sexta-feira, 27 de abril de 2012

Noam Chomsky escreve – e fala – sobre o Occupy


Outubro de 2011: em Nova York, manifestantes do Occupy protestam fantasiados de zumbis, diante da Bolsa

Entrevistado ao lançar novo livro, ele debate perspectivas do movimento, Primavera Árabe, crise da democracia, internet e como os EUA produziram seu próprio declínio

Entrevista a Joshua Holland, do Alternet | Tradução: Daniela Frabasile

No ano passado o movimento Occupy espalhou-se espontaneamente por inúmeras cidades dos Estados Unidos. Mudou radicalmente o discurso e fustigou a elite econômica com sua desafiante defesa das maiorias. Foi, para Noam Chomsky, “a primeira grande resposta pública a trinta anos de guerra de classes”. Em seu livro mais recente,
Occupy, Chonsky debate os principais temas, questões e reivindicações que estão levando cidadãos comuns a protestar. Como se chegou a tal ponto? De que modo o 1% de mais ricos influencia as vidas dos outros 99%? Como se pode separar Política de Dinheiro? Que seria uma eleição genuinamente democrática?
Na semana passada, Chomsky foi entrevistado na web-rádio do site Alternet. Eis uma transcrição, levemente editada por motivos de clareza, de sua fala. A gravação original (em inglês) pode ser ouvida aqui.  

Joshua Holland:Eu queria perguntar sobre algumas tendências que moldam nosso discurso político. Eu li muitos de seus livros, e um que eu achei importante foi O consenso fabricado, do final dos anos 1980. Desde então, houve grandes mudanças. A mídia dominante está mais consolidada mas temos, ao mesmo tempo, uma proliferação de outras formas de mídia. Você acha que o alcance do que é considerado um discurso aceitável foi ampliado ou restringido?
Noam Chomsky: Na verdade, Ed Herman e eu lançamos uma segunda edição desse livro uns dez anos atrás, com uma nova (e longa) introdução. Na época, não víamos muitas mudanças, mas se fôssemos fazer de novo, certamente abordaríamos o que você mencionou. Lembro que estávamos falando sobre a mídia dominante. Em relação a isso, acho que praticamente a mesma análise se sustenta, apesar de meu sentimento ser de que, desde 1960, houve abertura no mainstream – como efeito do ativismo da década de 60, que mudou as percepções, atitudes, e civilizou o país de muitas maneiras. Assuntos que são discutidos abertamente hoje eram invisíveis, e, se visíveis, não eram mencionados há cinquenta anos.
Além disso, muitos jornalistas são, eles mesmo, gente cuja formação se deu no ativismo dos anos 60 ou nos seus desdobramentos. Essas mudanças estão se dando por um longo tempo. Com relação às mídias alternativas, elas certamente proporcionam uma grande variedade de opções que não existiam antes – o que inclui o acesso à mídia estrangeira. Por outro lado, a internet é, de certa forma, como entrar na Biblioteca do Congresso. Tudo está lá, mas você tem que saber o que esta procurando. Do contrário, você pode não ter acesso nenhum à biblioteca, porque daria no mesmo. Por exemplo, não é suficiente entrar na biblioteca de Biologia de Harvard para tornar-se biólogo. Você tem que ter as bases para o entendimento, uma concepção do que é importante e do que não é; do que faz sentido ou não faz. Não uma base rígida que nunca se modifica, mas você precisa ao menos ter algum tipo de base.
Infelizmente, isso é bem raro, quando faltam movimentos ativistas que atraiam uma parte substancial da população para interação, intercâmbio – o tipo de coisa que ocorria na comunidade do Occupy por exemplo. Na ausência disso, a maioria das pessoas fica meio à deriva, na internet. Sim, é possível encontrar coisas de valor, mas você tem que saber procurar por elas e ter as bases de análise e percepção que permitam separá-las do lixo.

Separar o joio do trigo..
Chomsky: Sim – o que exige organização e ativismo. É o tipo de coisa que tem que ser feita com outras pessoas. Você tem que ser capaz de testar ideias e obter reações. Você tem que apurar suas percepções. Isso realmente não ocorre sem uma organização substantiva. Existe um intercâmbio na internet, mas ele tende a ser superficial.
Vamos voltar ao seu livro. Chama-se Occupy, é uma leitura boa e rápida. Você faz um ótimo trabalho explicando a guerra de classes promovida pela elite econômica nos últimos trina ou quarenta anos. Mas a pobreza é relativa: americanos vivendo na linha de pobreza ainda possuem uma riqueza maior que 80 ou 90 % da população mundial. Poucas pessoas passam fome nesse país, e a atual tendência [para a desigualdade] não é algo novo. Qual foi o ponto de virada? A gravidade da recessão? O que mais ajudou a abrir os olhos das pessoas?
Chomsky: Você está certo ao dizer que estamos melhor que a maior parte do mundo. Antes de falar com você, eu conversava com uma mulher da Índia, que vive e trabalha há muitos anos em vilas localizadas numa das áreas mais pobres do país. Ela descria suas atividades: seus sucessos e fracassos. É um mundo radicalmente diferente. As pessoas aqui não vivem em condições comparáveis às da idade da pedra. Eles se comparam com o que está disponível para uma vida decente na sociedade em que vivem. Esse é o país mais rico e poderoso de toda a história do mundo. Isso tem vantagens extraordinárias. Comparando com o que está disponível aqui, e, dadas as circunstâncias, com o que está disponível para a maioria da população – o imaginário dos 99% do movimento Occupy – existe um abismo enorme.
Por exemplo, não temos o tipo de sistema de saúde que outras sociedades comparáveis têm. Não temos infra-estrutura equivalente. Nos últimos trinta anos – mesmo sem contar com a última recessão – houve uma relativa estagnação da grande maioria da população. O que realmente aconteceu está muito bem contado em um pequeno livro que foi publicado depois do meu. E uma recente publicação do Economic Policy Institute, que tem sido a fonte principal de dados confiáveis nos últimos 30 ou 35 anos. Chama-se Failure by Design [“Fracasso Projetado”]. É uma leitura fácil e que vale a pena. O título é bastante preciso. Estamos [nos Estados Unidos] em meio a um fracasso, na medida que grande parte da população não viveu essencialmente progresso nenhum, ainda que uma riqueza substancial tenha sido produzida. A própria economia é muito menos produtiva do que deveria ser. A produção do tipo de bens de que as pessoas precisam é menos ainda. É claro que uma pequena parte da população – os 0,1% – obteve sucesso espetacular.
É um fracasso baseado na diferença de classes, e foi projetado. Esse é o fato crucial. Existiram e ainda existem outras opções disponíveis. As coisas não precisam acontecer assim. Por isso, acumulam-se tantos temores, raivas, frustrações. Tudo isso está visível nas pesquisas. Há ódio às instituições e desconfiança por todo o país, e isso tem aumentado há um bom tempo. O movimento Occupy conseguiu capturar o sentimento e cristalizá-lo. É assim que os movimentos populares crescem.
Tomemos como exemplo o movimento de direitos civis. Ele existiu por décadas, mas poucas coisas produziram desenvolvimento importantes. Por exemplo, a atitude Rosa Parks, ou estudantes negros sentando nas lanchonetes em Greensboro, na Carolina do Norte. As coisas acontecem de repente e, do nada, surge um movimento popular. O mesmo aconteceu no movimento contra a guerra, os movimentos feministas, os ambientalistas, ou o movimento por justiça global.
O Occupy eclodiu no momento em que era mais necessário, e acho sua estratégia brilhante. Se tivessem me perguntado, eu não a teria recomendado. Nunca pensei que fosse funcionar. Por sorte, eu estava errado. Funcionou muito bem. Dois grandes processos se deram, em minha opinião, e se puderem ser mantidos e ampliados, será extremamente importante. Um foi simplesmente mudar o discurso, colocando na agenda temas que estavam fervendo nos bastidores, mas nunca eram o foco principal – como a desigualdade, a corrupção financeira, a fragmentação do sistema democrático, o colapso da economia produtiva. Estes assuntos tornaram-se comuns. Isso foi muito importante.
Outro fenômeno que surgiu, e é difícil de medir, foi a criação de comunidades. As comunidades do Occupy foram extremamente valiosas. Formaram-se espontaneamente, com base no auxílio mútuo, intercâmbio público e outras coisas que fazem muita falta, em uma sociedade pulverizada como a nossa, onde as pessoas estão sozinhas. A unidade social por que o mundo dos negócios luta é apenas uma díade, um par. Você e sua televisão e seu computador. O Occupy quebrou isso de forma extremamente significante. A possibilidade de cooperação, solidariedade, apoio mútuo, discussão pública e participação democrática é um modelo que pode inspirar as pessoas. Muitas pessoas participaram disso, pelo menos de forma periférica.
Se estas duas conquistas puderem ser mantidas e expandidos, poderá haver um impacto de longo prazo. Não será fácil, há existem desafios imensos. As táticas terão que ser ajustadas, como sempre, mas o que aconteceu foi um ponto de virada. Se você pensar no que aconteceu em apenas alguns meses, é surpreendente.

