sábado, 25 de fevereiro de 2012

A latitude humana do sétimo continente de Michael Haneke

O SÉTIMO CONTINENTE - 1989

Der Siebente Kontinent, 1989
Legendado, Michael Haneke
        Créditos: Convergência Cinefila
 
Classificação: Excelente

Formato: AVI
Áudio: alemão
Duração: 104 min.
Tamanho: 700 MB
Servidor: Mediafire (4 partes) e 4Shared (torrent) 

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SINOPSE
Georg e sua esposa Anna percebem o quanto suas vidas são isoladas e monótonas quando sua filha Eva, em uma tentativa desesperada para conseguir atenção, passa a fingir estar cega. A família decide então alterar sua realidade e mudar para a Austrália.

Fonte: Cineplayers
The Internet Movie Database: IMDB


ANÁLISE

Atenção: A análise contém spoilers

A latitude humana do sétimo continente de Michael Haneke



Na seqüência final do celebre documentário Arquitetura da destruição (1992), o diretor Peter Cohen conclui em poucas palavras, toda a abrangência do dilema que circunda a sua obra documental e mais precisamente, todo o problema filosófico que envolve a ascensão do nazismo na Alemanha. Cohen se pergunta sobre a árdua tarefa de se definir o nazismo em termos tradicionalmente políticos, devido à diversidade de sua dinâmica que extrapola tais perspectivas. O nazismo segundo Cohen, se define por termos estéticos que tem como única ambição o “embelezamento violento do mundo”. Os campos de extermínio estariam muito mais ligados a uma espécie de assepsia estética e biológica da cultura humana, do que propriamente vinculados à extinção dos inimigos políticos do regime.
Seriam necessárias milhares de páginas e centenas de pensadores pós e pré segunda guerra, para que esse fenômeno calcado na beleza e na barbárie pudesse ser entendido com o mínimo de coerência. Porém, é louvável a capacidade que a poesia e a ficção, longe do rigor teórico ou documental, têm para nos atingir ao trabalhar sobre esse mesmo âmbito conceitual do autoritarismo. Sem sombras de dúvidas, no cinema contemporâneo, ninguém o fez e o faz, tão bem quanto o diretor austríaco Michael Haneke.
Um constante crítico do autoritarismo e um questionador do existencialismo humano. Assim poderia ser definido boa parte do trabalho desse que é um dos maiores gênios do cinema contemporâneo. Após receber dezenas de prêmios e ter praticamente cinco de seus filmes premiados com a Palma de Ouro em Cannes, Michael Haneke merece uma determinada atenção desde a sua primeira obra para o cinema, O Sétimo Continente de 1989.
Michael Haneke
Aclamado por filmes como Violência Gratuita (1997), Professora de Piano (2001), Caché (2003) e A Fita Branca (2009), foi depois de dirigir vários filmes para a televisão – muitos deles baseados em obras literárias – que a partir de sua primeira produção para o cinema, Haneke inaugurou sua vertente conceitual. Filme que deu vida a um traço autoral sistematizando uma crítica brilhante que parte de união precisa do formalismo de sua linguagem cinematográfica com o debate sobre os extremos do racionalismo.
Em O Sétimo Continente, Michael Haneke dá início ao que viria ser conhecido como a sua Trilogia da Era do Gelo Emocional (também chamada de Trilogia da incomunicabilidade ou Trilogia da glaciação’), seguido pelo O Vídeo de Benny (1992) e 71 Fragmentos de uma Cronologia do Acaso (1994). Ambas, obras de menos relevância em sua filmografia, mas que já nos permite traçar o perfil de Michael Haneke como o cineasta mais cruel e violento de nossos tempos, quiçá, da história do cinema mundial. O porquê de tamanha consideração me encarrego de esclarecer um pouco mais adiante, primeiro vamos ao filme.
O Sétimo Continente é baseado na história real de uma família de classe média austríaca constituída por Georg, um engenheiro, a sua esposa Anna, oftalmologista, e a sua filha Eva. Diante de uma vida normal cercada por uma rotina comum a qualquer ambiente doméstico, a família decide mudar-se para a Austrália em busca de recomeço. Porém, tal mudança nada mais seria que um pretexto social para a execução de um plano metódico onde o casal resolve dar cabo de suas próprias vidas, levando consigo a sua filha.

