quinta-feira, 12 de abril de 2012

Os movimentos sociais e os processos revolucionários na América Latina: uma crítica aos pós-modernistas

Edmilson Costa*

Edmilson CostaA ideologia pós-modernista é responsável por grande parte das derrotas dos movimentos sociais nestas duas décadas. Não só porque esse modismo teórico influenciou parte da juventude e lideranças dos movimentos sociais, como também porque levou à frustração milhares de lutadores sociais. Isso porque as lutas fragmentadas geralmente se desenvolvem de maneira espontânea. No início tem uma trajetória de ascenso, empolga milhares de pessoas, mas logo depois o movimento vai enfraquecendo até ser absorvido pelo sistema.

Os anos 90 do século passado e os primeiros dez anos deste século foram marcados por intenso debate entre as forças de esquerda sobre o papel dos movimentos sociais, das minorias, das lutas de gênero e das vanguardas políticas nos processos de transformação econômica, social e política da sociedade. Colocou-se na ordem do dia a discussão sobre novas palavras de ordem, novos agentes políticos e sociais, novas formas de luta, novas concepções sobre a ação prática política.
Esses temas e concepções ocuparam o vazio político nesse período em funções de uma série de fenômenos que ocorreram na década de 80 e 90, como a queda do Muro de Berlim, o colapso da União Soviética e dos países do Leste Europeu, o refluxo do movimento sindical, a redução das lutas operárias nos principais centros capitalistas, a perda de protagonismo dos partidos revolucionários, especialmente dos comunistas,além da ofensiva da ideologia neoliberal em todas as partes do mundo, sob o comando das forças mais reacionárias do capital.
A conjuntura de derrota das forças progressistas favoreceu a todo tipo modismo teórico e fetiche ideológico. Sob diversos pretextos, certas forças políticas, inclusive alguns companheiros de esquerda, começaram a questionar a centralidade do trabalho na vida social, o papel dos partidos políticos como vanguarda dos processos de transformações sociais e políticas, a atualidade da luta de classes como instrumento de mudança da história e o próprio socialismo-comunismo como processo que leva à emancipação humana.
Esse movimento teórico e político envolveu forças difusas, mas influentes junto à juventude e vários movimentos sociais. O objetivo era desconstruir o discurso dos partidos políticos revolucionários, do movimento sindical e do próprio marxismo, como síntese teórica da revolução. Para estas forças, os discursos de temas abrangentes, como a igualdade, o socialismo, a emancipação humana, os valores históricos do proletariado, as soluções coletivas contra a opressão humana, eram coisa do passado e produto de um mundo que já existia mais.
No lugar desses velhos temas, tornava-se necessário colocar um novo discurso, como forma de forma a reconhecer a fragmentação da realidade e do conhecimento, a constatação da diferença, a emergências de novos sujeitos sociais, com características, valores e reivindicações específicas, como os movimentos sociais, de gênero, raça, etnia, etc, e novas formas de formas de luta, inclusive com renúncia à tomada do poder.
O condensamento desse ecletismo conservador, dessa matriz teórica diluidora, pode ser expresso no que se convencionou chamar de pós-modernismo. Essa é a fonte teórica inspiradora de todos os modismos teóricos e fetiches que se tornou moda as duas últimas décadas. Quais são os principais supostos teóricos dos pós-modernistas, que tanta influência tiveram nesses anos de vazio político? Vamos nos ater a três vertentes fundamentais que norteiam os fundamentos dessa corrente teórica.
1) O fim da centralidade do trabalho. Um dos temas mais destacados pelos pós-modernistas é o fato de que as tecnologias da informação, a reestruturação produtiva e a inserção acelerada de ciência no processo produtivo tornaram obsoleto o conceito de classe operária e proletariado, até mesmo porque esses atores estão se tornando residuais num mundo globalizado onde impera a robótica, a internet e a informática avançada. Alguns desses teóricos chegaram a dar adeus ao proletariado, que seria um conceito típico da segunda revolução industrial. Prova disso, seria a constatação de que a classe operária está diminuindo em todo o mundo e, por isso mesmo, perdeu o protagonismo para outros movimentos emergentes no capitalismo globalizado.
Os teóricos pós-modernistas se comportam como o caçador que vê apenas as árvores mas não consegue enxergar a floresta. Olham o mundo a partir de uma perspectiva da Europa ou Estados Unidos. Por isso, não conseguem compreender que o capital possui uma extraordinária mobilidade, em função da busca permanente por valorização. Por isso, são incapazes de perceber que o proletariado está crescendo de maneira expressiva em termos mundiais, com o deslocamento de milhares de indústrias dos EUA e da Europa para a Ásia, processo que está incorporando ao mundo do trabalho centenas de milhões de trabalhadores na China, na Índia e em toda a Ásia, num movimento que está mudando a conjuntura mundial.
Não conseguem entender que o próprio capitalismo é uma contradição em processo, pois quanto mais se moderniza, quanto mais insere ciência na produção, mais amplia sua composição orgânica e, consequentemente, mais pressiona as taxas de lucro para baixo. Por isso, o capitalismo não pode existir sem seu contraponto, o proletariado. Se o capitalismo automatizasse todas suas fábricas o sistema entraria em colapso, pois os robôs são até mais disciplinados que os seres humanos, são capazes de trabalhar sem descanso, não reivindicam salário, nem fazem greve, mas também tem seu calcanhar de Aquiles: não consomem. Se não tem consumidores, os capitalistas não têm para quem vender suas mercadorias. Ou seja, antes de uma automatização total, o sistema entraria em colapso em função de suas próprias contradições.
2) O fim da centralidade da luta de classes. Outro dos argumentos dos teóricos pós-modernos é a alegação de que a luta de classes é coisa do passado. Afinal, dizem, se o proletariado está se reduzindo aceleradamente, não existe mais identidade de classe e, portanto, não teria sentido se falar em luta de classes. Nessa perspectiva, dizem, a reestruturação produtiva pode ser considerada uma espécie de dobre de finados que veio sepultar os velhos agentes do passado, como o movimento sindical. Prova disso, é que os sindicatos perderam o protagonismo e agora agonizam em todo o mundo. E o principal representante teórico do mundo do trabalho, o marxismo, também estaria ultrapassado, em função de sua visão monolítica do mundo.
Novamente, os teóricos pós-modernistas também não compreendem a história e confundem sua submissão ideológica à ordem capitalista com a realidade dos trabalhadores. A luta de classes sempre existiu desde que as classes se constituíram na humanidade e continuará sua trajetória enquanto existir a exploração de um ser humano por outro. Não porque os marxistas querem, mas porque a realidade a impõe. Nos tempos de refluxo as lutas sociais diminuem, parece que os trabalhadores estão passivos e os capitalistas imaginam que conseguiram disciplinar para sempre os trabalhadores.
Nessa conjuntura, o discurso do fim da luta de classe, da passividade dos trabalhadores, chega a influenciar muita gente, afinal, quem não tem uma perspectiva histórica do mundo se atém apenas à superfície dos fenômenos, à aparência das coisas. Mas nos momentos de crise do capitalismo, esse discurso se torna inteiramente inadequado, entra em choque com a realidade, uma vez que a crise coloca a luta de classes naordem do dia com uma atualidade extraordinária, para desespero daqueles que imaginavam o seu fim.
Se observarmos a realidade atual, onde o sistema capitalismo enfrenta sua maior crise desde a Grande Depressão, poderemos facilmente constatar e emergência da luta de classes em praticamente todas as partes do mundo. É só observar as insurreições no Oriente Médio, na África, as lutas na América Latina, as greves e mobilizações na Europa. Além disso, a crise também tornou o marxismo mais atual do que nunca. Mesmo os capitalistas estão lendo O Capital para tentar entender o que está ocorrendo no mundo.
3) As vanguardas políticas não têm mais nenhum papel a desempenhar no mundo globalizado. O terceiro dos argumentos-chave dos teóricos pós-modernistas é o fato de os partidos revolucionários, especialmente os comunistas, não têm mais nenhum papel a desempenhar no mundo atual. A ação política agora deve ser comandada pelos movimentos sociais, pelos movimentos de gênero, minorias étnicas, de raças, sexuais, etc, que são vítimas de “opressões específicas”. Isso porque os partidos seriam organizações autoproclamatórias, autoritárias, portadoras de um fetiche autorealizável, que é a revolução socialista.Essas instituições, portadoras de um discurso utópico de emancipação humana, estão também definhando em todo o mundo porque não estariam entendendo a realidade do mundo globalizado.
Mais uma vez os teóricos pós-modernistas não conseguem compreender a totalidade da vida social. Por isso, vêem o mundo sem unidade, fragmentado e disperso. Não entendem que, por trás da “opressãoespecífica” que atinge os movimentos sociais e de gênero, etnia, raça, sexual, está o grande capital apropriando a mais-valia de todos, independentemente de raça, sexo ou orientação religiosa . Não compreendem que os movimentos, por sua própria natureza, têm limites institucionais e de representatividade.