Vamos mudar de assunto um pouco. Você falou e escreveu muito sobre a chamada Primavera Árabe. Parece que esse “despertar” tem sido desigual, assim como a reação do governo dos Estados Unidos a ele, nos vários países. O governo hesitou, mas de certa forma apoiou a revolução no Egito, usou a força na Líbia, e ao mesmo tempo fecha os olhos enquanto a Arábia Saudita e outras forças defenderam o regime no Bahrain – um movimento que estranhamente coloca os governos dos Estados Unidos e do Irã no mesmo campo. Como podemos entender essas contradições… ou desenvolvimentos desiguais?
Chomsky: Em primeiro lugar, acho que a política dos Estados Unidos tem sido bastante consistente, o que é verdade também em relação à Inglaterra e à França. A França é muito influente na parte ocidental da África e no norte do continente: a Tunísia era como um protetorado francês. As potências imperiais tradicionais têm uma posição muito consistente: elas opõem-se às tendências democratizantes em qualquer, lugar nessa região.
Você afirma que os Estados Unidos apoiaram, hesitantes, a derrubada da ditadura no Egito, mas isso é parcialmente verdade. O que vimos foi um padrão muito tradicional de atitude. O ditador preferido torna-se cada vez mais difícil de apoiar. No fim, o exército volta-se contra ele. Nesses casos, e existem dezenas deles, existe um tipo de conduta que é seguido rotineiramente. Apoia-se o ditador e o regime tanto quanto possível. Quando isso se torna impossível – por exemplo, se o exército volta-se contra o ditador, como no Egito – então, os EUA mandam-no embora, declaram seu amor à democracia e tentam restabelecer tanto do regime antigo quanto possível. Foi basicamente o que aconteceu.
O maior sucesso da Primavera Árabe é, até agora, a Tunísia. Os franceses apoiaram a ditadura, mesmo quando o levante popular era maciço. Continuaram a apoiá-la, até que finalmente se afastaram. Tem havido uma real participação popular na Tunísia, que muda muito as coisas. Há vários problemas, mas houve progressos consideráveis. No Egito, que é o país mais importante e onde coisas muito animadoras aconteceram, houve vários retrocessos. Muito do antigo regime está de volta. Os grupos islâmicos que se organizaram sob a ditadura, em favelas urbanas e nas áreas rurais, agora têm uma grande estrutura organizacional, que lhes permite – particularmente à Irmandade Muçulmana – manter influência dominante em qualquer espaço político formal existente hoje.
Os Estados Unidos podem viver com eles. A liderança da Irmandade Muçulmana é neoliberal. Ela basicamente aceita a estrutura das políticas globais estadunidenses. Os Estados Unidos não têm objeção ao domínio islâmico. A Arábia Saudita, que é um grande aliado, é o estado mais extremamente fundamentalista islâmico do mundo, e um dos mais opressivos. Os Estados Unidos não têm problemas com isso. Pode ser islâmico ou qualquer outra coisa, desde que aceite as estruturas do poder global dos Estados Unidos.
Não tenho tempo de ir de caso em caso, mas acho que, se você observar, irá concluir que todos os casos são essencialmente iguais neste padrão – os Estados Unidos e seus aliados temem um progresso democrático real, e tentam bloqueá-lo. Existe uma razão muito simples para tanto. Examine as pesquisas. Existem amplas sondagens de opinião pública, feitas pelos Estados Unidos e por organizações árabes confiáveis. Todas indicam que naquela região as sociedades veem, como maior ameaça, os Estados Unidos e Israel.
Eles não gostam do Irã, bastante impopular. Isso vem da tensão entre persas e árabes. As tensões entre sunitas e xiitas também vêm de longa data. O Irã é impopular, mas poucos o veem como uma ameaça. Na última pesquisa, há algumas semanas, eram 5%. A oposição à política dos Estados Unidos é tão forte que a maioria – e em alguns países, a grande maioria – pensa que a região estaria melhor se o Irã tivesse armas nucleares. Eles não gostariam que houvesse armas nucleares lá, mas querem compensar o poder dos Estados Unidos e de Israel. Uma recente pesquisa do Gallup mostra que mais de 80% dos egípcios querem rejeitar a ajuda dos Estados Unidos, porque se opõem ao país e têm medo de ameaças.
Essas não são posturas que os Estados Unidos e seus aliados desejam, obviamente. Se você tem uma democracia que funciona, a opinião pública influencia a política. Por isso, Washington se opõe à democracia. Você não lê isso na mídia e nos jornais. Fala-se sobre nosso amor à democracia e sobre nossa suposta inconsistência: por que aqui sim, e lá não? Na verdade, há muito pouca inconsistência. Aliás, isso é confirmado pelos estudiosos mais sérios, que reconhecem, meio que lastimosamente, o apoio dos Estados Unidos à democracia, apenas como estratégia e por objetivos econômicos. É verdade na América Latina, é verdade no Oriente Médio, é verdade em qualquer lugar. É verdade aqui em casa, também. É completamente inteligível, não deveríamos alimentar ilusões sobre isso. Pode não ser o que as pessoas nos Estados Unidos querem, mas aqui, e em outros países, há, entre a opinião pública e as políticas um grande hiato, um sinal de não funcionamento da democracia. É, aliás, uma das razões para o enorme um antagonismo da população para com o Congresso. A aprovação do Congresso está na casa em um dígito. Acho que nunca foi menor.

Numa pesquisa recente, 11%.

Chomsky: É praticamente invisível. O mesmo é verdade em relação a instituições que atuam no exterior. Grandes corporações, bancos, ciência, várias coisas.

Apenas o exército ainda aparece bem, em termos de confiança das pessoas nas instituições. Elas ainda confiam no exército.

Chomsky: Você tem razão. Nada disso é saudável – na verdade, tudo é muito perigoso. Reflete basicamente o desgaste do funcionamento da democracia, que vem de muito tempo. O fato de as eleições serem essencialmente compradas tornou-se tão evidente que é difícil de esquecer.

