terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Governo Tarso joga com a miséria da categoria

Isso é prova de que a educação só é vista como prioridade nas campanhas eleitorais. Passadas as eleições, o discurso é sempre o mesmo: dificuldades financeiras, folha de pagamento muito pesada, etc. Por isso, vale sempre lembrar que o que realmente falta é coragem para dizer como e para quem se governa. Tarso já fez suas escolhas: optou por governar exigindo sacrifícios dos servidores públicos, claro que daqueles que recebem os salários mais baixos, para continuar concedendo benefícios fiscais para os grandes empresários e pagando religiosamente a dívida com a União.
Também é preciso denunciar o método usado pelo governo para aprovar seus projetos na Assembleia Legislativa. Valendo-se de uma base ampla, construída a partir do loteamento de cargos na máquina estatal, envia para o Parlamento a maioria dos seus projetos com regime de urgência, evitando assim o debate com a sociedade.
Não está sendo diferente agora com o reajuste dos educadores, mesmo que a primeira parcela só passe a vigorar em maio.
Não temos dúvida que uma das tarefas da nossa categoria, a partir deste momento, será exigir que os deputados não compactuem com essa prática, votando um projeto sem que o governo estabeleça um processo de negociação com o sindicato.
Urge, porém, reafirmar que somente através de atos públicos, acampamentos em praças, plenárias, paralisações e até mesmo greves, será possível impedir que o governo Tarso encabece, a partir do Rio Grande do Sul, um movimento voltado a acabar com a lei do piso, uma conquista dos educadores deste País.
Fonte: jornal Sineta

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Uma breve análise marxista da Classe C

 Fernando Marcelino no CORREIO DA CIDADANIA  


Provavelmente, a principal marca do governo federal do PT no Brasil foi o fortalecimento da chamada “classe C”, mal entendido por alguns como uma nova classe média, composta nas estatísticas oficiais por famílias que tem uma renda mensal domiciliar entre R$1.064,00 e R$ 4.561,00. Se em 1992 a classe C representava 34% da população, em 2011 passou a 54% e, segundo estimativas, alcançará 58% da população em 2014. Isso significa que o perfil sócio-econômico do país e suas classes estão mudando.

Durante a última década, a chamada classe C – composta, sobretudo, por jovens negros com emprego formal, alto potencial de consumo e características altamente heterogêneas ligadas ao campo político e religioso – teve um aumento superior a 40% em sua renda familiar, o que permitiu maior poder de compra, acesso à tecnologia e ingresso em faculdades. Na última década, 31 milhões de pessoas entraram na classe C – ela já responde por cerca de 47% do consumo do país, metade dos cartões de crédito emitidos, 60% dos acessos à internet, 42% das despesas com educação. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são os jovens da classe C que alimentam a expansão de quase 77% no número de pessoas que declaram “freqüentar” ou “ter freqüentado” cursos de educação profissional entre 2004 e 2010. O Nordeste é a região onde a classe C mais cresceu recentemente e a região Sul soma a maior proporção de pessoas neste grupo. Espera-se que esta classe C será a principal fornecedora da força de trabalho mais qualificada para o desenvolvimento industrial nos próximos anos.

É claro que uma classe não pode ser definida em termos de renda ou pelo padrão de consumo. É sua experiência prática que diz como ela é. Como assinala Jessé de Souza, esta “nova classe trabalhadora” em formação convive com o antigo proletariado fordista – ou o que restou dele – e possui uma trajetória de ascensão por meio do trabalho duro, com fé em Deus para suportar a dor de viver, ter força de vontade e conseguir vencer os obstáculos que aprecem pela frente. Seus integrantes possuem uma narrativa sem tempo linear, previsível ou estável. Sua reprodução se constitui como um desafio permanente. Seu risco não é de proletarização, pois sua condição já é proletarizada, produto de trabalho duro todos os dias. Não é uma condição que se alcançou e se tem medo de decadência, mas uma condição que deve ser buscada em todo momento da vida.

Como podemos fazer uma interpretação marxista da classe C? Ela demonstraria que o aparato marxista é anacrônico diante destas transformações da composição de classe no Brasil? Naturalmente ela é parte do proletariado, mas qual parte? Para André Singer, poderíamos denominá-la de “subproletariado”, aqueles “que oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais”. A nosso ver, seria mais correto caracterizar a classe C como integrante do exército industrial de reserva – que Marx sempre frisou ser parte do proletariado. Marx identifica três formas deste exército nas quais “todo trabalhador dela faz parte durante o tempo em que está desempregado ou parcialmente desempregado”:

1)                A parte flutuante representa aqueles trabalhadores que, acompanhando o ciclo da economia capitalista, oscilam no emprego tendendo a serem despedidos numa crise e esperar por uma época de prosperidade para serem incorporados ao exército ativo de trabalhadores. Eles flutuam no circuito empregatício de acordo com o estágio do ciclo econômico. Nas palavras de Marx, esses que são despedidos tornam-se elementos da superpopulação flutuante que aumenta ao crescer a indústria. Parte deles emigra e, na realidade, apenas segue o capital em sua emigração. Em suma, essa parte flutuante do exército industrial de reserva é constituída pelos trabalhadores que, por certo tempo, perdem seus empregos em conseqüência da queda na produção, no avanço de produtividade, no emprego de novas máquinas ou fechamento de empresas. Uma parte desses desempregados volta a se empregar numa potencial prosperidade industrial.

2)                A parte latente surge “quando a produção capitalista se apodera da agricultura, ou nela vai penetrando, diminui, à medida que se acumula o capital que nela funciona, a procura absoluta da população trabalhadora rural” (2009, p. 746). Geralmente, os operários agrícolas estão fadados a enxertar as fileiras das indústrias nos grandes centros urbanos, pois “dá-se uma repulsão de trabalhadores, que não é contrabalançada por maior atração, como ocorre na indústria não-agrícola. Por isso, parte da população rural encontra-se sempre na iminência de transferir-se para as fileiras do proletariado urbano ou da manufatura e na espreita de circunstâncias favoráveis a essa transferência. Está fluindo sempre esse manancial da superpopulação relativa. Mas, seu fluxo constante para as cidades pressupõe no próprio campo uma população supérflua sempre latente, cuja dimensão só se torna visível quando, em situações excepcionais, se abrem todas as comportas dos canais de drenagem. Por isso, o trabalhador rural é rebaixado ao nível mínimo de salário e está sempre com um pé no pântano do pauperismo” (idem, p. 746).

3)                Diante do aumento da acumulação de capital, duas porções do proletariado tendem a ter uma participação menor diante do aumento da dimensão estagnada do exército industrial de reserva. Como diz Marx, “a superpopulação estagnada se amplia à medida que o incremento e a energia da acumulação aumentam o número dos trabalhadores supérfluos. Ela se reproduz e se perpetua, e é o componente da classe trabalhadora que tem, em seu crescimento global, uma participação relativamente maior que a dos demais componentes” (idem, p. 747). A superpopulação relativa estagnada “constitui parte do exército de trabalhadores em ação, mas com ocupação totalmente irregular. Ela proporciona ao capital reservatório inesgotável de força de trabalho disponível. Sua condição de vida se situa abaixo do nível médio normal da classe trabalhadora, e justamente por isso torna-se base ampla de ramos especiais de exploração do capital. Duração máxima de trabalho e mínimo de salário caracterizam sua existência.

Conhecemos já sua configuração principal, sob o nome de trabalho a domicílio. São continuamente recrutados para suas fileiras os que se tornam supérfluos na grande indústria e na agricultura, e notadamente nos ramos de atividade em decadência (idem, p. 746, 747). Esses trabalhadores não deixam de fazer parte do exército industrial de reserva, tampouco deixam de ter lugar na divisão social do trabalho no modo de produção capitalista. É parte cada vez mais importante do proletariado. Longe de ser inútil, a porção estagnada do exército industrial de reserva se reproduz com os trabalhos mais degradantes, com mais riscos à integridade física e moral, remuneração mais baixa sob vínculos empregatícios precários, ou seja, enfrentam um contato com o que Marx se refere como “ramos especiais de exploração do capital” baseados na “duração máxima de trabalho e mínimo de salário”.

Na classe C brasileira encontramos elementos das três formas de exército industrial de reserva. Em termos quantitativos, a classe C é uma conseqüência da neoliberalização da década de 1990, marcada pelas privatizações, precarização do trabalho e o aumento do desemprego. O resultado foi uma reorganização do proletariado baseada na redução do proletariado fabril e no progressivo crescimento da classe C, um fenômeno que decorre desde 1992, por mais que sua expansão aconteça de maneira mais acentuada desde 2003. Ela não é assim tão nova. Hoje, são 105,4 milhões de pessoas, ou 55,05% da população nesta faixa. Segundo um estudo da FGV, esse processo ocorre junto com o encolhimento das classes D e E. Em 1992 elas representavam juntas 62,13% da população. Em 2003 eram 54,85% dos brasileiros. Hoje, somadas, as classes D e E representam 33,19% dos 191,4 milhões de habitantes do país. É um fenômeno inédito na história do país. Ainda assim, são 16,2 milhões de pessoas vivendo com até R$ 70 mensais.

Para a classe C a estabilidade econômica é algo extremamente valorizado, pois é o caminho da ascensão social, por mais que ela seja composta por uma camada social altamente heterogênea em termos de valores, crenças políticas e comportamentos. É uma fração da classe trabalhadora emergente no Brasil, diferente daquela do ABC no final dos anos 1970, vivendo um processo de recomposição, ainda com pouca experiência de luta, mas que ainda não mostrou sua potencialidade. Os empregos da classe C são muito variados: telemarketing, feirantes, pequenos empreendedores, autônomos, trabalhadores da construção civil, caixas de supermercado, motoboys, secretariado, serviços de reparo em geral, parte do funcionalismo público, pequenos comerciantes, trabalhadores em domicílio etc. Em suma, são empregos altamente flexíveis e irregulares, por mais que alguns tenham uma formalidade oficial. Fazem parte dessa porção do proletariado os “desempregados ativos” que estão numa lacuna entre o trabalho atípico, parcial, desregulamentado, informal ou temporário e as agruras do não-trabalho. Alguns têm dupla jornada de trabalho e outros tantos são trabalhadores completamente informais. Todos lutam para pagar suas contas e costumam morar nas periferias das grandes cidades. Muitas vezes seu acesso a formas de mínimas de auto-organização e ao espaço público se dá por meio de igrejas evangélicas e neopentecostais.

Esta transformação da composição social do proletariado resulta, agora, em novas lutas de classe – só que, até agora, sem muita organização, representação e visibilidade política. O que fazer? Qual é o futuro político da classe C? Ser cooptada pelos ideais do livre-mercado, típicos da classe média? Ou pelas milícias e empresas religiosas privadas? Ou poderia ser tomada pelo ideal de uma sociedade calcada no trabalho duro e uma sociedade justa e socialista?

A necessidade de ascensão política de massas da “classe C” será provavelmente o mais importante norteador da nova dinâmica da luta de classes no Brasil no próximo período. Aquela parte da população que passou a ter mais acesso aos bens de consumo, mas ainda é muito conservadora, impede que projetos “socialistas” sejam aceitos facilmente, por mais que se coloque em movimento num novo ciclo de lutas das classes populares. Mostra-se que a inclusão no mercado por si só não garante o aumento da organização popular da classe C nem um desenho claro de uma consciência de classe.