Representando os últimos anos de vida da família, que vão de 1987 a 1988, o filme é cercado da reconstrução de atividades cotidianas que acabam por remeter ao tédio e a insatisfação. Diante da ordem do tédio, pequenos e simbólicos gestos começam a se manifestar, como no caso da pequena Eva que no ambiente escolar simula ter sido arrebatada por uma cegueira espontânea, nada mais do que uma forma de expressar sua carência afetiva e requerer a atenção dos pais e colegas. Os pais, imersos na rotina também vivem certo dilemas, como o incomodo psicológico que Georg se submete, pelo simples fato substituir com mais eficiência um colega de trabalho a beira de sua aposentadoria.
O esvaziamento das relações humanas é a tônica do filme, a coexistência impessoal no quotidiano dos personagens e as relações de rotina, consumo e distanciamento transparecem na composição formal dos planos de Michael Haneke. Eis o grande dom de um diretor, transformar sentimentos e conceitos em imagens, muito se manifesta na composição e na montagem. O Sétimo Continente tem um tratamento único dentre os filmes de Haneke, tal formalismo procede em suas obras seguintes, mas nenhum alcança tamanha sistematização quanto nesse filme. Um típico exemplar do “estilo alemão” de se dirigir que faz lembrar muitas vezes, os documentários de seu contemporâneo, Harun Farocki.
Ao ler qualquer sinopse do filme, alguns poderiam acreditar que O Sétimo Continente expõe os dramas de uma família que acabam por derrocar em um suicídio coletivo. Porém, tal leitura seria um grande equivoco, pois nenhum “drama” é representado, os atos e incômodos são singelos, o filme é claro e prático o que faz da morte algo ainda mais violento. Michael Haneke é visceral, porém da forma mais sóbria possível. Os seus filmes são extremamente cruéis sem nenhum tipo de apelo estético ou glamorização da violência. Não há inocentes em suas histórias, tanto o que é narrado quanto a sua maneira de narrar põem em jogo as relações de cumplicidade.

A racionalidade e a falta de sentido da vida contemporânea são armas nas mãos de Haneke. A sua frieza narrativa, como por exemplo, as cenas onde a família planeja e executa a destruição de todos os seus bens antes de se matarem, são cenas que embriagam os expectadores com tamanha demonstração de brutalidade por parte de pessoas tão comuns. É terrível ver a violência, porém, é ainda mais terrível quando essa é cometida por um semelhante que não carregue consigo a herança de nenhuma relação maniqueísta. Eis a grandeza da crítica que esse filme representa ao desconstruir a moralidade e todos os excessos de valores racionais, ao mesmo tempo se apropriando dessa mesma maneira e ver e representar o mundo.
Freud certa vez afirmou que abolição da fronteira entre o humano e o não-humando carregava consigo o que ele determinou como “pulsão de morte”. Segundo o pensador tal característica, comum ao gesto e à arte grotesca, determina um processo de dessubjetivação que solapa o racionalismo e gera uma pulsão de morte. Michael Haneke propõe uma visão sobre o outro lado da moeda trazendo a pulsão de morte não para o contexto do grotesco ou das dualidades do ser humano, mas sim, para o contexto da clareza da orientação racional e do processo de desilusão gerado pela incapacidade de alterar a ordem do mundo. Diante daqueles que crêem que a pulsão de morte manifesta-se apenas no sombrio da existência humana, Haneke apenas traduz para o cinema o que todo processo racional acabou por manifestar como um dos seus possíveis legados, o suicídio e a descrença. Nesse seu caso, um suicídio enquanto um ato estético.
Por mais que se trate de um filme tomado por uma ordem niilista, é possível enxergamos uma profundidade que se aproxima de uma espécie de “embelezamento violento do mundo”. Algo que esteja além simplesmente dos meandros do esvaziamento racional dos sentidos existenciais. Talvez a metáfora do sétimo continente e do ritual de passagem -representado no filme pelo lava-jato fundindo assepsia e lágrimas – signifique uma representação da possibilidade de um lugar melhor. E não estou falando de uma concepção metafísica, mas sim, de quão melhor a existência humana poderia ser, se determinados traços da humanidade fossem diferentes. A descrença nesse caso, nada mais seria do que a manifestação, violenta e estética, da crença na possibilidade de um mundo mais digno.