Falando sobre tendências internacionais, o que você acha da crescente visão de que os Estados Unidos são um império em declínio? De um lado, certamente parece que nosso chamado soft-power está diminuindo, mas é preciso contrastar isso com nosso crescente domínio militar na era pós-Guerra Fria e especialmente em seguida ao 11 de Setembro. Estamos realmente em declínio?

Chomsky: Sim, estamos. Os Estados Unidos estão em declínio desde 1945. No final da Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos estavam em uma posição de poder fenomenal. Tinham metade da riqueza do mundo. Tinham segurança total. Controlavam o hemisfério ocidental. Controlavam os dois oceanos e as margens opostas dos dois oceanos. Tinham objetivos muito ambiciosos de controlar a maior parte do mundo e assegurar que não houvesse objeções a esse domínio. Isso era muito explícito e amplamente implantado. O país entrou em declínio muito rápido.
Em 1949, houve um grande evento, que é chamado aqui de a “perda” da China. Significa que o país tornou-se independente. Isso é uma enorme fonte de controvérsias e conflitos nos Estados Unidos desde então – as pessoas perguntam quem é responsável pela “perda” da China… Logo depois disso, começaram a se preocupar com a “perda” da Indochina, que espalhou a preocupação de que haveria a “perda” do sudeste asiático. O conceito de “perda” é interessante. É uma pretensão tácita de que são basicamente… nossos.
A situação se desfez ao longo dos anos. Em 1970, o percentual da riqueza mundial nos Estados Unidos era aproximadamente 25% – o que ainda é colossal, mas não é 50%. O mundo já estava se tornando mais diverso. Na última década, a América do Sul adquiriu substancial independência. Vimos isso recentemente na Conferência de Cartagena, na Colômbia. Os EUA mantiveram-se em posição isolada em todos os grandes temas: drogas, Cuba e outros. É um sinal de significativa perda de poder e influência. Agora, ocorre no Oriente Médio. É outra razão pela qual os Estados Unidos e seus aliados estão tão preocupados com a ameaça da democracia e da independência. .
Você tem razão ao dizer que o poder militar não declinou. Na verdade, pode ter se ampliado, em comparação com o resto do mundo. Os Estados Unidos são responsáveis por quase metade dos gastos militares do mundo. O único país com centenas de bases e com a habilidade de se projetar em qualquer lugar. Novas tecnologias de destruição e assassinato – drones, por exemplo. Estão muito à frente do resto do mundo.
Você também citou o chamado soft-power. Isso é importante. A capacidade de influência continuou a cair, como tem acontecido desde 1945. Uma forma de ver isso são os vetos na ONU. Até meados da década de 1960, o mundo estava tão sob controle que os Estados Unidos não vetaram nenhuma resolução no Conselho de Segurança. Desde então os Estados Unidos são o líder em vetar resoluções. A Inglaterra, um estado-cliente dos EUA, fica em segundo. Nenhum outro país chega perto. Esse é um reflexo do declínio de capacidade e poder, o que significa a habilidade de influenciar e controlar.
Parte desse declínio é auto-infligida. O que o Economic Policy Institute chama de “fracasso projetado” enfraqueceu significantemente os Estados Unidos, e irá continuar – a não ser que aconteçam grandes mudanças. Mudanças que beneficiariam a população aqui e no mundo.
Há uma espécie de conclusão comum deste raciocínio que supõe uma futura hegemonia chinesa. Deveríamos ser cautelosos quanto a isso. O crescimento chinês tem sido espetacular, mas a China ainda é um país muito pobre – incomparavelmente mais pobre que os Estados Unidos. A China cresceu como um enorme centro industrial, mas principalmente para montagem. É principalmente uma plataforma de montagem para países de indústria sofisticada e multinacionais ocidentais como a Apple ou outras. Isso irá mudar com o tempo, mas é um percurso longo. A China enfrenta problemas reais: ecológicos, demográficos e muitos outros. É um desenvolvimento significativo, mas acredito que deveríamos olhá-lo com algum ceticismo.
Sim, esses processos estão sem dúvida ocorrendo. Eles são parcialmente projetados. Um setor da sociedade está incrivelmente bem – em especial, o ligado ao capital financeiro. Para o público em geral, a história é diferente. É por isso que você vê revoltas em toda a parte.

''O jornalismo pode ser transformador, pode embalar a utopia''

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 "Levar o leitor espectador a pensar. Isso é praticamente uma revolução”, assegura a jornalista Elaine Tavares

IHU Online

 “Temos um mundo a construir”. Portanto, “ousem ouvir as vozes hereges, ousem criar grupos de estudo, ousem navegar nos livros velhos escondidos nas prateleiras”. É com esse conselho, que a jornalista Elaine Tavares incentiva os estudantes de Comunicação e colegas de profissão a compreenderem “que há mais coisas no jornalismo do que aquilo que é repetido nas salas de aula”.
Com uma longa experiência em diversos veículos de comunicação, Elaine enfatiza que os jornalistas devem caminhar em busca da boa utopia e isso significa ultrapassar as barreiras de manipulação à direita e à esquerda, e praticar jornalismo “como uma forma de conhecimento”. Autora do livro recém lançado, Em busca da Utopia – os caminhos da reportagem no Brasil, dos anos 50 aos anos 90 (Florianópolis: Ed. Instituto de Estudos Latinoamericano-Americanos, 2012), ela ressalta que a prática jornalística pode levar o “leitor/espectador a pensar, a se desalojar do mundo tal qual ele é – injusto, opressor, excludente”. Nesse sentido, assegura: “O jornalismo pode ser transformador, pode embalar a utopia”.
Para que os jornalistas não deixem morrer as suas utopias e as levem adiante na prática do dia a dia, os cursos de jornalismo “precisam ensinar a pensar”, pois o “o jornalista que pensa tem mais chance de caminhar na direção da utopia”, assinala à IHU On-Line. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Elaine reflete sobre a prática jornalística e o desafio das universidades de formarem profissionais críticos. “Um aluno do jornalismo deveria ter uma sólida formação humanística, política e econômica, deveria entender os grandes problemas estruturais de seu país e de seu continente”, diz. Para isso, assegura, “primeiro há que mudar a universidade, subverter esse ensino que domestica. Há que se produzir um pensamento autóctone sobre o jornalismo, conhecer nossos pensadores do passado, avançar com eles, superá-los. Há que conhecer a história do nosso povo, há que estudar filosofia, reaprender a pensar. Depois disso, há que voltar a narrar a vida com um texto que descreve, que narra, que contextualiza”.
Elaine Tavares é jornalista do Instituto de Estudos Latino-Americanos – IELA, da Universidade Federal de Santa Catarina e escreve no blog Palavras Insurgentes, no endereço eletrônico http://eteia.blogspot.com.br/.
Confira a entrevista.

IHU On-Line – O que caracteriza o jornalismo utópico?

Elaine Tavares – Na verdade, não há um jornalismo utópico. O que busquei foi ver se, como e onde aparecia a utopia no jornalismo (que era e é o meu fazer cotidiano) já que esse desejo de um lá-na-frente melhor parece ser algo que faz parte da consciência humana. E por que eu decidi fazer essa busca? Porque naqueles dias do final dos anos 1990 havia uma espécie de histeria na mídia e nas esferas intelectuais sobre o fim de todas as utopias. Falava-se do fim da história, fim do socialismo, fim das grandes narrativas. Eu não acreditava nisso, porque via a utopia aparecer explícita no Equador, onde os indígenas ocupavam as igrejas e exigiam seus direitos, e principalmente no México, onde os novos zapatistas faziam um enfrentamento armado ao Estado, usando a internet como um elemento de potencialização dessa resistência. Então, se a realidade me dizia que a utopia vivia, não dava para crer no que apregoavam alguns filósofos, notadamente europeus. Então fui buscar na narrativa jornalística, o sinal dessa utopia. E encontrei. A vida real, quando narrada, escancara a utopia humana. E também percebi que as utopias podiam estar claudicando lá na Europa, mas não aqui na América Latina. Ao contrário, aqui vivíamos um alvorecer de novas e belas utopias.

