terça-feira, 10 de abril de 2012

‘Na Colômbia, estamos diante de uma das maiores crises humanitárias do planeta’

Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação   do CORREIO DA CIDADANIA

A Colômbia esteve recentemente em grande evidência nos noticiários nacionais em função de novo posicionamento das FARC que, em comunicado, disseram que não dariam prosseguimento às suas atividades de seqüestros, ao mesmo tempo em que libertariam novos reféns. Como sempre, quando se trata de questões afeitas aos nossos vizinhos latino-americanos, especialmente se envolvem as entidades tidas a priori como ‘terroristas, o teor das análises varia entre a superficialidade e a apelação. Quando muito, a apresentação de uma biografia de algum dos personagens envolvidos nos ‘seqüestros’ ou ‘atentados’, principalmente se vier a corroborar os dogmas tão caros - e manjados - à nossa imprensa.

O fato é, no entanto, que, na medida em que nos dispomos a nos aprofundar, um tanto que seja, na realidade latino-americana, são incontáveis e surpreendentes as descobertas que se podem fazer face às caricaturas às quais estamos expostos. A Colômbia talvez seja um caso extremado desse quadro, em função da notoriedade das suas guerrilhas e do potencial de visibilidade que trazem as notícias e artigos nos quais são citadas. Pietro Alarcon, colombiano e professor de Direito na PUC-SP, concedeu-nos uma entrevista sobre a conjuntura atual do país, da qual se apreende um cenário político, econômico e social complexo e, ao mesmo tempo, dramático.

De acordo com estatísticas oficiais, o país de cerca de 46 milhões de habitantes abriga hoje 29 milhões de pobres e por volta de 9 milhões de habitantes na pobreza absoluta; 3,4 milhões de pessoas são refugiadas internas, o que, por si só, dá a dimensão da crise humanitária vivida pelo país. A participação da população civil em conflitos armados, planejando ações contra as entidades de classe, sindicatos e outros órgãos comunitários, ocorre, por sua vez, em flagrante desrespeito às normas do Direito Internacional Humanitário.

A opção pela militarização para a solução de conflitos, o autoritarismo do Estado em sua relação com a sociedade e um forte e incondicional alinhamento com os EUA persistem, pois, sob o comando do atual presidente Juan Manuel Santos – de forma menos visível, mais camuflada, mas com a mesma lógica existente à época de Uribe. Uma situação que em nada contribui para um processo de paz. Assim como para ele não colabora a negação, pelo Estado, da existência de presos políticos na Colômbia – forte contradição face à admissão da existência do conflito armado.

Leia a seguir a entrevista completa.

Correio da Cidadania: O que pensa da atual conjuntura política, econômica e social na Colômbia? O que se pode dizer do absurdo número de assassinatos políticos, como nas últimas eleições, e também do incrível número de mortes de sindicalistas, líderes comunitários, camponeses, além de outras brutalidades contra indígenas, mulheres, agricultores?

Pietro Alarcón: A verdade é que existe, como é lógico, uma variedade de aspectos que podem ser abordados, de cunho político, econômico, social, militar e jurídico.

Acho possível estabelecer uma espécie de marco geral de análise de uma sociedade na qual se verifica um confronto de projetos sobre a saída ao conflito social e armado, uma constante nos últimos 50 anos. Por um lado, segmentos do Estado, nos quais há civis e militares, propõem e executam uma ação dirigida à imposição da saída militar, que não inclui modificações do regime político ou transformações sociais significativas do modelo econômico.

Por outro lado, há os setores convencidos da necessidade da saída pela via do diálogo, da negociação, da necessidade de criar mecanismos de distensão que possibilitem caminhos de paz acompanhados de uma discussão ampla sobre os problemas históricos que ocasionaram a violência na perspectiva de um novo cenário, de efetivação de direitos, de abertura democrática.

Neste marco geral é possível continuar a enxergar alguns elementos pontuais que revelam as idas e vindas da situação.

Correio da Cidadania: E quais elementos você destacaria em todo esse arranjo sócio-político?

Pietro Alarcón: Vou colocar alguns dados que acho importantes, especialmente após os resultados eleitorais de 2010, que refletem a continuidade de um processo que vem de 2002, quando da primeira eleição de Uribe. Nessas eleições de 2010, Santos obteve mais de 9 milhões de votos.

Correio da Cidadania: Esse é um número significativo para quem representava a continuidade de Uribe, diante de permanente caos interno. Como você explica essa votação elevada?

Pietro Alarcón: Essa votação se explica por vários fatores, que vão desde uma adesão ideológica e fisiológica ao governo da chamada “Unidade Nacional”, o slogan do governo de Santos, passando pelo uso da máquina eleitoral e do poder da mídia. Mídia que polarizou a eleição entre Santos e o candidato Antanas Mockus com o objetivo de esconder a oposição que dá ênfase à necessidade de uma mudança estrutural no país, especialmente o Pólo Democrático Alternativo (PDA). Explica-se ainda pelo assistencialismo no governo de Uribe através de programas como Famílias em ação. E temos que considerar também a disseminação em algumas regiões do receio pelo terror paramilitar, através da intimidação dos chamados guarda-bosques.

Correio da Cidadania: Há diferenças entre o governo de Uribe e o de Santos?

Pietro Alarcón: Eu acho que, para caracterizar o governo de Santos, temos que ver um pouco o governo de Uribe. Porque eu acho que temos de lembrar disso? Porque o governo Uribe propôs três questões: a chamada segurança democrática, a coesão social e a recuperação da confiança internacional para atrair investimentos. É fato que os dois primeiros implicam a militarização do país e a criação de forças de denúncia e ação policial com aval do Estado e particularmente das forças armadas. O problema é que esses denunciantes são recrutados da própria sociedade, em troca dos mais variados favores estatais. O que contribui para uma fragmentação social que não permite ou conduz à trilha do diálogo, mas da confrontação. Há uma obra de Lon Fuller, traduzida por um querido amigo e professor, a dos denunciantes invejosos, que sempre me lembra esta situação.

Outro elemento é a criminalização do protesto social e o cerceamento das liberdades públicas, oficialmente ou extra-oficialmente, ou seja, utilizando mecanismos que o governo considera legítimos ou, em outras oportunidades, mecanismos completamente à margem de qualquer Estado de Direito. O governo, em reiteradas oportunidades, agiu por fora da estrita legalidade para grampear telefones e ameaçou setores da sociedade civil, cometendo crimes de responsabilidade ao colocar em risco a vida de lideranças políticas e sociais. Questões pelas quais Uribe tem sido chamado a explicações pelo Congresso.

E a última proposta tem como objetivo a liberação dos acordos no modelo TLC – Tratados de Livre Comércio.  Com Santos, no governo intitulado de Unidade Nacional, isso que menciono permanece. Acho que, agora com maior nitidez, se observa o fortalecimento de um projeto político que continua gravitando entre o autoritarismo na condução do debate com os setores sociais organizados, militarismo e alinhamento internacional às opções dos Estados Unidos.

Para exemplificar, continua em andamento o processo para tentar incorporar a população civil ao conflito, em clara violação às normas do Direito Internacional Humanitário.

Correio da Cidadania: Em que consiste essa história de incorporar a população civil ao conflito?

Pietro Alarcón: As normas do Direito Internacional Humanitário são de origem convencional, ou seja, são definidas com base nos costumes, e se originam da necessidade de restringir, por razões humanitárias, o direito das partes do conflito armado em utilizar meios de guerra. São normas para proteger a população civil. São as Convenções de Genebra e elas proíbem os maus tratos, as torturas, os tratamentos degradantes da população civil. Essas normas determinam que as forças armadas têm de distinguir civis de combatentes, ou seja, os objetivos militares da população inerme e indefesa.

Então, por exemplo, na Colômbia temos um problema de ausência de efetividade dessas normas e o seu não reconhecimento. Por exemplo, as Forças Armadas deram a conhecer há alguns dias um plano chamado Plano Espada de Honra, feito especialmente para que os civis se assumam como defensores do Estado. A idéia é que estas pessoas participem do conflito reproduzindo materiais, planejando ações contra as entidades de classe, sindicatos e outros órgãos de participação comunitária e popular, que continuam a ser acusados de cúmplices da insurgência armada. É muita intolerância e, sobretudo, muita irresponsabilidade. Isso não somente fragmenta, mas desgarra a sociedade colombiana.

Correio da Cidadania: Assim, nota-se inequívoca continuidade face ao governo de Uribe?

Pietro Alarcón: Sim, e posso colocar outra questão, muito grave e delicada. Talvez no Brasil e em outros países não tenha tido a repercussão que merece. Mas o Judiciário, encabeçado na Colômbia pela Corte Suprema e a Corte Constitucional, tem sido um baluarte no sentido de manter o que resta do Estado de Direito.

A Corte Suprema emitiu ordens de detenção contra os membros do partido de governo ligados à parapolítica, quer dizer, contra membros do governo que realizam e estão comprometidos com práticas paramilitares. Uma juíza que proferiu ordem de detenção contra um general envolvido no desaparecimento de pessoas na tomada do Palácio da Justiça pelo M-19, um movimento insurgente da década de 80 (se não me engano, essa tomada foi em 1989 ou 1990), teve que sair do país, e hoje está protegida por medidas cautelares proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

E Santos propõe hoje uma tal “reforma na justiça”, que, se explicada em detalhe concede, na verdade, o domínio da administração da magistratura ao Executivo, em claro detrimento da separação de funções. Tecnicamente é isso. E politicamente, os juízes têm dito algo que para todos parece muito claro, de modo que a Corte assim o expressou num comunicado à opinião pública. O comunicado diz que não é possível que a reforma na justiça, algo tão sério, seja motivo de revanchismos, de retaliações perante o cumprimento dos deveres constitucionais.

No fundo, do que se trata é de uma tentativa de fortalecer o Executivo em detrimento do aparelho jurisdicional, que cumpriu um papel à altura nesta última etapa da vida nacional.

Correio da Cidadania: Santos tem condições de aprovar essa reforma?

Pietro Alarcón: Depende, logicamente, de alianças etc. O bloco que apóia Santos tem 66 senadores. Ao todo, são 102 senadores e o Pólo Democrático Alternativo tem oito. Mas o Congresso como um todo, incluindo a Câmara, conta com 268 parlamentares, sendo 166 deputados.

Correio da Cidadania: Mas, apesar dessa votação de 2010 que você mencionou há pouco, houve muita abstenção e o voto não é obrigatório...

Pietro Alarcón: Não, não é. Uma questão importante é que, nas últimas eleições, houve um nível de abstenção superior a 55%. A imensa maioria de abstencionistas são pessoas desinteressadas, com a idéia de que nada vai mudar com o voto. Isso é explicável pela ciência política, é próprio de um histórico regime político de democracia restringida, que produz, a médio e longo prazo, uma cidadania precária ou, como alguns opinam, de baixíssima intensidade. Isso tem conseqüências muito negativas, começando pela renúncia das pessoas à participação política e, depois, exigências de cumprimento dos deveres do Estado. Uma espiral muito perigosa para a democracia.

E vale a pena anotar que também incomoda muito essa filosofia que substitui o caráter de cidadão pelo de consumidor, que é uma das questões mais evidentes nos últimos tempos.

Correio da Cidadania: Sobre a conjuntura social, o que poderia ser dito do atual momento do país?

Pietro Alarcón: Eu gostaria de contar coisas positivas. Alguém poderia pensar que a Colômbia está caindo aos pedaços e a verdade é que, se você a visita, não se percebem muitas destas questões mais políticas. A Colômbia tem uma grande biodiversidade e especialmente um povo generoso, muito trabalhador.

Contudo, socialmente, há um quadro bastante expressivo de piora das condições de vida e efetivação dos direitos. Por exemplo, a partir de 2008, os indicadores estampam que a pobreza atingiu 47,8% da população, e que a pobreza extrema é padecida por 17,8%. Se adicionarmos o cerceamento do investimento no social, especialmente para favorecer o investimento militar e prosseguir na guerra e no desequilíbrio na redistribuição da renda, a questão é ainda mais grave.

A Colômbia tem em torno de 46 milhões de pessoas. Ou seja, estamos falando de mais ou menos 29 milhões de pobres e umas 9 milhões de pessoas na pobreza absoluta. Também, veja-se, de cada 100 trabalhadores, 58 estão no chamado emprego informal, sem carteira assinada ou prestações laborais. Isso com um desemprego de 13%, 14%.

E existem alguns, creio, anacronismos. Por exemplo, quando hoje se fala em pós-neoliberalismo, no meio da crise mais evidente do grande capital, na Colômbia se privatiza a saúde e se continua com as tentativas de privatização de todo o sistema educacional. Em outras palavras, o modelo na Colômbia continua a ser ligado ao esquema de Estado mínimo.