Um sindicato, por mais combativo que seja, deve representar os interesses dos trabalhadores que representa. Da mesma forma que uma entidade estudantil, uma organização de moradores, de mulheres ou dehomosexuais tem como objetivo defender os interesses específicos de seus representados, atuam nos limites institucionais da ordem burguesa. Somente o partido político revolucionário, que se propõe a derrotar a ordem capitalista e que junta em suas fileiras todos esses segmentos sociais, possui condições para entender a totalidade da luta política e lançar propostas globais para a transformação da sociedade.
A prática das lutas sociais
Se observarmos as lutas sociais que foram realizadas nos últimos anos, poderemos constatar facilmente que grande parte delas foram derrotadas exatamente porque não existiam vanguardas com capacidade de conduzir e orientar essas lutas para a radicalidade da luta de classes e a emancipação do proletariado. Não se trata aqui de negar a importância das lutas específicas ou dos movimentos sociais. Pelo contrário, são fundamentais para qualquer processo de mudança, servem também como aprendizado da luta dos trabalhadores, mas deixadas por si mesmas, apenas com seu conteúdo espontaneísta, não tem condições de realizaras transformações da sociedade e terminam se esvaziando e sendo derrotadas pelo capital.
O teatro de operações é mais ou menos o seguinte: após um momento de euforia e mobilização os movimentos sociais são capazes de realizar proezas impressionantes, como desacreditar a velha ordem, desafiar as classes dominantes, mas num segundo momento a euforia se esgota em si mesma sem atingir os objetivos por falta de perspectivas. A América Latina é um importante posto de observação para constatarmos essahipótese, mas também em várias partes do mundo os exemplos são férteis para verificarmos a necessidades de vanguardas políticas.
A Bolívia, por exemplo, foi palco de várias insurreições populares contra governos neoliberais. As massas se sublevaram, foram às ruas aos milhões, derrubaram os governos conservadores, mas o máximo que conseguiram foi eleger um presidente progressista que é fustigado a todo momento pelo capital e não consegue realizar plenamente nem o próprio programa a que se propôs no período das eleições.
No Equador, ocorreram também várias insurreições populares. Em uma delas, os movimentos conquistaram o poder e o entregaram a um militar que depois os traiu e agora é um personagem conservador na política do País. Posteriormente, no bojo de outra insurreição, conseguiram eleger um presidente progressista, mas este não consegue implementar um programa transformador porque o capital não lhe dá trégua. Recentemente quase foi deposto por um setor militar sublevado.
Na Argentina, em função da crise econômica herdada do governo neoliberal de Menem, as massas também se sublevaram aos milhões em várias regiões do País. Em um período curto o País mudou três vezes de presidente. O resultado da sublevação popular foi a eleição de Nestor Kirchner e, posteriormente, de sua companheira, Cristina Kirchner. Nesses anos de poder, os Kirchner também não realizaram nenhuma mudança de fundo. O capitalismo seguiu seu curso como se nada tivesse acontecido.
Mais recentemente, duas grandes insurreições populares derrubaram os governos conservadores da Tunísia, do Egito e do Iêmen. Milhares de pessoas se sublevaram durante vários dias, centenas de pessoas morreram, os ditadores deixaram o poder, mas os movimentos sociais, sem vanguarda política, não conseguiram seus objetivos. Setores da burguesia local encabeçaram a formação de novos governos e os trabalhadores mais uma vez deixaram escapar de suas mãos a revolução.
No Brasil, um grande movimento social, o Movimento dos Sem Terra (MST) enfrentou com bravura os governos neoliberais, tendo como norte a bandeira da reforma agrária. Organizou um movimento original e de massas, com base social em todo o País, especialmente entre a população mais pobre da cidade e do campo. O MST ocupou fazendas dos latifundiários, realizou formação de grande parte dos seus quadros e até mesmo conseguiu construir uma universidade popular para formação permanente dos seus militantes.
No entanto, o desenvolvimento do capitalismo no campo brasileiro e a emergência do agronegócio criaram uma nova conjuntura no campo brasileiro, onde as relações de produção passaram a se darpredominantemente entre capital e trabalho. Essa conjuntura, aliada ao programa de compensação social do governo Lula, o “Bolsas Família”, uma programa de transferência de renda para a população mais pobre, levou o MST a uma encruzilhada.
Ou seja, a realidade mudou radialmente no campo brasileiro, mas a razão de ser do MST era a reforma agrária. Por isso, o movimento, que se tornara um dos símbolos de luta contra o neoliberalismo e, por isso mesmo obteve simpatia mundial, agora está perdendo protagonismo. Os acampamentos do MST foram reduzidos para menos da metade e o movimento vive grandes dificuldades estratégicas. Afinal, se a maioria dos trabalhadores está nas cidades, se o capitalismo hegemonizou as relações de produção no campo e subordinou a pequena agricultura à lógica do capital, torna-se difícil a sobrevivência no longo prazo de um movimento que tem apenas a bandeira da reforma agrária como luta estratégica.
A condensação mais expressiva da teoria movimentista foi o Fórum Social Mundial (FSM). Por ocasião do primeiro FSM, em Porto Alegre, parecia que todos tinham encontrado a fórmula ideal, a varinha mágica,para as novas lutas sociais. Milhares de lutadores de todo o mundo convergiram para o Rio Grande do Sul para se fazer presentes no lançamento da nova grife da luta mundial autônoma. Foi um sucesso extraordinário e um contraponto ao Foro de Davos, onde os capitalistas tramavam novas estratégias para dominação do mundo.
O sucesso de público e de mídia do FSM parecia ter enterrado de vez a noção de vanguarda política. Agora seriam os movimentos sociais, os movimentos de gênero, etnia, das mulheres, os movimentos sociais que doravante comandariam as lutas no mundo. Adeus partidos políticos, adeus movimento sindical, adeus velhos atores sociais da segunda revolução industrial. Agora eram os movimentos difusos, sem centralidade política, inteiramente autônomos, livres de dogmas e ideologias ultrapassadas que iriam provar ao mundo a nova realidade da luta social e política.
Muita gente sinceramente acreditou que o FSM poderia ser a fórmula mágica, o contraponto contemporâneo ao capital, o substituto das velhas vanguardas políticas e seu discurso autoproclamatório. Mas a realidade aos poucos foi colocando no devido lugar o modismo movimentista. Com o tempo, o FSM foi perdendo fôlego, foi se esvaziando, até o ponto em que hoje ninguém mais acredita que possa ser alternativa a coisa nenhuma. Mas uma vez a vida provou que os movimentos por si só não têm condições de mudar a sociedade, é necessário a vanguarda política para conduzir os processos de transformação.
O significado do pós-modernismo e as lutas sociais
Em outras palavras, a ideologia pós-modernista é responsável por grande parte das derrotas dos movimentos sociais nestas duas décadas, não só porque esse modismo teórico influenciou parte da juventude e lideranças dos movimentos sociais, como também porque levou à frustração milhares de lutadores sociais. Isso porque as lutas fragmentadas geralmente se desenvolvem de maneira espontânea. No início tem uma trajetória de ascenso, empolga milhares de pessoas, mas logo depois o movimento vai enfraquecendo até ser absorvido pelo sistema.
Em outras palavras, o pós-modernismo é o fetiche ideológico típico dos tempos de neoliberalismo e representa a ideologia pequeno-burguesa da submissão sofisticada à ordem do capital. Mas essa ideologia carrega consigo uma contradição insolúvel: no momento em que o capital mais se globaliza, com a internacionalização da produção e das finanças, é justamente neste momento que os pós-modernos pregam a fragmentação da realidade, a setorização das lutas sociais, a especificidade dos combates de gênero, etnia, raça, sexo, etc. Só mesmo quem não quer mudar a ordem capitalista pensa desse jeito.
Na verdade, todos que seguem esse ritual teórico, de maneira direta ou indireta, estão abrindo mão de um projeto emancipatório e escondem sua impotência mediante um discurso cheio de abstrações sociológicas, mas muito conveniente para o capital. Por isso, combatem as lutas gerais, para fragmentá-las em lutas específicas, que não afrontam abertamente o sistema dominante.Trata-se do verejo da política fantasiado de moderno.
Esses setores cumpriram, nos últimos 20 anos e ainda cumprem até hoje, um papel muito especial na luta ideológica atual: eles são a mão esquerda do social-liberalismo capitalista. Influenciam as gerações mais jovens, desenvolvem um discurso com aparência de modernidade, influem na organização das lutas sociais. Com seu discurso eclético e fatalista, cheio de senso comum, desorientam setores importantes da sociedade no que se refere à ação política e, na prática, ajudam a organizar, mesmo que indiretamente, a submissão de vários setores sociais à ordem capitalista e aos valores do mercado.
Essas duas décadas de experiências fragmentadas nos levam à conclusão de que, mais do que nunca, as vanguardas revolucionárias têm um papel fundamental no processo de transformações sociais. São elas exatamente que podem conduzir e orientar os vários movimentos sociais com uma plataforma estratégica de emancipação da humanidade, o que significa derrotar o imperialismo e o capitalismo e transitar para a construção da sociedade socialista.