Longe disso, ela parece estar atualmente mais próxima das diversas formas de individualismo possessivo do tempo presente e das grandes empresas de evangelização do que de qualquer “ideologia socialista”, muitas vezes demonizada, sendo vista como uma desculpa apenas para “instabilidade social” ou “politicagem”.

Para adentrarmos na consciência da classe C, devemos evocar a fórmula do lulismo feita por André Singer. O lulismo seria “a execução de um projeto político de redistribuição de renda focado no setor mais pobre da população, mas sem ameaça de ruptura da ordem, sem confrontação política, sem radicalização, sem os componentes clássicos das propostas de mudanças mais à esquerda”. O lulismo "expressa um fenômeno de representação de uma fração de classe que, embora majoritária, não consegue construir desde baixo as próprias formas de organização". Essa fração de classe é caracterizada por uma expectativa de Estado forte, que reduz a desigualdade, mas sem ameaçar a ordem estabelecida.

Portanto, ao contrário do que pensa o próprio Singer, essa fração de classe não apresenta afinidades partidárias de qualquer tipo ou intensas rejeições a partidos, e tampouco identificações personalistas fortes. Segundo Singer, as constantes declarações de Lula a favor da manutenção da estabilidade satisfizeram não só os banqueiros e investidores, nacionais e estrangeiros, como também o eleitor pobre e conservador, que teme a ruptura da ordem, embora deseje a redução da desigualdade e pobreza. O lulismo representa uma nova orientação ideológica, marcada pela preferência por redução da desigualdade, mas com manutenção da estabilidade, algo que não é “nem de direita, nem de esquerda e nem de centro”.

Nosso desafio é desenvolver uma verdadeira alternativa política para a classe C, trabalhar na base dessa classe e de outras classes populares da sociedade brasileira, vivenciando e contribuindo para sistematizar suas pequenas experiências de luta, elevando sua consciência de classe. Esse processo não é imediato. É uma missão estratégica, de longo prazo, orientando essas classes no momento que decidirem lutar. Devemos urgentemente reorganizar a esquerda sob este marco, pois ela se encontra muitas vezes alheia a tal processo, sem saber como tratar adequadamente as transformações. Nossa disputa começa ao colocar a classe C em movimento como um setor da classe trabalhadora, fazê-la agir e pensar como parte substancial da classe trabalhadora e seu destino na luta política.

Um primeiro passo neste sentido seria entender que diante da enorme dificuldade do movimento sindical em organizar no espaço de trabalho este segmento crescente de trabalhadores, principalmente da classe C, o espaço em que milhões de trabalhadores no Brasil tem se organizado e lutado é o território, em especial na periferia e nas favelas das grandes cidades. A politização destes territórios é parte integrante do processo de politização da classe C. Nosso dever é saber transformar suas reivindicações em ações massivas, independentes do governo e seus correligionários. Isso só surgirá, entretanto, se retomarmos a velha lição de organização junto à base popular, em seu dia a dia, em lutas diárias e miúdas, em especial da classe C. Somente as grandes mobilizações, o estímulo a todas as formas de luta de massa por necessidades imediatas e o trabalho de base podem alterar nossa situação diante da nova dinâmica da luta de classes.

Fernando Marcelino é economista.

Os três brasileiros que refutaram as bases do neoliberalismo




O livro “O Universo NeoLiberal do Desencanto”, do economista José Carlos de Assis e do matemático Francisco Antonio Doria, traz uma história extraordinária, de como três brasileiros – no campo da lógica – ajudaram a desmontar o principal princípio do neoliberalismo: aquele que dizia que em um mercado com livre competição os preços tendem ao equilíbrio.

Por Luís Nassif no
VERMELHO


As teses do trio – lógico Newton da Costa, matemático Antonio Doria e economista Marcelo Tsuji é um clássico da ciência brasileira, uma história complexa, porém fascinante, que merece ser detalhada.

O primeiro passo é – a partir do livro – reconstituir as etapas da matemática no século 20, sua luta para se tornar uma ciência formal, isto é, com princípios de aplicação geral. E os diversos obstáculos nesse caminho.

O método axiomático na matemática

A matemática sempre se baseou no método axiomático de Euclides.
1 Escolhem-se noções e conceitos primitivos.
2 Utiliza-se uma argumentação lógica.
3 Manipulando os conceitos com a lógica, chega-se aos resultados derivados, os teoremas da geometria.

Foi só a partir do final do século 19 que Giuseppe Peano incorporou o método axiomático à matemática tornando-se, desde então, a técnica mais segura para a geração de conhecimento matemático.

Em 1908, Ernest Zermelo axiomatizou a teoria dos conjuntos e, a partir daí, todos os resultados conhecidos da matemática. Formou-se a chamada matemática “feijão-com-arroz” usada por engenheiros, economistas, ecólogos e biólogos matemáticos.

E, desde então, no âmbito da alta matemática instaurou-se uma discussão secular: tudo o que enxergamos como verdade matemática pode ser demonstrado?

A formalização da matemática

Com esses avanços do método axiomático, pensava-se que tinha se alcançado na formalização da matemática, tratada como ciência exata capaz de calcular e demonstrar todos os pontos de uma realidade.

Mas aí começaram a surgir os paradoxos, dos quais o mais famoso foi o de Russel:

Em uma cidade, existem dois grupos de homens: os que se barbeiam a si mesmos e os que se barbeiam com o barbeiro. A que grupo pertencem os barbeiros?

Ora, um axioma não pode comportar uma afirmação contraditória em si. De acordo com as deduções da lógica clássica, de uma contradição pode-se deduzir qualquer coisa, acaba o sonho do rigor matemático e o sistema colapsa.

Houve uma penosa luta dos matemáticos para recuperar a matemática da trombada dos paradoxos até definir o que são as verdades matemáticas, o que coube ao matemático David Hilbert (1862-1943).

Nos anos 20, Hilbert formulou um programa de investigação dos fundamentos da matemática, definindo o que deveriam ser os valores centrais:

Consistência: a matemática não poderia conter contradições.
Completude: a matemática deve provar todas suas verdades.
Procedimento de decisão: a matemática precisa ter um procedimento, digamos, mecânico permitindo distinguir sentenças matemáticas verdadeiras das falsas.

A partir desses princípios, a ideia era transformar a matemática em uma ciência absoluta com regras definitivas. No Segundo Congresso de Matemática, em Paris, Hilbert propôs os famosos 23 problemas cuja solução desafiaria as gerações seguintes de matemáticos. (http://www.rude2d.kit.net/hilbert.html).

Seus estudos foram fundamentais para o desenvolvimento da ciência da computação.

Mas havia uma pedra em seu caminho quando 1931, o matemático alemão Kurt Gödel (1906-1978), radicado nos Estados Unidos, formula seu teorema da incompletude para a aritmética, inaugurando a era moderna na matemática. Muitos estudiosos sustentam que seu “teorema da incompletude” é a maior realização do gênio humano na lógica, desde Aristóteles.No começo, os achados de Gödel se tornaram secundários no desenvolvimento da matemática do século.

A partir dos estudos de dois dos nossos heróis – Doria e Da Costa – os matemáticos descobriram porque a matemática não conseguia explicar uma série enorme de problemas matemáticos.

E aí se entra em uma selva de conceitos de difícil compreensão.

Mas, em síntese, é assim:

Suponha um sistema de axiomas, com vários axiomas. Por definição, esse axioma não demonstra fatos falsos, só verdadeiros.

Dentre os axiomas, no entanto, há uma sentença formal que, por definição, não pode ser demonstrada.

Se não pode ser demonstrada que é verdadeira, também não pode ser demonstrada que é falsa (acho que o matemático se baseou no axioma da Folha com a ficha falsa da Dilma). Logo é uma sentença “indecidível” – isto é, não pode nem ser provada nem reprovada.

Se o sistema é consistente – isto é, se consegue provar o que é provável e não consegue o que não é – então, para ser consistente, ele será incompleto.

Pronto, bagunçou totalmente a lógica dos que supunham a matemática uma ciência exata.

Anos depois, o lógico norte-americano Alonzo Church (1903-1995) e o matemático inglês Alan Turing (1912-1954) desenvolveram outro conceito, a indecibilidade.

Ambos demonstraram que há programas de computador insolúveis.

Turing, aliás, tem uma biografia extraordinária http://www.turing.org.uk/turing/. Durante a Segunda Guerra foi criptógrafo do Exército inglês. Conseguiu quebrar a criptografia da máquina alemã Enigma, até então considerada impossível de ser desvendada. Tornou-se herói de guerra. E lançou as bases para a teoria da programação em computador, quando conseguiu reduzir todas as informações a uma sucessão de 0000 e 1111.

Em 1952 confessou-se homossexual a um policial que havia batido na porta de sua casa. Preso, com base em uma lei antissodomia (revogada apenas em 1975), foi condenado a ingerir hormônios femininos para inibir o libido. Os hormônios deformaram seu corpo. Acabou se matando com uma maçã envenenada em 1954.

A teoria da programação nasce em 1936 em um artigo onde Turing analisa em detalhes os procedimentos de cálculos matemáticos e lança o esboço da “máquina de Tuning”, base da computação moderna.

Nesse modelo o procedimento é determinístico – isto é, nos cálculos não há lugar para o acaso.

Muitas vezes ocorrem os “loops infinitos”, situações em que o computador não consegue encontrar a solução e fica calculando sem parar. Turing já havia provado ser impossível um programa que prevenisse os “crashes” de computador. Explicar a “parada” no programa de computador se tornou um dos bons enigmas para os matemáticos.

Durante bom tempo, até início dos anos 50, os matemáticos procuravam a chave da felicidade: o programa que permitisse antecipar os crashes dos demais programas. Mas em 1936 Turing já havia provado ser impossível.

Mais um revés para os que imaginavam a matemática capaz de explicar (ou computar) todos os fenômenos matemáticos.

O teorema de Rice

Em 1951, outro matemático, Henry Gordon Rice avançou em um teorema considerado “arrasa quarteirão”.

Denominou-se de funções parciais àquelas em que não existe um método geral e eficaz de decisão. Se uma propriedade se aplica a todas as funções parciais, ela é chamada de propriedade trivial. E se a propriedade traz a solução correta para cada algoritmo, ela é chamada de método de decisão eficaz.

Uma propriedade só é eficaz se for aplicada a todas as funções. E essa função não existe.

Levando essas conclusões para outras áreas, é possível constatar que não existe uma vacina universal para vírus de computador, ou para vírus biológico, Todo desenvolvimento de uma vacina biológica será sempre na base de tentativa e erro.

Para desespero dos que acreditavam que a matemática poderia explicar tudo, o teorema de Rice começou a se estender para a maior parte das áreas da matemática.

O equilíbrio de Nash

O inventor oficial da computação, Von Neuman, não conseguia resolver um caso geral em que se analisava uma solução para a soma de um conjunto de decisões.

Quem resolveu foi um dos gênios matemáticos do século, John Nash, personagem principal do filme “Uma mente brilhante”, nascido em 1928 e vivo ainda.

Em uma tese de apenas 29 páginas – que lhe rendeu o PhD e o Nobel – ele mostrou que casos de jogos não-colaborativos (como em um mercado) a solução aceitável de cada jogador correspondia ao equilíbrio dos mercados competitivos.