Correio da Cidadania: Em matéria de direitos humanos, como você analisa esse quadro?

Pietro Alarcón: Eu acho que neste item temos uma grande quantidade de questões, que vou tentar resumir, ou pelo menos apresentar de forma organizada.

E para isso teríamos que começar por uma constatação muito triste, complexa, mas muito verdadeira. Talvez o mais determinante na história republicana do país seja o fato de que se gerou uma camada social incrustada na institucionalidade e objetivamente no poder através de métodos de violência. Criou-se ao longo do tempo uma oligarquia com uma tendência a fechar a participação democrática e que, ainda que os direitos humanos evoluam em termos de gerações ou dimensões e o Estado de Direito evolua e se transforme, ampliando as liberdades públicas e consagrando os direitos sociais, sempre foi bastante refratária a tais evoluções e mudanças. E, essencialmente, utiliza a violência como mecanismo de contenção da pressão social por uma saída de tal situação.

O tema dos direitos humanos na Colômbia já é reiterado tanto na Organização das Nações Unidas quanto na Corte de São José, que, como lembrado, cuida da aplicação das normas da Convenção Americana de Direitos Humanos, assim como é um assunto já bastante abordado por entidades internacionais muito respeitáveis, como a Anistia Internacional, por exemplo.

A Corte Interamericana de São José, no ano de 2010, condenou o Estado colombiano pela morte do senador Manuel Cepeda, da organização União Patriótica, a organização ou movimento político que surgiu na época dos primeiros acordos de paz entre a guerrilha das FARCs e o governo. Importante lembrar que essa organização foi vítima de um sistemático extermínio. Eu, nos meus anos de trabalho com direitos humanos, jamais me deparei com algo tão aberrante, o aniquilamente sistemático, primeiro seletivo e logo praticamente em massa de membros de uma organização. O governo anterior de Uribe se negou a aceitar essa decisão ou o fez da boca pra fora. Não houve gesto do governo de reconhecer que ocorreu essa punição da CIDH.

Outro assunto extremamente grave foi o dos “falsos positivos”, ainda sendo investigados. Grupos de pessoas assassinadas pelo Exército que supostamente eram membros das guerrilhas, logo reclamadas por seus familiares, que ainda hoje brigam para que se reconheça que não eram guerrilheiros, mas pessoas enganadas na busca por trabalho em várias regiões do país e que apareceram assassinadas. Isso é muito grave, um delito contra a humanidade.

O terceiro ponto, que atesta que na Colômbia há uma crise humanitária de dimensões maiúsculas, é que, segundo dados do próprio Registro Único de População Deslocada da Presidência da República, o número de refugiados internos na Colômbia está ao redor de 3,4 milhões. Mas se observarmos outro dado, fornecido pelo Codhes, que é a Consultoria de Direitos Humanos, a cifra é maior, chega a 4,9 milhões de refugiados internos. Independentemente de serem 3, 4 ou 5 milhões, a verdade é que isso significa que na Colômbia estamos diante de uma das maiores crises humanitárias do planeta.

As normas do Direito Internacional humanitário têm se perdido no meio do fogo cruzado e recrudescimento do conflito armado. A Corte Constitucional da Colômbia já apontou, numa decisão paradigmática, que, para ser considerado refugiado interno, basta comprovar duas questões: a migração e que esta seja forçada, isto é, por causa do conflito. O Estado colombiano tem se colocado de forma negativa diante da decisão, afirmando que, com esses critérios, o deslocamento virou um negócio e, por isso, nega muitas vezes o status de refugiado interno e não entrega recursos aos refugiados.

Correio da Cidadania: Como já reforçado aqui, é internacionalmente conhecido que o Estado é o grande violador dos direitos humanos, mas como você vê a questão do seqüestro? As Farcs, em vários comunicados, dizem que não dariam prosseguimento às suas atividades de seqüestros, ao mesmo tempo em que libertariam novos reféns.

Pietro Alarcón: Sim, as FARCs emitiram dois comunicados do seu novo comandante, que têm criado bastante expectativa no país e na comunidade internacional.

O seqüestro, a detenção de pessoas, e estamos falando de anos, em alguns casos, de pessoas detidas na selva, é uma questão que não pode ser posta de lado quando se fala de direitos humanos. Na Colômbia, a deterioração da guerra, sua prolongação, originou métodos de extrema crueldade.

Eu acho que, se a guerrilha, como ator político, armado, se posiciona de frente ao país, tem que efetivar essa intenção. Ou seja, e nisso concordo plenamente com outros colegas, ninguém em nome de um processo revolucionário, de transformação de estruturas de um regime, pode realizar atos degradantes, que coloquem em risco a população civil.

Tem de haver consciência disso e as FARC precisam efetivar o que foi afirmado nos comunicados, no sentido de libertar todos os reféns que tenham em seu poder. Eu, sinceramente, não considero que seja benéfico a um processo de saída negociada ao conflito, de aclimatação a um cenário de paz, prosseguir nesse caminho. Por isso temos de valorizar positivamente a iniciativa. Acho que o debate na Colômbia, especialmente se um dos interlocutores são as guerrilhas, é com idéias, propostas, perspectivas que permitam oxigenar o país.

Entretanto, pelo outro lado, é preciso que exista também disposição ao diálogo e facilitação a essa saída humanitária. Observe-se que as FARC fizeram uma proposta concreta e adicionaram o pedido de permissão a uma visita humanitária aos cárceres da Colômbia, com o objetivo de constatar a situação dos presos políticos. Juan Manuel Santos responde que na Colômbia não há presos políticos.

Ora, uma quantidade enorme de ONGs ligadas aos direitos humanos e o próprio governo sabem que na Colômbia é claro que há presos políticos. Pessoas detidas pela sua militância política e social. E não são duas ou três. Dizer que não há presos políticos já começa a entorpecer o que poderia ser uma excelente forma de começar um diálogo para a paz, especialmente quando a Cruz Vermelha, o Escritório do Alto Comissariado dos Direitos Humanos da ONU reconhecem a existência de pessoas detidas com esse caráter.

Não há lógica em dizer que há conflito armado na Colômbia, mas não reconhecer que há presos políticos como conseqüência do conflito.

O Estado tem que concentrar seus esforços em criar condições para a paz e a libertação dos seqüestrados e, logo, atacar as causas da guerra. A paz tem de ser uma política de Estado e estes espaços devem ser aproveitados para afirmar tal política. O governo deve responder, por exemplo, com uma ação efetiva para definitivamente frear o paramilitarismo.

Correio da Cidadania: A que você se refere quando menciona atacar as causas da guerra?

Pietro Alarcón: Para isso, todos os setores armados têm de parar com suas ações militares, que castigam a população civil e os membros do movimento social organizado. Tem de haver um cessar fogo, uma trégua ou algo desse tipo, porque está demonstrado, especialmente no processo durante o governo de Andrés Pastrana, que é muito difícil que se facilitem as negociações sob fogo cruzado. Ou seja, temos que começar por efetivar o direito à vida e à segurança. Temos que reduzir ao mínimo a violência como mecanismo de solução de conflitos. Que se desmontem, de vez e por fim, os grupos paramilitares que tiram as vidas de sindicalistas.

Não apontei antes, mas, na Colômbia, no ano de 2011, foram assassinados 29 sindicalistas, segundo as estatísticas das Centrais Unitárias de Trabalhadores da Colômbia. Oras, mais de 60%, diz a entidade, dos sindicalistas assassinados no mundo são colombianos. Isso é um escândalo, algo sem nome.

Continuemos reconstruindo as relações no campo, destinando recursos para a infra-estrutura e a produção no campo, tendo um plano concreto de ações de âmbito nacional; continuemos - mas, paralelamente, o Estado também - comprometidos com a garantia e efetivação de liberdades elementares como a de divergir, de manifestação do pensamento, o direito à conformação dos partidos, com independência do seu posicionamento perante o Estado, o que quer dizer liberdade de criticar, de aspirar, de sonhar com algo diferente. Promovamos reformas sociais significativas. Eu penso que privatizar a saúde do jeito que foi feito é um crime e um atentado contra o direito à vida. Entre vida e saúde há uma interligação, uma conexão própria pelo fato de ser um direito fundamental. Violenta-se a proteção da confiança, a proibição de retrocesso, com o plano de privatização também da educação.

A Colômbia, como qualquer Estado que cuide do seu processo civilizatório, tem de pensar nessa geração que está a se formar no país.

Correio da Cidadania: Qual a sua avaliação sobre as FARCs atualmente? Qual o significado político e social de sua atuação nos dias de hoje?

Pietro Alarcón: Isso tem várias arestas. Sociologicamente, a luta armada na Colômbia é um fator histórico e político, faz parte da realidade e atravessa vários períodos. A leitura científica do processo permite distinguir dois grandes períodos. O primeiro podemos chamar de resistência e defesa camponesa; o segundo, de combate militar pelas transformações econômico-sociais.

Agora há uma discussão importante, no seio dos mais diversos setores, que não é apenas uma questão teórica ou acadêmica. O regime político determinou a origem do conflito e esse movimento armado se desenvolveu desde a década dos 50 como uma forma de luta, mas sem que existisse o que os clássicos da política denominam situação revolucionária. Ou seja, as guerrilhas praticam uma forma de luta, mas não é necessariamente a ação armada uma via para a transformação social no contexto atual da Colômbia. E isso é o que está em debate hoje no país.

Eu acho que temos que conduzir a insurgência à paz, e também temos de trazer o Estado à paz. Isso somente será possível com um movimento organizado a partir do social, ganhando consciência, unidade programática, planejamento, para atingir uma nova realidade, com democracia e justiça social, com tolerância, com pleno respeito às liberdades públicas e aos direitos sociais. Daí, que se coloque a questão de um diálogo de paz, no qual os setores armados têm de fazer concessões mútuas.

O Estado não consegue vencer a insurgência, apesar dos golpes que esta sofreu. A “segurança democrática” de Uribe, de acabar com as guerrilhas, não teve o sucesso que esperava o governo. Tampouco as guerrilhas têm condições de avançar a um novo nível de luta que elas colocavam como algo possível ou real.

Nesse impasse, a Colômbia não pode continuar se sangrando. Não podemos abandonar a luta pela paz no meu país. E Santos tem que reconhecer que as FARC são um ator político, coisa que se recusa a fazer. As FARC têm de cumprir seus comunicados e o Estado, se comprometer com mudanças sociais e econômicas. A Colômbia merece essa chance.

Correio da Cidadania: Nessa conjuntura que você expõe, quanto à atual condição geopolítica da Colômbia, como encara a inserção do país no continente latino-americano, em especial, no que diz respeito ao entrosamento com os demais países da América Latina, vis-à-vis o seu relacionamento com os EUA?


Pietro Alarcón: A Colômbia tem uma posição geográfica que a torna altamente importante para os projetos de unidade, de integração, de estabilização da região. Mas precisamente por isso é também um Estado submetido a uma pressão histórica para que seu território seja utilizado com objetivos de projeção político-militar. Não podemos esquecer que a separação do Panamá, em 1903, foi um golpe dos Estados Unidos com o objetivo de posteriormente financiar a construção do Canal do Panamá.

Agora, no atual contexto, no qual conseguimos visualizar projetos de unidade em curso, como a Unasul, o Mercosul, existe, me parece, uma rejeição às intervenções militares e às saídas de força. Simultaneamente, uma reclamação mais incisiva por um comércio multilateral, em tempos em que o sistema econômico internacional evidencia crises cada vez mais freqüentes. A tática dos Estados Unidos, dos TLCs, constitui uma afirmação da sua condição de hegemonia e não permite uma possibilidade de negociação com novas economias com as quais seria possível, pelo menos conjunturalmente, obter vantagens comparativas.

Sobre essas duas bases, a militar e a econômica, afirma-se a estrutura hegemônica de poder, que menciona Pinheiro Guimarães em seus 500 Anos de Periferia. Os Estados da América Latina tem que puxar a Colômbia para a paz, para a condição que lhe permita a manutenção do seu território como cenário de paz, interna e externa.

Esse entrosamento ao qual você se refere é o entrosamento que tem de ser conquistado, mas para o qual a política externa colombiana não demonstra afinidade. Observa-se que a Colômbia votou nas Nações Unidas contra a consolidação do Estado Palestino, votou a favor da agressão à Líbia e pode votar, e é previsível, a favor de uma intervenção militar na Síria. Esse não pode ser o caminho para a paz e a segurança da ordem internacional.