* Edmilson Costa é doutor em Economia pela Unicamp, com pós-doutorado na mesma instituição. É autor, entre outros, de A globalização e o capitalismo contemporâneo e A política salarial no Brasil. Professor universitário, é membro da Comissão Política do Comitê Central do PCB.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Dilma Rousseff no Paraíso

  Mário Maestri   no CORREIO DA CIDADANIA


O mito Luiz Inácio Lula da Silva foi a primeira vítima do amplo apoio da população ao governo Dilma Rousseff, registrado pela última pesquisa CNI/IBOPE – 77% de consenso! No frigir dos ovos, a discípula superou o escore do mestre, na mesma altura do jogo, apesar da sua enorme inabilidade política, falta de carisma e imperícia na comunicação, qualidades que explicaram tradicionalmente o fenômeno político lulista.

Avaliação positiva ainda mais paradoxal devido às recentes decapitações ministeriais, registro da corrupção que infesta os subterrâneos do poder; à crescente desindustrialização da economia nacional; ao desenvolvimento pífio do país em 2011; à enorme desassistência popular; ao arrocho salarial dos trabalhadores públicos e privados.

No Brasil existe ampla população política, cultural e ideologicamente conservadora, que sustenta por princípio a autoridade e o governo, sobretudo em situação de normalidade. Desorganizada e alienada, apenas relaciona política e condições de existência. Pelas agruras e prazeres da vida, responsabiliza o destino e a si mesma, de olhos cravados nos céus! Essa poupança político-social é ciosamente alimentada pelas classes dominantes através da mídia, igrejas, sindicatos, partidos etc.

Com a acelerada expansão da economia mundial, em 2002-2008, a sociedade brasileira conheceu ciclo aparentemente virtuoso, que se manteve relativamente após o primeiro e segundo contra-golpes da crise geral capitalista, em 2008-9 e 2011. Nesses anos, as commodities valorizam-se e a inflação foi mantida mundialmente jugulada, impulsionando as economias dos países ditos emergentes.

O Brasil viveu modestamente esses bons ventos, devido, sobretudo, ao enorme peso do serviço da dívida pública, que praticamente deixou os investimentos a cargo do capital externo. A necessidade da atração de capitais valorizou patologicamente a moeda nacional, impulsionando a desindustrialização da produção nacional, ao escancarar as exportações.

A construção do sentimento popular de satisfação apoiou-se nos longos anos de baixa inflação, na retração relativa do desemprego e no crescimento raquítico da parte minúscula dos trabalhadores na renda nacional. Foi também importante neste movimento a patológica expansão artificial da capacidade popular de compra, com a liberalização do crédito consignado, generalização dos cartões de crédito, a extensão do prazo de crédito para bens móveis etc.

Foi enorme o consenso conquistado pelas fluviais políticas focalizadas, com suas minúsculas subvenções familiares em dinheiro, tidas pelos segmentos sociais fortemente pauperizados como magnanimidade governamental. Parcelas da população que suportam, no geral impassíveis, condições miseráveis de existência e rusticidade e ausência de serviços públicos básicos como esgoto, saúde, educação e segurança.

O apoio ao governo da presidenta se estende igualmente aos segmentos médios e médio-altos, bafejados pelo movimento expansionista, inebriados como novos ricos pelas delícias do turismo internacional, financiadas pelo real irresponsavelmente valorizado, que sangra sem cessar o balanço de pagamentos do país. Pagando menos por um café expresso na célebre galeria milanesa Vittorio Emanuele de que em um shopping suburbano das metrópoles nacionais, vivem como os hermanos argentinos nos dias gloriosos do governo Carlos Menem (1989-99), antes de serem embretados no corralito do realismo econômico.

Quanto ao grande capital nacional e mundial, sustentam firmemente o governo Rousseff, que entronizou ao igual que o anterior, já que avança plenamente suas necessidades, privatiza os bens públicos e nacionais, gere a burocracia político-sindical, já atrelada pelas tripas ao governo e ao Estado. Encanta-se igualmente com a presidenta sem laços mesmo simbólicos com as classes populares e a nação, livre para abandonar as veleidades do governo passado de política externa mais independente, submetendo-se plenamente, no essencial, ao imperialismo estadunidense.

Uma presidenta que, consciente do caráter cada vez menos protagonista do PT, queima no altar da aliança com os setores mais conservadores da sociedade os laços com as antigas bases sociais politizadas do petismo, ao liquidar as iniciativas de avanço dos direitos civis, tais como o direito à interrupção voluntária da gravidez, repressão à homofobia, direito de casamento civil sem restrições sexuais, repressão aos crimes da ditadura, caráter laico do Estado...

Nesse estranho e maravilhoso quadro político, expropriada no seu programa conservador, a direita tradicional vive amargurada no ostracismo, à espera de crise que abra seu caminho ao poder, para exercício do poder pelo capital, sem intermediações. Quanto à oposição de esquerda, também conquistada para as maravilhas da adesão parlamentar, administrativa e sindical ao Estado, segue no seu enorme e já histórico jejum de representação, de costas para com as necessidades políticas, ideológicas e organizacionais da sofrida população nacional.

Mário Maestri é professor do curso e do programa de pós-graduação em História da UPF.
E-mail: maestri(0)via-rs.net

Na terra de Médici, ato público homenageia vítimas da ditadura e denuncia ditador



Um grupo de estudantes, professores, artistas, jornalistas e de outras categorias de trabalhadores promove um ato público nesta quarta-feira (11), às 18 horas, em Bagé, para homenagear a memória dos desaparecidos, torturados e mortos pela ditadura militar. O grupo se reunirá na praça de esportes e dali seguirá até o Clube Comercial, na avenida 7 de setembro, onde será realizado o ato. A escolha do dia, hora e local não é casual. Nesta mesma quarta, às 19h, será lançado no Clube Comercial o livro “Médici, a verdadeira história”, de autoria dos coronéis reformados Claudio Heráclito Souto e Amadeu Deiro Gonzalez.
“Vamos romper o silêncio que paira sobre esta cidade e mostrar aos saudosistas da ditadura que a população de Bagé NÃO tem orgulho dos tempos do Médici, o governo mais nebuloso da história do Brasil! Nosso ato é pacífico, sensibilizador e formativo. Todos que quiserem somar nessa manifestação ou procurar esclarecimentos podem nos encontrar durante a manifestação” dizem os organizadores.
Contra a visão da história apresentada pelos militares aposentados, os manifestantes pretendem chamar a atenção para a memória dos presos políticos, dos desaparecidos e mortos pela ditadura do Médici. Além disso, querem “chamar a atenção da população bageense, que convive silenciosamente com esse câncer histórico, para a importância da abertura dos arquivos da ditadura e pelo julgamento dos torturadores”. “A abertura dos arquivos da ditadura corresponde a um direito que as pessoas têm de saberem do paradeiro de seus familiares, aqueles que se opuseram ao regime militar em defesa da justiça e da liberdade”, acrescentam.

terça-feira, 10 de abril de 2012

Porquê o silêncio sobre a Islândia

20110408 Islandia.mobilizacao protestoIslândia - O Diário - [Theo Buss] Os acontecimentos que sucederam ao desencadear da crise na Islândia - demissão em bloco do governo; nacionalização da banca; referendo, de modo a que o povo se pronuncie sobre as decisões económicas fundamentais; prisão dos responsáveis pela crise e reescrita da Constituição pelos cidadãos – têm sido sistematicamente silenciados. Compreende-se porquê. Mas há a necessidade de divulgar esse exemplo.

Se há quem acredite que nos dias de hoje não existe censura, então que nos esclareça porque é ficámos a saber tanta coisa acerca do que se passa no Egipto e porque é que os jornais não têm dito absolutamente nada sobre o que se passa na Islândia.
Na Islândia:
- o povo obrigou à demissão em bloco do governo;
- os principais bancos foram nacionalizados e foi decidido não pagar as dívidas que eles tinham contraído junto dos bancos do Reino Unido e da Holanda, dívidas que tinham sido geradas pelas suas más políticas financeiras;
- foi constituída uma assembleia popular para reescrever a Constituição.
Tudo isto pacificamente.
Uma autêntica revolução contra o poder que conduziu a esta crise. E aí está a razão pela qual nada tem sido noticiado no decurso dos últimos dois anos. O que é que poderia acontecer se os cidadãos europeus lhe viessem a seguir o exemplo?
Sinteticamente, eis a sucessão histórica dos factos:
- 2008: o principal banco do país é nacionalizado. A moeda afunda-se, a Bolsa suspende a actividade. O país está em bancarrota.
- 2009: os protestos populares contra o Parlamento levam à convocação de eleições antecipadas, das quais resulta a demissão do primeiro-ministro e de todo o governo.
A desastrosa situação económica do país mantém-se.
É proposto ao Reino Unido e à Holanda, através de um processo legislativo, o reembolso da dívida por meio do pagamento de 3.500 milhões de euros, montante suportado mensalmente por todas as famílias islandesas durante os próximos 15 anos, a uma taxa de juro de 5%.
- 2010: o povo sai novamente à rua, exigindo que essa lei seja submetida a referendo.
Em Janeiro de 2010, o Presidente recusa ratificar a lei e anuncia uma consulta popular.
O referendo tem lugar em Março. O NÃO ao pagamento da dívida alcança 93% dos votos.
Entretanto, o governo dera início a uma investigação no sentido de enquadrar juridicamente as responsabilidades pela crise.
Tem início a detenção de numerosos banqueiros e quadros superiores.
A Interpol abre uma investigação e todos os banqueiros implicados abandonam o país.
Neste contexto de crise, é eleita uma nova assembleia encarregada de redigir a nova Constituição, que acolha a lições retiradas da crise e que substitua a actual, que é uma cópia da constituição dinamarquesa.
Com esse objectivo, o povo soberano é directamente chamado a pronunciar-se.
São eleitos 25 cidadãos sem filiação política, de entre os 522 que apresentaram candidatura. Para esse processo é necessário ser maior de idade e ser apoiado por 30 pessoas.
- A assembleia constituinte inicia os seus trabalhos em Fevereiro de 2011 a fim de apresentar, a partir das opiniões recolhidas nas assembleias que tiveram lugar em todo o país, um projecto de Magna Carta.
Esse projecto deverá passar pela aprovação do parlamento actual bem como do que vier a ser constituído após as próximas eleições legislativas.
Eis, portanto, em resumo a história da revolução islandesa:
- Demissão em bloco de um governo inteiro;
- Nacionalização da banca;
- Referendo, de modo a que o povo se pronuncie sobre as decisões económicas fundamentais;
- Prisão dos responsáveis pela crise e
- reescrita da Constituição pelos cidadãos:
Ouvimos falar disto nos grandes media europeus?
Ouvimos falar disto nos debates políticos radiofónicos?
Vimos alguma imagem destes factos na televisão?
Evidentemente que não!
O povo islandês deu uma lição à Europa inteira, enfrentando o sistema e dando um exemplo de democracia a todo o mundo.
Theo Buss
Rue du Doubs 117
2300 La Chaux-de-Fonds
Tél.             0041 (0)32 558 7903