Como explica Dória, em linguagem popular: a situação de equilíbrio é aquela que se melhorar piora.

O “equilíbrio de Nash” mostra uma situação em que há diversos jogadores, cada qual definindo a sua estratégia ótima. Chega-se a uma situação em que cada jogador não tem como melhorar sua estratégia, em função das estratégias adotadas pelos demais jogadores. Cria-se, então, essa situação do “equilíbrio de Nash”.

O princípio de Nash é: todo jogo não-cooperativo possui um equilíbrio de Nash.

O “equilíbrio de Nash” tornou-se um dos pilares da matemática moderna.

A matemática na economia

O primeiro economista a tentar encontrar o preço de equilíbrio na economia foi Léon Walras (1834-1910). Montou equações que identificam as intersecções da curva da oferta e da demanda, para chegar ao preço ótimo. Depois, montou equações para diversos mercados, concluindo que, dadas as condições ideais para a oferta e para a procura, sempre seria possível encontrar soluções matemáticas.

Mas não apresentou uma solução para o conjunto de operações da economia.

O que abriu espaço para o “equilíbrio dos mercados” foram dois matemáticos – Kenneth Arrow (1921) e Gérard Debreu (1921-2004) que beberam no “equilíbrio de Nash” para formalizar de maneira mais rigorosa os princípios de Walras.

Walras tivera o pioneirismo de formular o estado de um sistema econômico como a solução de um sistema de equações simultâneas, que representavam a demanda de bens pelos consumidores, a oferta pelos produtores e a condição de equilíbrio tal que a oferta igualasse a demanda em cada mercado. Mas, argumentavam eles, Walras não dera nenhuma prova de que a equação proposta (o somatório de todas as equações da economia) tivesse solução.

Só décadas depois, esse dilema – de como juntar em uma mesma solução todas as equações de um universo econômico – passou a ser tratado, com o desenvolvimento da teoria dos jogos, graças à aplicação do “equilíbrio de Nash” à economia. Mostraram que a solução de Nash para o jogo corresponde aos preços de equilíbrio.

Essa acabou sendo a base teórica que legitimou praticamente três décadas de liberalismo exacerbado.

Entra em cena o “outro Nash”

Aí surge em cena o “outro Nash”, Alain Lewis, um gênio matemático, negro, mistura de Harry Belafonte e Denzel Washington, criado nos guetos de Washington, depois estudante em Princenton, onde conquistou o respeito até de referências como Paul Samuelson.

Partiu dele o primeiro grande questionamento à econometria como "teoria eficaz" (isto é, capaz de matematizar todos os fenômenos econômicos).

Em um conjunto de obras, a partir de 1985, Lewis tentou demonstrar que as noções fundamentais da teoria econômica não são "eficazes" - isto é, não explicam todos os fenômenos econômicos - e, portanto, devem ser descartadas. Comprovou sua tese para um número específico de casos.

Em 1991, em Princenton, Lewis ligava de madrugada para trocar ideias com um colega brasileiro, justamente Francisco Antônio Doria. Excepcionalmente brilhante, trato difícil, o primeiro surto de Lewis foi em 1994. Há dez anos nenhum amigo sabe mais dele. Provavelmente internado em alguma clínica.

Sua principal contribuição foi comprovar que em jogos não associativos (aqueles em que há disputas entre os participantes) embora exista o "equilíbrio de Nash" descrevendo cada ação, ganhos e perdas dos competidores, o resultado geral é "não computável" . Ou seja, podem existir soluções particulares mas sem que possam ser reunidas num algoritmo geral.

Aparecem os brasileiros

O objetivo da teoria econômica é identificar as decisões individuais que valem para o coletivo. De nada vale matematizar o resultado de dois agentes individuais se a solução não se aplicar ao conjunto de agentes econômicos.

Havia razões de sobra para Lewis ligar toda noite, impreterivelmente às duas da manhã, para Dória.

Desde os anos 80, Doria e Newton da Costa estudavam soluções para o problema da teoria do caos. Queriam identificar, através de fórmulas, quando um sistema vai desenvolver ou não um comportamento caótico. Esse desafio havia sido proposto em 1983 por Maurice Hirsch, professor de Harvard.

Eram estudos relevantes, especialmente para a área de engenharia. Como saber se a vibração na asa de um avião em voo poderá ficar incontrolável ou não?

Depois, provaram uma versão do teorema de Rice para matemática usual: que usa em economia.

Depois de muitos estudos, ambos elaboraram uma resposta brilhante sobre a teoria do caos: não existe um critério geral para prever o caos, qualquer que seja a definição que se encontre para caos.

Esse conceito transbordou para outros campos computacionáveis. A partir dele foi possível inferir a impossibilidade de se ter um antivírus universal para computador, ou uma vacina universal para doenças.

Num certo dia, no segundo andar do Departamento de Filosofia da USP, Doria foi abordado por um jovem economista, Marcelo Tsuji, que já trabalhava na consultoria de Delfim Neto. Aliás, anos atrás Paulo Yokota já havia me alertado de que o rapaz era gênio. Na época, Delfim encaminhou-o para se doutorar com Doria e da Costa.

Marcelo disse a Doria ter coisas interessantes para lhe relatar. Disse que tinha encontrado uma prova mais geral para o teorema de Lewis utilizando as técnicas desenvolvidas por Doria e Da Costa.

Doria pediu para Marcelo escrever. Depois, Doria e Nilton revisaram o trabalho, todo baseado nas técnicas de lógica de ambos.

Chegou-se ao resultado em 1994. Mas o trabalho com Tsudi só foi publicado em 1998. Revistas de economia matemática recusaram publicar. Conseguiram espaço em revistas de lógica.

O grande desafio do chamado neoliberalismo seria responder às duas questões:

1. Como os agentes fazem escolhas.

2. Como a ordem geral surge a partir das escolhas individuais.

A conclusão final matava definitivamente a ideia de que em mercados competitivos se chegaria naturalmente ao preço de equilíbrio. O trabalho comprovava que o “equilíbrio de Nash” ocorria, com os mercados chegando aos preços de equilíbrio. Mas que era impossível calcular o momento. Logo, toda a teoria não tinha como ser aplicada.

O reconhecimento mundial

O Brasil não tem tradição científica para reconhecer trabalhos na fronteira do conhecimento. Assim, o reconhecimento do trabalho do trio está se dando a partir do exterior.

O livro “Gödel’s Way”, de Doria, Newton e Gregory Chaitin tornou-se um best-seller no campo da matemática, ajudando a conferir a Gödel o reconhecimento histórico que lhe faltou em vida.

Fonte: Blog do Nassif

“Perdendo o mundo”: o declínio dos EUA em perspectiva


Noam Chomsky*
Noam Chomsky 
O declínio dos Estados Unidos entrou há algum tempo numa nova fase: a do declínio autoinfligido. Desde os anos 70 tem havido mudanças significativas na economia dos EUA, à medida que estrategas, estatais e do sector privado, passaram a conduzi-la para a financeirização e para a exportação de unidades industriais. Essas decisões deram início ao círculo vicioso no qual a riqueza e o poder político se tornaram altamente concentrados, os salários dos trabalhadores ficaram estagnados, a carga de trabalho aumentou e o endividamento das famílias também.