A Colômbia, com TLC assinado, incrementa a condição de hegemonia econômica, quando do que se trata é de eliminar as dependências para poder caminhar economicamente sobre bases sólidas, autonomia monetária, de exploração de recursos naturais com eficiência e equilíbrio, em termos estratégicos.

Aprovando o TLC com Estados Unidos, a Colômbia não somente ocasiona um problema para os médios e pequenos produtores do país, que vêem seus produtos sendo jogados a uma concorrência desleal, como também restringe a possibilidade de um comércio subcontinental em condições mais favoráveis aos projetos de crescimento com redistribuição de riqueza.

Outro aspecto é o financeiro. Se a América Latina resiste a ser vítima da ciranda financeira do binômio dólar-euro, enquanto a Colômbia se atrela em termos financeiros às condições desse binômio, cria-se, obviamente, uma dificuldade para a possibilidade de negociar empréstimos com outros Estados, como os asiáticos, por exemplo. Veja-se que Argentina e Equador, como lembrava um autor dos Estados Unidos numa palestra recente, que não têm acesso a esse binômio, encontraram um respiro em empréstimos com a China. A China emprestou, em 2010, mais dinheiro para a América Latina que o FMI e o BID juntos. Isso é sintomático.

O que pretendo dizer é que existem chances de unidade, a comunidade internacional tem que gerar uma diplomacia ativa e propositiva com relação à Colômbia, colocando o tema da paz, da unidade e da quebra de uma histórica dependência econômica com relação aos Estados dominantes dessa tradicional arquitetura de poder da sociedade internacional.

Correio da Cidadania: Em função dos fatos mais recentes, como encara a cobertura que a Colômbia tem recebido da mídia internamente ao país, no Brasil e também em outros países da América Latina?

Pietro Alarcón: A informação, e não somente sobre a Colômbia, mas, em geral, sobre os processos do restante da América Latina, no Brasil tradicionalmente tem sido muito precária.

Por exemplo, no caso da Colômbia, pouco se aborda o tema da crise humanitária, do número significativo de refugiados colombianos no mundo.

Tampouco há maior cobertura sobre o movimento político ou social. Dá-se muita ênfase ao tema FARC, que é uma parte da situação, é um ator armado, determinante, é claro, mas o movimento social colombiano é muito mais vasto.

O jornal colombiano El Tiempo é propriedade da família do presidente e, logicamente, tem um peso enorme na informação difundida no conjunto do continente.

Correio da Cidadania: E a população colombiana, como percebe hoje o país em que vive?

Pietro Alarcón: Eu responderia à pergunta em várias dimensões. A primeira é que, depois de uma fase na qual parecia perdida a capacidade de assombro do povo colombiano, ou seja, de reagir diante da cotidianidade da guerra, as pessoas ganharam em sentido crítico, tanto diante dos atores armados, quanto na compreensão de seu papel no contexto. Logicamente, esse tipo de análise tem de considerar elementos como a maneira que os meios de comunicação retratam a situação do país. Existe uma camada de colombianos que se convenceu de que a saída militar era uma alternativa, com fundamento nas bases militares e em um espetáculo midiático de muita efetividade.

Existe outra camada beneficiada por programas assistenciais, que no começo dizia ter votado nos candidatos da oficialidade e que serviram de apoio social ao chamado uribismo - a corrente política de maior ligação aos interesses externos. Nessa corrente está o próprio Juan Manuel Santos que, como se sabe, foi ministro de Defesa de Uribe.

Contudo, amplos segmentos da opinião pública sabem que a guerra tem somente um horizonte: mais guerra. Esses segmentos constituem a base social da esperança na paz na Colômbia, por ser um segmento atuante, que opina, se mobiliza.

O movimento social colombiano é de uma diversidade rara no mundo, embora exista um problema de ausência de garantias fundamentais para a ação política. Por exemplo, aponto um dado que também considero significativo. Na Colômbia, hoje, confluem vários esforços, além do Pólo Democrático Alternativo, que é a primeira força de oposição. Há uma experiência muito enriquecedora de movimentos indígenas, como a Minga. Outra experiência é a dos Colombianos e Colombianas Pela Paz.

Existe um processo recente que nasce, sob o título de Marcha Patriótica. A idéia é que todos estes movimentos possam chegar a uma agenda comum, de convergência para uma ampla mobilização pela paz democrática e a justiça social, valores e fins de uma ordem justa.

Correio da Cidadania: O que pensa do fato de a Colômbia não ter convidado Cuba para a Cúpula das Américas, a reunião de abril da OEA?

Pietro Alarcón: Para mim o fato não era esperado, pelo aspecto tático em matéria diplomática. Faço uma análise desde a perspectiva do próprio governo colombiano. Não faz ou não fazia parte da filosofia do governo de Santos ter Cuba longe. O de Santos é um governo que faz questão de se mostrar habilidoso em termos de condução diplomática, especialmente diante de processos políticos diferenciados. É um gesto deselegante, além de um retrocesso para a construção de laços de diálogo e mais um retrocesso da política externa do governo colombiano.

No plano internacional, a Colômbia fica muito mal porque, enquanto a ONU, todos os anos, se pronuncia contra o bloqueio e somente há dois votos no seu seio que ainda o justificam, o governo de Santos deixa o país na contramão da história, que já não suporta mais esse tipo de atitudes no gerenciamento das relações internacionais.

Qualquer analista sério fica com a percepção de que a Colômbia é um Estado associado aos Estados Unidos, em termos políticos, jurídicos e diplomáticos. Logicamente, como estudioso do Direito e das relações internacionais, devemos outorgar a isso um significado no cenário de contradições do continente, das pressões e das ingerências, da fragmentação e da cooptação como táticas da potência que hoje tem uma duvidosa hegemonia.

Mas, como cidadão e como pessoa, acho uma atitude, no mínimo, ridícula para esta época, com todo respeito.  

Correio da Cidadania: Quais os países da América Latina você enxerga como posicionados, atualmente, de forma mais progressista no espectro político?

Pietro Alarcón: Eu entendo que temos a obrigação de ser muito objetivos quanto às mudanças do sistema internacional, da estrutura hegemônica de poder, das mutações aceleradas do sistema econômico, do esgotamento de fórmulas de reprodução do capital, mas também de como este se recompõe, tanto econômica como militarmente.

Nesse cenário, considero de extremo valor a posição que possa ter o Brasil como baluarte de um debate sobre o conteúdo concreto da unidade. Trata-se de um país de diplomacia diferenciada, analítica e com maior alcance, do ponto de vista histórico e geral, e do meu ponto de vista, que as diplomacias de outros Estados do continente.

Nesse campo eu acho que tem de prosseguir o debate que conduza, na prática, à priorização de alianças estratégicas no continente, com fundamento no papel que cada Estado pode desempenhar a partir de um compromisso com a transformação das estruturas econômicas e com uma dimensão da democracia muito mais avançada, que supere a mera participação no processo eleitoral e fortaleça a participação cidadã.

Assim, as possibilidades que temos de construir cidadania social, de efetivar direitos, depende da vontade de gerar mudanças com a participação popular. Isso é o que define o avanço ou retrocesso dos governos.

Há algo que gostaria de apontar. Observa-se como na América Latina há um fenômeno bem interessante, que tem sido analisado muito mais por juristas europeus que latino-americanos, o chamado Novo Constitucionalismo. Há novas constituições em países como Venezuela, Equador e Bolívia. Novas regras do jogo para os diversos atores.

Eu sou dos que acreditam que tais documentos contribuem, e muito, porque são ferramentas para a ação política, social, ferramentas de inclusão, de participação. Na Bolívia a Constituição tem um papel fundamental para o reconhecimento da pluralidade étnica.

Eu não estou expondo que novas Constituições resolvam os problemas. O que expresso é que todos estes movimentos e processos são desconhecidos pela comunidade jurídica e política e que tais documentos são ponto de confluência de um poder constituinte renovado e ponto de início de novos processos. Isso ainda não tem sido analisado suficientemente.

Ainda temos de nos aproximar muito mais para poder gerar espaços de coordenação de atividades em vários campos do conhecimento, da ciência, da cultura, da economia e da política, e sempre em perspectiva transformadora, questionando e atacando as desigualdades, a concentração do poder econômico, a precariedade da cidadania e da democracia.

Correio da Cidadania: E a Venezuela? A Venezuela foi o país que levou adiante o modelo político mais alternativo e combativo na região, ainda que prenhe de polêmicas, limites e contradições. Qual o futuro desse país, não só no que diz respeito às possibilidades internas de sustentação política da alternativa bolivariana, mas quanto às perspectivas de prosseguir como modelo de inspiração para as demais nações latino-americanas?

Pietro Alarcón: Acredito e sempre fiz questão de destacar que é um processo singular. É o processo da Venezuela, que tem características precisas, especialmente porque nesse país houve, e esperamos que isso se mantenha, uma correlação de forças favorável aos trabalhadores, que gerou a contundente vitória eleitoral de Hugo Chávez no seu primeiro mandato. Essa peculiaridade, com o esgotamento das forças que tradicionalmente ocupavam o Estado, não tem se repetido em outros processos.

Manter essa correlação de forças implica aprofundar a democracia participativa e empreender um plano de efetivação de direitos sociais, inédito na Venezuela e acredito que na América do Sul em geral.

Provavelmente, há muitos erros, como em todo processo humano. Um projeto político transformador não está isento de erros, e ele se fortalece quando autocriticamente se corrige. Eu vejo, por exemplo, à distância, a necessidade de um processo mais afirmativo da democracia, mais inspirado na base popular, mais apoiado nos setores populares.

Reitero que não falo de eleições, mas de um processo no qual o povo assuma um papel protagônico. Um processo além da questão eleitoral. Agora, deve se reafirmar, e acho que qualquer análise apontaria tal direção, que o processo se mantém como patriótico, progressista, anti-monopolista e de afirmação da sua soberania. Isso é, por enquanto, o essencial.

Correio da Cidadania: Finalmente, o que significa lutar pelos direitos humanos na Colômbia de hoje?

Pietro Alarcón: Na Colômbia, e acho que em qualquer parte do planeta, lutar pelos direitos humanos é dar sentido à vida, é dar testemunho de que estamos vivos. De outro jeito, as coisas deixam de fazer sentido. É denunciar a agressão, a discriminação, mas é também ser propositivo e profundamente ético e responsável no nosso compromisso como seres humanos.

Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

domingo, 8 de abril de 2012

Como a Argentina busca a verdade e produz justiça

Se, na economia, o Brasil é o gigante da América do Sul, no terreno da busca da Verdade, da Justiça e da Memória, a Argentina é a referência principal com uma história de busca da verdade, construção da justiça e reconstrução da memória. Em entrevista à Carta Maior, Remo Carlotto, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Garantias da Câmara dos Deputados, fala sobre o sentido desses avanços e de outors que estão por vir. Um deles é a responsabilização de civis e grupos empresariais que participaram ativamente do golpe, da repressão e da prática de crimes contra a humanidade.


Porto Alegre - A Argentina é, sem dúvida alguma, o país que mais avançou na América Latina na tarefa de julgamento dos crimes cometidos durante o período ditatorial que assolou o continente. A desmoralização dos militares argentinos após a Guerra das Malvinas contribuiu para isso, é verdade, mas essa não é a parte mais importante dessa história de busca da verdade, construção da justiça e reconstrução da memória. Neste processo, a Argentina inovou e segue inovando em matéria de direito civil, penal e constitucional. Pactos e tratados internacionais de direitos humanos, subscritos pelo país, foram incorporados à Constituição. Além disso, o Congresso argentino tem legislado em matéria civil, introduzindo a figura da desaparição forçada de pessoas no Código Civil e no Código Penal. Agora, prepara-se para fazer o mesmo com a figura do genocídio.

Em vários aspectos, a Argentina está a anos-luz do que ocorre no Brasil nesta matéria. Em entrevista à Carta Maior, o deputado nacional Remo Carlotto, presidente da Comissão de Direitos Humanos e Garantias da Câmara dos Deputados, fala sobre o sentido desses avanços e de outros que estão por vir. Um deles é a responsabilização de civis e grupos empresariais que participaram ativamente do golpe e da repressão. Na entrevista ele cita alguns exemplos:

“(...) A empresa Ford que manteve, em sua fábrica situada nos arredores de Buenos Aires, um centro clandestino de detenção, onde os delegados sindicais dessa fábrica foram torturados. O mesmo ocorreu com a empresa Mercedes Benz. O mesmo ocorreu com a principal empresa açucareira argentina, Ledesma, que utilizou a estrutura da empresa para o sequestro de mais de 300 pessoas. Há processos judiciais em curso onde representantes dessas empresas estão diretamente envolvidos. O diário mais importante da Argentina, o Clarín, adquiriu, junto com outro jornal importante, La Nación, a empresa Papel Prensa, a partir do sequestro e da tortura dos proprietários dessa empresa que produz papel para jornais”.