Como a utopia aparece nas reportagens brasileiras produzidas entre os anos de 1950 e 1990, nas revistas O Cruzeiro, Realidade, Veja e Época?

Há um teórico brasileiro chamado Teixeira Coelho que fez um trabalho muito interessante sobre a utopia. E ele vai além da ideia de que a utopia é só um lá-na-frente esperado. Ele divide a utopia em duas vias: a eutopia, que seria a construção de um lá-na-frente bom, e a distopia, que seria um lá-na-frente ruim (ele coloca nesse patamar o nazismo, por exemplo, que era o sonho de um homem, e acabou sendo o de parte de uma nação). Então, com base na ideia de Ernest Bloch – que fala da utopia como a negação de um real que não é bom e a busca de um lá-na-frente possível – junto da proposta de Teixeira Coelho, fui analisar as revistas. O que descobri foi que a utopia aparece em todas essas revistas, mesmo na Veja e na Época – que fazem um péssimo jornalismo. E como? Na Cruzeiro, a utopia assoma na forma de narrar. É quando a reportagem começa a se constituir como texto descritivo, interpretativo, para além da opinião. Esse tipo de narrativa consegue também trazer para o texto a utopia da época, anos 1960, tempos de grandes mudanças culturais e políticas, nova temperatura no mundo. Na revista Realidade a utopia se mostra plena, com a reportagem – texto e foto – sendo capaz de expressar o espírito da época, que era de revoluções. Mesmo sendo feita dentro de um regime militar, como o vivido no Brasil, a Realidade trazia temas instigantes e reportagens descritivas que pareciam roteiros cinematográficos, tamanha a sua capacidade de transportar o leitor para dentro da história. Ali, a forma de narrar impressionista chegava ao seu auge. Expunha as chagas abertas da vida brasileira em histórias reais e o jornalismo adquiria o sentido da arte. A revista Veja atravessa os anos 1980 e 1990 como um fenômeno editorial e, por incrível que pareça, também apresenta a marca da utopia, nesse caso como distopia (lugar ruim). Busca, na nova narrativa hegemonizada e impessoal, sem marca de autor, consolidar uma sociedade submetida à indústria cultural. E aí, o jornalismo deixa de ser uma narrativa impressionista, descritiva e interpretativa e passa a ser uma espécie de “gosma“, sem forma e sem sabor. Ainda assim, mesmo nela, de vez em quando aparece um texto de autor, no qual o jornalista ousa narrar a vida mesma, e aí aparece de novo a utopia como eutopia. É muito bonito de ver. Por fim, a Época, que aparece para “arrebentar“ nos anos 1990, com seus drops informativos e infográficos, chega ao ápice da distopia, com o jornalismo perdendo todas as suas características como narrativa da vida. Os textos são horríveis, retalhos de vários olhos, sem identidade. A maioria das reportagens são autopropaganda da Globo, ou seja, a revista servindo como espaço para vender ainda mais a programação da TV. E ali, no auge da gosma, um ou outro jornalista-autor também aparece e faz aparecer a utopia como um raio de luz. 

Sob quais influências se construiu o pensamento teórico acerca do jornalismo e da reportagem no Brasil?

Essa foi outra curiosidade minha. Durante meu tempo na faculdade era comum a gente estudar autores estrangeiros, falar do jornalismo que se fazia nos Estados Unidos e muito pouco se falava dos autores brasileiros. Então fui procurar quem tinha sido o “guru“ de cada época. Foi um trabalho muito legal porque acabei encontrando autores incríveis, com pensamentos muito originais sobre o jornalismo, como, por exemplo, Celso Kelly, que chegou a escrever uma teoria estética para o jornalismo, e Antônio Olinto, que é uma preciosidade. Ele diz: o jornalista tem que ser como o artista, que mantem intacta em si a capacidade de sentir e transmitir sentimentos estranhamente verdadeiros. Não é bárbaro? Agora, é claro, o jornalismo brasileiro pós-1950 se constituiu hegemonicamente como cópia do jornalismo estadunidense. Os autores mais originais ficaram à margem e não é sem razão que são praticamente desconhecidos nos cursos de jornalismo hoje. Por exemplo, o chamado “novo jornalismo“, incensado como um jeito de narrar nascido nos EUA, já era uma prática aqui no Brasil bem antes de surgir por lá. Pode-se ver esses textos intimistas e impressionistas na revista O Cruzeiro. São as coisas do nosso colonialismo mental. Infelizmente o jornalismo que se pratica no Brasil – na maioria dos veículos – segue sendo uma cópia mal aparada do jornalismo estadunidense. Uma pena. Temos uma linda história e bons teóricos, como é o caso do Adelmo Genro, que, a meu ver, é o que há de mais original na discussão do fazer jornalístico. Um autor para ser estudado à exaustão.

No caso específico da revista Veja, que mudanças editoriais e utópicas percebe ao longo do tempo?

A Veja é um caso de autofagia (de uma empresa) em nome de um modelo de mundo. Explico. Ela nasce nos anos 1970 dentro da mesma editora que fazia a Realidade, que era uma beleza de revista, com reportagens incríveis. E ela vem para implantar no Brasil um estilo de jornalismo que assomava nos Estados Unidos. Essa coisa insossa de informação sem contexto, e que não é uma ação sem sentido. Ela é parte de um modo de ser e estar no mundo. Escrever como se estivesse informando, mas sem na verdade informar. A Veja entrou no mercado e matou a Realidade, que era o jornalismo de profundidade, que levava ao pensamento, ao questionamento. A mesma empresa mata uma revista boa para que a revista ruim pudesse começar a atuar como a usina ideológica de um modelo que se queria para o Brasil. Foi um projeto utópico (distópico) da classe dominante. Trazer a “modernidade“ e emburrecer as pessoas. Encurtam os textos, tiram o contexto, passam a doutrinar. Já não era mais jornalismo. Basta ver o que é a Veja hoje: uma máquina de propaganda da distopia da direita brasileira. Jornalismo ali é coisa rara. Quando aparece é obra solitária de algum jornalista.