Há aniversários significativos que são comemorados solenemente – o do ataque japonês à base da Marinha norte americana de Pearl Harbor, por exemplo. E há outros que são ignorados, e no entanto poderiam sempre aprender-se importantes lições acerca do seu significado nos tempos que se seguiram. Na verdade, no tempo de agora.
Neste momento, erramos ao não comemorar o 50° aniversário da decisão do presidente John F Kennedy de promover a mais assassina e destrutiva agressão do período pós-Segunda Guerra: a invasão do Vietname do Sul e depois de toda a Indochina, deixando milhões de mortos e quatro países devastados com perdas que ainda neste momento estão a crescer, causadas pela exposição do país aos agentes cancerígenos mais letais de que se tem conhecimento, que comprometeram a cobertura vegetal e a produção de alimentos.
O primeiro alvo foi o Vietname do Sul. A agressão expandiu-se depois para o Norte, e para a sociedade remota do nordeste do Laos, até finalmente chegar ao rural Camboja, cujo bombardeamento atingiu o impressionante nível de ser equivalente ao de todas as operações aéreas aliadas da região do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo as duas bombas lançadas em Hiroshima e Nagasaki. Aí, as ordens de Henri Kissinger estavam a ser obedecidas – “bombardear qualquer coisa que voe ou se mova”; uma convocatória para o genocídio rara na história.
Pouco de tudo isto é lembrado. A maior parte desses massacres é escassamente conhecida para além do estreito círculo dos activistas.
Quando a invasão teve início, há cinquenta anos, a preocupação era tão reduzida que havia poucas tentativas de justificação; dificilmente iam além da indiferente afirmação do presidente de que “nos estamos a opor, em toda a parte do mundo, a uma conspiração monolítica e brutal que trata, principalmente sob meios ocultos, de expandir a sua esfera de influência” e, se a “conspiração” conseguir concretizar os seus objectivos no Laos e no Vietname, “os portões ficarão amplamente franqueados”.
Numa outra ocasião, acrescentou também que “as sociedades liberais, tolerantes e autoindulgentes estavam para ser varridas para os escombros da história [e] só a força… pode sobreviver”, reflectindo neste caso a propósito do fracasso da agressão e do terror estadunidenses na tentativa de esmagar a independência cubana.
Quando os protestos começaram a crescer meia dúzia de anos depois, o respeitado historiador militar e especialista em Vietname Bernard Fall - de modo nenhum um pacifista - previu que “o Vietname como entidade histórica e cultural…está ameaçado de extinção…[enquanto]…a sua área rural morre literalmente sob os bombardeamentos da maior máquina militar jamais concentrada numa área desta dimensão”. Estava, uma vez mais, a referir-se ao Vietname do Sul.
Quando a guerra acabou, oito horrendos anos depois, a opinião dominante estava dividida entre aqueles que a descreviam como uma “causa nobre” que poderia ter sido vencida se tivesse havido maior empenho, e o extremo oposto, os críticos, para quem se tratou de “um erro” que se provou ser altamente dispendioso. Por volta de 1977 pouca atenção foi dada ao Presidente Carter quando explicou que “não havia dívida” nossa para com o Vietname porque “a destruição fora mútua”.
Há lições importantes para hoje em tudo isto, para além dos fracos e derrotados que são chamados a responder pelos seus crimes. Uma lição é que para entender o que está a acontecer devemos procurar não apenas criticar os acontecimentos no mundo real, frequentemente ignorados pela história, mas também aquilo em que os líderes e a opinião da elite acreditam, mesmo que pintado com as tintas da fantasia. Uma outra lição é que, ao lado dos produtos da imaginação fabricados para aterrorizar e mobilizar o público (e em que talvez acreditem aqueles que são enganados pela sua própria retórica), há também planeamento geoestratégico baseado em princípios que se mantém racionais e estáveis durante longos períodos, porque estão implantados em instituições estáveis e na agenda destas. Isso também é verdade no caso do Vietname. Voltarei ao tema, destacando aqui apenas que os elementos que persistem na acção estatal são geralmente bastante opacos.
A guerra do Iraque é um caso instrutivo. Foi vendida a um público aterrorizado através da ameaça usual da autodefesa face um formidável perigo para a sobrevivência: a “única questão” que George W. Bush e Tony Blair colocaram foi se Saddam Hussein iria encerrar o seu programa de desenvolvimento de armas de destruição em massa. Quando a “única questão” recebeu a resposta errada, a retórica do governo mudou rapidamente para o nosso “anseio por democracia”, e a opinião pública condicionada seguiu devidamente o curso; o de sempre.
Mais tarde, à medida que a escalada da derrota no Iraque se tornou difícil de esconder, o governo admitiu tranquilamente o que já era claro para todo mundo. Em 2007-2008, a administração anunciou oficialmente que um acordo final deve assegurar a permanência de bases militares dos EUA e o direito destes a operar militarmente no país, e deve privilegiar os investidores estadunidenses na exploração de seu rico sistema energético – reivindicações que passaram depois para segundo plano face à relutância iraquiana. E tudo ficou bastante opaco para a maioria das pessoas.
Padronizando o declínio americano
Com essas lições em mente é útil dar uma vista de olhos sobre o que é destacado na manchete dos maiores jornais de política e de opinião, nos dias de hoje. Peguemos na mais prestigiada das publicações do establishment, Foreign Affairs. A estrondosa manchete da capa de Dezembro de 2011 estampava em negrito: “A América acabou?”.
O artigo da capa pedia “corte de gastos” nas “missões humanitárias” no exterior, que estavam a consumir a riqueza do país, para impedir o declínio americano, que é o maior tema nos discursos do ambiente de negócios, e que frequentemente vem acompanhado do corolário de que o poder está a mudar para o Leste, para a China e (talvez) a Índia.
Depois os principais artigos são a respeito de Israel e da Palestina. O primeiro, da autoria de dois altos oficiais israelenses, é intitulado “O Problema é a Rejeição Palestina”: o conflito não pode ser resolvido porque os palestinos se recusam a reconhecer Israel como Estado Judeu – o que está em conformidade com a prática diplomática normal: os estados são reconhecidos, não os seus sectores privilegiados. Esta reclamação dificilmente será outra coisa senão um novo estratagema para conter o risco de uma solução política para os assentamentos ilegais, que minaria os objectivos expansionistas de Israel.
A posição oposta é defendida por um professor estado-unidense e tem o título “O Problema é a Ocupação”. No subtítulo lê-se: “Como a Ocupação está Destruindo a Nação”. Qual nação? A de Israel, é claro. Ambos os artigos aparecem com o título em destaque: “Israel sitiado”.
A edição de Janeiro de 2012 lança ainda um outro apelo ao bombardeamento do Irão, já, antes que seja tarde demais. Alertando contra “os perigos da dissuasão”, o autor sugere que “os cépticos em relação à acção militar falham na avaliação do perigo real que um Irão com armas nucleares significaria para os interesses dos EUA no Oriente Médio e mais longe ainda. E nas suas sombrias previsões imaginam que a cura pode ser pior do que a doença – quer dizer, que as consequências de um ataque estadunidense ao Irã seriam tão más ou piores do que se o país conseguisse levar a cabo as suas ambições nucleares. Mas essa é uma suposição falsa. A verdade é que um ataque militar visando destruir o programa nuclear iraniano, se for feito com cuidado, poderá significar a eliminação para a região e para o mundo de uma ameaça muito real e melhorar dramaticamente a segurança nacional dos Estados Unidos a longo prazo”.
Outros argumentam que os custos seriam altos demais e, no limite, alguns chegam a dizer que um ataque [ao Irão] violaria o direito internacional – como o fazem os moderados, que lançam regularmente ameaças de violência, em violação à Carta das Nações Unidas.
Vamos rever cada uma dessas preocupações dominantes
O declínio americano é real, embora esta visão apocalíptica reflicta a percepção bastante habitual da classe dominante de que alguma limitação parcial ou geral implica o desastre total. A despeito desses pios lamentos, os EUA persistem como poder dominante mundial por larga margem e não há competidores à vista, não apenas em dimensão do poder militar, a respeito do qual os EUA dominam em absoluto.
A China e a Índia registaram um crescimento rápido (embora altamente desigual), mas permanecem países muito pobres, com problemas internos enormes que o Ocidente não enfrenta. A China é o maior centro industrial do mundo, mas maioritariamente como linha de montagem para as potências industriais avançadas, na sua periferia, e para as multinacionais ocidentais. É provável que isso mude com o tempo. A indústria em regra provê as bases para a inovação e a invenção, e na China isso vem ocorrendo. Um exemplo que impressionou os especialistas ocidentais foi a tomada chinesa da liderança no crescente mercado de painéis solares, não apenas com base na mão-de-obra barata, mas no planeamento coordenado e, crescentemente, na inovação.
Mas os problemas que a China enfrenta são sérios. Alguns são demográficos, relatados na Science, o líder dos semanários estadunidenses de divulgação científica. O estudo mostra que a mortalidade caiu bruscamente na China durante os anos maoístas, “principalmente em resultado do desenvolvimento económico e das melhorias nos serviços educacionais e de saúde, especialmente no movimento de higiene pública que resultou num golpe drástico à mortalidade por doenças infecciosas”. Esse progresso acabou com o início das reformas capitalistas no país, há 30 anos, e a taxa de mortalidade desde então tem aumentado.
Além disso, o crescimento económico chinês recente contou substancialmente com um “bónus demográfico”, uma grande população em idade economicamente ativa. “Mas a janela para o uso desse bónus pode fechar em breve”, com um “impacto profundo no desenvolvimento”: “o excesso de mão-de-obra barata, que é um dos maiores factores de dinamização do milagre económico chinês deixará de estar disponível”. A demografia é apenas um dos muitos problemas sérios para diante. No que concerne a Índia, os problemas são ainda mais graves.
Nem todas as vozes proeminentes anteveem o declínio americano. Nos media internacionais não há nada mais sério e respeitável do que o Financial Times. O jornal dedicou recentemente uma página inteira à expectativa optimista em que a nova tecnologia para extrair combustível fóssil norte-americano pode fazer com que os EUA se tornem energeticamente independentes, mantendo portanto a sua hegemonia por mais um século. Não há menção ao tipo de mundo que os EUA comandarão nesse cenário feliz, mas não por falta de dados.
Quase ao mesmo tempo a Agência Internacional de Energia reportou que com o aumento rápido das emissões de carbono dos combustíveis fósseis o limite de uso seguro será atingido por volta de 2017, se o mundo continuar no actual curso. “A porta está a fechar”, disse o economista-chefe da AIE, e muito em breve “fechará de vez”.
Pouco antes, o Departamento de Energia dos EUA informou que as imagens mais recentes das emissões de dióxido de carbono, com “a subida para o maior índice já registado”, atingiram um nível mais elevado do que os piores cenários previstos pelo Painel Internacional de Mudanças Climáticas (IPCC). Isso não constitui surpresa para muitos cientistas, inclusive os do programa do MIT para as mudanças climáticas, que alertou durante anos que os prognósticos do IPCC eram demasiado conservadores.
Esses críticos das previsões do IPCC não receberam qualquer atenção pública, ao contrário dos grupos negacionistas do aquecimento global, que são apoiados pelo sector corporativo, juntamente com imensas campanhas de propaganda que têm colocado os americanos de fora do espectro internacional dessas ameaças. O apoio das corporações também se reflecte directamente no poder político. O negacionismo é parte do catecismo que deve ser entoado pelos candidatos republicanos na ridícula campanha eleitoral em curso, e no Congresso eles são suficientemente poderosos até para abortar investigações sobre o efeito do aquecimento global, deixando de lado qualquer acção séria a respeito. Numa palavra, o declínio americano pode talvez ser interrompido se abandonarmos a esperança numa sobrevivência decente, prognóstico também bastante real dado o equilíbrio de forças no mundo.
“Perdendo” a China e o Vietname
Deixando de lado estas coisas desagradáveis, um olhar de perto sobre o declínio americano mostra que a China joga na verdade um grande papel nele, tanto como o que jogava há 60 anos. O declínio que agora gera tanta preocupação não é um fenómeno recente. Ele remonta ao fim da Segunda Guerra Mundial, quando os EUA tinham metade da riqueza do mundo e dispunham de níveis globais de segurança incomparáveis. Os estrategas políticos estavam naturalmente bastante conscientes dessa enorme disparidade de poder e pretendiam mantê-la assim.
O ponto de vista básico foi apresentado com admirável franqueza num grande documento de 1948. O autor era um dos arquitectos da Nova Ordem Mundial da época, o representante da equipa de Planeamento Político do Departamento de Estado dos EUA, o respeitado estadista e académico George Kennan, um pacifista moderado entre os estrategas. Ele observou que o objectivo político central era manter a “posição de disparidade” que separava a nossa enorme riqueza da pobreza dos outros. Para alcançar esse objectivo, advertiu, “nós deveríamos parar de falar em objectivos vagos e… irreais, como os direitos humanos, a elevação do padrão de vida e a democratização”, e devemos “lidar com conceitos estritos de poder”, não “limitados por slogans idealistas” a respeito de “altruísmo e do benefício do mundo”.
Kennan estava a referir-se especificamente à Ásia, mas as suas observações generalizam-se, com excepções, aos participantes no actual sistema de dominação global dos EUA. Ficou bastante claro que os “slogans idealistas” deveriam ser apresentados sobretudo quando dirigidos aos outros, inclusive às classes intelectualizadas, das quais era esperada a sua disseminação.
O plano de Kennan ajudou a formular e a implementar a tomada de controlo pelos EUA do Hemisfério Oeste, do Extremo Leste e das regiões do ex-império britânico (incluindo os incomparáveis recursos energéticos do Médio Oriente), e aquilo que foi possível da Eurásia, sobretudo os seus centros comerciais e industriais. Esses não eram objetivos irreais, dada a distribuição do poder. Mas o declínio foi então determinado de vez.
Em 1949, a China declarou a independência, um acontecimento conhecido no discurso do Ocidente como “a perda da China” – nos EUA, com algumas recriminações amarguradas e o conflito interpretativo a respeito de quem tinha sido o responsável por essa perda. A terminologia é reveladora. Só é possível perder o que em algum momento se teve. A assunção tácita era que os EUA tinham a China, por direito, juntamente com a maior parte do resto do mundo, tal como os estrategas do pós-guerra pensavam.
A “perda da China” foi o primeiro grande passo do “declínio americano”. Foi o que teve maiores consequências políticas. Uma delas foi a decisão imediata de apoiar o esforço francês de reconquista da sua ex-colónia da Indochina, para que esta também não fosse “perdida”.
A Indochina em si não era motivo de preocupação maior, a despeito das afirmações acerca das suas riquezas naturais por parte do presidente Eisenhower e outros. A preocupação maior era antes com a “teoria do efeito dominó”, a qual é frequentemente ridicularizada quando os dominós não caem, mas permanece um princípio regulador da política, porque é bastante racional. Para adoptar a versão que Henri Kissinger dele faz, uma localidade que cai fora do controle pode tornar-se um “vírus” que irá “contagiar”, induzindo outros a seguirem o mesmo caminho.
No caso do Vietname, a preocupação era que esse vírus do desenvolvimento independente pudesse infectar a Indonésia, que de facto é rica em recursos. E isso poderia levar o Japão – o “superdominó”, como o proeminente historiador da Ásia John Dower chamava – a “acomodar” uma Ásia independente como seu centro tecnológico e industrial num sistema que escaparia do alcance do poder dos EUA. Isso significaria, com efeito, que os EUA tinham perdido a fase Pacífico da Segunda Guerra, na qual lutaram para tentar impedir que o Japão estabelecesse uma Nova Ordem na Ásia.
O modo de lidar com um problema desses é claro: destruir o vírus e “inocular” aqueles que podem ser infectados. No caso do Vietname, a escolha racional era destruir qualquer esperança de desenvolvimento independente bem-sucedido e impor ditaduras brutais nos arredores. Essas tarefas foram levadas a cabo com sucesso – embora a história tenha a sua própria astúcia, e algo similar ao que foi temido desde então se tenha desenvolvido no Leste da Ásia, na maior parte dos casos para consternação de Washington.
A vitória mais importante das guerras da Indochina deu-se em 1965, quando um golpe de estado militar com o apoio dos EUA, liderado pelo general Suharto, significou crimes massivos comparados pela CIA aos de Hitler, Stalin e Mao. A “assombrosa matança massiva”, como a descreveu o New York Times, foi cuidadosamente reportada nos meios dominantes, e com desenfreada euforia.

