale, CSN, Light, Embraer e Usiminas, entre outras, foi antecedida por demissões, aumento de tarifas, investimentos e absorção das dívidas das companhias pelo Estado e concluída por meio do uso de moedas podres e intensa participação do BNDES no financiamento aos consórcios que as adquiriram.
Entre a primeira e a segunda etapas, Ribeiro Júnior tenta provar que houve um esquema de corrupção por meio do qual os tucanos montavam os consórcios vencedores dos leilões em troca de propina – no que chama de “propinização”, ao invés de privatização.
O principal argumento que sustenta a tese do autor foi mantido em sigilo pelo Congresso desde 2003, quando foi instalada a CPI do Banestado. Segundo Amaury Ribeiro Júnior, a caixa de número 6 que abriga o material levantado pela CPI contém um documento, reproduzido no livro à página 137, que demonstra que o ex-tesoureiro de campanha de Fernando Henrique Cardoso (em 1994 e 1998) e de José Serra (em 1990 e 1994), Ricardo Sérgio de Oliveira, recebeu somas consideráveis nas contas bancárias de empresas das quais é sócio.
Após a eleição de Fernando Henrique Cardoso, Ricardo Sérgio, indicado por Serra, assumiu a área internacional do Banco do Brasil, posto por meio do qual teria articulado a participação dos fundos de pensão – como Previ e Petros – nas privatizações.
Além de Ricardo Sérgio, o documento, reproduzido por Ribeiro Júnior no livro, também cita Gregório Marin Preciado, casado com uma prima de primeiro grau de Serra. Preciado teria movimentado dinheiro por meio do Beacon Hill, escritório de lavagem de dinheiro que foi o principal receptor dos valores enviados ilegalmente para fora do país pelas contas CC5 do Banestado. O autor, no entanto, não consegue provar que o dinheiro que circulou nas contas dessas pessoas tem origem nas privatizações e tampouco que Serra teria se beneficiado desses valores. Procurada pelo Valor, a assessoria de imprensa de José Serra não se manifestou. O ex-governador de São Paulo classificou o livro como “lixo”. A reportagem não encontrou Ricardo Sérgio em seu escritório. A assessoria do PSDB informou que o departamento jurídico do partido prepara uma ação judicial contra o livro.
“Não é um livro, é um documento”, resumiu o deputado Protógenes Queiroz durante um debate sobre “A Privataria Tucana” promovido pelo Centro de Estudos Barão de Itararé, realizado no Sindicato dos Bancários de São Paulo.
A afirmação decorre do fato de o autor se dedicar a esmiuçar o modus operandi da lavagem de dinheiro a partir dos mais ruidosos escândalos brasileiros dos últimos tempos, como o desvio de verbas da construção do novo fórum trabalhista de São Paulo pelo juiz Nicolau dos Santos Neto; a Máfia dos Fiscais do Rio de Janeiro; o desvio de verbas do INSS promovido pela servidora Jorgina de Freitas, entre outros casos.
Em todos eles, as investigações culminaram em uma sequência de operações que incluiu o desvio de recursos públicos, seguido da evasão de divisas por meio de doleiros, da circulação do dinheiro em contas de bancos americanos e da abertura de offshores em paraísos fiscais. Sem a identificação dos seus beneficiários finais, protegidos pelo sigilo oferecido nesses países, as offshores promoviam investimentos no Brasil, reinserindo o dinheiro lavado na economia. (Colaborou Cristiane Agostine)

Milton Nascimento-Frenesi em espanhol

O partido único da mídia e o conformismo anestesiado pelo consumo



Ao se fixar nos seus próprios dogmas, desprezando o real, o poder dos partidos midiáticos tende ao enfraquecimento. Ao se descolarem da realidade perdem credibilidade e apoio, cavando sua própria ruína. Trata-se de um caminho trilhado de forma cada vez mais acelerada pela mídia tradicional brasileira.


Por Laurindo Lalo Leal Filho, na Carta Maior


A superficialidade e o descrédito a que chegaram os meios de comunicação tradicionais no Brasil é incontestável. Posicionamento político-partidário explícito e “reengenharias” administrativas estão na raiz desse processo.