Hermeto Pascoal, Sebastião Tapajós & Gílson Peranzzetta – Solos do Brasil (2000)

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Créditos: UmQueTenha

Nova formação para o trabalho imaterial


A passagem para o século XXI veio acompanhada de profundas e complexas transformações no modo de produção capitalista. Uma delas – talvez a principal – resulta da emergência da economia do conhecimento que passou a redefinir categorias básicas como o capital, valor e trabalho. Esta última categoria, aliás, termina por incorporar crescentemente o saber em novas bases, o que torna antiquado os atuais sistemas de educação e formação laboral.
Com a elevação das competências laborais e a possível ampliação da expectativa de vida para próximo de 100 anos, expande-se a demanda pela formação por toda a vida e rompe-se a lógica educacional do século passado comprometida somente com as fases mais precoces da vida humana (crianças, adolescentes e alguns jovens). Adiciona-se a isso o avanço da sociedade pós-industrial focado na geração de postos de trabalho no setor terciário das economias (trabalho imaterial), cuja natureza formativa diverge da inserção e trajetória laboral contínua no interior das atividades primárias e secundárias da produção (trabalho material).
Novas formas de organização da produção de bens e serviços extrapolam o exercício laboral para além do exclusivo local de trabalho. Ou seja, a realização crescente do trabalho imaterial em qualquer local proporcionado pelo uso recorrente das tecnologias de comunicação e informação inovadoras, capaz de manter o ser humano plugado no trabalho heterônomo por “24 horas ao dia”.
Não obstante o avanço tecnológico gerador de ganhos importantes de produtividade material e imaterial na sociedade pós-industrial, aumenta a pressão por maior tempo de uso do trabalho para a sobrevivência. Trata-se do paradoxo contemporâneo concentrado na dissintonia entre a possibilidade da menor dimensão do tempo de trabalho heterônomo e o avanço das novas doenças do trabalho geradas pela intensificação do trabalho nos tradicionais locais de emprego da mão de obra e extensão das jornadas laborais em outras localidades (em casa ou em espaços públicos) impostas pela combinação patronal das mudanças organizacionais com inovações tecnológicas comunicacionais.
Com a transição para a sociedade pós-industrial abrem-se novas perspectivas de valorização do trabalho humano para além da obrigação estrita à sobrevivência. A crescente postergação do ingresso dos jovens no mercado de trabalho e a maior redução no tempo do trabalho dos adultos, em combinação com a ênfase no ciclo educacional ao longo da vida, representam possibilidades inéditas para o mundo do trabalho, especialmente com a expectativa de vida mais longa.
Para além da tradicional divisão laboral que demarcou o século XX, por meio da setorização do trabalho urbano-industrial e agropecuário, há avanços significativos nas atividades humanas centradas na concepção e execução do processo de produção. Mas isso não se manifesta sem a plena subsunção do trabalho não material, com a evolução da intelectualização nos procedimentos de trabalho nos setores industriais e de serviços, bem como pelo consumismo imposto pelo padrão de produção insustentável ambientalmente.
De certa forma, prevalece um conjunto de intensas disputas empresariais associadas à apropriação do conhecimento e da tecnologia, o que contribui para a constituição de um novo paradigma organizacional do trabalho, muito distinto do que prevaleceu durante o auge da economia industrial no século passado. Mesmo que o padrão fordista-taylorista de organização do trabalho urbano-industrial venha sendo reprogramado, com as modificações introduzidas por uma série de novidades processuais no âmbito da produção flexível (toytismo, just in time), permanecem ainda os sinais de sua incapacidade plena no atendimento das determinações laborais impostas por diferenciados e inovadores espaços da acumulação capitalista.
A predominância das atividades de serviços no interior da estrutura produtiva faz do exercício do trabalho imaterial objeto distinto do material vigente na produção urbano-industrial. Pelo lado da produtividade, registra-se a sua ascensão, embora de difícil mensuração pelos tradicionais cálculos que relacionam avanços na produção física com hora efetivamente trabalhada ou quantidade de trabalhadores. Por ser cada vez mais direto, relacional, e informacional, bem como pela demarcação de relações de tipo produtor e consumidor, o trabalho de natureza imaterial expande-se pelo autosserviço e terceirização.
Nesta perspectiva, a economia do conhecimento faz com que o trabalho desmaterializado deixe de ser mensurável em unidades de tempo, conforme identificado desde a época de Adam Smith como um valor comum a todas as mercadorias. Cada vez mais, o trabalho imaterial gerador de valor pressupõe a presença de componentes comportamentais. Não mais o tempo de trabalho comprometido, mas a motivação incorporadora do saber vivo a ser estabelecido por método distinto do ensino e formação laboral tradicionais.
Em síntese, o saber que não se compõe de conhecimentos específicos e fragmentados a serem ensinados por formação especializada e formalizada por escolas técnicas, faculdades e cursos setoriais. Com a informatização, o aprendizado setorializado e formalizado impede o desenvolvimento do conhecimento totalizante, ou seja, o saber da experiência, da coordenação, da comunicação, da auto-organização, do discernimento e das iniciativas criativas. Esse saber a ser incorporado no trabalho imaterial não torna possível a sua aprendizagem pelo modo tradicional de educar e formar mão de obra.
Talvez por isso, as grandes corporações empresariais aprofundem as chamadas universidades corporativas (UC) com formação dos seus empregados ao longo do tempo. Nos EUA, por exemplo, as UCs ultrapassaram em quantidade as universidades tradicionais, enquanto no Brasil, as 400 maiores empresas já comprometem com formação para o trabalho o equivalente a um quarto de todos os recursos comprometidos na educação.
A repetição de políticas públicas adotadas no passado compromete a formação adequada para o trabalho imaterial, tornando o patronato da grande empresa protagonista na difusão de uma educação favorável estritamente aos objetivos privatistas. É necessário outro sistema de formação pública, que resgate a totalidade dos valores do trabalho dos antiquados métodos fragmentados e especializados no ensino e aprendizagem formalmente setorializados.

Este texto é parte integrante da edição 108 de Fórum

Na visita de Dilma, manifestantes relembram mártires da Amazônia



Por Felipe Milanez, em Washington no CARTA CAPITAL

A Embaixada do Brasil em Washington, um edifício modernista que contrasta com o classicismo dos imóveis da bela Embassy Row, o setor de embaixadas da capital americana, foi palco nesta segunda-feira 9 de uma marcha que reuniu cerca de cem pessoas, entre estudantes, ativistas e brasileiros que moram na região, que se manifestaram durante a visita da presidenta Dilma Rousseff à cidade.
Irmã de Dorothy Stang carrega cartaz em homenagem aos mártires da floresta. Foto: Felipe Milanez

O protesto, segundo os organizadores, tinha quatro motivos: a violência no campo, principalmente na Amazônia; a impunidade dos mandantes e executores desses crimes; as mudanças no Código Florestal brasileiro; a construção de grandes hidrelétricas na Amazônia.
Em meio a bandeiras do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, cartazes estampavam imagens do casal José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, assassinados em 24 de maio de 2011. Estavam ao lado de fotos de Dorothy Stang, Chico Mendes e uma cena do enterro de 19 trabalhadores rurais sem terra mortos no massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996.
“A Amazônia e seus povos querem viver. Chega da violência!”. Esta era a frase estampada em uma das faixas.
O tema faz referência a uma situação dramática na Amazônia: o assassinato de lideranças políticas na região. Fotos de Laisa Santos Sampaio e de Nilcilene Miguel de Lima vieram acompanhadas da seguinte frase, pronunciada recentemente pelas ativistas: “Eu quero viver”.
A mesma frase dita por Chico Mendes pouco antes de morrer. Nilcilene está sob proteção da Força Nacional (cujo prazo encerra-se em breve). Laisa, também ameaçada de morte, segue sem qualquer tipo de proteção oficial.
Placas e bandeiras na frente da embaixada do Brasil em Washington. Foto: Felipe Milanez

Marguerite Hohm, irmã da missionária Dorothy Stang, assassinada no Pará em 2005, prestou solidariedade aos ativistas ameaçados de morte na região. “Basta de violência na Amazônia”, disse ela.
Após cumprirem parte da pena, alguns dos envolvidos na morte de Dorothy, como Bida, um dos mandantes, e Fogoió, um dos executores, já estão em liberdade.
Os lemas da mobilização incluíam palavras de ordem socioambiental, contrárias à barragem de Belo Monte (“Stop Belo Monte”), ao Código Florestal em votação na Câmara (“Veta, Dilma!”), assim como “Sem medo de dizer não à bancada ruralista”, e em defesa das populações tradicionais da floresta: “índios, extrativistas e camponeses: doutores da ecologia”.
Miguel Carter, professor na American University, afirmou que o momento atual precisa de uma reflexão. “Não se sabe até quanto tempo poderemos levar essa vida no planeta da forma como levamos hoje. E é preciso ouvir os índios, os povos da Amazônia, os camponeses, pessoas que sabem muito mais de ecologia do que os políticos que estão negociando  os acordos internacionais.”
Segundo ele, os povos tradicionais “são verdadeiros doutores da ecologia. Precisamos ter humildade para reconhecer a sabedoria deles, pois temos muito a aprender”.
Protesto contra as obras do governo. Foto: Felipe Milanez

Zé Cláudio e Maria, homenageados em maio pela ONU como “Heróis da Floresta”, foram destacados por Carter como “heróis pelo movimento de direitos humanos e meio ambiente”.
“Esta é uma marcha de solidariedade com os movimentos sociais brasileiros, defensores de direitos humanos, ativistas ambientais, povos indígenas, movimentos camponeses. E também de protesto contra a política ambiental do governo”, disse Andrew Miller, da organização AmazonWatch, no alto falante.
“Dilma Rousseff está mostrando o Brasil como um país progressista com relação ao meio ambiente, visando a Rio + 20. Mas a situação em campo mostra uma outra realidade, com a construção de grandes hidrelétricas na Amazônia, como Belo Monte; o Código Florestal, caso Dilma venha a ratificar a lei; e, principalmente, com a grave situação de violência na região”, afirmou Miller.
O discurso aconteceu com faixas ao fundo questionando: “Rio-20: cadê os direitos humanos no ‘capitalismo verde’?”.
As organizações presentes lembraram que “o desmatamento triplicou no primeiro trimestre desse ano”. “Junto da floresta, as pessoas da Amazônia estão sendo mortas”, havia dito Laisa em seu discurso na ONU, ao receber o prêmio em homenagem a sua irmã e seu cunhado.