*Em Al Jazeera Fevereiro, 2012

domingo, 26 de fevereiro de 2012

O capitalismo em crise e os meios de superá-la


Tenho uma recomendação a fazer a quem luta pelo socialismo. A todos e todas sem exceção. Este é um bom momento para estudar o capitalismo realmente existente. Abandonemos as fantasias cordatas: é mesmo útil saber em que mundo é que se tem os pés assentados, conhecer o poder e as ambições do capital, reconhecer as dificuldades e a vertigem da grande depressão. E, já agora, começar por ler o que a finança escreve sobre si própria. Não há melhor professor do que a realidade. O artigo é de Francisco Louçã.

Em 2009, o Financial Times publicou uma série de artigos de debate sobre um tema comum: o “futuro do capitalismo”. A crise financeira anterior e a recessão desse ano de 2009 levaram o jornal a convidar especialistas, governantes e analistas a discutirem este tema. Três anos depois, o mesmo diário convida-nos a lermos um novo debate, desta vez sobre “o capitalismo em crise”. A mudança do enunciado do tema é por si só reveladora da aflição.

O FT foi fundado em 1888, há portanto 124 anos. Vende agora mais de dois milhões de exemplares por dia, é impresso em 24 cidades pelo mundo fora, é um colosso no mundo digital – é simplesmente o jornal financeiro mais influente do mundo. Podemos tomá-lo como um indicador seguro das tendências ideológicas, das inquietações e das preocupações do mundo financeiro, assim como da evolução da economia e dos seus tomadores de decisão.

Assim, o debate sobre “o capitalismo em crise”, que se tem estendido por Janeiro e Fevereiro, é, a todos os títulos, um retrato das perturbações financeiras e políticas de 2012. Nele participam predominantemente economistas conservadores como Kenneth Rogoff, do FMI, mas também anteriores ou atuais governantes dos Estados Unidos e do Reino Unido (um ex-ministro do ex-presidente Clinton, Robert Reich; o ministro das finanças inglês, George Osborne), governantes de outros países, o movimento Occupy London (citando o ultra-conservador Friedrich Hayek como autoridade literária!), o líder do Partido Trabalhista, Ed Miliband, um banqueiro chinês, Qin Xiao, ou comentadores célebres como Martin Wolf. No final de Janeiro, a revista Newsweek juntou-se também ao debate e publicou um dossier sobre “como remendar o capitalismo”, no mesmo tom.

Neste artigo, limito-me a reportar os temas principais destes debates e a identificar alguns dos seus argumentos, porque eles nos fornecem um guia interessante para a crise atual, nas suas certezas como nas suas hesitações. Parto de uma constatação: vale a pena ler esses textos e pensar sobre eles, porque são um retrato da perturbação que se está a viver. Nos mercados, nas ideias, nas políticas, nos alinhamentos sociais.

Perdoar-me-á o leitor ou a leitora, mas até estou convencido de que esse jornal, porta-voz da finança internacional, se dedica com mais profundidade à análise de algumas das falhas do capitalismo do que os advogados europeus da austeridade, as agências internacionais ou as doutrinas estabelecidas. Se bem que esteja por isso interessadíssimo na nova teoria que descobriu a sua Coreia do Norte na Islândia, o farol luminoso da meia-austeridade e o lugar onde o FMI seria cordato a orientar uma coligação encantadora, peço licença para ouvir antes os representantes do capitalismo em crise.

O debate do Financial Times (e da Newsweek) merece essa atenção, porque revela um sistemático trabalho de desmantelamento dos mitos do capitalismo, o que sugere antes de mais que os defensores do castelo são os primeiros a reconhecer as fragilidades da muralha. De fato, destes artigos resultam argumentos sobre quatro grandes brechas deste capitalismo da era da globalização.

Primeira brecha: o capitalismo cresceu e a desigualdade cresceu mais ainda.
O capitalismo foi um enorme sucesso social à custa de uma enorme tragédia social. Revolveu as entranhas do mundo: “tudo o que é sólido se dissolve no ar”, escreviam Marx e Engels no Manifesto Comunista de 1848. O capitalismo mudou tudo. Destruiu e construiu. E cresceu: segundo os cálculos de Angus Maddison, citados pela Newsweek, o produto mundial cresceu sete vezes desde o ano 1 da nossa era até 1820, ao longo de dezoito séculos, e cresceu setenta vezes nos dois séculos seguintes, até hoje – quase cem vezes mais depressa. A aceleração do tempo do capitalismo é retratada por este crescimento alucinante.

Só que o crescimento foi sempre desigual e é cada vez mais desigual nos dias de hoje. Diz a Newsweek: em 2010, os rendimentos dos administradores das grandes empresas norte-americanas foram 28% superiores aos do ano anterior (uma média de 10,8 milhões de dólares cada), cerca de 325 vezes mais do que média dos seus trabalhadores. Quanto mais grave a crise, mais crescem os rendimentos do topo. O Financial Times testemunha o mesmo, com dados ingleses: o rendimento dos administradores das cem principais empresas, as do índice FTSE100, era em 1980 cerca de 14 vezes a mediana dos salários das suas empresas e, trinta anos depois, passaram a ser cerca de 75 vezes essa mediana.

George Osborne, o ministro das finanças do governo conservador britânico, bem pode dizer que esta desigualdade é o resultado de estupidez e que não concorda que os bancos paguem bónus aos administradores que os conduziram a uma especulação sem freio e a uma crise grave. O facto é que o capitalismo passou a ser um sistema que promove e recompensa o fracasso.

Segunda brecha: a segunda grande depressão mobiliza o autoritarismo social contra alguns dos fundamentos da civilização.

Dois dos participantes do debate do Financial Times argumentam que este modelo de recompensa do fracasso é o resultado de um erro estrutural, porque o capitalismo sabe criar e vender mercadorias, mas não sabe criar e distribuir eficientemente os bens públicos. Vejamos onde nos leva este argumento.

Os bens públicos são a civilização: bens tão diferentes como a segurança, defesa, saúde, educação, segurança social, regulação do trânsito, respeito pela liberdade religiosa ou de não ter religião, liberdade de opinião e de imprensa, direito de manifestação, capacidade eleitoral ativa e passiva, justiça ou investigação científica fundamental, não são produzidos pelas empresas nem resultam diretamente de processos de acumulação de capital. Resultam de decisões políticas que são condições para a vida social, que podem portanto favorecer a acumulação de capital mas que lhe cobram uma prestação: o Estado faz-se pagar por estes serviços e a isso chama-se impostos.

Para Kenneth Rogoff, um economista que fez a sua carreira no FMI e que agora se dedica à análise das crises financeiras ao longo do tempo, o capitalismo é simplesmente pouco eficiente na geração de bens públicos e é por isso que tem de existir o Estado (a tese não é dele e é antiga, mas tem o seu fundamento). Martin Wolff, um dos mais reconhecidos comentadores do Financial Times, escreve que esses bens públicos são ainda mais difíceis de produzir na sociedade da globalização, mesmo que sejam fundamentais para criar ordem na sociedade. Dá-nos o seguinte exemplo da segurança: numa época anterior ao capitalismo, a segurança era garantida por bandidos que aterrorizavam a sua região mas impediam que outros a pilhassem, e a isso chamou-se feudalismo. Depois, a revolução industrial expandiu o Estado de muitas formas; uma delas foi assegurando um modo de segurança às pessoas. Nessa segurança foi incluída, mais recentemente, a garantia dada pelos economistas de que haveria estabilidade econômica: os mercados seriam inerentemente estáveis e a estabilidade seria um bem público garantido automaticamente pelo funcionamento do mercado. Mas, como vimos – e toda a gente se pode aperceber no contexto da grande depressão – os mercados, pelo contrário, criam instabilidade e desigualdade.

A conclusão é minha: se isto é assim, aqui temos a explicação para o autoritarismo social que cresce com as soluções liberais durante a depressão, em particular com a economia da dívida – os bens públicos são desgastados ou destruídos, em nome de um processo de acumulação acelerado que atinge esses fundamentos da civilização. Só o autoritarismo pode permitir impor a perda dessas referências civilizacionais que são as bases da democracia representativa. O “capitalismo em crise” é portanto parteiro da democracia em crise.

A agressividade capitalista na desagregação das funções sociais do Estado é notória em alguns dos contributos para este debate, mas sobretudo na de Qin Xiao, que foi presidente da China Merchants Group e do China Merchants Bank, e que escreve no Financial Times a propósito do seu país: o Estado “deve deixar de interferir nos preços e transações de mercado e retirar-se da regulação da terra, trabalho, energia e preços dos minérios, como dos preços do capital. Deve reformar os monopólios e privatizar eficientemente as empresas públicas”. É um distinto e oficialíssimo banqueiro chinês a escrever o receituário liberal mais tradicionalista.

Terceira brecha: a propriedade não determina a economia, mas há um poder invisível que decide.

Há ainda um outro fator de perturbação que preocupa muitos dos participantes neste debate que estou a citar: a mudança de rosto do capitalismo. Desde a revolução industrial, o capitalismo tinha um centro, os grandes monopólios nacionais e depois as grandes empresas transnacionais. Como nos lembra a Newsweek, os fundadores da teoria econômica consideravam que esses centros eram perigosos: Adam Smith afirmava que a Companhia das Índias Orientais tinha privilégios “prejudiciais a todos os títulos”. Mais perigosos se tornaram, então, quando deixam de ser visíveis.

O Financial Times discute este efeito de desaparecimento dos capitalistas, comparando os administradores de hoje com as grandes dinastias que fizeram a indústria ou a finança modernas: os capitalistas tradicionais, como os Arkwright (um dos inventores e empresários da revolução industrial britânica) e os Rockefeller (um dos grandes financeiros norte-americanos) já não sobrevivem no mundo que criaram; são superados por outros decisores, uma casta de administradores omnipotentes. A propriedade dispersa-se tanto mais quanto mais se concentra o seu poder, e existe uma cabeça que fala por ela, uma nova burocracia. É assim que o FT a descreve: “Os titãs modernos baseiam a sua autoridade e influência na sua posição numa hierarquia, e não na propriedade do capital. Obtiveram as suas posições através das suas competências em política organizacional, do mesmo modo tradicional em que os bispos e generais ganham posições numa hierarquia eclesiástica ou militar” (11 Janeiro).