Carlotto esteve em Porto Alegre participando do 5º Encontro Latinoamericano Memória, Verdade e Justiça. Conhecer a experiência argentina é indispensável para transformar essas palavras em eixos estruturantes de políticas públicas de defesa dos direitos humanos e da democracia. Se, na economia, o Brasil é o gigante da América do Sul, no terreno da busca da Verdade, da Justiça e da Memória, a Argentina é a referência principal.

Carta Maior: O senhor veio a Porto Alegre para participar de um debate sobre o conteúdo e as consequências das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, relacionadas a crimes cometidos pelas ditaduras civil-militares do Cone Sul. A Argentina é o país da América Latina que mais avançou neste terreno. Qual a sua avaliação sobre o modo como as sentenças da Corte Americana vem sendo tratadas na região?

Remo Carlotto: A Argentina tem uma característica particular com respeito ao direito interno de aplicação dos pactos e tratados internacionais de direitos humanos subscritos por nosso país. A partir da reforma constitucional de 1994, a Argentina incorporou no artigo 75, inciso 22, da Constituição, todos os pactos e tratados de direitos humanos subscritos até esse momento. Isso significa que a hierarquia que esses pactos e tratados tem no direito interno equivale à ordem constitucional, o que provoca um reordenamento da interpretação jurídica em nosso país, afetando as leis em sua totalidade, não só aquelas que têm a ver especificamente com a aplicação de uma legislação vinculada a um direito em particular.

A partir desse momento, toda legislação do país deve contemplar os pactos e tratados internacionais em matéria de direitos humanos assinados e reconhecidos pelo país. E os pactos e tratados posteriores a 1994 têm um sistema de incorporação que é similar aquele adotado pelos países da região e que envolve a assinatura do tratado e sua ratificação pelo parlamento nacional. Com uma maioria especial (dois terços da composição de ambas as câmaras, de deputados e de senadores), esses pactos podem ser incorporados à ordem constitucional.

Neste sentido, o direito internacional está muito presente na discussão legislativa na Argentina e também na aplicação e na interpretação das leis, o que tem favorecido um tema central neste debate do qual estamos participando , a saber, que não podem existir leis de anistia e de perdão que impeçam o julgamento de crimes contra a humanidade e, no caso da desaparição forçada de pessoas, a imprescritibilidade desses crimes.

Carta Maior: Como é esse debate no interior do Legislativo?

RC: Nós temos acompanhado no Legislativo os atos de reparação por parte do Estado argentino. Além disso, temos legislado em matéria civil, introduzindo a figura da desaparição forçada de pessoas no Código Civil e no Código Penal. Ou seja, na Argentina pode-se julgar e condenar alguém pelo crime de desaparição forçada de pessoas. Hoje estamos debatendo a incorporação da figura do genocídio em nosso código e também temos a tarefa de ratificar as reparações que devem ser feitas pelo Estado para as vítimas da ditadura. Não se trata apenas da reparação de caráter econômico, mas também o reconhecimento, pelo Estado, da prática de crimes. Isso significa uma vinculação de ordem jurídica, mas também uma interpretação e um olhar interdisciplinar sobre as formas de reparação das vítimas, familiares e sobreviventes, por parte do Estado de uma maneira integral. Legislamos ainda em matéria de construção da memória como uma ação pública. Ou seja, o leque de opções e conceitos que vem sendo adotados pelo Estado argentino é amplo.

Cabe observar que tudo isso depende de decisões de caráter estritamente político. Um exemplo é a implementação de um processo, em nível parlamentar, para a reversão das leis de impunidade. Tivemos duas delas: a Lei de Obediência Devida, que determinava que os membros das forças de segurança e das forças armadas tinham cumprido ordens e que só as cúpulas eram responsáveis; e a Lei do Ponto Final, que estabelecia um término para a apresentação de ações judiciais relacionadas a crimes da ditadura. Essas duas leis obstruíam o acesso á Justiça. Então, o caminho que se seguiu na ordem parlamentar foi propor a anulação dessas leis, declarando-as absolutamente nulas por contrariarem o direito internacional reconhecido pela Argentina. Isso ocorreu não somente pela reforma constitucional de 1994, mas também pela interpretação do direito internacional que afirma que nenhum tipo de crime ou ato genocida pode ser anistiado ou declarado impune. Posteriormente houve uma ratificação por parte da Corte Suprema reconhecendo a inconstitucionalidade dessas leis.

Avançamos também em outra direção. Tivemos participantes do terrorismo de Estado que foram eleitos parlamentares e o Parlamento acabou impedindo que tomassem posse, declarando a incompatibilidade moral de alguém que participou de tortura e crimes aberrantes ocupar um cargo público de representação popular. Assim, o âmbito parlamentar tem um duplo papel neste processo: um papel de caráter legislativo para adequar toda a legislação nacional aos pactos e tratados internacionais, e um papel eminentemente político que deve acompanhar os processos de julgamento dos responsáveis pelos crimes da última ditadura civil-militar e monitorar o cumprimento desses pactos e acordos. Os países, muitas vezes, subscrevem pactos e tratados internacionais e depois não os cumprem. Por isso, é fundamental desenvolver ferramentas de monitoramento interno.

Carta Maior: Há algum outro país da região que tenha feito essa incorporação constitucional de tratados e pactos internacionais?

RC: As reformas constitucionais realizadas por Equador, Bolívia e Venezuela caminham nesta direção. Não é exatamente a mesma coisa que foi feita na Argentina, mas tomam o direito universal e o sistema interamericano de direitos humanos e o incorporam, artigo por artigo, dentro da própria estrutura da Constituição. Mais do que isso, essas Constituições, no marco da interpretação do Constitucionalismo social latino-americano, apresentam profundos avanços em matéria de garantia de direitos humanos. Esses países seguem um caminho sumamente auspicioso por que avançam também sobre temas específicos e particularidades de sua realidade social e política.

Há um tema de fundo por trás desses avanços. Cada vez que falamos de crimes cometidos pelas ditaduras civil-militares estamos falando da usurpação dos recursos econômicos do Estado por parte de grupos econômicos concentrados em nossos países. Os militares não decidiram, sozinhos, levar adiante ações criminais, só pelo prazer de praticá-las. Eles fizeram isso no marco da implementação de planos econômicos muito direcionados, sob a coordenação dos Estados Unidos e apoiados em uma doutrina de segurança nacional. Essa espoliação das economias de nossos países foi sustentada pela ação repressiva e persecutória por parte das ditaduras.

Carta Maior: Em que consiste precisamente o ponto de vista do Constitucionalismo Social para esses temas?

RC: A prioridade dada à busca da garantia de direitos tem a ver também com a forma pela qual a riqueza é distribuída em nosso país e a forma pela qual se tem acesso à totalidade de direitos. Esse é o ponto de vista do Constitucionalismo social, que considera que os direitos humanos não podem ser dissociados um do outro. A Argentina é um dos cinco países que ratificou o Protocolo Facultativo do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Esse pacto está baseado em quatro pilares – acesso à habitação, à educação, à saúde e ao trabalho -, a partir dos quais se pode demandar judicialmente os Estados para que cumpram e garantam esses direitos. Essa é a concepção que temos sobre a distribuição da riqueza em nosso país.

Então, respondendo sua pergunta, o Constitucionalismo social que está sendo implementado nestes países latino-americanos está diretamente relacionado com um processo distributivo de garantia essencial de direitos que é, em última instância, o que articula a garantia da totalidade de direitos em nossa sociedade.

Carta Maior: Na Argentina, os militares saíram do poder muito desmoralizados e enfraquecidos politicamente, tanto pelo que aconteceu na Guerra das Malvinas, quanto pela crise econômica na qual acabaram mergulhando o país. Aqui no Brasil, ao contrário, os militares saíram relativamente ilesos e hoje ainda tem uma força política grande o suficiente para resistir a uma iniciativa como a Comissão da Verdade. Na sua avaliação, a Corte Interamericana da OEA tornou-se um caminho para superar essa barreira imposta pelos militares e seus aliados civis no Brasil?

RC: Creio que os processos de conhecimento da verdade, de construção da memória e da justiça são processos inexoráveis para nossas sociedades. Não há como impedir que a sociedade saiba a verdade, que saiba o que aconteceu com as pessoas que estão desaparecidas, quem foram os responsáveis. Sem nenhuma dúvida, os instrumentos internacionais, como são a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, têm um papel sumamente importante. Quando ratificamos um pacto ou um tratado internacional, estamos assumindo a responsabilidade perante estes organismos de seguir, por exemplo, as recomendações das sentenças que são proferidas por eles. Para isso, obviamente, é necessário o conhecimento e o esclarecimento do conjunto da população a respeito de seus direitos. Quando falamos de reparação por parte do Estado, estamos falando que a reparação não é só para as vítimas, mas também para o conjunto da sociedade. E isso é assim para que se possa construir uma sociedade com maior qualidade democrática.

A Argentina teve não somente a intervenção da Comissão Interamericana e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, mas também a aplicação da justiça universal através das ações do juiz Baltasar Garzon, na Espanha. Esses crimes que queremos esclarecer devem ser considerados como crimes contra a humanidade e, assim, devem ser perseguidos pela totalidade da comunidade internacional. Isso é o que aconteceu na Espanha, o que condicionou fortemente o próprio funcionamento do poder Judiciário em nosso país. O Judiciário avaliou que os crimes que haviam sido cometidos na Argentina deviam ser julgados na Argentina e não em outra jurisdição. Esse elemento também foi fundamental para romper o cerco de impunidade.

É disso que viemos tratar nesse encontro em Porto Alegre que reúne os países da região, parlamentares, procuradores, organizações de direitos humanos e investigadores, debatendo como podemos nos ajudar para romper esse cerco de impunidade em cada um de nossos países. Isso para nós é uma obrigação.

A Argentina é, claramente, o país com o processo mais avançado nesta direção. Queremos contar nossos acertos e fracassos e transmitir as formas pelas quais podemos colaborar para obter essas demandas que consideramos essenciais à democracia. A nossa presidenta da República disse que se os crimes de lesa humanidade não fossem resolvidos na Argentina, o país seria uma sociedade pré-democrática. Na Argentina foi possível reverter um processo de impunidade, no marco do exercício estrito da justiça. Não houve nenhum ato de vingança pessoal nem se fez justiça pelas próprias mãos. Esperou-se pacientemente que a Justiça resolvesse os casos. E quando houve absolvição de alguns responsáveis por crimes, respeitou-se a decisão da Justiça. Esse foi um ato de profunda maturidade do povo argentino.

Os nossos estados devem implementar não somente uma política de memória em relação aos crimes, mas sim para formar e capacitar nossos agentes públicos, educar nossas crianças e adolescentes para a construção do verdadeiro “nunca mais”, que é saber que devemos respeitar irrestritamente o funcionamento democrático em cada um de nossos países e que devemos garantir integralmente os nossos direitos humanos.

Eu tenho um olhar otimista sobre esse quadro. A Argentina começou esse processo de justiça a partir da busca pela verdade. O caminho foi a busca da verdade. Isso desencadeou o resto das ações que acabaram dando início aos julgamentos dos genocidas. Tenho uma visão esperançosa sobre o debate que está ocorrendo no Brasil, no Uruguai, no Paraguai e também no Chile. Parece-me que temos um olhar comum, uma experiência compartilhada comum, consequências da ação do terrorismo de Estado muito similares e, em função disso, devemos ser atores que articulem a reparação que os estados devem fazer. O que não podemos é seguir deixando que as vítimas sejam quem toque isso adiante. Os estados devem assumir a responsabilidade por esse processo.

Carta Maior: O senhor observou que os militares argentinos, assim como ocorreu no Brasil e em outros países sulamericanos, não deram o golpe e cometeram todos os crimes que cometeram simplesmente por que foram movidos por um desejo sádico. Eles tinham uma conexão com setores econômicos civis da sociedade. Há um movimento na Argentina para responsabilizar os representantes de empresas e de setores sociais que apoiaram e foram cúmplices do golpe e de ditadura?

RC: Sem dúvida alguma. Nós dizemos que a ditadura na Argentina foi uma ditadura civil-militar. Isso significa que poderosos grupos econômicos, que denominamos de oligarquia argentina, foram enormemente beneficiados, fundamentalmente a partir da proposta de endividamento feita pelos Estados Unidos durante as décadas de 70 e 80. Neste período, a dívida argentina passou de 7 bilhões de dólares para 40 bilhões de dólares, sem que nenhum investimento fosse feito no país. Foram transferências diretas de recursos aos grupos econômicos mais concentrados. O ministro da Economia da ditadura civil-militar foi Martínez de Hoz, um integrante das direções das empresas mais importantes de nosso país. Mas não foi somente isso que aconteceu. Esses grupos também foram beneficiários econômicos a partir da aplicação do terrorismo de Estado. A implementação do seu programa econômico precisava que as organizações sindicais e sociais fossem desmanteladas.