Análise retirada do site sopadecinema

























































































































































Carlos Barbosa-Lima – 10 Dedos Mágicos Num Violão de Ouro (1954)

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Créditos: UmQueTenha

A sobrevaloração de Julio Cortázar no Brasil: um capítulo de nossa ignorância sobre os vizinhos

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Idelber Avelar na REVISTA FORUM

Introdução

Imagine um hipotético doutorando argentino apresentando na Universidade de Buenos Aires um projeto de tese que comparasse as obras musicais de É O Tchan e Pixinguinha. Certamente esse hipotético estudante seria considerado um doido varrido ou desavisado por qualquer brasileiro com um mínimo conhecimento da nossa música. Isso não quer dizer, claro, que É O Tchan não tenha valor. Tem, e muito, dentro do seu contexto. Mas, jogando-o numa comparação com Pixinguinha, você provavelmente perde a chance de dizer algo relevante sobre qualquer um dos dois.
Coisa semelhante acontece no Brasil com a literatura argentina: os nomes “Cortázar” e “Borges” são mencionados na mesma frase e, às vezes, até analisados comparativamente em teses, como se pertencessem à mesma galáxia do universo literário argentino. Não pertencem, e este é o caso já há bem mais de trinta anos, não só na Argentina, mas em toda a América Latina e também nas comarcas norte-atlânticas onde Julio Cortázar foi lido, nos anos 60, como se tivesse sido um grande escritor. Mas a notícia insiste em não chegar ao Brasil, onde jornalistas, comentaristas culturais, diletantes e mesmo muitos acadêmicos pensam em Cortázar nos termos com os quais o próprio Cortázar pensava em si mesmo, ou seja, um artista estética e politicamente revolucionário.
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Se é pra ler Cortázar, leia isto

O conceito de valor

Da mesma forma como a situação hipotética descrita no primeiro parágrafo não significa que É O Tchan não tenha o seu valor, a situação real descrita no segundo parágrafo não quer dizer que a leitura dominante no Brasil esteja “errada” e a leitura dominante hoje na Argentina, no resto da América Latina, nos EUA e na Europa esteja “certa”. Não se trata disso. O valor estético não é um fato positivo – ele é resultado de lutas interpretativas, apropriações, releituras, num processo mediado por uma série de instituições (universidades, imprensa, bibliotecas), e sempre contingente. Tentei descrever como vejo o processo neste longo e tedioso ensaio, a cuja leitura convido os interessados.
Portanto, não, não se trata de “certo” ou de “errado”, nem muito menos de que eu esteja sugerindo que você “não pode mais” gostar do Cortázar do qual se acostumou a gostar. Trata-se de entender por que e como e quando quem gosta do quê. Pois, se não é verdade que o gosto e o valor sejam empirias positivas, tampouco é verdade que eles sejam fenômenos misteriosos, inexplicáveis, que acontecem simplesmente como resultado de um “gostar” que estivéssemos condenados a não entender.
Em outras palavras, há uma explicação, caro leitor, para o fato de que você continue acreditando que é um grande escritor um sujeito que, em seu contexto original e em todos os outros contextos relevantes (que aqui quer dizer: contexto no qual o texto realmente é lido), se considera um escritor menor, no máximo uma boa introdução para adolescentes ao prazer da peripécia literária, e em todo caso jamais, jamais, jamais um escritor que possa ser mencionado na mesma frase com Jorge Luis Borges, Juan José Saer, Macedonio Fernández, Roberto Arlt ou qualquer outro dos autores reconhecidamente grandes da mais rica tradição de prosa ficcional da América Latina — o que não quer dizer, evidentemente, que Cortázar não continue tendo muitos fãs na Argentina, nem que jornais e suplementos literários não continuem a prestar homenagens, publicar textos elogiosos, marcar efemérides.
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Cortázar na Argentina