Estes novos generais e bispos moram nas finanças. Gerem massas colossais de poupanças e de capital, recebem os seus prêmios em função de aplicações de curto prazo, manipulam as contas e as economias para se recompensarem a si próprios, como se queixam Rogoff, o homem do FMI, ou Ed Miliband, o chefe dos trabalhistas britânicos. A especulação deixou por isso de ser uma forma de gerir crédito e de distribuir rendimentos e mais-valias entre os proprietários do capital, passou a ser uma forma de acumular capital em prejuízo dos sectores submetidos da população e mesmo de parte das classes proprietárias.

Ora, a finança tornou-se soberana. Regista o jornal: entre 1977 e 2010, o volume das operações bancárias com câmbios subiu 23000% e os negócios com moedas e títulos de dívida representam agora 80% dos lucros dos maiores bancos. É contra os Estados que se faz a acumulação de capitais, que é sempre protegida pelos Estados. O que tem uma consequência, que não é identificada pelo debate nas páginas que estou a citar: a expropriação do trabalhador, agora como pagador de impostos, torna-se a chave dos rearranjos propostos na vertigem liberal. A captação de impostos para serem absorvidos pela economia da dívida, criando rendas garantidas a longo prazo, tornou-se assim uma forma predominante de apropriação de valor. A isso chama-se, como todos sabemos, “reformas estruturais”.

Quarta brecha: a crise financeira é também uma crise de legitimidade.

No quarto ano da crise – a que alguns economistas começaram a chamar a “segunda grande depressão” – há dois pilares da hegemonia do capitalismo que têm sido atingidos, segundo o debate do FT.

O primeiro desses pilares é a credibilidade social do mercado e do capital como centro diretor da sociedade. O capitalismo tem sido apresentado como uma meritocracia auto-regulada mas, como vimos, os autores que escrevem no FT perderam a fé e descobriram que a capacidade de afetação de recursos e de incentivos por estes mercados é pelo menos deficiente.

Ora, mesmo nos setores mais conservadores, essa descrença está a ir muito longe: a ideia do mercado dominador é agora considerada repugnante. O exemplo mais esclarecedor é o da campanha eleitoral entre os republicanos norte-americanos, em que se destaca um facto sublinhado tanto pelo jornal como pela revista que estou a citar: Mitt Romney, candidato de referência de uma parte da direita republicana, é insultado pelos seus adversários mais conservadores e mais radicais na defesa do liberalismo … porque triunfou no mundo dos negócios. Romney fez carreira e fortuna a dirigir uma empresa de capital de risco, a Bain Capital, que, como é natural, acumulou os seus lucros com base na perda de outros acionistas, empresários ou trabalhadores. O mercado foi usado por Romney para enriquecer, arruinando outros: um exemplo de sucesso, portanto. Mas esse sucesso é agora o seu prejuízo político, usado contra si pelos seus próprios adversários dos mesmos setores da direita, que o acusam de ganancioso (FT, 14-15 Janeiro). O capitalismo tem má fama. A sua aceitação popular está em queda, conclui o FT (9 Janeiro).

Outra expressão dessa desconfiança popular é a sondagem mundial da GlobeScan sobre a credibilidade de economia de mercado, que revela uma perda importante de apoio nos EUA, sendo esse resultado superado pelo maior apoio social do capitalismo … na China.

O segundo dos pilares em crise é a própria credibilidade da teoria econômica em que assenta o neoliberalismo. Como lembra a Newsweek, a teoria econômica tem sido a religião secular da modernidade. É certo: se identificarmos as principais características dessa religião, constatamos que ela desenvolve uma liturgia tranquilizante (os seus textos sagrados), cria um corpo de sacerdotes (os economistas doutrinários) e um conjunto de regras de comportamento imperativo (as regras de mercado). Todos se baseiam num embuste.

A liturgia é uma mistificação: os modelos de análise da economia exigem que os agentes econômicos (que são todas as pessoas, sejam empresários ou assalariados) saibam tudo sobre o futuro e possam assim determinar com toda a certeza o futuro mais promissor. Na era da incerteza, a teoria garante os melhores resultados no pressuposto de que todos têm acesso a uma certeza transcendente.

Os sacerdotes não sabem: com a divulgação recente das minutas dos debates na cúpula da Reserva Federal norte-americana em 2006, ficou-se a saber que o governador, Ben Bernanke, quis registar o seu pensamento dizendo que “Penso que é improvável que o crescimento seja descarrilado pelo mercado imobiliário”. Um ano depois, o mercado imobiliário chamava-se subprime e a finança caía como um castelo de cartas (ainda está a cair). Benanke continua no seu lugar.

E, finalmente, as leis não funcionam. E não funcionam no sistema financeiro, antes de mais. Um artigo do FT, com algum humor, cita um estudo antigo da universidade de Berkeley (existem outros ainda mais sarcásticos), que comparou os resultados de previsões financeiras feitas por macacos que fazem marcas ao acaso num quadro de empresas cotadas na Bolsa, com as sérias previsões feitas por distintos analistas financeiros. Os macacos ganharam (16 Janeiro).

Se a liturgia, os bispos (ou os generais desse poder burocrático) e as leis não funcionam, o que é que funciona? A resposta dada por alguns dos artigos citados é simples. Funciona o autoritarismo. O que nos dá uma lição: segundo estes seus estudiosos e defensores, o capitalismo em crise é o mais perigoso.

Por tudo isto, tenho uma recomendação a fazer a quem luta pelo socialismo. A todos e todas sem exceção. Este é um bom momento para estudar o capitalismo realmente existente. Abandonemos as fantasias cordatas: é mesmo útil saber em que mundo é que se tem os pés assentados, conhecer o poder e as ambições do capital, reconhecer as dificuldades e a vertigem da grande depressão. E, já agora, começar por ler o que a finança escreve sobre si própria. Não há melhor professor do que a realidade.

(*) Deputado, dirigente do Bloco de Esquerda (Portugal), professor universitário.

Artigo publicado originalmente no portal Esquerda.net

A matança como política na Síria


Bachar Al-Assad não quer saber de “primavera árabe” em suas terras. Até aqui, conseguiu fazer isso graças ao poderoso regime policial no qual se apóia, à inoperância das Nações Unidas, à tibieza da Liga Árabe, à hipocrisia da comunidade internacional e ao apoio explícito da Rússia e da China. Pequim e Moscou, que ditam hoje os destinos da Síria, desbarataram o plano de intervenção da Liga Árabe enquanto que a grande maioria dos dirigentes ocidentais parece ter perdido a língua e as boas intenções. O artigo é de Eduardo Febbro.


Os herdeiros do terror seguem o rumo de seus mentores. O presidente sírio Bachar Al-Assad é uma cópia de seu pai, Hafez Al-Assad. Pai autocrata e torturador de seu povo, seus traços e os do regime se refletem no filho que o substituiu na liderança do país em junho de 2000. Ambos sufocaram rebeliões internas arrasando cidades inteiras ante o manso olhar da comunidade internacional. Dois nomes distintos e 30 anos separam o horror de Assad pai e do Assad Filho: Hama para Hazfez Al-Assad, Homs para Bachar. Estas duas cidades sírias, quase fronteiriças, viveram sob o jugo das bombas e da intervenção das forças especiais.

Em fevereiro de 1982, o regime de Hafez Al-Assad enfrentou uma revolta armada na cidade de Hama protagonizada pela Irmandade Muçulmana, o grupo religioso que surgiu no Egito nas primeiras décadas do século XX e cuja influência se expandiu por toda a região. Hafez de Hama um exemplo para aqueles que tivessem a intenção de imitar os habitantes de Hama: quebrou a revolta em duas fases: primeiro mandou bombardear a cidade com armas pesadas e logo depois fez entrar as forças especiais para que limpassem, rua por rua e casa por casa, a insurreição popular. Assassinatos de crianças, violação massiva de mulheres, torturas, saques: o balanço daqueles dias “exemplares” deixou um saldo entre 10 mil e 35 mil mortos.

Três décadas depois, o descendente de Hafez Al-Assad repete a experiência em Homs: bombardeios com artilharia pesada, uso de unidades especiais, morte e destruição, especialmente no bairro de Baba Amro, onde vivem mais de 30 mil pessoas de confissão sunita hoje totalmente cercadas pelos tanques de Bachar Al-Assad. O ditador sírio sequer concedeu ao Comitê Internacional da Cruz Vermelha a possibilidade de evacuar os feridos. A revolta síria segue o movimento que iniciou no início do ano passado às margens do Mediterrâneo com as explosões populares que derrubaram dinossáuricos poderes na Tunísia, Egito e Líbia. Bachar não quer “primavera árabe” em suas terras.

Ele pode fazer isso graças ao poderoso regime policial no qual se apóia, à inoperância das Nações Unidas, à tibieza da Liga Árabe, à hipocrisia da comunidade internacional e ao apoio explícito da Rússia e da China. Estas duas potências membros permanentes do Conselho de Segurança das Nações Unidas se opõem a qualquer resolução que condene a Síria ou conduza a um apoio a oposição síria (muito dividida) agrupada no Conselho Nacional Sírio. Pequim e Moscou desbarataram o plano de intervenção da Liga Árabe enquanto que a grande maioria dos dirigentes ocidentais parece ter perdido a língua e as boas intenções.

Onde estão agora os salvadores do mundo? O que houve com as vozes de Nicolas Sarkozy, Angela Merkel, o herói das decepções estropiadas, o primeiro ministro britânico e tantos outros que, no ano passado, não duvidaram em usar os aviões e canhões da OTAN para atacar a Líbia e derrubar o coronel Kadafi? Agora que, semana após semana, o regime sírio de Bachar Al-Assad assassina seu povo a portas fechadas em que se converteram todas aquelas ilustres palavras que justificaram que a Líbia recebesse um tapete de bombas.

A pergunta é extensiva aos progressistas do mundo: onde estão as forças de esquerda que se escandalizaram com os bombardeios da OTAN na Líbia e agora parecem emudecidas, como se a moral e os valores valessem em um território e não no outro. A União europeia se limitou a impor um ridículo embargo de armas. Washington, por sua vez, dá a impressão de flutuar em um mar de ignorância e indecisões. No entanto, ninguém pode ignorar o que ocorre: a internet, as redes sociais e os telefones celulares oferecem a cada dia um apavorante desfile de imagens e testemunhos sobre a metodologia da família Assad: governar com o terror e a matança.

A reunião realizada na Tunísia com os “Amigos da Síria”, com a meta de elaborar um marco de ação para conter o regime sírio e pactuar uma transição apenas desenhou um plano para criar hipotéticos corredores humanitários. “Haverá forças opositoras cada vez com mais capacidade”, disse na Tunísia a Secretária de Estado norteamericana Hilary Clinton. A responsável estadunidense esboça assim uma provável entrega de armas à oposição ao regime de Bachar Al-Assad. Mas Moscou e Pequeim se negam a contemplar qualquer ação militar ou fornecimento de armas e se opõem a aprovar qualquer plano de transição que inclua a saída do presidente Bachar Al-Assad.