Além disso, eles foram partícipes diretos da prática de crimes contra a humanidade. Temos o exemplo da empresa Ford que manteve, em sua fábrica situada nos arredores de Buenos Aires, um centro clandestino de detenção, onde os delegados sindicais dessa fábrica foram torturados. O mesmo ocorreu com a empresa Mercedes Benz. O mesmo ocorreu com a principal empresa açucareira argentina, que é a empresa Ledesma, que utilizou a estrutura da empresa para o sequestro de mais de 300 pessoas. Há processos judiciais em curso onde representantes dessas empresas estão diretamente envolvidos. O diário mais importante da Argentina, o Clarín, adquiriu, junto com outro jornal importante, La Nación, a empresa Papel Prensa, a partir do sequestro e da tortura dos proprietários dessa empresa que produz papel para jornais. Ou seja, temos uma enorme quantidade de ações judiciais onde há o envolvimento de empresários em crimes de lesa humanidade.

Nós não acreditamos que os militares atuaram de uma maneira perversa e diabólica para levar adiante uma ação sem sentido. Eles fizeram o que fizeram para gerar terror na população e poder implementar esse processo de transferência de recursos econômicos de um país periférico para uma potência como os Estados Unidos e também para realizar uma transferência econômica interna, dos setores populares para os setores concentrados da economia, o que provocou a devastação do aparato produtivo do país.

Carta Maior: Há aí, sem dúvida, um outro traço em comum às ditaduras que tivemos em nossos países, a participação de grupos empresariais, entre eles grandes grupos de comunicação. Essa é uma outra área onde está ocorrendo uma profunda mudança na Argentina a partir da aprovação da Lei de Medios. Qual o estágio atual desse debate?

RC: O que está acontecendo na Argentina é que se questionou a hegemonia comunicacional do grupo Clarín, que possui não somente o diário de maior circulação no país, mas também cerca de 70% do serviço de televisão a cabo (em algumas regiões chega a 100%) e mais de 270 emissoras de rádio espalhadas por praticamente todo o território argentino. A situação da comunicação do país foi tema de debate e se sancionou a Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual, que democratiza o acesso à informação, a possibilidade de informar e de ser informado. Essa lei foi aprovada dentro do estrito marco dos direitos humanos, garantindo a democratização da palavra, o conhecimento das realidades locais e regionais. Isso significou, sem dúvida, mexer com o que significa hoje o epicentro das novas estruturas de poder.

Antes se utilizava as estruturas militares para debilitar um governo; hoje se utilizam os meios de comunicação audiovisuais concentrados, que buscam condicionar os governos a partir da difusão e da tergiversação da informação. Isso ocorre em muitos países latino-americanos. Há, praticamente, uma matriz comum. Na Venezuela, essa estrutura midiática provocou um golpe de Estado. Foram fatos extremamente graves.

Para nós, leis de comunicação que garantam a diversidade e a multiplicidade de vozes é a base essencial de onde devemos partir para discutir o que significa a democratização da comunicação. Isso significa também expor esses grupos midiáticos concentrados que manejam a informação pública segundo seus interesses particulares. Eles foram sócios diretos das ditaduras e hoje são sócios de grupos econômicos concentrados para gerar instabilidade em nosso país.

Nós estamos discutindo muito seriamente a responsabilidade que cabe aos meios de comunicação, por exemplo, sobre a tergiversação de informações econômicas para gerar condições de instabilidade econômica em nosso país.

Acreditamos que isso tem a ver com uma responsabilidade de caráter penal, pois não se pode mentir, tergiversar, para provocar desestabilização ou buscar vantagens econômicas. Esse é um debate muito rico. A Lei de Serviços de Comunicação Audiovisual possibilita que organizações sociais, sindicatos, universidades e os próprios governos estaduais e municipais tenham canais de rádio e TV. Isso abre o panorama para que se tenha a multiplicidade de vozes necessária, reproduzindo nos meios de comunicação a diversidade da realidade que vivemos e não o olhar de uma empresa que tenta condicionar nosso olhar sobre a realidade que vivemos.

O capitalismo e as raízes da desigualdade

Fred Goldstein

Fred Goldstein 
O movimento “Occupy Wall Street” (OWS) fez da desigualdade na sociedade capitalista uma questão que pôs os ricos na defensiva, pelo menos em público. O aumento da desigualdade nos últimos 30 anos e especialmente na última década tem sido comentado ao longo dos anos em vários meios por analistas económicos e mesmo alguns políticos. Contudo, antes do movimento “Occupy Wall Street” levantar o slogan do 1% contra os 99%, esta condição era completamente pacífica e meramente observada como um inevitável facto da vida, mesmo que indesejável (a menos que se pertencesse ao 1%).

As desigualdades que deram ao OWS o seu grito de guerra são verdadeiramente obscenas e reminiscentes do fosso entre os monarcas da velha ordem e os servos camponeses.
Por um lado, 50 milhões de pessoas vivem de senhas de refeição, 47 milhões são oficialmente pobres, metade da população é classificada como pobre [i], 30 milhões são desempregados ou subempregados e dezenas de milhar de trabalhadores vivem com baixos salários.
Por outro lado, de 2001 a 2006, os 1% do topo conseguiram 53 cêntimos de cada dólar de riqueza criada. De 1979 a 2006, o décimo superior dos 1% (0,1%, ou seja 300 mil pessoas) conseguiu mais do que os outros 180 milhões de pessoas [ii]. Em 2009, enquanto os trabalhadores estavam ainda a ser dispensados em grande número, os executivos das 38 empresas mais importantes ganhavam um total de 140 mil milhões de dólares.[iii]
Estes números são apenas um reflexo da vasta desigualdade de rendimentos entre por um lado os banqueiros, os corretores e os exploradores das corporações e a massa de pessoas por outro. Tornou-se um escândalo, mas ninguém mexeu uma palha para fazer nada contra isto. Por isso, o movimento “Occupy Wall Street” começou a luta em nome dos 99% contra os 1%. E pegou como fogo.
Como a força motriz fundamental do movimento é a luta contra a obscena desigualdade de rendimentos, os marxistas devem apoiá-lo e participar totalmente na luta. Mas, o marxismo deve também estudar esta questão e dar-lhe uma interpretação de classe.
Podemos começar por perguntar o seguinte: o que significa lutar contra a obscena desigualdade da riqueza?
Significa certamente lutar por impostos para os ricos, usando o dinheiro para ajudar os trabalhadores e os oprimidos a sobreviverem à dureza económica do capitalismo. Ao fim e ao cabo, ser desempregado torna um trabalhador tão desigual quanto é possível sê-lo no capitalismo.
Igualdade dentro da classe operária e desigualdade entre classes
Normalmente, quando pensamos em lutar pela igualdade económica, pensamos na luta de ação afirmativa pelo emprego dos negros, dos latinos, dos asiáticos e dos povos nativos. A luta pela igualdade compreende lutar por salário igual e condições de trabalho iguais às dos brancos.
Implica também lutar por pagar igual por trabalho igual às mulheres trabalhadoras, isto é, terem o mesmo salário dos homens para trabalho comparável. E a luta pela igualdade inclui a luta pela garantia de igualdade económica entre trabalhadores normais e lésbias, gays, bi- ou transsexuais ou travestis.
Pedir a igualdade entre os trabalhadores imigrantes e sem documentos e os trabalhadores nascidos nos EUA, especialmente brancos, é uma componente essencial na construção da solidariedade e do avanço da luta de classe de todos os trabalhadores.
De facto, a luta pela igualdade económica dentro da nossa classe e entre oprimidos e opressores é fundamental para aumentar a solidariedade contra os senhores. Desigualdade e divisão no interior da classe trabalhadora é tanto um problema económico, como um perigoso problema político. Quebra a solidariedade e dá força aos patrões e ao seu governo.
Mas, o problema da desigualdade económica global na sociedade capitalista não é fundamentalmente um problema de desigualdade no interior da nossa classe ou entre a classe média e a classe trabalhadora. O problema fundamental da desigualdade massiva é a desigualdade entre a classe dominante capitalista e todas as outras classes, principalmente a classe trabalhadora multinacional.
A desigualdade entre a classe trabalhadora e a classe capitalista está embutida no sistema e está na raiz da questão. A chamada “excessiva” desigualdade entre a classe dominante e o resto da sociedade está constantemente sob ataque, como deve estar. Mas a desigualdade geral entre a classe dominante e todas as outras classes é tida como natural e raramente questionada.
Desigualdade genética do capitalismo
Esta é devida à maneira como o rendimento é distribuído no sistema do lucro. O rendimento da classe capitalista vem do trabalho não-pago dos trabalhadores sob a forma de lucro ou mais-valia. Tudo o que é criado pelos trabalhadores pertence aos patrões. E tudo o que é criado pelos trabalhadores contém tempo de trabalho não-pago. Os patrões vendem os bens e serviços e obtêm dinheiro pelo tempo de trabalho não-pago dos trabalhadores – é isso o lucro. Guardam parte para si próprios e enriquecem. A outra parte é reinvestida de modo a se tornarem mais ricos no próximo ciclo de produção e venda.
O rendimento dos trabalhadores, pelo outro lado, vem da venda da sua força de trabalho ao patrão, explorador. Os trabalhadores recebem vencimentos ou salários dos patrões. A quantia mantém-se sempre algures dentro da gama do que é necessário para sobreviver. Alguns trabalhadores são pagos um pouco melhor e podem dispor de um certo grau de conforto. Muitos trabalhadores, cada vez mais hoje em dia, conseguem apenas o suficiente para viverem uma vida de austeridade, enquanto outros dificilmente conseguem o suficiente para sobreviverem. Os salários no capitalismo são basicamente o que custa a um trabalhador subsistir e manter a família, de modo que os patrões tenham garantida a próxima geração de trabalhadores para explorarem.
Os salários dos trabalhadores ficam sempre dentro de uma estreita gama, quando comparados com o rendimento dos patrões. Nenhum trabalhador consegue alguma vez ficar rico contando com o seu salário, mesmo que bem pago. Mas, a classe capitalista como um todo fica automaticamente mais rica, mesmo que alguns capitalistas individualmente saiam dos negócios e sejam engolidos. Os patrões reinvestem continuamente o seu capital e mantêm vivo o processo em curso de exploração de cada vez mais trabalho.
Os patrões deixam a sua riqueza pessoal aos filhos, assim como o seu capital. Os descendentes, em regra, tornam-se cada vez mais ricos de geração para geração, enquanto os trabalhadores deixam aos filhos as suas magras posses de geração para geração. Os trabalhadores têm de lutar para manterem o que têm através dos altos e baixos das crises capitalistas e do desemprego cíclico.
Como alcançar a igualdade social e económica nestas circunstâncias?
Neste contexto, para o movimento OWS e todos os outros que sejam pela igualdade genuína, surge a questão de saber por qual igualdade exatamente estão a lutar. Se o objetivo final é a reforma do código fiscal, ou a redução do financiamento empresarial na política, ou a regulação da classe capitalista predadora e dos banqueiros avarentos, então o objetivo final limita-se a uma luta por uma forma de desigualdade menos obscena.
Trata-se certamente de um objetivo progressista e deve ser sempre prosseguido como meio de aliviar os trabalhadores e a massa do povo em geral. Mas, seja qual for a maneira de o fazer, se se limita a luta contra a desigualdade a mantê-la no quadro do capitalismo, isso significa lutar por menos desigualdade, mas também por mantê-la e consenti-la. O sistema de exploração de classe gera a extrema desigualdade entre classes.
Distribuição da riqueza e capitalismo
O facto é que a desigualdade na distribuição é um resultado do sistema de produção pelo lucro. Ora, conforme os marxistas mostram, as relações de distribuição decorrem das relações de produção. O que determina a distribuição da riqueza social é a propriedade privada dos meios de produção e serviços. Nenhuma redistribuição da riqueza no capitalismo, quer através de despesa estatal, quer de acordos com sindicatos ou qualquer outro método, consegue ultrapassar a desigualdade de classe que resulta do direito dos capitalistas a possuírem não só os meios de produção, como todos os produtos da produção.
Neste sentido, é útil uma análise escrita por Karl Marx em 1847. Marx tentava desmontar o argumento de que o trabalho e o capital têm um interesse comum no crescimento do capitalismo. O ensaio “Trabalho assalariado e capital” foi escrito com base em lições a trabalhadores alemães com consciência de classe que primeiro conseguiram organizar-se. Escreveu Marx:
“Vimos portanto que mesmo a situação mais favorável para a classe operária, designadamente o mais rápido crescimento do capital, por muito que melhore a vida material do trabalhador não elimina o antagonismo entre os seus interesses e os do capitalista. Lucro e salário continuam como antes em proporção inversa.
“Se o capital cresce rapidamente, os salários podem crescer, mas o lucro do capital cresce desproporcionadamente mais depressa. A posição material do trabalhador melhorou, mas à custa da sua posição social. O abismo social que o separa do capitalista alargou-se.
“Finalmente dizer que ‘a condição mais favorável para o salário-trabalho é o crescimento mais rápido do capital produtivo’ é o mesmo que dizer: quanto mais depressa a classe trabalhadora multiplicar e aumentar o poder do seu inimigo e a riqueza de quem reina sobre a sua classe, mais favoráveis serão as condições sob as quais será permitido lidar com a multiplicação da riqueza burguesa e com o aumento de poder do capital, contentando-se assim com forjar para si as cadeias douradas pelas quais a burguesia a arrasta no seu caminho.” (Marxist Internet Archive).
Muito do ensaio de Marx é dedicado a mostrar que, independentemente das condições relativas de que os trabalhadores dispõem no sistema de exploração capitalista, quer sejam mais bem ou menos bem pagos e mesmo quando estão em boa posição negocial porque o patrão precisa deles para continuar a aumentar a produção, os trabalhadores perdem constantemente terreno em relação aos capitalistas, cuja riqueza aumenta imensamente. Por isso, está inscrito no próprio sistema de exploração o aumento sistemático da desigualdade entre as classes. Além disso, a classe trabalhadora está na melhor das hipóteses limitada para sempre a tentar “forjar as cadeias douradas pelas quais a burguesia a arrasta no seu caminho.”
Marx então continua, mostrando que a chamada prosperidade dos trabalhadores é uma mentira, porque os patrões utilizam todos os meios para baixarem os ordenados, mesmo nos chamados “bons tempos”.
O capitalismo na era da revolução técnico-científica e da globalização imperialista expandiu-se e evoluiu por saltos e descontinuidades desde os tempos de Marx. As classes trabalhadoras dos países imperialistas estão num caminho descendente, com os salários a baixar. Estão a perder terreno não só em termos relativos, mas também absolutos.
Os trabalhadores já não progridem nem lentamente no seu modo de vida, enquanto os capitalistas continuam em frente. Os salários estão a baixar. As condições estão a piorar. Os patrões arquitetaram uma competição salarial mundial entre os trabalhadores nos centros do capitalismo e as centenas de milhões de trabalhadores dos países de baixos salários. Os patrões usaram a deslocalização associada à tecnologia e à exploração dos trabalhadores imigrantes para promoverem esta competição. O exército global de reserva de desempregados e subempregados aumentou para centenas de milhões. Os trabalhadores estão sob pressão em todos os continentes.
Nos EUA, os salários têm descido desde os anos setenta (Perry L. Weed, “Inequality, the Middle Class & the Fading American Dream” – “Desigualdade, a Classe Média e o Fim do Sonho Americano”). A grande desigualdade que vemos hoje resulta do declínio absoluto dos salários. A parte de leão da nova riqueza vai para os financeiros e os donos das corporações em quantidades crescentes de mais-valia (trabalho não-pago) sob a forma de dinheiro.
É urgente procurar inverter o declínio absoluto das condições do proletariado e dos oprimidos. A luta contra o aumento obsceno da desigualdade tem que continuar e crescer.
A riqueza das empresas cria riqueza pessoal extrema
É importante notar que a obscena desigualdade no rendimento pessoal não é nada comparada com a riqueza das empresas, controlada não pelos 1% mas pela pequena fração deles que se sentam nos gabinetes de diretor dos bancos e das gigantescas corporações transnacionais. Foi a isto que Lenine chamou capital financeiro – o pequeno grupo de grandes empresas que controlam biliões de riqueza empresarial e a maior parte da produção da riqueza mundial.
Um estudo recente mostra que 147 corporações dominam 40% da riqueza empresarial mundial” (“Financial world dominated by a few deep pockets,” “O mundo financeiro dominado por alguns bolsos cheios,” ScienceNews, 24 Set., 2011). A propriedade privada e o controle de uma vasta riqueza financeira e empresarial pelo topo da classe dominante são o que está por detrás da imensa riqueza pessoal concedida aos administradores da lista dos 500 da Fortune e aos ricaços mundiais (grandes administradores e grandes acionistas do capital e da finança).
A questão é então: vamos parar a luta para a redução da desigualdade no capitalismo, vamos lutar para ajudar a forjar as “cadeias douradas” com as quais o capital arrasta o trabalho, ou vamos levar a luta contra a desigualdade até às últimas consequências e lutar para quebrar as cadeias da dominação de classe de uma vez? A desigualdade entre classes só pode ser abolida libertando-nos da classe capitalista de uma vez e do sistema de exploração sobre o qual toda a obscena riqueza está erigida.
[i] “Census data: Half of U.S. poor or low income,” [“Dados do censo: metade dos americanos são pobres ou de baixo rendimento”] Associated Press, Dez. 15.
[ii] Jacob S. Hacker e Paul Pierson, “Winner-Take-All Politics” [“A política do quem-ganha-apanha-tudo”] (New York: Simon & Schuster, Kindle Edition, 2010), p. 3.
[iii] Perry L. Weed, “Inequality, the Middle Class & the Fading American Dream,” [“Desigualdade, a Classe Média e o Fim do Sonho Americano”] Economy in Crisis online, Fev. 12, 2011.
Próxima 2ª Parte: Como a natureza da distribuição da riqueza decorre do modo de produção e Controle da riqueza empresarial: a fonte de riqueza pessoal extrema.
Extraído do anexo do próximo livro “Capitalism at a Dead End” [“O Capitalismo num Beco sem Saída”] de Fred Goldstein. Goldstein é também autor de “Low-Wage Capitalism” [“Capitalismo dos Pobres”]
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Tradução: Jorge Vasconcelos