Partindo do pressuposto de que a utopia é parte da consciência do ser humano, como o jornalista lida com sua utopia pessoal em veículos que têm visões de mundo divergentes, especialmente no caso dos oligopólios que dominam a informação?
Penso que o jornalista tem algumas opções na vida. Uma delas é a de ser fiel às suas utopias, aos seus sonhos, e aí, se ele está trabalhando numa empresa grande, que não tem compromisso nenhum com o jornalismo ou com a mudança do mundo, o seu compromisso é abrir brechas na parede. Muitas vezes os jornalistas são obrigados, por força da necessidade, de estar nesses lugares. Mas isso não significa que ele tenha de abortar suas utopias, sua vontade de narrar o mundo. Ele ou ela vai ter de pelear, lutar pelas suas matérias. Eu creio firmemente que um texto bom, bem elaborado, tem lugar mesmo nas “gosmas“. Pude comprovar isso na pesquisa. Belos textos aparecem na Veja e na Época. Porque certamente ali estavam jornalistas que transcenderam à mediocridade, à autocensura, e produziram belezas. E assim é no cotidiano dos grandes jornais ou revistas. Faz-se muita porcaria, mas vez ou outra a gente pode subverter, “oferecer a mais fina iguaria“, como dizia o Marcos Faerman. Tem uma professora da FURB, Universidade de Blumenau, Rosiméri Laurindo, que escreveu um livro muito interessante (com base em Adelmo Genro), no qual ela mostra bem como um jornalista pode virar um jornalista-marca, sem identidade, cativo dos desejos patronais, e como pode ser um jornalista-autor, capaz de voos solos, de textos eternos e de expressar a utopia da raça. 
Agora, é claro que também existem aqueles jornalistas que têm como utopia a construção do seu próprio mundo e aí viram serviçais do sistema, dos patrões, de um modo de vida que exclui a maioria. Com esses há pouco a fazer; temos de combater. Mas a maioria sonha com um mundo melhor e pode usar esse desejo para narrar a vida em movimento, narrar descrevendo, que é a melhor forma de transformar o mundo. Como dizia Bloch, é na visão do que não pode ser verdade que a gente caminha para o lá-na-frente onde todos possam bem-viver. Ou, nas palavras do Antônio Olinto: é na descrição que o jornalista formula a mais poderosa das opiniões.

O jornalismo tem de ser utópico? Qual a importância da utopia para o jornalismo?

Quem tem de ser utópico é o jornalista. Por exemplo, não dá para ver o despejo das famílias de Pinheirinho e não pensar que algo está muito errado. Na narrativa dessa violência deixar aberto para o leitor ou espectador a possibilidade de ele dizer: “isso não pode ser“. Essa é a utopia da qual o jornalismo é capaz. Levar o leitor espectador a pensar. Isso é praticamente uma revolução.

Historicamente, o jornalista foi abandonando a sua utopia por conta da empregabilidade, ou a utopia ainda faz parte da prática jornalística?

Faz, eu trabalho dioturnamente com jornalistas que utopicamente narram a vida. Estão aí nos sindicatos, nos movimentos sociais e até nas grandes empresas, nas pequenas cidades, na internet. São aqueles dos quais falei acima. Não se rendem, não se autocensuram, fazem as matérias, narram a vida em movimento. Se alguém os censura, o ônus não é deles. Eles fazem o que tem de fazer, descrevem a realidade, cumprem a sua utopia. A empregabilidade não pode servir de escudo para a gente se anular. Eu sempre dou meu próprio exemplo. Trabalhei em todas as áreas do jornalismo, TV, rádio, jornal, grandes empresas, sindicatos, instituições públicas e nunca deixei de ser quem sou ou de escrever, desvelando o que fica encoberto. Nem por isso morri de fome. A gente é demitido, passa aperto, mas a gente segue em frente. Temos outro projeto de vida.

Que utopias caracterizam as reportagens e, especificamente, o jornalismo do século XXI praticado no Brasil?

O jornalismo praticado hoje é muito ruim, se é que ainda é jornalismo. Chomsky diz que é mera propaganda. E isso vai da domesticação que uma boa parte dos cursos de jornalismo ajuda a fazer. Para se ter uma ideia, aqui em Santa Catarina o curso de Jornalismo tem uma “Cátedra RBS“, acredita? Ou seja, em vez de termos uma Cátedra América Latina, ou Cátedra Marcos Faerman, enfim, fatos e pessoas que acrescentam na formação do jornalista, o que existe é uma formação direcionada para o mercado que mais explora, que mais desinforma. Uma tristeza.
De qualquer sorte, temos um mundo a construir. A utopia do socialismo – por mais que digam que se acabou – segue viva, tremendamente viva. Na América Latina assoma hoje a luta dos povos originários por um modelo diferente de desenvolvimento, que eles chamam de bem-viver (sumac kausay). É uma inversão total da lógica, a negação do modelo capitalista que tanta miséria, dor e opressão traz ao mundo. Essa é uma boa utopia na direção da qual muitos de nós caminhamos. Socialismo, sumac kausay, terra sem males são eutopias (utopia que leva a um lugar bom) que merecem ser consideradas e conhecidas. Com isso em mente, podemos praticar o jornalismo como uma forma de conhecimento – tal qual ensinou Adelmo Genro. Não como manipulação à direita ou à esquerda, mas como uma singularidade que caminha para o universal, que leva o leitor/espectador a pensar, a se desalojar do mundo tal qual ele é – injusto, opressor, excludente. O jornalismo pode ser transformador, pode embalar a utopia. Mas, para isso, nos cursos de jornalismo, precisamos ensinar a pensar. O jornalista que pensa tem mais chance de caminhar na direção da utopia. 

O que dificulta hoje a produção de um jornalismo crítico?

Justamente a má formação. Hoje aposta-se muito mais na técnica. Prefere-se usar um curso de jornalismo para ensinar a gurizada a fazer web páginas, a usar o Premiere, o Ilustrator e tantos outros programas. Isso é muito bom, mas se não houver a prática do pensamento crítico, não vai servir de nada. Que adianta saber fazer uma página e não saber o quê escrever nela? O Marcos Faerman, que foi um grande repórter, dizia que esse papo de fazer texto curto é bobagem. Leitor só não lê texto ruim. Se for bom, se tiver contexto, impressão, descrição, se contar uma história, o texto carrega o leitor por páginas e páginas. Essa coisa de dizer que as pessoas não têm tempo para ler é mantra de quem ou não tem capacidade de escrever textos belos, ou está mancomunado com o sistema que quer fazer do público uma massa informe.
Eu ando por aí falando com os estudantes de jornalismo e vejo os olhinhos deles brilhando quando a gente fala em textos descritivos, impressionistas, cheios de histórias. É o que eles querem fazer. Para isso é preciso antes aprender a pensar, a perguntar, a investigar. É para tal finalidade que deveria servir a universidade. Para apresentar aos alunos os pensadores da nossa terra, os pensadores latino-americanos, tanta gente fantástica que produziu e produz um pensamento original, alavancado na experiência histórica e geográfica. E é uma gente desconhecida.

No livro você resgata teóricos como Danton Jobim, Alceu Amoroso Lima, Antônio Olinto e Celso Kelly, que não são muito utilizados nas universidades. Qual a contribuição deles para refletirmos sobre a prática jornalística?

Fundamental. Navegar pelas páginas desses autores nos ajuda a entender a história de uma época, nos leva a perceber os interesses envolvidos, os sonhos, as utopias de cada um e do tempo que eles representam. Jobim, por exemplo, é um dos primeiros a pensar uma filosofia do jornalismo. Ele é um liberal, apaixonado pelo modo de fazer jornalismo dos estadunidenses, mas se lido no contexto histórico, adquire uma beleza incrível. É fabulosa a defesa que ele faz da informação, contra o jornalismo opinativo que existia nos anos 1950. Claro que ele defende o modo capitalista de produção, a informação como produto, mas ele pensa um momento de mudança de temperatura do mundo. Nós precisamos conhecer isso, ver como o pensamento vai se formando e hegemonizando todo um fazer. Celso Kelly também tem suas complicações políticas, mas a teoria estética do jornalismo é uma beleza. A gente lê e a cabeça fica cheia de ideias, de pensamentos pulando, querendo sair. É instingante e perturbador. Alceu Amoroso Lima discute o uso das técnicas literárias no jornalismo, o que o “novo jornalismo“ vai fazer nos anos 1960 e 1970, e Antônio Olinto liga o jornalismo com a arte e tem um pensamento tão fecundo e inspirador que nos põe em ebulição. E não são apenas esses. Há outros, como Adelmo Genro Filho, que apresenta uma teoria do jornalismo, olha só. Isso é fabuloso. É um pensamento tão rico que chega a doer. Essa gente não é estudada.  