Como tenho perfeita consciência de que ainda não chegou ao Brasil a notícia de que Julio Cortázar é um escritor menor na Argentina – e trata-se de uma notícia que já tem trinta anos, pelo menos –, compartilho aqui o juízo que sobre ele fazem alguns dos críticos e escritores argentinos que com mais atenção se debruçaram sobre a tradição literária de seu país, para que não pensem que estou mentindo: César Aira, o mais prolífico romancista contemporâneo argentino, escreve que Cortázar é um “escritor para adolescentes”. Na avaliação de Ricardo Piglia, “depois de Todos los fuegos el fuego [Cortázar] já não escreveu mais, dedicando-se exclusivamente a repetir seus velhos clichês e a responder às exigências estereotipadas de seu público”. Sobre O jogo de amarelinha, Beatriz Sarlo, a mais reconhecida crítica argentina de hoje, escreve que é um romance que “sofreu enormemente a passagem do tempo”. Para Tomás Abraham, um dos principais filósofos do país, o romance está “escrito para candidatos de agência de turismo cultural”, uma “perfumaria free tax de aeroporto”. Eu poderia continuar citando, indefinidamente. Não é um juízo sobre o qual haja grande polêmica.
É verdade que houve uma época em que Cortázar foi lido na Argentina, e também no resto da América Latina, como um grande renovador das letras castelhanas. Mas essa leitura morreu há mais de trinta anos, e sua sobrevivência no Brasil é um fenômeno curioso, porque não se trata de uma interpretação que se sustente em oposição à dominante na Argentina, polemizando com ela. Não. É uma leitura que se mantém por inércia, em completa ignorância de como Cortázar é lido em seu contexto original. Repito: é óbvio que isso não significa que a leitura feita na Argentina é  a “verdadeira”. Não existem leituras definitivas. Mas imagine um argentino que escutasse Renato e seus Blue Caps — até aí, problema nenhum. Mas se ele os ouvisse acreditando que foram os grandes renovadores da música popular brasileira no século XX, você seria o primeiro a exclamar que está faltando informação. O caso de Cortázar no Brasil é idêntico e eu não exagero na comparação: Cortázar tem, para a literatura argentina do século XX, a importância que têm Renato e seus Blue Caps para a música brasileira popular.
Por que persiste, então, por inércia, a leitura celebratória? Uma boa pista pode vir do experimento de trollagem que faço com este tema no Brasil há mais de dez anos.
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Resultados da trollagem anual

Já há bastante tempo eu faço, pelo menos uma vez por ano, o exercício de “dar essa notícia”, que sempre pega os leitores (ou aspirantes a leitores) brasileiros de Cortázar em profunda surpresa. Este ano, no Twitter, não foi diferente. As respostas foram sempre as mesmas: não dou conta da desconstrução dos meus ídolos, ou sinto prazer na leitura e essa complicação intelectual está me tirando a ilusão, ou Cortázar me faz sentir tão bem. As respostas variam muito pouco e reiteram o mesmo ponto: a literatura de Cortázar reconcilia o leitor, confortavelmente, com os clichês e estereótipos que ele já traz de antemão. Depois da experiência catártica, purgada de qualquer desassossego, o leitor se sente bem.  Em dez anos realizando minha operação de trollagem, jamais vi um leitor brasileiro elogiar Cortázar nos termos opostos, ou seja, de que sua literatura o tivesse descolocado. O elogio é sempre feito em termos bem confortáveis.
A epítome desse conformismo estético, moral e político é o tão decantado experimento de permutabilidade de O Jogo da Amarelinha, romance que pode ser lido linearmente ou na ordem sugerida pelo autor na primeira página, começando-se no capítulo 73, depois passando ao 1, ao 2, ao 116 etc. Entre os leitores que celebram essa permutabilidade como uma grande radicalidade estética — e, trabalhando há anos com literatura hispanoamericana em vários lugares, só encontrei brasileiros que o fizessem –, nenhum deles menciona o fato realmente relevante aqui, ou seja, o de que dá absolutamente na mesma qual a ordem você lê o livro. Bibliotecas foram escritas sobre O Jogo da Amarelinha, mas até hoje nunca vi alguém demonstrar qualquer diferença entre a leitura que começa no capítulo 1 e a que parte do capítulo 73.  Ou seja, o suposto experiemento estético é, na verdade, um penduricalho ornamental.
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Liliana Heker, a autora da cacetada final