A violência é um dos fatores mais assustadores na Amazônia. A morte do casal de ambientalistas no Pará, menos de um ano atrás, foi seguida pela morte de Adelino Ramos, o Dinho, em Rondônia, na mesma semana. Nessa mesma região onde Dinho denunciava a extração ilegal de madeiras, no dia 30 de março, menos de duas semanas antes da marcha em Washington, Dinhana Nink foi morta por igual razão: denunciar madeireiros ilegais. Nilcilene Lima, líder extrativista, teme ter o mesmo destino.
Manifestantes relembram Dorothy Stang, Chico Mendes, casal extrativista e vítimas de Eldorado do Carajás. Foto: Felipe Milanez

“Nossa solidariedade, para que essas pessoas que estão longe saibam que estamos junto deles. O governo brasileiro não pode ficar omisso”, diz Carter.
A marcha aconteceu em um lindo dia de primavera na capital americana, com o caminho colorido por flores, especialmente pelas famosas cerejeiras que florescem nessa época do ano.
Os cartazes, desenhados pelo artista plástico Cesar Maxit, compunham uma paisagem poética e, ao mesmo tempo, perturbadora. Menos de um ano depois de serem assassinados, Zé Cláudio e Maria tiveram seus rostos dispostos ao lado de figuras emblemáticas da destruição da Amazônia, como Chico Mendes e Dorothy Stang.
Tornaram-se justamente o que, em vida, temiam: mártires da Amazônia. “A mesma coisa que fizeram com Chico Mendes, a mesma coisa que fizeram com a irmã Dorothy, querem fazer comigo”, havia declarado Zé Cláudio, no evento TEDXAmazonia, alguns meses antes de sua morte.
Os cartazes com os clamores de vida de Laisa e Nilcilene, “Eu quero viver”, podem representar as centenas de pessoas que estão ameaçadas de morte, em listas discutidas por movimentos sociais com o governo.
A incapacidade do governo de dar a estas pessoas condições de sobrevivência, em um ambiente dominado por medo e terror, faz temer pelo pior.

‘Na Colômbia, estamos diante de uma das maiores crises humanitárias do planeta’

Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação   do CORREIO DA CIDADANIA

A Colômbia esteve recentemente em grande evidência nos noticiários nacionais em função de novo posicionamento das FARC que, em comunicado, disseram que não dariam prosseguimento às suas atividades de seqüestros, ao mesmo tempo em que libertariam novos reféns. Como sempre, quando se trata de questões afeitas aos nossos vizinhos latino-americanos, especialmente se envolvem as entidades tidas a priori como ‘terroristas, o teor das análises varia entre a superficialidade e a apelação. Quando muito, a apresentação de uma biografia de algum dos personagens envolvidos nos ‘seqüestros’ ou ‘atentados’, principalmente se vier a corroborar os dogmas tão caros - e manjados - à nossa imprensa.

O fato é, no entanto, que, na medida em que nos dispomos a nos aprofundar, um tanto que seja, na realidade latino-americana, são incontáveis e surpreendentes as descobertas que se podem fazer face às caricaturas às quais estamos expostos. A Colômbia talvez seja um caso extremado desse quadro, em função da notoriedade das suas guerrilhas e do potencial de visibilidade que trazem as notícias e artigos nos quais são citadas. Pietro Alarcon, colombiano e professor de Direito na PUC-SP, concedeu-nos uma entrevista sobre a conjuntura atual do país, da qual se apreende um cenário político, econômico e social complexo e, ao mesmo tempo, dramático.

De acordo com estatísticas oficiais, o país de cerca de 46 milhões de habitantes abriga hoje 29 milhões de pobres e por volta de 9 milhões de habitantes na pobreza absoluta; 3,4 milhões de pessoas são refugiadas internas, o que, por si só, dá a dimensão da crise humanitária vivida pelo país. A participação da população civil em conflitos armados, planejando ações contra as entidades de classe, sindicatos e outros órgãos comunitários, ocorre, por sua vez, em flagrante desrespeito às normas do Direito Internacional Humanitário.

A opção pela militarização para a solução de conflitos, o autoritarismo do Estado em sua relação com a sociedade e um forte e incondicional alinhamento com os EUA persistem, pois, sob o comando do atual presidente Juan Manuel Santos – de forma menos visível, mais camuflada, mas com a mesma lógica existente à época de Uribe. Uma situação que em nada contribui para um processo de paz. Assim como para ele não colabora a negação, pelo Estado, da existência de presos políticos na Colômbia – forte contradição face à admissão da existência do conflito armado.

Leia a seguir a entrevista completa.

Correio da Cidadania: O que pensa da atual conjuntura política, econômica e social na Colômbia? O que se pode dizer do absurdo número de assassinatos políticos, como nas últimas eleições, e também do incrível número de mortes de sindicalistas, líderes comunitários, camponeses, além de outras brutalidades contra indígenas, mulheres, agricultores?

Pietro Alarcón: A verdade é que existe, como é lógico, uma variedade de aspectos que podem ser abordados, de cunho político, econômico, social, militar e jurídico.

Acho possível estabelecer uma espécie de marco geral de análise de uma sociedade na qual se verifica um confronto de projetos sobre a saída ao conflito social e armado, uma constante nos últimos 50 anos. Por um lado, segmentos do Estado, nos quais há civis e militares, propõem e executam uma ação dirigida à imposição da saída militar, que não inclui modificações do regime político ou transformações sociais significativas do modelo econômico.

Por outro lado, há os setores convencidos da necessidade da saída pela via do diálogo, da negociação, da necessidade de criar mecanismos de distensão que possibilitem caminhos de paz acompanhados de uma discussão ampla sobre os problemas históricos que ocasionaram a violência na perspectiva de um novo cenário, de efetivação de direitos, de abertura democrática.

Neste marco geral é possível continuar a enxergar alguns elementos pontuais que revelam as idas e vindas da situação.

Correio da Cidadania: E quais elementos você destacaria em todo esse arranjo sócio-político?

Pietro Alarcón: Vou colocar alguns dados que acho importantes, especialmente após os resultados eleitorais de 2010, que refletem a continuidade de um processo que vem de 2002, quando da primeira eleição de Uribe. Nessas eleições de 2010, Santos obteve mais de 9 milhões de votos.

Correio da Cidadania: Esse é um número significativo para quem representava a continuidade de Uribe, diante de permanente caos interno. Como você explica essa votação elevada?

Pietro Alarcón: Essa votação se explica por vários fatores, que vão desde uma adesão ideológica e fisiológica ao governo da chamada “Unidade Nacional”, o slogan do governo de Santos, passando pelo uso da máquina eleitoral e do poder da mídia. Mídia que polarizou a eleição entre Santos e o candidato Antanas Mockus com o objetivo de esconder a oposição que dá ênfase à necessidade de uma mudança estrutural no país, especialmente o Pólo Democrático Alternativo (PDA). Explica-se ainda pelo assistencialismo no governo de Uribe através de programas como Famílias em ação. E temos que considerar também a disseminação em algumas regiões do receio pelo terror paramilitar, através da intimidação dos chamados guarda-bosques.

Correio da Cidadania: Há diferenças entre o governo de Uribe e o de Santos?

Pietro Alarcón: Eu acho que, para caracterizar o governo de Santos, temos que ver um pouco o governo de Uribe. Porque eu acho que temos de lembrar disso? Porque o governo Uribe propôs três questões: a chamada segurança democrática, a coesão social e a recuperação da confiança internacional para atrair investimentos. É fato que os dois primeiros implicam a militarização do país e a criação de forças de denúncia e ação policial com aval do Estado e particularmente das forças armadas. O problema é que esses denunciantes são recrutados da própria sociedade, em troca dos mais variados favores estatais. O que contribui para uma fragmentação social que não permite ou conduz à trilha do diálogo, mas da confrontação. Há uma obra de Lon Fuller, traduzida por um querido amigo e professor, a dos denunciantes invejosos, que sempre me lembra esta situação.

Outro elemento é a criminalização do protesto social e o cerceamento das liberdades públicas, oficialmente ou extra-oficialmente, ou seja, utilizando mecanismos que o governo considera legítimos ou, em outras oportunidades, mecanismos completamente à margem de qualquer Estado de Direito. O governo, em reiteradas oportunidades, agiu por fora da estrita legalidade para grampear telefones e ameaçou setores da sociedade civil, cometendo crimes de responsabilidade ao colocar em risco a vida de lideranças políticas e sociais. Questões pelas quais Uribe tem sido chamado a explicações pelo Congresso.