Atualmente, os cursos de jornalismo das universidades brasileiras têm um foco amplo na produção prática. A falta de um debate teórico acerca da conjuntura política, econômica, ambiental e de uma reflexão atenta da história do nosso país dificultam, de certa maneira, a proliferação do jornalismo utópico? Nesse sentido, que avaliação faz da formação jornalística propiciada pelas universidades?

Sim, dificultam a formação de alunos críticos, impedem que seus horizontem se abram, que conheçam em profundidade o seu espaço geográfico. Porque é diferente ser jornalista no Brasil, na América Latina. Há outros problemas, outras questões a serem pensadas, outros temas a serem abordados. As escolas seguem prisioneiras dos teóricos europeus ou estadunidenses. Gente boa, é certo, mas preocupada com outras coisas.
Penso que um aluno do jornalismo deveria ter uma sólida formação humanística, política e econômica; deveria entender os grandes problemas estruturais de seu país e de seu continente. Olha, eu tive a sorte de ter um professor – chamado Sérgio Weigert – que nos dava aula de problemas brasileiros. Ele nos colocava tontos com tanta informação acerca do nosso país. E tanto que o nosso trabalho final foi construir um projeto anti-hegemônico para o Brasil. Olha isso! Esse cara é um marco na minha vida porque ele nos ensinou que sem um mergulho profundo na filosofia, no pensamento germinal dos teóricos clássicos, a gente não vai a lugar nenhum. Com ele eu desembestei para o campo da filosofia e isso deixou o meu texto muito mais forte e muito mais denso.
A universidade é um lugar mágico. E os alunos podem escolher. Mesmo que os cursos sejam ruins, que os professores sejam medíocres, que direcionem suas mentes para a técnica ou para domesticação. Os alunos podem escolher não aceitar. Podem formar grupos de estudos, morar dentro da biblioteca, fomentar debates. A universidade dá muita liberdade. O que ocorre é que as gentes estão tão acostumadas ao cabresto que esquecem que podem mudar as coisas. Eu conclamo os alunos à rebelião. Eles podem.

Quais os principais desafios do jornalismo brasileiro hoje?

Primeiramente, há que mudar a universidade, subverter esse ensino que domestica. Há que se produzir um pensamento autóctone sobre o jornalismo, conhecer nossos pensadores do passado, avançar com eles, superá-los. Há que conhecer a história do nosso povo, há que estudar filosofia, reaprender a pensar. Depois disso, há que voltar a narrar a vida com um texto que descreve, que narra, que contextualiza.
Não há desculpas para mau jornalismo. Nem o tempo, nem as cinco pautas por dia, tampouco a multifunção. O bom jornalista encontra sua forma de burlar tudo isso. Seu compromisso deve ser com a informação que forma, não apenas o ritual informativo que informa sem estabelecer nexos. O jornalista é um feiticeiro que junta as letrinhas no caldeirão do texto. Dele tem de sair uma mensagem que incomode, que desaloje, que perturbe, que encha o leitor de aflição, que o mova para frente, que o faça pensar.
Há quem diga que o jornalismo morreu e que só exista propaganda. Eu não me curvo a essa assertiva, embora ela pareça arrasadora. O jornalismo resiste. Tem uma revista que se chama Retratos do Brasil, que faz bom jornalismo. Tem a publicação aqui de Santa Catarina, a Pobres e Nojentas, que faz bom jornalismo, têm uma infinidade de experiências por essa América Latina inteira. Os jornalistas estão aí, rompendo as barreiras, quebrando as regras do jornalismo domesticado. Basta que a gente tenha a delicadeza de saber ver. E utopicamente eu afirmo: isso haverá de ser maioria. Quando, não sei... mas, virá...

Deseja acrescentar algo?

Rebelião, rebelião, rebelião... Que os estudantes de todos os cursos de jornalismo do Brasil possam compreender que há mais coisas no jornalismo do que aquilo que é repetido em salas de aula. Ousem ouvir as vozes hereges, ousem criar grupos de estudo, ousem navegar nos livros velhos escondidos nas prateleiras. Esses não estão na internet, porque são perigosos demais.

Governo gaúcho acorda com MP pagamento provisório do piso do magistério


Camila Domingues/Palácio Piratini
Parcela complementar deve entrar na próxima folha de pagamento do magistério, a partir de 15 de maio | Foto: Camila Domingues/Palácio Piratini

Rachel Duarte no SUL21

Uma solução parcial e provisória para adequar o Rio Grande do Sul à Lei Nacional do Piso do Magistério foi acordada entre o governo gaúcho e o Ministério Público do Estado (MP-RS). Nesta quarta-feira (25), o consenso de pagar uma parcela complementar a 20 mil professores que ainda não recebem R$ 1.451, valor estipulado pela legislação federal, foi peticionada em juízo. O estado aguarda homologação da proposta pela Justiça para pagar a compensação na próxima folha de pagamento, a partir de 15 de maio. A medida não irá incidir sobre o plano de carreira do magistério, motivo pelo qual o sindicato da categoria, Cpers, alega que não se trata de um real pagamento do piso.
O anúncio do acordo entre o executivo e o MP-RS foi por meio de coletiva conjunta de imprensa. Estiveram na mesma mesa o chefe da Casa Civil, Carlos Pestana, o procurador geral de Justiça, Eduardo de Lima Veiga e o procurador Evilásio Carvalho da Silva, da Procuradoria-Geral do Rio Grande do Sul (PGE). Todos defenderam o acordo como um esforço conjunto de valorização do magistério e cumprimento da exigência de remuneração de acordo com a Lei Nacional do Piso, enquanto se desdobram questionamentos dos estados em relação à correção dos valores.
“É um acordo parcial e provisório. Vigorará a partir da homologação até o momento da sentença transitado em julgado. Queremos garantir que nenhum professor no regime de 40 horas, proporcionalmente aos de 20 horas, recebam menos de R$ 1.451 até o resultado da ação”, salienta Pestana. Segundo o chefe da Casa Civil, a medida não terá incidência no Plano de Carreira. “Será uma forma de antecipação dos valores que o estado poderá ter que pagar se perder a ação que questiona os critérios do cálculo do piso”.
O procurador Evilásio lembra que o acordo não resolve o problema do cumprimento do piso por parte do estado. “A PGE vem enfrentando demandas individuais dos professores pleiteando o cumprimento da lei federal. É um tema que não está totalmente definido juridicamente”, falou, citando as pendências no Supremo Tribunal Federal. Em 2008, a decisão do STF de tornar obrigatório o pagamento do piso por parte dos estados causou reações dos governos que alegaram incapacidade orçamentária para cumprimento da lei. “A PGE entrou junto com outros estados com embargos de declaração para definir o termo inicial que diz desde quando é devido o piso nacional”, cita.
Camila Domingues/Palácio Piratini
"Queremos garantir que nenhum professor no regime de 40 horas, proporcionalmente aos de 20 horas, recebam menos de R$ 1.451 até o resultado da ação”, salientou Pestana durante coletiva | Foto: Camila Domingues/Palácio Piratini

Outra decisão que ainda caberá ao STF refere-se ao questionamento sobre os índices de reajuste pelo Fundeb. “É inconstitucional porque retira dos estados a capacidade de autoorganização e de ter previsão orçamentária prévia. Ainda deve demorar o enfrentamento destas questões. Por isso, esta solução provisória se apresentou”, fala o procurador da PGE.