A canonização de Cortázar

Qual seria, então, a leitura de Cortázar canonizada nos anos 60 e que persiste no Brasil até hoje? Trata-se, basicamente, de uma interpretação ancorada na utopia de coincidência entre vanguarda estética e vanguarda política. Digamos assim: “escreverei literatura de vanguarda, radical, mas estarei ao lado do povo”.  Nem foi tão radical assim esteticamente, como vimos, nem esteve tão ao lado do povo como pensou — entre os que lutaram mesmo contra a ditadura argentina, é praticamente unânime o desinteresse (ou mesmo o desprezo) pela atividade “política” de Cortázar, e sua “solidariedade” com a Revolução Nicaraguense, no fim da vida, chegou a píncaros de egocentrismo que causaram visível desconforto entre seus anfitriões.
Durante o chamado Boom da literatura latino-americana dos anos 60 (o grande fenômeno editorial que catapultou o próprio Cortázar, Vargas Llosa, García Márquez e Carlos Fuentes ao reconhecimento mundial), o belga-argentino declarou, tentando fundamentar sua utopia de coincidência entre política e estética: “o que é o boom senão a mais extraordinária tomada de consciência por parte do povo latino-americano de uma parte de sua própria identidade? Todos os que qualificam o boom de manobra editorial se esquecem de que o boom não foi feito por editores mas por leitores, e quem são os leitores senão o povo da América Latina?” Em outras palavras, para Cortázar, o sucesso de vendas de seus livros, e o do seu grupo de amigos, significava que o povo latino-americano estava alcançando a consciência.
A citação resume os termos em que Cortázar se enxergou a si mesmo: como agente de uma conscientização do povo latino-americano. Essa continuidade ilusória entre estética e política, através da qual a literatura seria uma espécie de substituto para o atraso econômico e social do continente (“continuamos subdesenvolvidos, mas temos a melhor literatura do mundo”, foi a consigna repetida à exaustão na época), desmorona no momento em que rui o projeto de redenção modernizante pelas letras, sepultado pelo instrumental mortuário das ditaduras militares, a partir das quais a única modernização possível na América Latina passa a ser a tecnocrática. Quem quiser mais detalhes acerca de como isso aconteceu, pode consultar o primeiro capítulo deste livro, no qual desenvolvo um pouco a história mas, em todo caso, a explicação para a decadência da figura de Cortázar na América Latina é esta: a obra não renovou sua legibilidade para além daquele contexto. O massacre argumentativo que lhe impôs Liliana Heker em 1980, quando Cortázar chegou a afirmar que só existia literatura argentina fora do país, consolidou esse destino.
Tanto isso é verdade que todos os fãs de Cortázar no Brasil que o tenham lido – já que ele também tem fãs que nunca o leram – o elogiam com os clichês tomados diretamente daquele marco de interpretação. Na verdade, não há outra celebração possível de Cortázar, ela é sempre a mesma: a aventura do exilado, o romantismo do artista maldito que acredita no potencial redentor da arte, o flâneur que se perde na cidade ou na estrada, em geral sentindo-se inteligente através da humilhação de uma mulher (como a Maga, em O Jogo da Amarelinha), os artefatos da cultura de massas (como o jazz) transformados em ticket cult, etc. etc. etc. Todos os elogios a Cortázar são variações desses clichês.
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A fórmula dos contos de Cortázar

Depois da publicação de seu primeiro livro de contos, Bestiário (1951), uma obra realmente inovadora, que compreendia o peronismo em chave até então não vislumbrada, os relatos de Cortázar passam a repetir uma fórmula, que lhe garantiu enorme sucesso de mercado e que se repetia com tediosa previsibilidade. Essa fórmula pode ser resumida em três ou quatro movimentos: 1) um personagem, sempre homem, topa-se com um lá-fora, um estrangeiro, um desconhecido: o réptil no zoológico em “Axolotl”, o acidente de moto em “La noche boca arriba”, a queda do avião em “La isla al mediodía”, a artista de cinema em “Queremos tanto a Brenda”, a Revolução Sandinista em “Apocalipsis en Solentiname” etc. 2) O choque produz no sujeito um desassossego que o descoloca, e instala uma esfera “fantástica” diferente da que estava presente na ordem anterior: o visitante do zoológico começa a transformar-se em réptil em “Axolotl”, o acidentado de “La noche boca arriba” começa a ter alucinações de que é um prisioneiro azteca, o passageiro do avião em “La isla al mediodía” passa a ter a visão perfeita da ilha, o fã começa a se fundir com a atriz em “Queremos tanto a Brenda”, as fotografias tiradas na Nicarágua começam a revelar uma realidade terrível que o protagonista não havia visto etc. 3) O conto conclui com a esfera “fantástica” coexistindo com ou substituindo a realidade anterior, enquanto o leitor sente que, catarticamente, passou por uma purgação, uma aventura através da qual a ficção lhe deu o vislumbre de uma outra dimensão. A execução desses passos é intercalada com pitadas de humor piegas à la María Elena Walsh, algumas piadas machistas e um ou outro comentário supostamente high-brow sobre alguma esfera da cultura de massas, em geral o jazz.
A previsibilidade é tal que basta ler sete ou oito contos de Cortázar – falo dos textos posteriores a Bestiário – para que se adivinhe, sem muitos problemas, como terminarão os outros relatos. Leia Todos os fogos, o fogo, e depois faça o exercício com As armas secretas. É muito mais fácil que adivinhar final de telenovela ou bang-bang.
É por isso, então, que Cortázar é hoje consumido, na Argentina, principalmente como um escritor para adolescentes. O texto não resiste à releitura. Nisso não há, evidentemente, nenhum problema. Adentrar os adolescentes no gosto pela peripécia já é, em si mesmo, um mérito. O problema é continuar tratando-o, na ignorância de toda essa história, como se fosse um renovador das letras.
Porque, afinal de contas, para argumentar que um escritor é um renovador da literatura, você teria que ter alguma boa explicação para o porquê de essa obra não ter conseguido, nos últimos quarenta anos, renovar minimamente sequer as suas próprias condições de legibilidade, sequer em seu contexto de circulação original.