sábado, 7 de abril de 2012

Os movimentos sociais e os processos revolucionários na AL: uma crítica aos pós-modernistas


070412_AL-pos-modernaPCB - [Edmilson Costa] Os anos 90 do século passado e os primeiros dez anos deste século foram marcados por intenso debate entre as forças de esquerda sobre o papel dos movimentos sociais, das minorias, das lutas de gênero e das vanguardas políticas nos processos de transformação econômica, social e política da sociedade. Colocou-se na ordem do dia a discussão sobre novas palavras de ordem, novos agentes políticos e sociais, novas formas de luta, novas concepções sobre a ação prática política.

Esses temas e concepções ocuparam o vazio político nesse período em funções de uma série de fenômenos que ocorreram na década de 80 e 90, como a queda do Muro de Berlim, o colapso da União Soviética e dos países do Leste Europeu, o refluxo do movimento sindical, a redução das lutas operárias nos principais centros capitalistas, a perda de protagonismo dos partidos revolucionários, especialmente dos comunistas,além da ofensiva da ideologia neoliberal em todas as partes do mundo, sob o comando das forças mais reacionárias do capital.
A conjuntura de derrota das forças progressistas favoreceu a todo tipo modismo teórico e fetiche ideológico. Sob diversos pretextos, certas forças políticas, inclusive alguns companheiros de esquerda, começaram a questionar a centralidade do trabalho na vida social, o papel dos partidos políticos como vanguarda dos processos de transformações sociais e políticas, a atualidade da luta de classes como instrumento de mudança da história e o próprio socialismo-comunismo como processo que leva à emancipação humana.
Esse movimento teórico e político envolveu forças difusas, mas influentes junto à juventude e vários movimentos sociais. O objetivo era desconstruir o discurso dos partidos políticos revolucionários, do movimento sindical e do próprio marxismo, como síntese teórica da revolução. Para estas forças, os discursos de temas abrangentes, como a igualdade, o socialismo, a emancipação humana, os valores históricos do proletariado, as soluções coletivas contra a opressão humana, eram coisa do passado e produto de um mundo que já existia mais.
No lugar desses velhos temas, tornava-se necessário colocar um novo discurso, como forma de forma a reconhecer a fragmentação da realidade e do conhecimento, a constatação da diferença, a emergências de novos sujeitos sociais, com características, valores e reivindicações específicas, como os movimentos sociais, de gênero, raça, etnia, etc, e novas formas de formas de luta, inclusive com renúncia à tomada do poder.
O condensamento desse ecletismo conservador, dessa matriz teórica diluidora, pode ser expresso no que se convencionou chamar de pós-modernismo. Essa é a fonte teórica inspiradora de todos os modismos teóricos e fetiches que se tornou moda as duas últimas décadas. Quais são os principais supostos teóricos dos pós-modernistas, que tanta influência tiveram nesses anos de vazio político? Vamos nos ater a três vertentes fundamentais que norteiam os fundamentos dessa corrente teórica.
1) O fim da centralidade do trabalho. Um dos temas mais destacados pelos pós-modernistas é o fato de que as tecnologias da informação, a reestruturação produtiva e a inserção acelerada de ciência no processo produtivo tornaram obsoleto o conceito de classe operária e proletariado, até mesmo porque esses atores estão se tornando residuais num mundo globalizado onde impera a robótica, a internet e a informática avançada. Alguns desses teóricos chegaram a dar adeus ao proletariado, que seria um conceito típico da segunda revolução industrial. Prova disso, seria a constatação de que a classe operária está diminuindo em todo o mundo e, por isso mesmo, perdeu o protagonismo para outros movimentos emergentes no capitalismo globalizado.
Os teóricos pós-modernistas se comportam como o caçador que vê apenas as árvores mas não consegue enxergar a floresta. Olham o mundo a partir de uma perspectiva da Europa ou Estados Unidos. Por isso, não conseguem compreender que o capital possui uma extraordinária mobilidade, em função da busca permanente por valorização. Por isso, são incapazes de perceber que o proletariado está crescendo de maneira expressiva em termos mundiais, com o deslocamento de milhares de indústrias dos EUA e da Europa para a Ásia, processo que está incorporando ao mundo do trabalho centenas de milhões de trabalhadores na China, na Índia e em toda a Ásia, num movimento que está mudando a conjuntura mundial.
Não conseguem entender que o próprio capitalismo é uma contradição em processo, pois quanto mais se moderniza, quanto mais insere ciência na produção, mais amplia sua composição orgânica e, consequentemente, mais pressiona as taxas de lucro para baixo. Por isso, o capitalismo não pode existir sem seu contraponto, o proletariado. Se o capitalismo automatizasse todas suas fábricas o sistema entraria em colapso, pois os robôs são até mais disciplinados que os seres humanos, são capazes de trabalhar sem descanso, não reivindicam salário, nem fazem greve, mas também tem seu calcanhar de Aquiles: não consomem. Se não tem consumidores, os capitalistas não têm para quem vender suas mercadorias. Ou seja, antes de uma automatização total, o sistema entraria em colapso em função de suas próprias contradições.
2) O fim da centralidade da luta de classes. Outro dos argumentos dos teóricos pós-modernos é a alegação de que a luta de classes é coisa do passado. Afinal, dizem, se o proletariado está se reduzindo aceleradamente, não existe mais identidade de classe e, portanto, não teria sentido se falar em luta de classes. Nessa perspectiva, dizem, a reestruturação produtiva pode ser considerada uma espécie de dobre de finados que veio sepultar os velhos agentes do passado, como o movimento sindical. Prova disso, é que os sindicatos perderam o protagonismo e agora agonizam em todo o mundo. E o principal representante teórico do mundo do trabalho, o marxismo, também estaria ultrapassado, em função de sua visão monolítica do mundo.
Novamente, os teóricos pós-modernistas também não compreendem a história e confundem sua submissão ideológica à ordem capitalista com a realidade dos trabalhadores. A luta de classes sempre existiu desde que as classes se constituíram na humanidade e continuará sua trajetória enquanto existir a exploração de um ser humano por outro. Não porque os marxistas querem, mas porque a realidade a impõe. Nos tempos de refluxo as lutas sociais diminuem, parece que os trabalhadores estão passivos e os capitalistas imaginam que conseguiram disciplinar para sempre os trabalhadores.
Nessa conjuntura, o discurso do fim da luta de classe, da passividade dos trabalhadores, chega a influenciar muita gente, afinal, quem não tem uma perspectiva histórica do mundo se atém apenas à superfície dos fenômenos, à aparência das coisas. Mas nos momentos de crise do capitalismo, esse discurso se torna inteiramente inadequado, entra em choque com a realidade, uma vez que a crise coloca a luta de classes naordem do dia com uma atualidade extraordinária, para desespero daqueles que imaginavam o seu fim.
Se observarmos a realidade atual, onde o sistema capitalismo enfrenta sua maior crise desde a Grande Depressão, poderemos facilmente constatar e emergência da luta de classes em praticamente todas as partes do mundo. É só observar as insurreições no Oriente Médio, na África, as lutas na América Latina, as greves e mobilizações na Europa. Além disso, a crise também tornou o marxismo mais atual do que nunca. Mesmo os capitalistas estão lendo O Capital para tentar entender o que está ocorrendo no mundo.
3) As vanguardas políticas não têm mais nenhum papel a desempenhar no mundo globalizado. O terceiro dos argumentos-chave dos teóricos pós-modernistas é o fato de os partidos revolucionários, especialmente os comunistas, não têm mais nenhum papel a desempenhar no mundo atual. A ação política agora deve ser comandada pelos movimentos sociais, pelos movimentos de gênero, minorias étnicas, de raças, sexuais, etc, que são vítimas de "opressões específicas". Isso porque os partidos seriam organizações autoproclamatórias, autoritárias, portadoras de um fetiche autorealizável, que é a revolução socialista.Essas instituições, portadoras de um discurso utópico de emancipação humana, estão também definhando em todo o mundo porque não estariam entendendo a realidade do mundo globalizado.
Mais uma vez os teóricos pós-modernistas não conseguem compreender a totalidade da vida social. Por isso, vêem o mundo sem unidade, fragmentado e disperso. Não entendem que, por trás da "opressãoespecífica" que atinge os movimentos sociais e de gênero, etnia, raça, sexual, está o grande capital apropriando a mais-valia de todos, independentemente de raça, sexo ou orientação religiosa . Não compreendem que os movimentos, por sua própria natureza, têm limites institucionais e de representatividade.
Um sindicato, por mais combativo que seja, deve representar os interesses dos trabalhadores que representa. Da mesma forma que uma entidade estudantil, uma organização de moradores, de mulheres ou dehomosexuais tem como objetivo defender os interesses específicos de seus representados, atuam nos limites institucionais da ordem burguesa. Somente o partido político revolucionário, que se propõe a derrotar a ordem capitalista e que junta em suas fileiras todos esses segmentos sociais, possui condições para entender a totalidade da luta política e lançar propostas globais para a transformação da sociedade.
A prática das lutas sociais
Se observarmos as lutas sociais que foram realizadas nos últimos anos, poderemos constatar facilmente que grande parte delas foram derrotadas exatamente porque não existiam vanguardas com capacidade de conduzir e orientar essas lutas para a radicalidade da luta de classes e a emancipação do proletariado. Não se trata aqui de negar a importância das lutas específicas ou dos movimentos sociais. Pelo contrário, são fundamentais para qualquer processo de mudança, servem também como aprendizado da luta dos trabalhadores, mas deixadas por si mesmas, apenas com seu conteúdo espontaneísta, não tem condições de realizaras transformações da sociedade e terminam se esvaziando e sendo derrotadas pelo capital.
O teatro de operações é mais ou menos o seguinte: após um momento de euforia e mobilização os movimentos sociais são capazes de realizar proezas impressionantes, como desacreditar a velha ordem, desafiar as classes dominantes, mas num segundo momento a euforia se esgota em si mesma sem atingir os objetivos por falta de perspectivas. A América Latina é um importante posto de observação para constatarmos essahipótese, mas também em várias partes do mundo os exemplos são férteis para verificarmos a necessidades de vanguardas políticas.