“Não haverá professor gaúcho que receberá valor abaixo do piso”, diz procurador Geral de Justiça

Lima Veiga considera o acordo uma forma de começar a desatar os nós do imbróglio jurídico e político que se criou em torno do cumprimento do piso do magistério. “Não haverá no RS um professor que receba abaixo do valor do piso. Quando conseguimos achar consensos sobre assuntos espinhosos como este, temos motivos de alegria. Estamos conversando a tempo. As ações são custosas, demoram e não chegam ao desejado. Então, buscamos um consenso”, afirmou.
A compensação não será para todos os professores, apenas para os 20 mil que ainda não recebem o valor do piso no vencimento básico. Se manterá o valor do básico vigente e será acrescida uma parcela complementar até atingir o valor do piso nacional. Se o piso se alterar, ao final da sentença, a parcela vai crescendo. De acordo com Pestana, o aumento de 76,68% concedido pelo governo para a categoria já irá incidir no plano de carreira, independente do resultado da ação judicial sobre os índices. “Ou seja, mesmo sem o acordo de agora, o valor percebido pelas categorias no plano seria o mesmo”, diz.
O chefe da Casa Civil fala ainda que a compensação não significa um abandono da tese do governo de apostar na correção pelo INPC para estipular os valores pagáveis aos professores como piso. “O piso deve ser reajustado pelo INPC. Não abrimos mão disso. Estamos atendendo parcialmente o que foi determinado na sentença em primeiro grau. E, avançando nas nossas conversas com a categoria e de valorização da educação”, avalia.
"Se os R$ 1.451 não incidirem no plano de carreira, não está se cumprindo o piso”, afirma Rejane de Oliveira| Foto: Ramiro Furquim/Sul21

“É igual ao que Yeda Crusius apresentou em 2009″, diz Cpers

A presidente do Cpers/Sindicato, Rejane de Oliveira, desconhece o acordo e alerta para o  que considera um jogo de palavras do governo. “Isto é para enganar a sociedade e os trabalhadores da educação. Isto não é cumprir o piso. Se os R$ 1.451 não incidirem no plano de carreira, não está se cumprindo o piso”, alerta. Ela compara a solução apresentada por governo e Ministério Público com a Lei do Completivo apresentada pela ex-governadora Yeda Crusius em 2009. “É igual ao que a Yeda apresentou, com os R$ 1,5 mil como pagamento máximo. O valor mudou agora, mas a lógica é a mesma. O governo irá olhar todos os elementos do contracheque. Quem não está no piso receberá complemento e quem já receber este valor não receberá nada”, explica. E conclui: “Isto é descumprir a lei e atacar o nosso plano de carreira”.
O procurador geral de Justiça, Eduardo de Lima Veiga fala que nem sempre o mundo legal é compatível ao mundo real. “As decisões judiciais, como as da Lei Britto, continuam se multiplicando e dificultando atendê-las, por exemplo. O mundo jurídico nem sempre equivale ao mundo real. Buscamos uma solução imediata, mas, ninguém abandonou as suas teses neste debate”, falou.
O chefe da Casa Civil, Carlos Pestana falou que o estado comportará  os valores da compensações  serão possíveis agora, depois de tantos desgastes com a categoria, porque se optou em não influenciar no plano de carreira. “O que afirmávamos era dificuldade de pagar o piso com todos os reflexos no plano de carreira. O que estamos falando agora é pagar o piso para contemplar os que ainda não recebem este valor no vencimento básico, que é algo em torno de 20 mil professores”, salientou.
Em caso de vencer a ação sobre a inconstitucionalidade dos critérios para o pagamento do piso, o governo disse que irá abater os valores dentro da nova correção. “Como é uma medida provisória ele funciona como uma antecipação, caso percamos. Se eventualmente vencermos, entra pelo INPC estas faixas e vamos abater no futuro. O valor do vencimento básico seria outro. Os cálculos seriam outros. Mas, não vamos retirar valor nenhum concedido aos servidores”, garante.

quarta-feira, 25 de abril de 2012

A Revolução dos Cravos: “Foi bonita a festa, pá!”