Para completar a tragédia, ao ONU nomeou o ex-secretário geral das Nações Unidas e prêmio Nobel da Paz em 2011, Kofi Anan, para negociar o fim da violência na Síria e a promoção de uma “solução pacífica” para a crise interna. O ex-secretário geral da ONU tem um passado tão prestigioso quanto maculado por um dos maiores escândalos internacionais que atingiram a ONU: sob seu mandato, a ONU organizou no Iraque o famoso programa “Petróleo por alimentos”. Trata-se de uma trama mafiosa e corrupta na qual estão envolvidos Estados, corporações, ministros ocidentais, bancos, altos funcionários da ONU e até o próprio filho de Anan, Kojo, ligado a uma empresa suíça que fornecia serviços dentro deste plano.

Esse é o mediador da comunidade internacional. O regime sírio mata e se diverte brincando de democracia. Ao mesmo tempo em que promove matanças em Homs, Damasco entrou em um processo de reformas internas cujo eixo é o referendo constitucional de 26 de fevereiro e as eleições legislativas que o seguirão. Mas desde a ditadura do partido Baas instaurada em 1963, a Síria não conheceu nenhuma eleição democrática propriamente dita. A República da Síria está governada pelo partido Baas – que chegou ao poder com um golpe de Estado – cujos responsáveis pertencem quase todos à minoria alauita. Em 2000, Bachar Al-Assad introduziu reformas no sistema político. Levantou a proibição que pesavam sobre alguns partidos e aproveitou a decadência do partido Baas para dar espaço à Frente Nacional Progressista (FNP), onde estão agrupados vários partidos entre os quais figuram alguns que estavam proibidos sob o mandato do pai de Bachar.

Mas a democracia é uma ficção: a grande maioria das decisões é tomada no interior do circulo constituído pelo exército e pelo partido Baas. Em 2000, o Ocidente apostou em Bachar Al-Assad. Viu nele um homem jovem, formado em Londres, um reformista pan-árabe carregado de valores democráticos que ia modernizar um país sufocado pela polícia secreta e pela repressão. A política de matança como princípio orientador demonstra que nada mudou, que a herança paterna persiste e se desenrola com tanta mais impunidade na medida em que as novas cartas da geopolítica mundial mudaram o peso dos atores tradicionais: Pequim e Moscou ditam hoje os destinos da Síria. A história, entretanto, agregou mais um nome à extensa lista de cidades mártires que constituem a memória do horror do poder contra os povos: Homs.

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Uma bela crítica de Mauricio de Souza sobre a ilusão do PIG...

O Mito da Caverna – Platão 

Do BLOG DO MORAIS




"CHE, UN HOMBRE NUEVO" GANHA O PREMIO DE MELHOR DOCUMENTÁRIO NO FESTIVAL DE CINEMA DE MONTREAL

"CHE, UN HOMBRE NUEVO" é um documentário com criação e direção de Tristan e Carolina Scaglione sobre a vida e obra de Ernesto Guevara. A intenção dos seus autores foi a de gerar uma viagem através da memória, do pensamento e da poesia do bravo guerrilheiro. Pela  primera vez na historia, sua mulher Alina  y Cay seus filhos cedem a documentação mais intima com a qual ninguem antes havia tido contato. Escritos, gravações e narrações literárias que Che nos apresenta em suas dimensões mais poéticas e humana.Por sua vez, o Governo Cubano disponibiliza mais de 20 horas de imagens inéditas até agora nunca vistas.

"CHE, UN HOMBRE NUEVO" é uma co-produção entre Argentina (Universidad Nacional del Gral San Martín y el INCAA), Cuba (Centro de estudios Che Guevara y el ICAIC) e España (Golem). Além disso ainda conta com a participação da Televisão Espanhola.

Situação pré-revolucionária na Grécia

250321_grecia_lutaEsquerda Marxista - [Alan Woods] Alan Woods avalia a luta de classes na Grécia e conclui que a situação está caminhando na direção da revolução, mas há que superar as direções atuais que se recusam a avançar na via da tomada do poder e pôr fim ao capitalismo.

A crise grega alcançou agora o ponto de situação pré-revolucionária. No domingo, vimos a maior manifestação da história da Grécia. Centenas de milhares de pessoas se reuniram para protestar contra o acordo reacionário diante do Parlamento em Atenas. Ali se encontrava o verdadeiro rosto do povo grego: trabalhadores e estudantes, aposentados e lojistas, jovens e velhos que vieram às ruas para expressar sua raiva.

Há muita emoção com relação ao alto preço que o país está sendo obrigado a pagar por seu segundo bail-out [operação de salvamento financeiro], uns 130 bilhões de euros de empréstimo da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional, destinados a evitar a ameaça de bancarrota e a saída do euro. No entanto, o suposto empréstimo e o pacote de austeridade incluíram mais 3,3 bilhões de euros em salários, pensões e aposentadorias e reduções de postos de trabalho somente para este ano, juntando à dor de quatro anos de recessão, salários mais baixos e maior desemprego.

A pressão sem misericórdia exercida pela União Europeia já reduziu os padrões de vida até os ossos, mergulhando o país em recessão profunda. O desemprego decolou para mais de um milhão. O indicador oficial de 21% subestima a extensão do problema. Ele não leva em consideração o grande número de trabalhadores gregos que estão teoricamente empregados, mas que não recebem o pagamento durante semanas ou mesmo meses.

Cortes nas pensões e aposentadorias no total de 300 bilhões de euros; redução de 22% no salário mínimo (32% para os que têm idade abaixo de 25 anos) e a extinção de 150 mil empregos no setor público até 2015 golpearão cada uma das famílias gregas. Os hospitais estão ficando sem remédios. Os salários e as pensões e aposentadorias foram esfacelados. O ânimo do povo está chegando ao desespero.

Naturalmente, as medidas de austeridade não afetam os ricos. Eles têm contas em paraísos fiscais e enviaram seu dinheiro para fora do país. Toda a carga dos aumentos de impostos cai sobre os ombros dos pobres, dos aposentados e pensionistas, dos trabalhadores e dos pequenos comerciantes. O povo grego está sendo desafiado com reduções ainda maiores nas pensões e aposentadorias, nos salários e com uma maior queda do nível de vida, e sua paciência se esgotou.

Os sacrifícios que envolvem os termos do mais recente pacote de austeridade enfureceram os sindicatos e os trabalhadores, enquanto que as exigências, feitas pelos alemães, de medidas ainda mais duras como condição para a Grécia continuar como membros da zona do euro, provocaram furor público. O sentimento incendiário da indignação finalmente transbordou no domingo, quando o mais recente e mais depravado pacote de austeridade foi colocado para aprovação do parlamento grego. O pacote foi aprovado em meio a uma das mais graves cenas de violência já vistas nas ruas de Atenas. Dezenas de milhares de pessoas sitiaram o Parlamento grego em manifestações militantes.

A repressão estatal

Os protestos de rua começaram em Atenas, mas imediatamente se espalharam a outras cidades gregas, incluindo Salonika, Patras, Rhodes, Corfu e Creta. Em Creta dez mil pessoas marcharam ao centro de Iraklion, onde ocuparam os estúdios de televisão, entoando palavras-de-ordem.
O governo e as forças do estado reagiram com violência sem precedentes atacando os manifestantes com cassetetes, granadas de efeito moral e gás lacrimogêneo asfixiante. Os manifestantes lutaram com bravura, arremessando as latas de gás lacrimogêneo de volta sobre a polícia e lançando pedras e improvisados coquetéis Molotov. Estes manifestantes não eram todos anarquistas, como a mídia asseverou. Muitos eram jovens enfurecidos com a conduta provocativa da polícia que lançou suas motos sobre a multidão.

O sentimento era de fúria. As manifestações e os protestos foram realizados em muitas cidades, acompanhados por ocupações de prefeituras e prédios dos governos regionais. A situação nas ruas era insurrecional. Na noite da segunda-feira, um dia depois das grandes demonstrações, o povo atacou os escritórios de um vice-ministro do PASOK em Patras, e um escritório de LAOS [o partido de direita], em Agrínio.

Os quatro mil homens da polícia antidistúrbios assaltaram os manifestantes em Atenas no domingo. No fim do dia, o centro estava como uma zona de guerra. As ruas estavam polvilhadas de vidro e de pedras. Cerca de 45 pessoas foram feridas e prédios do centro de Atenas, incluindo cafés e cinemas, foram incendiados por coquetéis Molotov lançados por manifestantes mascarados. Isto interessa ao governo, que está tentando justificar seu apoio ao plano de austeridade alegando que a alternativa é o "caos".

Lucas Papademos, o primeiro-ministro não eleito, falou ao Parlamento: "Vandalismo e destruição não têm lugar em uma democracia e não serão tolerados. Apelo ao povo para mostrar calma. Nestes tempos cruciais, nós não temos o poder de nos darmos ao luxo deste tipo de protesto. Penso que todos sabem o quanto a situação é séria".

Estas declarações cheiram à hipocrisia. É evidente por si próprio que a violência nas ruas foi deliberadamente provocada pelas forças repressivas do estado, precisamente com o objetivo de criar um clima de medo e instabilidade. O próprio governo é responsável por isto.

O ministro das Finanças, Evangelos Venizelos, lançou um desesperado pedido de apoio antes de votar à meia-noite: "Nós devemos mostrar que os gregos, quando são chamados a escolher entre o ruim e o pior, escolhem o ruim para evitar o pior".

Mas nenhuma das supostas soluções da burguesia pode deter a queda. A Grécia não pode pagar suas dívidas. Ela agora paga 33% de juros sobre os empréstimos externos. Isto significa que ela entrou em uma espiral declinante, um processo impossível de ser detido em que a causa se torna efeito e o efeito, causa: mais cortes significarão uma crise mais profunda, mais desemprego e mais baixo padrão de vida.

Isto, por sua vez, significará menos arrecadação de impostos e maior déficit público, que somente pode ser financiado com novos bail-outs [operações de salvamento financeiro], que conduzirão a novas exigências de cortes e assim por diante. É como cair em um Buraco Negro, do qual nada pode escapar – nem mesmo raios de luz.

Crise política

Em mensagem televisiva dirigida à nação no sábado à tarde, o primeiro-ministro Papademos explicou os custos da rejeição do pacote. Ele disse que isto "colocaria o país em uma aventura desastrosa" e que "criaria condições de caos econômico incontrolável e explosão social".

Ele acrescentou: "O país seria aspirado no turbilhão da recessão, da instabilidade, do desemprego e da prolongada miséria e isto, mais cedo ou mais tarde, levaria o país a sair do euro".
Tudo isto é provavelmente verdade, mas não ajuda em nada para persuadir o povo grego a cortar ele mesmo a própria garganta, para que outros não necessitem levar a cabo esta dolorosa operação.

Há oposição em massa ao plano de austeridade. De acordo com as pesquisas de opinião, 90% do povo se opõem a ele. A despeito disto, o gabinete grego aprovou o pacote na sexta-feira, mas somente depois que seis de seus membros tinham renunciado.

LAOS, o pequeno partido nacionalista de direita, encabeçado por Giorgios Karatzaferis, retirou apoio, mas com os dois principais partidos continuando a defender as medidas draconianas, o primeiro-ministro Lucas Papademos estava antecipando a vitória da aprovação parlamentar.
Pelo que se revelou, cada um dos partidos da coalizão se dividiu e está em crise. Vinte e dois parlamentares foram expulsos do PASOK por votarem contra o plano, e mais nove, que se abstiveram, foram punidos. Vinte e um parlamentares foram expulsos do conservador Partido da Nova Democracia. O segundo maior grupo no parlamento é agora o grupo "independente" dos 64 parlamentares expulsos.