A Bolívia, por exemplo, foi palco de várias insurreições populares contra governos neoliberais. As massas se sublevaram, foram às ruas aos milhões, derrubaram os governos conservadores, mas o máximo que conseguiram foi eleger um presidente progressista que é fustigado a todo momento pelo capital e não consegue realizar plenamente nem o próprio programa a que se propôs no período das eleições.
No Equador, ocorreram também várias insurreições populares. Em uma delas, os movimentos conquistaram o poder e o entregaram a um militar que depois os traiu e agora é um personagem conservador na política do País. Posteriormente, no bojo de outra insurreição, conseguiram eleger um presidente progressista, mas este não consegue implementar um programa transformador porque o capital não lhe dá trégua. Recentemente quase foi deposto por um setor militar sublevado.
Na Argentina, em função da crise econômica herdada do governo neoliberal de Menem, as massas também se sublevaram aos milhões em várias regiões do País. Em um período curto o País mudou três vezes de presidente. O resultado da sublevação popular foi a eleição de Nestor Kirchner e, posteriormente, de sua companheira, Cristina Kirchner. Nesses anos de poder, os Kirchner também não realizaram nenhuma mudança de fundo. O capitalismo seguiu seu curso como se nada tivesse acontecido.
Mais recentemente, duas grandes insurreições populares derrubaram os governos conservadores da Tunísia, do Egito e do Iêmen. Milhares de pessoas se sublevaram durante vários dias, centenas de pessoas morreram, os ditadores deixaram o poder, mas os movimentos sociais, sem vanguarda política, não conseguiram seus objetivos. Setores da burguesia local encabeçaram a formação de novos governos e os trabalhadores mais uma vez deixaram escapar de suas mãos a revolução.
No Brasil, um grande movimento social, o Movimento dos Sem Terra (MST) enfrentou com bravura os governos neoliberais, tendo como norte a bandeira da reforma agrária. Organizou um movimento original e de massas, com base social em todo o País, especialmente entre a população mais pobre da cidade e do campo. O MST ocupou fazendas dos latifundiários, realizou formação de grande parte dos seus quadros e até mesmo conseguiu construir uma universidade popular para formação permanente dos seus militantes.
No entanto, o desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro e a emergência do agronegócio criaram uma nova conjuntura no campo brasileiro, onde as relações de produção passaram a se darpredominantemente entre capital e trabalho. Essa conjuntura, aliada ao programa de compensação social do governo Lula, o "Bolsas Família", uma programa de transferência de renda para a população mais pobre, levou o MST a uma encruzilhada.
Ou seja, a realidade mudou radialmente no campo brasileiro, mas a razão de ser do MST era a reforma agrária. Por isso, o movimento, que se tornara um dos símbolos de luta contra o neoliberalismo e, por isso mesmo obteve simpatia mundial, agora está perdendo protagonismo. Os acampamentos do MST foram reduzidos para menos da metade e o movimento vive grandes dificuldades estratégicas. Afinal, se a maioria dos trabalhadores está nas cidades, se o capitalismo hegemonizou as relações de produção no campo e subordinou a pequena agricultura à lógica do capital, torna-se difícil a sobrevivência no longo prazo de um movimento que tem apenas a bandeira da reforma agrária como luta estratégica.
A condensação mais expressiva da teoria movimentista foi o Fórum Social Mundial (FSM). Por ocasião do primeiro FSM, em Porto Alegre, parecia que todos tinham encontrado a fórmula ideal, a varinha mágica,para as novas lutas sociais. Milhares de lutadores de todo o mundo convergiram para o Rio Grande do Sul para se fazer presentes no lançamento da nova grife da luta mundial autônoma. Foi um sucesso extraordinário e um contraponto ao Foro de Davos, onde os capitalistas tramavam novas estratégias para dominação do mundo.
O sucesso de público e de mídia do FSM parecia ter enterrado de vez a noção de vanguarda política. Agora seriam os movimentos sociais, os movimentos de gênero, etnia, das mulheres, os movimentos sociais que doravante comandariam as lutas no mundo. Adeus partidos políticos, adeus movimento sindical, adeus velhos atores sociais da segunda revolução industrial. Agora eram os movimentos difusos, sem centralidade política, inteiramente autônomos, livres de dogmas e ideologias ultrapassadas que iriam provar ao mundo a nova realidade da luta social e política.
Muita gente sinceramente acreditou que o FSM poderia ser a fórmula mágica, o contraponto contemporâneo ao capital, o substituto das velhas vanguardas políticas e seu discurso autoproclamatório. Mas a realidade aos poucos foi colocando no devido lugar o modismo movimentista. Com o tempo, o FSM foi perdendo fôlego, foi se esvaziando, até o ponto em que hoje ninguém mais acredita que possa ser alternativa a coisa nenhuma. Mas uma vez a vida provou que os movimentos por si só não têm condições de mudar a sociedade, é necessário a vanguarda política para conduzir os processos de transformação.
O significado do pós-modernismo e as lutas sociais
Em outras palavras, a ideologia pós-modernista é responsável por grande parte das derrotas dos movimentos sociais nestas duas décadas, não só porque esse modismo teórico influenciou parte da juventude e lideranças dos movimentos sociais, como também porque levou à frustração milhares de lutadores sociais. Isso porque as lutas fragmentadas geralmente se desenvolvem de maneira espontânea. No início tem uma trajetória de ascenso, empolga milhares de pessoas, mas logo depois o movimento vai enfraquecendo até ser absorvido pelo sistema.
Em outras palavras, o pós-modernismo é o fetiche ideológico típico dos tempos de neoliberalismo e representa a ideologia pequeno-burguesa da submissão sofisticada à ordem do capital. Mas essa ideologia carrega consigo uma contradição insolúvel: no momento em que o capital mais se globaliza, com a internacionalização da produção e das finanças, é justamente neste momento que os pós-modernos pregam a fragmentação da realidade, a setorização das lutas sociais, a especificidade dos combates de gênero, etnia, raça, sexo, etc. Só mesmo quem não quer mudar a ordem capitalista pensa desse jeito.
Na verdade, todos que seguem esse ritual teórico, de maneira direta ou indireta, estão abrindo mão de um projeto emancipatório e escondem sua impotência mediante um discurso cheio de abstrações sociológicas, mas muito conveniente para o capital. Por isso, combatem as lutas gerais, para fragmentá-las em lutas específicas, que não afrontam abertamente o sistema dominante.Trata-se do verejo da política fantasiado de moderno.
Esses setores cumpriram, nos últimos 20 anos e ainda cumprem até hoje, um papel muito especial na luta ideológica atual: eles são a mão esquerda do social-liberalismo capitalista. Influenciam as gerações mais jovens, desenvolvem um discurso com aparência de modernidade, influem na organização das lutas sociais. Com seu discurso eclético e fatalista, cheio de senso comum, desorientam setores importantes da sociedade no que se refere à ação política e, na prática, ajudam a organizar, mesmo que indiretamente, a submissão de vários setores sociais à ordem capitalista e aos valores do mercado.
Essas duas décadas de experiências fragmentadas nos levam à conclusão de que, mais do que nunca, as vanguardas revolucionárias têm um papel fundamental no processo de transformações sociais. São elas exatamente que podem conduzir e orientar os vários movimentos sociais com uma plataforma estratégica de emancipação da humanidade, o que significa derrotar o imperialismo e o capitalismo e transitar para a construção da sociedade socialista.

Edmilson Costa é membro da Comissão Política do Comitê Central do PCB

sexta-feira, 6 de abril de 2012

Andrei Tarkovski, 80 anos: O poeta do cinema foi também um pensador da arte

Por Josias Teófilo*no SUL21

Há 80 anos nascia o cineasta soviético Andrei Tarkovsky (1932-1986). Chegou ao mundo depois das revoluções vanguardistas que repensaram o papel do artista na sociedade. Na década de 1960, quando ele realizou seus dois primeiros longas-metragens, as concepções sobre a arte já estavam num processo de transformação profunda. Os pensadores da arte contemporânea idealizaram o artista num lugar totalmente diverso do concebido anteriormente, desmistificando a sua atuação na sociedade e ressaltando o seu aspecto intelectual e político.
Tarkovsky não compartilhava dessas visões advindas da arte contemporânea, seus filmes inicialmente e seus escritos, em especial o livro Esculpir o Tempo, documentaram isso. Com relação à vanguarda russa, inclusive o cinema de Sergei Eiseinstein, a obra de Tarkovsky e sua concepção artística parecem não só se diferenciar mas por vezes se opor diametralmente – como no debate sobre a montagem. Suas referências mais profundas no seu país são a literatura de Tolstoi e Doistoiévski, do século anterior. O cinema ele naturalmente defende como obra autoral.
Esta defesa não é exclusividade de Tarkovsky, porém nele essa autoria tem um componente bastante diverso: ela se apresenta como um dom espiritual. Para ele, o artista é como um demiurgo: “O poeta não usa ‘descrições do mundo’; ele próprio participa da sua criação”, diz ele no seu livro Esculpir o tempo, escrito nos longos espaços de tempo entre a realização dos seus filmes. Foram apenas 7 longas-metragens em toda a sua vida. Ter feito tão poucos filmes – comparado a outros grandes cineastas – não foi uma escolha. A causa foi, principalmente, a dificuldade em realizar o tipo de filme que ele fazia, de caráter profundamente religioso, na União Soviética.
Os longos espaços de tempo entre um filme e outro – em média 5 anos – parecem ter colaborado na densidade dos seus filmes e no grau de reflexão que eles suscintam. Todos os 7 filmes se relacionam profundamente na temática, na forma e nas amplas referências à pintura, literatura, filosofia, etc. Porém, em toda a sua obra, tanto fílmica quanto escrita, um tema é recorrente e crucial: o Sacrifício.
Para ele, a criação artística é um ato de Sacrifício: trata-se de uma doação, que certamente não é material, intelectual ou mesmo emocional. O Sacrifício configura-se como algo espiritual – palavra que ele usa constantemente nos seus escritos. Essa espiritualidade, entretanto, não é religiosa no sentido corrente. Tarkovsky diz que as religiões, tal como se apresentam hoje, “não são capazes de saciar a sede de Absoluto que caracteriza o homem”.
A espiritualidade para ele se concretiza na idéia de Amor, a absoluta antítese de pragmatismo e fundamento do Sacrifício. Talvez sejam essas duas idéis complementares, o Sacrifício e o Amor, que diferenciam o pensamento e a obra de Tarkovsky do seus contemporâneos, tornando sua mensagem ao mesmo tempo atual e profundamente relacionada com a grande arte do passado – o que nos faz refletir sobre a possibilidade de existirem características perenes no fenômeno artístico ao longo dos tempos.