Dispensas em massa de profissionais qualificados explicam, em parte, a baixa qualidade editorial. Foi-se o tempo em que ler jornal dava prazer. Mas fiquemos, por aqui, apenas na orientação política.

A concentração dos meios e a identidade ideológica existente entre eles criou no país o “partido único” da mídia, sem oposição ou contestação. Ditam políticas, hábitos, valores e comportamentos. O resultado é um grande descompasso entre o que divulgam e a realidade. Hoje, para perceber esse fenômeno, não são mais necessárias as exaustivas pesquisas em jornalismo comparado, tão comuns em nossas academias lá pelos anos 1980.

Agora basta abrir um jornal ou assistir a um telejornal e compará-los com as informações oferecidas por sites e blogues sérios, oferecidos pela internet. São mundos distintos.

No caso da mídia brasileira essa situação começou a se consolidar com a implosão das economias planificadas do leste europeu, na virada dos anos 1980/90.

Em 1992, no livro “O fim da história e o último homem”, ampliando ideias já apresentadas em ensaio de 1989, Francis Fukuyama punha um ponto final no choque de ideologias, saudando o capitalismo como modo de produção e processo civilizatório definitivo da humanidade, globalizado e eternizado.

Tese rapidamente endossada com euforia pela mídia conservadora e hegemônica que, a partir dai, pautaria por esse viés seus recortes diários do mundo, transmitidos ao público. Faz isso até hoje.

Só que, obviamente, a história não acabou. Ai estão as crises cíclicas do capitalismo, neste início de milênio, evidenciando-o como modo de produção historicamente constituído, passível de transformações e de colapso, como qualquer um dos que o precederam. Mas a mídia trata o capitalismo como se fosse eterno, excluindo de suas pautas as contradições básicas que o formam e o conformam. Dai a pobreza de seus conteúdos e o seu distanciamento da realidade, levando-a ao descrédito.

De fomentadora de ideias e debates, fortes características de seus primórdios em séculos passados, passou a estimuladora do conformismo e da acomodação. Para ela o motor história não é a luta de classes e sim o consumo, apresentado em gráficos e infográficos, alardeando números e índices que, muitas vezes, beiram o esotérico.

Se nos anos 1990 essas políticas editoriais obtiveram relativo êxito apoiadas na expansão do neoliberalismo pelo mundo, na última década a realidade crítica abalou todas as certezas impostas ideologicamente. As contradições vieram à tona.

No entanto a mídia, reduzida e conservadora, especialmente no Brasil, segue tratando apenas das aparências, deixando de lado determinações mais profundas. Movimentos anti-capitalistas espalhados pelo mundo são mencionados, quando o são, particularmente pela TV, como “fait-divers”, destituídos de sentido, a-históricos. Seguindo rigorosamente a tese de Fukuyama.

Fazendo jus ao seu papel de “partido único”, os meios oferecem ao público, como elemento condutor de sua ideologia conservadora, algo que genericamente pode ser chamado de kitsch. Definição dada pelos alemães no século passado para a arte popular e comercial, feita de fotos coloridas, capas de revistas, ilustrações, imagens publicitárias, histórias em quadrinhos, filmes de Hollywood. Atualizando seriam os nossos programas de TV, os cadernos de variedades de jornais e revistas, as músicas e as preces tocadas no rádio.

Esse é o prato diário da mídia, oferecido em embalagens sedutoras e entremeado de informações ditas jornalísticas, apresentando o mundo como um quadro acabado, inalterável. Não existindo alternativas, resta o conformismo anestesiado pelo consumo, ainda que para muitos apenas ilusório.

Claro que esse quadro midiático tem eficácia até certo momento, enquanto realidade e imaginário de alguma forma guardam proximidade. Mas ele também é histórico e, portanto, mutável.

Enquanto as contradições básicas da sociedade, aqui mencionadas, permanecerem existindo, a integração das consciências “pelo alto” será irrealizável, alertava Adorno, num dos seus últimos textos. Por mais que os meios de comunicação se esforcem por integrá-las.