A desmontagem da «Democracia Representativa» - Num livro de Jean Salem

Miguel Urbano Rodrigues :Odiario.info
 
Jean Salem 
Jean Salem, com o seu livro « Élections, Piège à Cons ? -Que Reste-t-il De La Démocratie ? » (1)dá um contributo valioso para a desmontagem do mito da chamada democracia representativa. Em apenas 104 páginas, o autor consegue imprimir força de evidência a um conjunto de questões que condicionam o futuro da humanidade. Ilumina as engrenagens da falsa democracia, desmonta os mecanismos do circo eleitoral e alerta para o papel que a manipulação mediática representa hoje na estratégia de poder do grande capital.

Salem – Élection Piège à Cons ? -Que Reste-t-il De La Démocratie ?(2) - é uma contribuição valiosa para a desmontagem do mito da chamada democracia representativa.
Em apenas 104 páginas, o autor consegue imprimir força de evidência a um conjunto de questões que condicionam o futuro da humanidade.
Salem, professor de História da Filosofia na Sorbonne, conhecedor profundo do pensamento dos materialistas gregos, consegue numa linguagem muito acessível encaminhar os leitores para a reflexão sobre problemas inseparáveis da crise global que está encaminhando a humanidade para o abismo.
No seu livro Lénine et la Révolution (3), recorrendo a seis teses do grande revolucionário russo, demonstrou que elas não perderam actualidade na luta contra a barbárie capitalista.
Neste ensaio ilumina as engrenagens da falsa democracia, desmonta os mecanismos do circo eleitoral e alerta para o papel que a manipulação mediática representa hoje na estratégia de poder do grande capital.

AS DINASTIAS REPUBLICANAS

Filho de Henri Alleg, Jean SALEM herdou do pai o talento de usar a ironia com eficácia na denúncia de facetas pouco lembradas do drama e da comédia politica. Comentando a proliferação das «dinastias electivas» chama a atenção num dos primeiros capítulos para o estranho fenómeno da tendência dinástica em regimes formalmente republicanos. Nos EUA, George Bush pai preparou George Bush filho para chergar à Casa Branca após o intermezzo de Clinton. No Haiti Papa Doc Duvalier teve como sucessor Baby Doc Duvalier. Na Nicarágua foi necessária uma revolução para dar fim à dinastia dos Somoza. No Paquistão Benazir Butto sucedeu a seu pai Ali Butho e o marido, Asif Zardari tornou-se presidente quando a assassinaram. O filho, Bilwal, é o herdeiro provável. Na Índia de Indira Gandhi, filha de Jawaharlal Nehru, o sucessor foi o filho, Rajiv, também assassinado e Sonia, a viúva, uma italiana, somente não foi primeira-ministra porque recusou. Na Coreia do Norte, Kim il Jong herdou a Presidência do pai, Kim Il Sung e o neto deste, Kim Jong Un governa agora o país. Na Colômbia, duas famílias, os Gomez e os Lopez têm vocação dinástica e o actual presidente, Juan Manuel Santos, orgulha-se do fundador da estirpe presidencial, Eduardo Santos. No Togo, Fauce Gnassingbé Éyadmé recebeu o poder do pai Gnassigbé Eyedema. No Gabão, Ali Ben Bongo governa com escassa contestação após o pai, Gongo Omar. Na República Popular do Congo, quando Laurent Desiré Kabila faleceu, o poder foi atribuído ao filho, Joseph Kabila. No Egipto a insurreição popular impediu que Osni Mubarak colocasse no poder o filho Gamal.
Todos definiram nos seus países a forma de governo como democrática.