E a última proposta tem como objetivo a liberação dos acordos no modelo TLC – Tratados de Livre Comércio.  Com Santos, no governo intitulado de Unidade Nacional, isso que menciono permanece. Acho que, agora com maior nitidez, se observa o fortalecimento de um projeto político que continua gravitando entre o autoritarismo na condução do debate com os setores sociais organizados, militarismo e alinhamento internacional às opções dos Estados Unidos.

Para exemplificar, continua em andamento o processo para tentar incorporar a população civil ao conflito, em clara violação às normas do Direito Internacional Humanitário.

Correio da Cidadania: Em que consiste essa história de incorporar a população civil ao conflito?

Pietro Alarcón: As normas do Direito Internacional Humanitário são de origem convencional, ou seja, são definidas com base nos costumes, e se originam da necessidade de restringir, por razões humanitárias, o direito das partes do conflito armado em utilizar meios de guerra. São normas para proteger a população civil. São as Convenções de Genebra e elas proíbem os maus tratos, as torturas, os tratamentos degradantes da população civil. Essas normas determinam que as forças armadas têm de distinguir civis de combatentes, ou seja, os objetivos militares da população inerme e indefesa.

Então, por exemplo, na Colômbia temos um problema de ausência de efetividade dessas normas e o seu não reconhecimento. Por exemplo, as Forças Armadas deram a conhecer há alguns dias um plano chamado Plano Espada de Honra, feito especialmente para que os civis se assumam como defensores do Estado. A idéia é que estas pessoas participem do conflito reproduzindo materiais, planejando ações contra as entidades de classe, sindicatos e outros órgãos de participação comunitária e popular, que continuam a ser acusados de cúmplices da insurgência armada. É muita intolerância e, sobretudo, muita irresponsabilidade. Isso não somente fragmenta, mas desgarra a sociedade colombiana.

Correio da Cidadania: Assim, nota-se inequívoca continuidade face ao governo de Uribe?

Pietro Alarcón: Sim, e posso colocar outra questão, muito grave e delicada. Talvez no Brasil e em outros países não tenha tido a repercussão que merece. Mas o Judiciário, encabeçado na Colômbia pela Corte Suprema e a Corte Constitucional, tem sido um baluarte no sentido de manter o que resta do Estado de Direito.

A Corte Suprema emitiu ordens de detenção contra os membros do partido de governo ligados à parapolítica, quer dizer, contra membros do governo que realizam e estão comprometidos com práticas paramilitares. Uma juíza que proferiu ordem de detenção contra um general envolvido no desaparecimento de pessoas na tomada do Palácio da Justiça pelo M-19, um movimento insurgente da década de 80 (se não me engano, essa tomada foi em 1989 ou 1990), teve que sair do país, e hoje está protegida por medidas cautelares proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

E Santos propõe hoje uma tal “reforma na justiça”, que, se explicada em detalhe concede, na verdade, o domínio da administração da magistratura ao Executivo, em claro detrimento da separação de funções. Tecnicamente é isso. E politicamente, os juízes têm dito algo que para todos parece muito claro, de modo que a Corte assim o expressou num comunicado à opinião pública. O comunicado diz que não é possível que a reforma na justiça, algo tão sério, seja motivo de revanchismos, de retaliações perante o cumprimento dos deveres constitucionais.

No fundo, do que se trata é de uma tentativa de fortalecer o Executivo em detrimento do aparelho jurisdicional, que cumpriu um papel à altura nesta última etapa da vida nacional.

Correio da Cidadania: Santos tem condições de aprovar essa reforma?

Pietro Alarcón: Depende, logicamente, de alianças etc. O bloco que apóia Santos tem 66 senadores. Ao todo, são 102 senadores e o Pólo Democrático Alternativo tem oito. Mas o Congresso como um todo, incluindo a Câmara, conta com 268 parlamentares, sendo 166 deputados.

Correio da Cidadania: Mas, apesar dessa votação de 2010 que você mencionou há pouco, houve muita abstenção e o voto não é obrigatório...

Pietro Alarcón: Não, não é. Uma questão importante é que, nas últimas eleições, houve um nível de abstenção superior a 55%. A imensa maioria de abstencionistas são pessoas desinteressadas, com a idéia de que nada vai mudar com o voto. Isso é explicável pela ciência política, é próprio de um histórico regime político de democracia restringida, que produz, a médio e longo prazo, uma cidadania precária ou, como alguns opinam, de baixíssima intensidade. Isso tem conseqüências muito negativas, começando pela renúncia das pessoas à participação política e, depois, exigências de cumprimento dos deveres do Estado. Uma espiral muito perigosa para a democracia.

E vale a pena anotar que também incomoda muito essa filosofia que substitui o caráter de cidadão pelo de consumidor, que é uma das questões mais evidentes nos últimos tempos.

Correio da Cidadania: Sobre a conjuntura social, o que poderia ser dito do atual momento do país?

Pietro Alarcón: Eu gostaria de contar coisas positivas. Alguém poderia pensar que a Colômbia está caindo aos pedaços e a verdade é que, se você a visita, não se percebem muitas destas questões mais políticas. A Colômbia tem uma grande biodiversidade e especialmente um povo generoso, muito trabalhador.

Contudo, socialmente, há um quadro bastante expressivo de piora das condições de vida e efetivação dos direitos. Por exemplo, a partir de 2008, os indicadores estampam que a pobreza atingiu 47,8% da população, e que a pobreza extrema é padecida por 17,8%. Se adicionarmos o cerceamento do investimento no social, especialmente para favorecer o investimento militar e prosseguir na guerra e no desequilíbrio na redistribuição da renda, a questão é ainda mais grave.

A Colômbia tem em torno de 46 milhões de pessoas. Ou seja, estamos falando de mais ou menos 29 milhões de pobres e umas 9 milhões de pessoas na pobreza absoluta. Também, veja-se, de cada 100 trabalhadores, 58 estão no chamado emprego informal, sem carteira assinada ou prestações laborais. Isso com um desemprego de 13%, 14%.

E existem alguns, creio, anacronismos. Por exemplo, quando hoje se fala em pós-neoliberalismo, no meio da crise mais evidente do grande capital, na Colômbia se privatiza a saúde e se continua com as tentativas de privatização de todo o sistema educacional. Em outras palavras, o modelo na Colômbia continua a ser ligado ao esquema de Estado mínimo.

Correio da Cidadania: Em matéria de direitos humanos, como você analisa esse quadro?

Pietro Alarcón: Eu acho que neste item temos uma grande quantidade de questões, que vou tentar resumir, ou pelo menos apresentar de forma organizada.

E para isso teríamos que começar por uma constatação muito triste, complexa, mas muito verdadeira. Talvez o mais determinante na história republicana do país seja o fato de que se gerou uma camada social incrustada na institucionalidade e objetivamente no poder através de métodos de violência. Criou-se ao longo do tempo uma oligarquia com uma tendência a fechar a participação democrática e que, ainda que os direitos humanos evoluam em termos de gerações ou dimensões e o Estado de Direito evolua e se transforme, ampliando as liberdades públicas e consagrando os direitos sociais, sempre foi bastante refratária a tais evoluções e mudanças. E, essencialmente, utiliza a violência como mecanismo de contenção da pressão social por uma saída de tal situação.

O tema dos direitos humanos na Colômbia já é reiterado tanto na Organização das Nações Unidas quanto na Corte de São José, que, como lembrado, cuida da aplicação das normas da Convenção Americana de Direitos Humanos, assim como é um assunto já bastante abordado por entidades internacionais muito respeitáveis, como a Anistia Internacional, por exemplo.

A Corte Interamericana de São José, no ano de 2010, condenou o Estado colombiano pela morte do senador Manuel Cepeda, da organização União Patriótica, a organização ou movimento político que surgiu na época dos primeiros acordos de paz entre a guerrilha das FARCs e o governo. Importante lembrar que essa organização foi vítima de um sistemático extermínio. Eu, nos meus anos de trabalho com direitos humanos, jamais me deparei com algo tão aberrante, o aniquilamente sistemático, primeiro seletivo e logo praticamente em massa de membros de uma organização. O governo anterior de Uribe se negou a aceitar essa decisão ou o fez da boca pra fora. Não houve gesto do governo de reconhecer que ocorreu essa punição da CIDH.

Outro assunto extremamente grave foi o dos “falsos positivos”, ainda sendo investigados. Grupos de pessoas assassinadas pelo Exército que supostamente eram membros das guerrilhas, logo reclamadas por seus familiares, que ainda hoje brigam para que se reconheça que não eram guerrilheiros, mas pessoas enganadas na busca por trabalho em várias regiões do país e que apareceram assassinadas. Isso é muito grave, um delito contra a humanidade.

O terceiro ponto, que atesta que na Colômbia há uma crise humanitária de dimensões maiúsculas, é que, segundo dados do próprio Registro Único de População Deslocada da Presidência da República, o número de refugiados internos na Colômbia está ao redor de 3,4 milhões. Mas se observarmos outro dado, fornecido pelo Codhes, que é a Consultoria de Direitos Humanos, a cifra é maior, chega a 4,9 milhões de refugiados internos. Independentemente de serem 3, 4 ou 5 milhões, a verdade é que isso significa que na Colômbia estamos diante de uma das maiores crises humanitárias do planeta.

As normas do Direito Internacional humanitário têm se perdido no meio do fogo cruzado e recrudescimento do conflito armado. A Corte Constitucional da Colômbia já apontou, numa decisão paradigmática, que, para ser considerado refugiado interno, basta comprovar duas questões: a migração e que esta seja forçada, isto é, por causa do conflito. O Estado colombiano tem se colocado de forma negativa diante da decisão, afirmando que, com esses critérios, o deslocamento virou um negócio e, por isso, nega muitas vezes o status de refugiado interno e não entrega recursos aos refugiados.