Ao se fixar nos seus próprios dogmas, desprezando o real, o poder dos partidos midiáticos tende ao enfraquecimento. Ao se descolarem da realidade perdem credibilidade e apoio, cavando sua própria ruína. Confrontados com a internet desabam. Trata-se de um caminho trilhado de forma cada vez mais acelerada pela mídia tradicional brasileira. Sem falar na contribuição dada a esse processo pela queda da qualidade editorial, tema que fica para outro momento.

* Laurindo Lalo Leal Filho é sociólogo e jornalista. Professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão”.

Equador condena Chevron a indenização de 6,3 bilhões de euros


O montante do valor poderia aumentar para 13,7 bilhões de euros se a petroleira não se desculpar pelos danos | Foto: Vitor Pinho/Flickr

Da Redação do SUL21

A Justiça do Equador confirmou nesta quarta-feira (04) a condenação da petroleira estadunidense Chevron, a pagar uma indenização de aproximadamente 6,3 bilhões de euros por danos ambientais causados na Amazônia. A Corte de Justiça da província de Sucumbíos, no nordeste do país, deu como certa a sentença decretada no dia 14 de fevereiro do ano passado, quando um tribunal menor condenou a empresa em um julgamento que se estendeu por 17 anos.
A quantia, entretanto, poderia chegar ao valor de 13,7 bilhões de euros se a petroleira não se desculpar pelos danos. Uma fonte da Frente de Defensa da Amazônia explicou que a sentença ratifica a “culpabilidade” por dano ambiental ocasionado entre 1964 e 1990 pela empresa Texaco – una companhia posteriormente adquirida pela Chevron – que afetou a vida selvagem e a população indígena.
A petroleira ainda poderá recorrer da decisão perante a Corte Nacional de Justiça, aonde poderia apresentar um recurso de cassação, embora para fazê-lo deverá depositar 1% do montante da condenação. A Chevron qualificou de “ilegítimo” o veredicto e apresentou argumentos de suposta “fraude” sobre tal julgamento, que primeiro ocorreu em instâncias judiciais dos Estados Unidos e depois na corte equatoriana.
O coordenador executivo da Assembleia de Afetados pela Texaco, Luis Yanza, garantiu em comunicado, que com a decisão de hoje “se confirma e se ratifica que a companhia contaminou e afetou a Amazônia”. “Este é um passo a mais para apontar o culpado e lutar para que se diminuam os danos. É claro que nenhum valor servirá para reparar todo o crime que fizeram”, destacou Yanza.
Depois de conhecer a sentença, o presidente equatoriano, Rafael Correa, demonstrou sua alegria: “Creio que foi feita justiça. É inegável o dano que a Chevron fez na Amazônia”. Para o presidente, o julgamento foi similar a “luta de David contra Golias”.
A companhia é acusada de contaminar as terras e matar os animais com o despejo de material tóxico na Amazônia equatoriana | Foto: Kayana/Flickr

Um perito designado pelo tribunal da primeira instância havia estimado o custo de limpeza e compensação pelos danos em 20,6 milhões de euros, porém, a Chevron sustenta que este relatório não era independente, mas em colaboração com os demandantes. A companhia argumenta ainda que en 1990 chegaram a um acordo com o governo do Equador, que exonerava das responsabilidades ambientais futuras, situação que, segundo os representantes da empresa, não influenciaria em um julgamento privado.
Chevron não tem ações no Equador que poderiam ser aproveitadas para a execução da pena, mas os candidatos poderão iniciar processos de países terceiros onde a empresa tem operações para tentar amenizar a indenização.
A petroleira comprou a Texaco já tem uma década e o processo judicial iniciou em 2003. A demanda foi apoiada por 30 mil equatorianos, que acusaram a companhia de contaminar suas terras e matar seus animais com o despejo de material tóxico. Também se fala do aumento dos casos de cáncer. A companhia responde, entretanto, que não há provas científicas legítimas contra eles.
Com informações do El País