O SUFRÁGIO UNIVERSAL

O sufrágio universal foi instituído por Napoleão III depois de ter liquidado a República. Não para entregar o poder ao povo, mas como sublinhou Lénine em O Estado e a Revolução – para «o utilizar como instrumento de dominação da burguesia».
Bismark imitou-o depois de ampliar os privilégios dos latifundiários prussianos. Milhões de eleitores acreditaram ingenuamente que lhes fora atribuído um poder real, quando na realidade o sufrágio universal serviu para reforçar o despotismo.

Salem recorda que na sua crítica ao parlamentarismo Lénine nunca defendeu o boicote das eleições. Os comunistas, na sua opinião, deviam estar presentes na DUMA (o parlamento do Czar), mas para, vacinados contra o cretinismo parlamentar, defenderem ali os interesses dos trabalhadores.
Para ele, a democracia capitalista limitava-se a autorizar os oprimidos de três em três ou de seis em seis anos a decidir que elementos da classe dominante os representariam, e calcaria aos pés os seus interesses no Legislativo. Nada mais. Foi igualmente em O Estado e a Revolução – escrito durante a Revolução de Fevereiro de 17 – que Lénine chamou a atenção para a realidade: a verdadeira tarefa do Estado falsamente democrático é executada nos bastidores e não através do Parlamento. Este servia fundamentalmente para enganar o povo e conferir legitimidade à ditadura de classe.
Transcorrido um século, o mundo mudou muito, mas não a função dos Parlamentos. O seu papel resume-se «a avalisar o que foi decidido sem eles».
Jean Salem recorda o que se passou com o projecto da Constituição Europeia para desmascarar o conceito de democracia do Estado burguês.
Quando o povo francês em 2005 votou contra o texto que impunha à União Europeia uma Constituição que institucionalizava o capitalismo, soou o alarme no mundo do capital. E o medo alastrou dois meses depois, quando os eleitores da Holanda num referendo similar rejeitaram também o projecto.
Porventura a burguesia aceitou o veredicto popular? Não.
Os governos no poder mudaram o título do Tratado Constitucional, introduziram-lhe alterações cosméticas, mas, em vez de o submeterem novamente à votação do povo, transferiram para os parlamentos a decisão. O desfecho foi o esperado: em França e na Holanda o projecto recauchutado foi facilmente aprovado em 2008.
Inesperadamente, porém, os irlandeses tinham, em referendo, recusado o mostrengo constitucional. A pressão e a chantagem exercidas sobre aquele povo foram tamanhas que, meses depois, noutro referendo, o Não passou a Sim!
A partir de então não houve mais referendos em países da União Europeia e os parlamentos aprovaram docilmente o famigerado Tratado. Em Portugal, o governo de Sócrates engavetou para o efeito o compromisso de confiar ao povo a decisão.
A dualidade de critérios sobre o carácter democrático de «eleições livres» é enfatizada por Jean Salem a propósito do que ocorreu na Palestina em 2006. Ao território afluíram observadores internacionais de dezenas de países. Os EUA os governos da UE tinham como certa a vitoria das forças de Mamoud Abbas e da sua corrupta Autoridade Palestiniana, submissa às imposições de Washington e de Israel. Mas, contrariando as sondagens, o Hamas obteve uma vitória límpida. A reacção do imperialismo foi imediata. Aplicaram sanções económicas e politicas a Gaza, bastião do Hamas. Não perdoaram aos palestinos terem desafiado o Ocidente. E em 2008 Israel invadiu a Faixa de Gaza, cometendo crimes que indignaram a humanidade.
O binómio EUA-União Europeia orgulha-se de ser o guardião da democracia, declarando-se sempre disponível para condenar aqueles que a violam.
Mas admite excepções. Quando Ieltsin ordenou o assalto
sangrento ao Parlamento russo em 1993 (150 mortos e 1000 feridos) o Washington Post escreveu: «Aprovação geral para a acção de força de Ieltsin, encarada como vitória da democracia». O secretário de Estado Warren Christopher correu a Moscovo para apoiar o golpe porque se tratava de «circunstâncias excepcionais».