Correio da Cidadania: Como já reforçado aqui, é internacionalmente conhecido que o Estado é o grande violador dos direitos humanos, mas como você vê a questão do seqüestro? As Farcs, em vários comunicados, dizem que não dariam prosseguimento às suas atividades de seqüestros, ao mesmo tempo em que libertariam novos reféns.

Pietro Alarcón: Sim, as FARCs emitiram dois comunicados do seu novo comandante, que têm criado bastante expectativa no país e na comunidade internacional.

O seqüestro, a detenção de pessoas, e estamos falando de anos, em alguns casos, de pessoas detidas na selva, é uma questão que não pode ser posta de lado quando se fala de direitos humanos. Na Colômbia, a deterioração da guerra, sua prolongação, originou métodos de extrema crueldade.

Eu acho que, se a guerrilha, como ator político, armado, se posiciona de frente ao país, tem que efetivar essa intenção. Ou seja, e nisso concordo plenamente com outros colegas, ninguém em nome de um processo revolucionário, de transformação de estruturas de um regime, pode realizar atos degradantes, que coloquem em risco a população civil.

Tem de haver consciência disso e as FARC precisam efetivar o que foi afirmado nos comunicados, no sentido de libertar todos os reféns que tenham em seu poder. Eu, sinceramente, não considero que seja benéfico a um processo de saída negociada ao conflito, de aclimatação a um cenário de paz, prosseguir nesse caminho. Por isso temos de valorizar positivamente a iniciativa. Acho que o debate na Colômbia, especialmente se um dos interlocutores são as guerrilhas, é com idéias, propostas, perspectivas que permitam oxigenar o país.

Entretanto, pelo outro lado, é preciso que exista também disposição ao diálogo e facilitação a essa saída humanitária. Observe-se que as FARC fizeram uma proposta concreta e adicionaram o pedido de permissão a uma visita humanitária aos cárceres da Colômbia, com o objetivo de constatar a situação dos presos políticos. Juan Manuel Santos responde que na Colômbia não há presos políticos.

Ora, uma quantidade enorme de ONGs ligadas aos direitos humanos e o próprio governo sabem que na Colômbia é claro que há presos políticos. Pessoas detidas pela sua militância política e social. E não são duas ou três. Dizer que não há presos políticos já começa a entorpecer o que poderia ser uma excelente forma de começar um diálogo para a paz, especialmente quando a Cruz Vermelha, o Escritório do Alto Comissariado dos Direitos Humanos da ONU reconhecem a existência de pessoas detidas com esse caráter.

Não há lógica em dizer que há conflito armado na Colômbia, mas não reconhecer que há presos políticos como conseqüência do conflito.

O Estado tem que concentrar seus esforços em criar condições para a paz e a libertação dos seqüestrados e, logo, atacar as causas da guerra. A paz tem de ser uma política de Estado e estes espaços devem ser aproveitados para afirmar tal política. O governo deve responder, por exemplo, com uma ação efetiva para definitivamente frear o paramilitarismo.

Correio da Cidadania: A que você se refere quando menciona atacar as causas da guerra?

Pietro Alarcón: Para isso, todos os setores armados têm de parar com suas ações militares, que castigam a população civil e os membros do movimento social organizado. Tem de haver um cessar fogo, uma trégua ou algo desse tipo, porque está demonstrado, especialmente no processo durante o governo de Andrés Pastrana, que é muito difícil que se facilitem as negociações sob fogo cruzado. Ou seja, temos que começar por efetivar o direito à vida e à segurança. Temos que reduzir ao mínimo a violência como mecanismo de solução de conflitos. Que se desmontem, de vez e por fim, os grupos paramilitares que tiram as vidas de sindicalistas.

Não apontei antes, mas, na Colômbia, no ano de 2011, foram assassinados 29 sindicalistas, segundo as estatísticas das Centrais Unitárias de Trabalhadores da Colômbia. Oras, mais de 60%, diz a entidade, dos sindicalistas assassinados no mundo são colombianos. Isso é um escândalo, algo sem nome.

Continuemos reconstruindo as relações no campo, destinando recursos para a infra-estrutura e a produção no campo, tendo um plano concreto de ações de âmbito nacional; continuemos - mas, paralelamente, o Estado também - comprometidos com a garantia e efetivação de liberdades elementares como a de divergir, de manifestação do pensamento, o direito à conformação dos partidos, com independência do seu posicionamento perante o Estado, o que quer dizer liberdade de criticar, de aspirar, de sonhar com algo diferente. Promovamos reformas sociais significativas. Eu penso que privatizar a saúde do jeito que foi feito é um crime e um atentado contra o direito à vida. Entre vida e saúde há uma interligação, uma conexão própria pelo fato de ser um direito fundamental. Violenta-se a proteção da confiança, a proibição de retrocesso, com o plano de privatização também da educação.

A Colômbia, como qualquer Estado que cuide do seu processo civilizatório, tem de pensar nessa geração que está a se formar no país.

Correio da Cidadania: Qual a sua avaliação sobre as FARCs atualmente? Qual o significado político e social de sua atuação nos dias de hoje?

Pietro Alarcón: Isso tem várias arestas. Sociologicamente, a luta armada na Colômbia é um fator histórico e político, faz parte da realidade e atravessa vários períodos. A leitura científica do processo permite distinguir dois grandes períodos. O primeiro podemos chamar de resistência e defesa camponesa; o segundo, de combate militar pelas transformações econômico-sociais.

Agora há uma discussão importante, no seio dos mais diversos setores, que não é apenas uma questão teórica ou acadêmica. O regime político determinou a origem do conflito e esse movimento armado se desenvolveu desde a década dos 50 como uma forma de luta, mas sem que existisse o que os clássicos da política denominam situação revolucionária. Ou seja, as guerrilhas praticam uma forma de luta, mas não é necessariamente a ação armada uma via para a transformação social no contexto atual da Colômbia. E isso é o que está em debate hoje no país.

Eu acho que temos que conduzir a insurgência à paz, e também temos de trazer o Estado à paz. Isso somente será possível com um movimento organizado a partir do social, ganhando consciência, unidade programática, planejamento, para atingir uma nova realidade, com democracia e justiça social, com tolerância, com pleno respeito às liberdades públicas e aos direitos sociais. Daí, que se coloque a questão de um diálogo de paz, no qual os setores armados têm de fazer concessões mútuas.

O Estado não consegue vencer a insurgência, apesar dos golpes que esta sofreu. A “segurança democrática” de Uribe, de acabar com as guerrilhas, não teve o sucesso que esperava o governo. Tampouco as guerrilhas têm condições de avançar a um novo nível de luta que elas colocavam como algo possível ou real.

Nesse impasse, a Colômbia não pode continuar se sangrando. Não podemos abandonar a luta pela paz no meu país. E Santos tem que reconhecer que as FARC são um ator político, coisa que se recusa a fazer. As FARC têm de cumprir seus comunicados e o Estado, se comprometer com mudanças sociais e econômicas. A Colômbia merece essa chance.

Correio da Cidadania: Nessa conjuntura que você expõe, quanto à atual condição geopolítica da Colômbia, como encara a inserção do país no continente latino-americano, em especial, no que diz respeito ao entrosamento com os demais países da América Latina, vis-à-vis o seu relacionamento com os EUA?


Pietro Alarcón: A Colômbia tem uma posição geográfica que a torna altamente importante para os projetos de unidade, de integração, de estabilização da região. Mas precisamente por isso é também um Estado submetido a uma pressão histórica para que seu território seja utilizado com objetivos de projeção político-militar. Não podemos esquecer que a separação do Panamá, em 1903, foi um golpe dos Estados Unidos com o objetivo de posteriormente financiar a construção do Canal do Panamá.

Agora, no atual contexto, no qual conseguimos visualizar projetos de unidade em curso, como a Unasul, o Mercosul, existe, me parece, uma rejeição às intervenções militares e às saídas de força. Simultaneamente, uma reclamação mais incisiva por um comércio multilateral, em tempos em que o sistema econômico internacional evidencia crises cada vez mais freqüentes. A tática dos Estados Unidos, dos TLCs, constitui uma afirmação da sua condição de hegemonia e não permite uma possibilidade de negociação com novas economias com as quais seria possível, pelo menos conjunturalmente, obter vantagens comparativas.

Sobre essas duas bases, a militar e a econômica, afirma-se a estrutura hegemônica de poder, que menciona Pinheiro Guimarães em seus 500 Anos de Periferia. Os Estados da América Latina tem que puxar a Colômbia para a paz, para a condição que lhe permita a manutenção do seu território como cenário de paz, interna e externa.

Esse entrosamento ao qual você se refere é o entrosamento que tem de ser conquistado, mas para o qual a política externa colombiana não demonstra afinidade. Observa-se que a Colômbia votou nas Nações Unidas contra a consolidação do Estado Palestino, votou a favor da agressão à Líbia e pode votar, e é previsível, a favor de uma intervenção militar na Síria. Esse não pode ser o caminho para a paz e a segurança da ordem internacional.

A Colômbia, com TLC assinado, incrementa a condição de hegemonia econômica, quando do que se trata é de eliminar as dependências para poder caminhar economicamente sobre bases sólidas, autonomia monetária, de exploração de recursos naturais com eficiência e equilíbrio, em termos estratégicos.

Aprovando o TLC com Estados Unidos, a Colômbia não somente ocasiona um problema para os médios e pequenos produtores do país, que vêem seus produtos sendo jogados a uma concorrência desleal, como também restringe a possibilidade de um comércio subcontinental em condições mais favoráveis aos projetos de crescimento com redistribuição de riqueza.