O que tudo isto revela? Somente isto: este desacreditado parlamento não representa o povo. As pesquisas mostram quedas radicais no apoio tanto ao PASOK quanto à Nova Democracia. O apoio ao PASOK mesmo antes da votação de domingo era de somente 8-9%. Agora terá de cair ainda mais.
Nada foi resolvido por esta votação. O governo ainda tem que atender aos duros termos e condições relativas ao empréstimo e tem um prazo até a próxima sexta-feira para entrar em acordo com os donos de títulos e reembolsar consideráveis 14,4 bilhões de euros de obrigações até a data limite de 20 de março.

Todos os comentaristas sérios agora assumem que no final a Grécia será forçada a deixar a zona do euro e, provavelmente, a União Europeia. Planos de contingência para um retorno ao dracma já foram redigidos em Atenas, Berlim e Bruxelas. É somente questão de tempo.

Os indicadores revisados para 2011 mostram que a economia se contraiu em 6,8%, mais do que antes se pensava, sendo que este número foi de 7% no último trimestre de 2011 em termos anualizados.
Mesmo se todas as disposições do último plano de austeridade fossem implementadas, elas não resolveriam o problema do déficit. As estimativas originais eram de que estas medidas reduziriam o déficit de 160% do PIB (o nível atual) para (ainda muito altos) 120%. Mas as últimas estimativas indicam que, mesmo se o plano fosse realizado (o que é improvável), o déficit ainda se manteria em 136% em 2020.

A despeito disto, os comissários da União Europeia, liderados por Angela Merkel, permanecem implacáveis. Mesmo os profundos cortes acordados com o governo em Atenas não os satisfazem. O ministro alemão das finanças, Wolfgang Schaeuble, declarou numa entrevista ao jornal Welt am Sonntag: "As promessas dos gregos não são mais suficientes para nós".
E acrescentou: "A Grécia necessita fazer seu dever de casa para se tornar competitiva, seja em conjunção a um novo programa de resgate seja por outro caminho que nós realmente não queremos tomar".

Os líderes da Alemanha não aceitam as medidas mais recentes como uma boa moeda. Eles querem um acordo assinado pelos partidos do governo de que estas medidas serão executadas independentemente dos resultados das eleições que estão sendo convocadas para abril. Eles também querem caucionar o dinheiro que seria posto em um fundo especial fora do controle da Grécia, de modo que os credores sejam reembolsados primeiro e somente se sobrar dinheiro os gastos governamentais poderiam ser feitos.

Eles também exigem que os gregos devam chegar a mais 325 milhões de euros no valor dos cortes. Berlim também exige maiores esclarecimentos sobre como a Grécia irá reduzir seus custos laborais em 15%. Em outras palavras, eles querem tirar sangue de uma pedra.
Esta amigável intervenção alemã não ajudou em nada Mr. Papademos, cujo governo está agora como um barco naufragando sobre as rochas no mar alto. A infame Troika queria a continuação de seu governo até o final do ano. Em vez disso, já se encontra em processo de decomposição.
Da mesma forma que os demais planos dos dirigentes da EU, a coligação de "unidade nacional" está a se desfazer rapidamente. Os burgueses já não controlam mais os acontecimentos. Pelo contrário, são os acontecimentos que os controlam.

Novas eleições serão convocadas para abril. Não sabemos quem vencerá, mas podemos dizer quem perderá. Há um sentimento de ira dirigido contra todos os partidos da atual coalizão. Todos os partidos estão em crise. As eleições, na melhor das hipóteses, produzirão ainda fracos governos pró-austeridade, provavelmente encabeçados pelo conservador partido da Nova Democracia. Isto não resolverá nada e levará a mais revoltas. Coalizões instáveis cairão uma após outra.

Uma situação pré-revolucionária

Lênin assinalou há muito tempo que existem quatro condições para uma situação revolucionária: 1) a classe dominante deve estar dividida e em crise; 2) a classe média deve estar vacilando entre a burguesia e a classe trabalhadora; 3) as massas devem estar preparadas para lutar e fazer os maiores sacrifícios para tomar o poder; e 4) um partido e uma liderança revolucionários dispostos a levar a classe trabalhadora à conquista do poder.

Na Grécia no presente momento todos estes fatores existem exceto o último. A classe dominante grega está em crise. Ela não tem nenhuma solução ao presente impasse. Seus líderes são um quadro de impotência e indecisão. Eles estão sendo espremidos entre duas gigantescas pedras de moinho: de um lado, a impiedosa pressão do Capital internacional; de outro, a feroz resistência das massas.
A crise da classe dominante reflete-se nas crises e divisões em cada um dos partidos governamentais. Já quarenta parlamentares foram expulsos por não votarem pelo plano de austeridade. Mas medidas disciplinares de nada servirão. É como ocultar as fendas em uma parede causadas por um movimento sísmico massivo das placas tectônicas. O presente governo carece de toda legitimidade aos olhos das massas. Ele é um governo dos bancos que não foi eleito por ninguém.

O ódio aos banqueiros e aos ricos em geral é universal. O sentimento geral de revolta se espalhou à classe média que vê seus padrões de vida vir a baixo: os pequenos negociantes, que foram empurrados à bancarrota; os funcionários públicos, que perderam seus empregos; os motoristas de táxi, que enfrentam a ruína. Não é verdade que a classe média esteja vacilando entre a burguesia e o proletariado. A classe média grega está sendo forçada pela dura realidade a tomar o caminho da revolução.

E a classe trabalhadora? Nos últimos dois anos, o proletariado da Grécia revelou enorme militância e determinação. Houve 17 greves gerais e numerosas manifestações e protestos de massa de todos os tipos. Cabe a pergunta: o que mais podemos exigir da classe trabalhadora? O que mais podemos esperar?

É certo que a greve geral de 48 horas convocada pelas lideranças sindicais na última semana não foi um grande êxito. Indica isto que o sentimento da classe trabalhadora está esfriando? Significa isto que as massas estão se reconciliando com o inevitável, e que a burguesia teve êxito em restabelecer o equilíbrio necessário? Pelo contrário, o velho equilíbrio social e político foi completamente destruído na Grécia. E não será restaurado nem fácil nem rapidamente.

Como se explica a reduzida resposta ao chamado de uma greve geral de 48 horas? A resposta é bem simples: os trabalhadores gregos entenderam que greves de um ou de dois dias nada resolvem. Existem determinadas situações em que as greves e demonstrações de massa podem forçar um governo a mudar sua política. Mas a situação atual não é uma dessas situações.

A crise é demasiado profunda para permitir à burguesia alguma margem de manobra. Ela não abandonará o curso da ação que, de alguma forma, lhe está sendo ditado por Berlim e Bruxelas.
Os líderes sindicais na Grécia – como todos nos demais países – não entendem a seriedade da situação. Embora se considerem realistas supremos, são, na realidade, os mais cegos dos cegos. 

Vivem do passado que já se dissipou nas névoas da história.

Os líderes sindicais imaginavam que, com um pequeno espetáculo de oposição, poderiam persuadir a burguesia a estabelecer alguns compromissos com eles. "Afinal, somos moderados, e não revolucionários". Mas, em vez de compromissos, todos eles receberam um chute no meio dos dentes.
A verdade é que os líderes sindicais usaram a tática de um dia de greve geral como meio conveniente de permitir que as massas dissipassem vapor. Um dia de greve geral é apenas uma demonstração. Pode ser usada para mobilizar a classe e até mesmo para atrair as camadas mais atrasadas e inertes. Nas ruas, os trabalhadores sentem seu poder coletivo e sua confiança aumenta.

Este é o lado positivo de um dia de greve geral. Mas, se a mesma coisa se repete indefinidamente, sem mostrar resultados concretos, os trabalhadores se cansarão dela. Eles podem ver que todas estas greves os fizeram perder dinheiro, mas também podem ver que não tiveram êxito em seus objetivos. 

Concluem que alguma forma mais poderosa de ação é necessária. Mas, que espécie de ação é esta?
Aqui, a questão da liderança adquire importância decisiva. Os métodos puramente sindicais não podem resolver o problema, porque a natureza do problema não é sindical, e sim política. É uma questão de classe contra classe, de trabalhadores contra patrões, de ricos contra pobres: em última análise, é uma questão do poder estatal.
A tática de greves gerais de um ou dois dias está completamente desgastada. A única possibilidade agora é uma greve geral total para derrubar o governo. Mas uma greve geral total não é mais apenas uma demonstração. Ela coloca a questão fundamental: Quem é o amo da casa? Quem manda: vocês ou nós? Em outras palavras, ela coloca a questão do poder.

Esta é uma questão que nenhum dos atuais líderes da Esquerda está preparado para colocar. Eles temem explicar ao povo da Grécia o que o povo da Grécia necessita saber: que nenhuma solução para os problemas da Grécia é possível enquanto o poder estiver nas mãos de um bando de ricos parasitas: banqueiros, capitalistas, latifundiários e magnatas do comércio.
É impossível curar um câncer com uma aspirina. O que se necessita é de um genuíno governo de Esquerda – um governo dos trabalhadores que esteja preparado para expropriar os banqueiros e os grandes capitalistas gregos e estrangeiros, e que introduza uma economia nacionalizada e planificada, sob o controle e a administração democráticos da classe trabalhadora.

A fim de libertar a economia grega do estrangulamento do Capital externo, todas as dívidas devem ser repudiadas e deveria existir um monopólio estatal do comércio externo. Medidas revolucionárias drásticas deveriam ser tomadas contra os especuladores e as pessoas que enviam suas fortunas para o exterior.

Estas são as condições iniciais, sem as quais nenhuma solução é possível. Contudo, mesmo estes passos não serão suficientes. Sob as condições modernas, nenhum país pode se salvar sobre linhas puramente nacionais. O socialismo em um só país é uma utopia reacionária, como o revela a experiência da URSS e da China. Uma Grécia socialista lançaria um apelo aos trabalhadores da Europa para seguirem seu exemplo: desfazerem-se do jugo do Capital e se unirem em uma Federação Socialista Europeia, construída sobre os alicerces sólidos da igualdade e da solidariedade.

O único obstáculo entre a classe trabalhadora e o poder é a ausência de liderança. As pesquisas indicam que os partidos da Esquerda (Synaspismos, KKE e a Esquerda Democrática) têm mais de 40% de apoio. Isto revela que a classe trabalhadora está olhando para a Esquerda para que resolva seus problemas. Mas as táticas sectárias impedem-nos de se unir para a ação. O KKE se recusa a se engajar com outros partidos da Esquerda. Chegou a apelar por demonstrações separadas no domingo.
Este erro é fatal. A classe trabalhadora exige ações unitárias contra a classe capitalista, e uma política genuinamente socialista! O que se necessita é da aplicação de uma política leninista da Frente Única. Tal política e programa seriam suficientes para varrer os partidos burgueses à lata de lixo da história de onde vieram.

Deixem que a nossa bandeira seja a do socialismo e do internacionalismo proletário. Este é o único caminho à frente para os trabalhadores da Grécia, da Europa e de todo o mundo.

Traduzido por Fabiano Adalberto