O PODER REAL

Comparando a política, tal como é hoje nos países industrializados, a um teatro de sombras, Jean Salem, sempre didáctico, coloca o dedo na ferida.
As pompas oratórias confundem, mas não alteram o movimento da história. O Poder real não está na sala oval da Casa Branca nem em Bruxelas. Quem toma as decisões importantes é a Finança, o Capital, mais exactamente aqueles que representam o deus dinheiro: o Banco Mundial, o FMI, a OMC, os instrumentos de um poder «monográfico e tecnocrático», como diz o italiano Sabino Acquaviva, agentes de uma soberania transnacional, incontrolável, desumanizada.
Os capítulos dedicados por Salem ao funcionamento da farsa democrática permitem ao leitor assistir a espectáculos de teatro de absurdo.
Não revela coisas que não sejam do domínio público. Mas, ao recordar a rodagem da máquina apodrecida do sistema, aviva a repulsa que a engrenagem do capitalismo inspira hoje a uma grande parte da humanidade. Na Europa é particularmente grotesco o debate entre a direita assumida e a social-democracia. Ambos quando governam praticam políticas neoliberais. Somente se diferenciam porque os social-democratas acreditam administrar melhor o capitalismo.

O CIRCO ELEITORAL

Nada ridiculariza mais o discurso sobre a grandeza da democracia americana do que um facto insólito, confirmado pelas estatísticas: todos os presidentes dos EUA são levados à Casa Branca por uma pequena minoria de eleitores: em média 25% dos inscritos. Assim aconteceu com Reagan, Carter, Bush pai, Clinton, Bush filho. Barack Obama, olhado por Mário Soares como esperança da humanidade, recebeu 30%, um recorde.

O sistema é perverso. Com «grandes eleitores» a representarem os votantes, as primárias são condicionadas pelo dinheiro acumulado pelos candidatos em campanhas milionárias, e as convenções que decidem qual o escolhido transcorrem em atmosfera de circo.
Em 2000, Bush filho obteve menos votos do que Al Gore, as fraudes na Florida e noutros estados foram transparentes, houve recontagem, mas, após largos dias, Bush foi proclamado presidente após intervenção do Supremo Tribunal. Assim funciona a «grande democracia americana» …
O modelo é repulsivo, mas contaminou a Europa.

Em Portugal, o PS e o PSD esforçam-se por o aplicar como bons discípulos. Nos programas prometem obras faraónicas, benefícios sociais, aumentos salariais, centenas de milhares de empregos. O discurso, a postura, os gestos, a voz, o penteado, a roupa dos candidatos a primeiro-ministro são estudados e impostos por especialistas contratados, alguns estrangeiros.
Uma vez nomeado, o primeiro-ministro do Partido vencedor engaveta todas as promessas e desenvolve uma política reaccionária com elas incompatíveis.
Os governantes, aplaudidos pelo coro de epígonos, repetem diariamente, monocordicamente, que o regime é democrático, o parlamento a expressão da vontade popular – e os media carimbam a mentira.
Mentem conscientemente. Sabem que a chamada democracia representativa obedece no seu funcionamento a regras concebidas para promover a desigualdade, beneficiar o grande capital e manter na pobreza a maioria da população.
O sistema não tem conserto possível. Não pode ser reformado, tem de ser destruído. A burguesia não entrega o poder através de eleições.

Que fazer, então?
«O que é preciso mudar, na realidade, é o conjunto» -afirma Jean Salem no final do seu belo e lúcido livro – um sistema no qual o omnipresente modelo do mercado é suficientemente repugnante para que analistas mais ou menos desinteressados tenham transformado o cidadão-eleitor num vulgar consumidor da «escolha tradicional (…) um sistema em cujo cerne estão inscritas a desigualdade, a falta de carácter, a violência, a guerra».
Jen Salem escreveu um livro muito importante em que arranca a máscara à falsa democracia imposta aos povos pelo capital.

Notas:
1 -Jean Salem, Élections, Piège À Cons?-Que Reste-T-Il De La Démocratie, Flammarion, Paris, 2012
2-Jean Salem, Élections, Piège À Cons?-Que Reste-T-Il De La Démocratie, Flammarion, Paris, 2012
3-Jean Salem, Lenine e a Revolução, editora Avante, Lisboa, 2005