Outro aspecto é o financeiro. Se a América Latina resiste a ser vítima da ciranda financeira do binômio dólar-euro, enquanto a Colômbia se atrela em termos financeiros às condições desse binômio, cria-se, obviamente, uma dificuldade para a possibilidade de negociar empréstimos com outros Estados, como os asiáticos, por exemplo. Veja-se que Argentina e Equador, como lembrava um autor dos Estados Unidos numa palestra recente, que não têm acesso a esse binômio, encontraram um respiro em empréstimos com a China. A China emprestou, em 2010, mais dinheiro para a América Latina que o FMI e o BID juntos. Isso é sintomático.

O que pretendo dizer é que existem chances de unidade, a comunidade internacional tem que gerar uma diplomacia ativa e propositiva com relação à Colômbia, colocando o tema da paz, da unidade e da quebra de uma histórica dependência econômica com relação aos Estados dominantes dessa tradicional arquitetura de poder da sociedade internacional.

Correio da Cidadania: Em função dos fatos mais recentes, como encara a cobertura que a Colômbia tem recebido da mídia internamente ao país, no Brasil e também em outros países da América Latina?

Pietro Alarcón: A informação, e não somente sobre a Colômbia, mas, em geral, sobre os processos do restante da América Latina, no Brasil tradicionalmente tem sido muito precária.

Por exemplo, no caso da Colômbia, pouco se aborda o tema da crise humanitária, do número significativo de refugiados colombianos no mundo.

Tampouco há maior cobertura sobre o movimento político ou social. Dá-se muita ênfase ao tema FARC, que é uma parte da situação, é um ator armado, determinante, é claro, mas o movimento social colombiano é muito mais vasto.

O jornal colombiano El Tiempo é propriedade da família do presidente e, logicamente, tem um peso enorme na informação difundida no conjunto do continente.

Correio da Cidadania: E a população colombiana, como percebe hoje o país em que vive?

Pietro Alarcón: Eu responderia à pergunta em várias dimensões. A primeira é que, depois de uma fase na qual parecia perdida a capacidade de assombro do povo colombiano, ou seja, de reagir diante da cotidianidade da guerra, as pessoas ganharam em sentido crítico, tanto diante dos atores armados, quanto na compreensão de seu papel no contexto. Logicamente, esse tipo de análise tem de considerar elementos como a maneira que os meios de comunicação retratam a situação do país. Existe uma camada de colombianos que se convenceu de que a saída militar era uma alternativa, com fundamento nas bases militares e em um espetáculo midiático de muita efetividade.

Existe outra camada beneficiada por programas assistenciais, que no começo dizia ter votado nos candidatos da oficialidade e que serviram de apoio social ao chamado uribismo - a corrente política de maior ligação aos interesses externos. Nessa corrente está o próprio Juan Manuel Santos que, como se sabe, foi ministro de Defesa de Uribe.

Contudo, amplos segmentos da opinião pública sabem que a guerra tem somente um horizonte: mais guerra. Esses segmentos constituem a base social da esperança na paz na Colômbia, por ser um segmento atuante, que opina, se mobiliza.

O movimento social colombiano é de uma diversidade rara no mundo, embora exista um problema de ausência de garantias fundamentais para a ação política. Por exemplo, aponto um dado que também considero significativo. Na Colômbia, hoje, confluem vários esforços, além do Pólo Democrático Alternativo, que é a primeira força de oposição. Há uma experiência muito enriquecedora de movimentos indígenas, como a Minga. Outra experiência é a dos Colombianos e Colombianas Pela Paz.

Existe um processo recente que nasce, sob o título de Marcha Patriótica. A idéia é que todos estes movimentos possam chegar a uma agenda comum, de convergência para uma ampla mobilização pela paz democrática e a justiça social, valores e fins de uma ordem justa.

Correio da Cidadania: O que pensa do fato de a Colômbia não ter convidado Cuba para a Cúpula das Américas, a reunião de abril da OEA?

Pietro Alarcón: Para mim o fato não era esperado, pelo aspecto tático em matéria diplomática. Faço uma análise desde a perspectiva do próprio governo colombiano. Não faz ou não fazia parte da filosofia do governo de Santos ter Cuba longe. O de Santos é um governo que faz questão de se mostrar habilidoso em termos de condução diplomática, especialmente diante de processos políticos diferenciados. É um gesto deselegante, além de um retrocesso para a construção de laços de diálogo e mais um retrocesso da política externa do governo colombiano.

No plano internacional, a Colômbia fica muito mal porque, enquanto a ONU, todos os anos, se pronuncia contra o bloqueio e somente há dois votos no seu seio que ainda o justificam, o governo de Santos deixa o país na contramão da história, que já não suporta mais esse tipo de atitudes no gerenciamento das relações internacionais.

Qualquer analista sério fica com a percepção de que a Colômbia é um Estado associado aos Estados Unidos, em termos políticos, jurídicos e diplomáticos. Logicamente, como estudioso do Direito e das relações internacionais, devemos outorgar a isso um significado no cenário de contradições do continente, das pressões e das ingerências, da fragmentação e da cooptação como táticas da potência que hoje tem uma duvidosa hegemonia.

Mas, como cidadão e como pessoa, acho uma atitude, no mínimo, ridícula para esta época, com todo respeito.  

Correio da Cidadania: Quais os países da América Latina você enxerga como posicionados, atualmente, de forma mais progressista no espectro político?

Pietro Alarcón: Eu entendo que temos a obrigação de ser muito objetivos quanto às mudanças do sistema internacional, da estrutura hegemônica de poder, das mutações aceleradas do sistema econômico, do esgotamento de fórmulas de reprodução do capital, mas também de como este se recompõe, tanto econômica como militarmente.

Nesse cenário, considero de extremo valor a posição que possa ter o Brasil como baluarte de um debate sobre o conteúdo concreto da unidade. Trata-se de um país de diplomacia diferenciada, analítica e com maior alcance, do ponto de vista histórico e geral, e do meu ponto de vista, que as diplomacias de outros Estados do continente.

Nesse campo eu acho que tem de prosseguir o debate que conduza, na prática, à priorização de alianças estratégicas no continente, com fundamento no papel que cada Estado pode desempenhar a partir de um compromisso com a transformação das estruturas econômicas e com uma dimensão da democracia muito mais avançada, que supere a mera participação no processo eleitoral e fortaleça a participação cidadã.

Assim, as possibilidades que temos de construir cidadania social, de efetivar direitos, depende da vontade de gerar mudanças com a participação popular. Isso é o que define o avanço ou retrocesso dos governos.

Há algo que gostaria de apontar. Observa-se como na América Latina há um fenômeno bem interessante, que tem sido analisado muito mais por juristas europeus que latino-americanos, o chamado Novo Constitucionalismo. Há novas constituições em países como Venezuela, Equador e Bolívia. Novas regras do jogo para os diversos atores.

Eu sou dos que acreditam que tais documentos contribuem, e muito, porque são ferramentas para a ação política, social, ferramentas de inclusão, de participação. Na Bolívia a Constituição tem um papel fundamental para o reconhecimento da pluralidade étnica.

Eu não estou expondo que novas Constituições resolvam os problemas. O que expresso é que todos estes movimentos e processos são desconhecidos pela comunidade jurídica e política e que tais documentos são ponto de confluência de um poder constituinte renovado e ponto de início de novos processos. Isso ainda não tem sido analisado suficientemente.

Ainda temos de nos aproximar muito mais para poder gerar espaços de coordenação de atividades em vários campos do conhecimento, da ciência, da cultura, da economia e da política, e sempre em perspectiva transformadora, questionando e atacando as desigualdades, a concentração do poder econômico, a precariedade da cidadania e da democracia.

Correio da Cidadania: E a Venezuela? A Venezuela foi o país que levou adiante o modelo político mais alternativo e combativo na região, ainda que prenhe de polêmicas, limites e contradições. Qual o futuro desse país, não só no que diz respeito às possibilidades internas de sustentação política da alternativa bolivariana, mas quanto às perspectivas de prosseguir como modelo de inspiração para as demais nações latino-americanas?

Pietro Alarcón: Acredito e sempre fiz questão de destacar que é um processo singular. É o processo da Venezuela, que tem características precisas, especialmente porque nesse país houve, e esperamos que isso se mantenha, uma correlação de forças favorável aos trabalhadores, que gerou a contundente vitória eleitoral de Hugo Chávez no seu primeiro mandato. Essa peculiaridade, com o esgotamento das forças que tradicionalmente ocupavam o Estado, não tem se repetido em outros processos.

Manter essa correlação de forças implica aprofundar a democracia participativa e empreender um plano de efetivação de direitos sociais, inédito na Venezuela e acredito que na América do Sul em geral.

Provavelmente, há muitos erros, como em todo processo humano. Um projeto político transformador não está isento de erros, e ele se fortalece quando autocriticamente se corrige. Eu vejo, por exemplo, à distância, a necessidade de um processo mais afirmativo da democracia, mais inspirado na base popular, mais apoiado nos setores populares.

Reitero que não falo de eleições, mas de um processo no qual o povo assuma um papel protagônico. Um processo além da questão eleitoral. Agora, deve se reafirmar, e acho que qualquer análise apontaria tal direção, que o processo se mantém como patriótico, progressista, anti-monopolista e de afirmação da sua soberania. Isso é, por enquanto, o essencial.

Correio da Cidadania: Finalmente, o que significa lutar pelos direitos humanos na Colômbia de hoje?

Pietro Alarcón: Na Colômbia, e acho que em qualquer parte do planeta, lutar pelos direitos humanos é dar sentido à vida, é dar testemunho de que estamos vivos. De outro jeito, as coisas deixam de fazer sentido. É denunciar a agressão, a discriminação, mas é também ser propositivo e profundamente ético e responsável no nosso compromisso como seres humanos.

Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.