* Josias Teófilo é mestrando em Filosofia pela Universidade de Brasília com o tema A cumplicidade espiritual: o papel social do artista segundo Andrei Tarkovski no filme Andrei Rublev.

Enquanto isso, os Tuaregues...




Em parte o que está acontecendo no Mali é uma consequência da guerra da Líbia. Os tuaregues eram, em grande parte, aliados de Kadafi. Depois da queda do líder líbio, muitos decidiram deixar a Líbia, temendo represálias por parte do novo governo ou de outros segmentos da população. E levaram consigo suas armas.


Quem não se lembra dos tuaregues? Os da minha geração lembram. Eles estavam no filme Beau Geste (1939), direção de William Wyler, com Gary Cooper, Ray Milland, Susan Hayward, Robert Preston e grande elenco. Neste filme, que, na verdade, foi filmado não no Saara, mas nas dunas do sul da Califórnia, os tuaregues, cavalgando loucamente como índios norte-americanos (os da tribo de Hollywood), tentavam tomar o forte de Zinderneuf, sem resultado. Gary Cooper, Ray Milland e os demais resistiam bravamente até o último homem, mas sem entregar o forte. Só Ray Milland sobrava, para voltar melancólica, mas gloriosamente, para casar com Susan Hayward, que ficara o tempo todo à sua espera, tocando piano no salão de Brandon Abbas, na Inglaterra.

Pois agora os tuaregues saíram a fazer estrepolias novamente, mas não nas telas de cinema, nem no sul da Califórnia, mas no Saara mesmo. Nem cavalgam loucamente, mas agem com método e determinação. Já dominam dois terços do território da República do Mali, onde recentemente houve um golpe de estado na capital, Bamako.

Uma revolta de soldados no quartel de Kati, a 10 km. do palácio presidencial, evoluiu em derrubada do governo. O capitão Amadou Sanogo assumiu a liderança da revolta e o controle do governo. O presidente constitucional, Amadou Toumani Touré, está na clandestinidade. Os países vizinhos, do Oeste Africano, exigem que o novo governo – que parece não saber muito bem o que fazer – devolva o poder aos civis. O capitão subitamente promovido a presidente até o momento só fez ganhar tempo: prometeu eleições, mas não mencionou prazo. Diz querer de volta a constituição de 1992 – o que é uma contradição, pois por ela o presidente legal e legítimo é o deposto.

O golpe parece ser decorrência da atuação dos tuaregues, reunidos sob um Movimento Nacional de Libertação do Azawad – nome da região habitada por suas tribos. Essa região transborda o Mali, se espraiando pela Argélia, Líbia, Mauritânia, Líbia, onde vivem os quase 6 milhões de tuaregues que reivindicam um país para si. Ainda não está claro se eles pretendem proclamar a independência do território que já dominam, dois terços do Mali, ao norte, ou se pretendem avançar para a capital e derrubar o(s) governo(s).

O Mali é um dos países mais pobres da África. Seu exército, de 7 mil homens, também é pobre, e essa parece ser uma das razões da revolta. Em parte o que está acontecendo no Mali é uma consequência da guerra da Líbia. Os tuaregues eram, em grande parte, aliados de Muammar Kadafi. Depois da queda e assassinato do líder líbio, muitos decidiram deixar a Líbia, temendo represálias por parte do novo governo ou parte de outros segmentos da população. Levaram consigo suas armas. Acostumados a viver e a lutar no deserto, onde já protagonizaram várias revoltas, passaram a superar o exército em poder de fogo, mobilidade e capacidade militar.

Desde então ocuparam as principais cidades da região: Gao, Kidal e a legendária Timbuktu, a 700 km. da capital.

Por ora as potências ocidentais – a França, em particular, que se envolveu na guerra civil da vizinha Costa do Marfim, derrubando o governo e pondo um de seu agrado na capital, e vive delicado momento eleitoral – não sabem ainda o que fazer. Certamente não vão apoiar os tuaregues; ao mesmo tempo, não podem apoiar do governo “revolucionário” do capitão revoltado; também não se sabe ainda sua avaliação do governo deposto, tido como fraco para liderar suas próprias tropas e enfrentar o inimigo tuaregue ao norte.

De momento, a situação é a de um beco com muitas entradas e nenhuma saída. Uma situação nada incomum nesta África cuja reocupação pelas potências internacionais está em andamento, tanto na prática quanto nos mapas de planejamento.

Flávio Aguiar é correspondente internacional da Carta Maior em Berlim.

Timor Leste: porque o mais pobre é ameaça para o poderoso

por John Pilger 
 
A partilha. O truísmo de Milan Kundera, "a luta do povo contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento", descreve Timor Leste. No dia em que decidi filmar ali clandestinamente, em 1993, fui à loja de mapas Stanfords, no Covent Garden de Londres. "Timor?", disse um assistente de vendas hesitante. Pusemo-nos a examinar prateleiras marcadas Sudeste Asiático. "Desculpe-me, onde é exactamente?"

Após uma pesquisa ele encontrou um velho mapa aeronáutico com áreas em branco assinaladas: "Dados de auxílio incompletos". Nunca lhe fora pedido Timor-Leste, o qual está a Norte da Austrália. Tal era o silêncio que envolvia a colónia portuguesa a seguir à sua invasão e ocupação pela Indonésia, em 1975. Mas nem mesmo Pol Pot conseguiu, proporcionalmente, matar tantos cambodgianos quanto o ditador Suharto, da Indonésia, matou em Timor-Leste.

No meu filme, Morte de uma nação , há a cena de um brinde a bordo de um avião australiano a voar sobre a ilha de Timor. Decorre numa festa e dois homens de fato estão a brindar-se com champanhe. "Isto é um momento histórico único", balbucia um deles, "é verdadeiramente histórico e único". Trata-se de Gareth Evans, ministro dos Negócios Estrangeiros da Austrália. O outro homem é Ali Alatas, o porta-voz principal de Suharto. Passa-se em 1989 e eles estão a fazer um voo simbólico para celebrar a assinatura de um tratado pirata que permitiu à Austrália e às companhias internacionais de petróleo e gás explorarem o fundo do mar ao largo de Timor-Leste. Por baixo deles há vales crivados de cruzes negras onde aviões caça fornecidos por britânicos e americanos estraçalharam pessoas em bocados. Em 1993, o Comité de Assuntos Estrangeiros do Parlamento australiano relatou que "pelo menos 200 mil", um terço da população, havia perecido sob Suharto. Graças a Evans, em grande parte, a Austrália foi o único país ocidental a reconhecer formalmente a conquista genocida de Suharto. As forças especiais assassinas da Indonésia, conhecidas como Kopassus, foram treinadas na Austrália. O prémio, disse Evans, eram "ziliões" de dólares.

Ao contrário de Muammar al-Kaddafi e Saddam Hussein, Suharto morreu pacificamente em 2008 cercado pela melhor ajuda médica que os seus milhares de milhões podiam comprar. Ele nunca correu o risco de ser processado pela "comunidade internacional". Margaret Thatcher disse-lhe: "Você é um dos nossos melhores e mais válidos amigos". O primeiro-ministro australiano Paul Keating encarava-o como uma figura paternal. Um grupo australiano de editores de jornais, conduzido pelo veterano servidor de Rupert Murdoch, Paul Kelly, voou a Djacarta para prestar homenagem ao ditador; há uma foto de um deles a fazer uma reverência.

Em 1991, Evans descreveu o massacre de mais de 200 pessoas por tropas indonésias, no cemitério de Santa Curz, em Dili, capital do Timor-Leste, como uma "aberração". Quando manifestantes colocaram cruzes do lado de fora da embaixada da Indonésia em Canberra, Evans ordenou a sua retirada.

Em 17 de Março, Evans estava em Melbourne para falar num seminário sobre o Médio Oriente e a Primavera Árabe. Mergulhado agora no ocupado mundo dos "think tanks", ele explana acerca de estratégias de grandes potências, nomeadamente a elegante "Responsabilidade de proteger", a qual é utilizada pela NATO para atacar ou ameaçar ditadores arrogantes ou desfavorecidos sob o falso pretexto de libertar seus povos. A Líbia é um exemplo recente. No seminário também estava presente Stephen Zunes, professor de política na San Francisco University, que recordou à audiência o longo e crítico apoio de Evans a Suharto.

Quanto acabou a sessão, Evans, um homem de fusível limitado, atacou Zumes e gritou: "Quem raios é você? De onde raios você saiu?" Disseram a Zumes, confirmou Evans posteriormente, que tais observações críticas mereciam "um soco no nariz". O episódio foi oportuno. A celebrar o décimo aniversário de uma independência que Evans outrora negava, Timor-Leste está nas convulsões da eleição de um novo presidente; a segunda volta da votação é em 21 de Abril, seguida pelas eleições parlamentares.

Para muitos timorenses, com seus filhos malnutridos e atrofiados, a democracia é uma noção. Anos de ocupação sangrenta, apoiada pela Austrália, Grã-Bretanha e EUA, foram seguidos por uma campanha implacável de intimidação por parte do governo australiano para afastar a pequena nova nação da fatia a que tem direito das receitas de petróleo e gás do seu leito marítimo. Tendo recusado reconhecer a jurisdição do Tribunal Internacional de Justiça e a Lei do Mar, a Austrália mudou unilateralmente a fronteira marítima.

Em 2006 foi finalmente assinado um acordo, em grande medida nos termos da Austrália. Logo após, o primeiro-ministro Mari Alkatiri, um nacionalista que enfrentou Canberra e opôs-se à interferência estrangeira e ao endividamento ao Banco Mundial, foi efectivamente deposto naquilo a que chamou uma "tentativa de golpe" por "elementos externos". A Austrália tem tropas de "manutenção da paz" em Timor-Leste e treinou seus opositores. Segundo um documento escapado do Departamento da Defesa australiano, o "primeiro objectivo" da Austrália em Timor-Leste é que os seus militares "tenham acesso" de modo a que possa exercer "influência sobre a tomada de decisões em Timor-Leste". Dos dois actuais candidatos presidenciais, um é Taur Matan Rauk, um general e o homem de Canberra que ajudou a afastar o incómodo Alkitiri.

Um pequeno país independente montado sobre recursos naturais lucrativos e caminhos marítimos estratégicos é objecto de preocupação séria para os Estados Unidos e o seu "vice xerife" em Canberra. (O presidente George W. Bush promoveu realmente a Austrália a xerife pleno). Isso explica em grande medida porque o regime Suharto exigiu tanta devoção dos seus patrocinadores ocidentais. A obsessão permanente de Washington na Ásia é a China, a qual hoje oferece a países em desenvolvimento investimento, qualificação e infraestrutura em troca de recursos.

Ao visitar a Austrália em Novembro, o presidente Barack Obama emitiu outra das suas ameaças veladas à China e anunciou o estabelecimento de uma base dos US Marines em Darwin, bem em frente às águas de Timor-Leste. Ele entende que países pequenos e empobrecidos podem muitas vez apresentar a maior ameaça à potência predatória, porque se eles não puderem ser intimidados e controlados, quem poderá?
O original encontra-se em www.johnpilger.com/...

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