Luis Alves no A VERDADE

Revolução dos Cravos - 25 de Abril 
Músicas e flores marcaram no 25 de abril de 1974 aquela que ficou conhecida como a Revolução dos Cravos.
Às 23h do dia 24, o locutor das Emissoras Associadas anunciou a canção “E depois do Adeus”. Era a senha para o décimo Grupo de Comando tomar a RádioClube Portugal (RCP). E a meia-noite e meia, a Rádio Renascença tocou “Grandola, vila morena, terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena dentro de ti, ó cidade”! Era a senha para as demais ações militares que vieram a seguir: ocupação da Central Telefônica, dos ministérios, da Rádio e Televisão Portuguesa (RTP).
Quando o sol já brilhava, os capitães de abril tomaram o Banco de Portugal e logo chegaram ao Quartel do Carmo, onde se refugiara Marcello Caetano, primeiro-ministro que sucedeu o arquifascista general Antônio de Oliveira Salazar. Caía quase meio século (48 anos) de ferrenha ditadura.
Não houve resistência. Os tanques passearam pelas ruas até os pontos estratégicos que deveriam ser ocupados. Até paravam nos sinais vermelhos e o povo, que se aglomerou para apoiar e aplaudir, distribuía flores com os soldados, os famosos cravos que enfeitaram os fuzis e se tornaram símbolo do movimento revolucionário. O 25 de abril não entusiasmou apenas o povo português, mas as forças populares do mundo inteiro. No Brasil, por vivermos ainda uma ditadura militar do mesmo quilate da portuguesa, e pela ligação histórica Brasil-Portugal, ele foi saudado com muito entusiasmo. Chico Buarque, com sua música denunciadora e profética, escreveu: “Sei que estás em festa, pá! Fico contente e enquanto estou ausente, guarda um cravo para mim” (Tanto Mar).
Mas para entendermos o levante vitorioso de abril e os fatos que ocorreram a seguir precisamos recuar bastante no tempo. Paciência, que na história humana nada acontece por acaso.
De dominado a dominador
Portugal formou-se provavelmente na Idade do Bronze (2.000 a.C.- 8.000 a.C.), quando povos de origens diversas, em fluxo migratório, pararam diante do mar na Península Ibérica e se miscigenaram. Depois vieram as invasões, sucessivamente dos romanos, bárbaros e muçulmanos.
Não há uma data que marque a independência do território português e sua constituição enquanto nação soberana. Foi um processo que se deu a partir do século XII. Há historiadores que identificam como momento decisivo as batalhas de 1383/1385, que tiveram ampla participação popular e derrotaram definitivamente os exércitos de Castela (Espanha).
Os portugueses desenvolveram no litoral intensa atividade pesqueira e aprenderam muito bem a arte da navegação. Já em 1415, realizou-se a 1ª expedição ao norte da África, conquistando Ceuta,  porta de entrada para uma região rica em cereais. A busca de novas terras é vista como forma de solucionar os graves problemas econômicos que atingem o país: desorganização da sociedade rural, domínio da burguesia comercial, expansão da economia europeia e de seu mercado consumidor. Para o povo português, representava também a oportunidade de emigrar para conseguir riqueza em outras terras.
Em 1448, as expedições chegaram à Índia, firmando Portugal como potência naval e comercial. Portugal, entretanto ,não investiu os lucros obtidos no desenvolvimento industrial, tornando-se um entreposto comercial da Europa e constituiu-se enquanto império periférico, mantendo uma relação de dependência com o seu principal cliente, a Inglaterra. Quando se consolida a Revolução Francesa e a França passa a disputar com os ingleses a supremacia no continente europeu, Portugal está inteiramente alinhado com a Inglaterra, com quem mantém intenso comércio com base na produção agrícola brasileira.
O declínio do império
Em 1807, as tropas francesas (napoleônicas) invadem Portugal e a Corte se refugiou no Brasil, vivendo o império português a sua 1ª grande crise.
Com a derrota de Napoleão (1814), Portugal passou a ser governado por uma Junta de Governadores que recebia instruções do Rio. A Corte permaneceu no Brasil até 1820 quando se deu a revolução do Porto, que reduziu os poderes do rei, estabelecendo uma monarquia constitucional, e exigiu o retorno do Dom João VI.
A emancipação do Brasil (1822) destruiu os pilares do comércio português. Para compensar as perdas, o império volta-se para suas colônias na África.
Com escassa industrialização e extrema dependência dos mercados externos a crise se agrava a cada dia. Incapaz de solucioná-las, a monarquia abre espaço para a articulação republicana, que unia setores médios (intelectualidade, militares) e setores das massas urbanas.
A república foi proclamada em 5 de outubro de 1910, por meio de um golpe de Estado, desencadeado a partir de um atentado que vitimou o rei, D. Carlos e o príncipe Luís Felipe, herdeiro do trono.
A era republicana começa com a disseminação das greves operárias contra o alto custo de vida e os baixos salários. O novo regime respondeu com uma lei de greve patronal e com repressão ao movimento. A classe operária foi posta à margem da vida republicana, uma vez que sua proclamação fora obra das elites, fazendo apenas circular o governo entre frações das classes dominantes. A primeira república durou até 1926, quando um golpe militar pôs fim à instabilidade política.
Em 1928, o Governo do general Carmona convidou para pôr ordem na economia um professor da Universidade de Coimbra, Antônio Oliveira Salazar. Este acabou assumindo a chefia do Estado. Com a implantação de rigorosa ortodoxia econômica e implacável repressão política, o salazarismo unificou as classes dominantes e impôs uma ditadura de quase meio século (48 anos).
A relação da ditadura salazarista com as Forças Armadas nunca foi tranqüila, especialmente após a Reforma Militar de 1937, que subordinou a instituição militar ao chefe do executivo (Salazar). Várias conjuras militares aconteceram e foram derrotadas nos anos 50 e 60.
No meio popular, a luta se desenvolvia em rigorosa clandestinidade. A repressão dizimou centenas de quadros do Partido Comunista Português (PCP) e de outras organizações de esquerda.
A queda do salazarismo começou na África com a derrocada do que restava do império colonial português. A exploração econômica já não compensava mais os custos sempre crescentes que o Estado português tinha de fazer para enfrentaras guerrilhas de libertação nacional que impunham cada vez mais derrotas ao império, especialmente em Moçambique, Angola, e Guiné-Bissau. Em 24 de setembro de 1973, foi proclamada a independência da Guiné, com o reconhecimento diplomático de 86 países, fato que demonstrou o isolamento da ditadura colonialista portuguesa, a essa altura já condenada pela ONU.
A relação deficitária entre a metrópole e as colônias africanas aguçou a crise econômica interna e a insatisfação popular com o regime e o colonialismo, identificados como responsáveis pelo desemprego, os baixos salários e o esvaziamento do campo. Apesar da ditadura, os trabalhadores não deixaram de lutar e se organizar, criando as comissões clandestinas nos locais de trabalho e intervindo também nos sindicatos oficiais. No seio das Forças Armadas, o descontentamento crescia diante da redução dos gastos, a contabilização de milhares de soldados mortos no continente africano e a certeza que se instalava entre os oficiais de que seria impossível uma vitória militar.
O falecimento de Salazar em 1968, substituído por Marcello Caetano, ex-reitor da Universidade de Lisboa, não alterou o quadro.
A década de 1970 se inicia com o impulso das lutas operárias, especialmente a partir da 1ª metade de 1973. Daí, até abril de 1974, mais de cem mil trabalhadores participaram de greves nos centros industriais, nas grandes, pequenas e médias empresas e nas zonas agrícolas de Alentejo e Ribatejo. Numerosos sindicatos se libertaram de direções pelegas, havia um movimento em ascensão, que preparava um grande ato público para o 1º de maio em Lisboa e outros centros do país, marcando uma jornada de lutas por melhores salários, contra a carestia, mas também por liberdades democráticas,contra as guerras coloniais, por independência e paz. Por seu lado, o governo fascista articulava uma operação preventiva que no dia 30 de abril levaria para a prisão ativistas sindicais e populares. Não teve tempo.
Os capitães de abril
Em 9 de setembro de 1973, numa chácara nos arredores de Évora, nasceu o Movimento dos Capitães ou Movimento das Forças Armadas (MFA), que propunha o fim do colonialismo e a democratização da sociedade portuguesa.
Setores mais conservadores das Forças Armadas planejaram tomar a bandeira dos capitães. Para isso, o general Antônio Spínola lança o livro Portugal e o Futuro em que defende a independência progressiva das colônias e sua união em uma “comunidade lusíada”, com a realização de eleições democráticas.
Os dois grupos acabam se compondo. Isto garantiu, por um lado, a neutralidade do alto oficialato, permitindo uma ação incruenta, mas por outro, exigiu concessões no programa político, como explicou o major Otelo Saraiva de Carvalho: “O General (Spínola) travava o movimento de abril; os oficiais do movimento acertaram o programa com o general porque precisavam dele. Então foram feitas muitas concessões. O programa não saiu como queríamos” (JB, 11/10/74)
Avanços e Recuos
A ação militar vitoriosa de 25 de abril não foi articulada com o movimento de massas, mas incorporou em parte seus anseios. Por isso, foi defendida e apoiada, como relatamos no início, e mais ainda, no Dia do Trabalho. “Foi o maior dos maios. Só possível por causa de abril. Ali estiveram quase um milhão de portugueses, sem contar com as muitas centenas de milhares que estiveram no Porto, Braga, Aveiro, Coimbra, Santarém, Barreiro, Alentejo e outras centenas de localidades… A palavra de ordem era “O povo, unido, jamais será vencido”. As exigências eram o fim da guerra colonial, a restauração das liberdades democráticas e a justiça social”.
O primeiro Governo Provisório, pós-abril, contemplou todas as forças, sendo palco de disputas e contradições, mas tomou medidas importantes: congelamento de preços dos bens de primeira necessidade, instituição do salário mínimo nacional, reconhecimento do direito de greve e associação. Depois de uma tentativa de golpe direitista em 11 de março de 1975, Spínola renunciou à presidência e Vasco Gonçalves assumiu a chefiado Conselho de Ministros.
A esquerda assume o comando da Revolução. O novo governo toma medidas que implicam profundas mudanças econômico-sociais: estatização dos bancos e setores estratégicos da economia como energia, telecomunicações e transporte, além da construção civil, regulamentação do mercado, realização da reforma agrária no Alentejo e no Ribatejo.
O patronato promove sabotagens, desorganiza a atividade econômica, enquanto o Movimento Operário, apesar de não se desmobilizar, reduz o número de greves. Isso ocorre, segundo Álvaro Cunhal, secretário Geral do Partido Comunista Português (PCP), em razão da “elevada consciência política da classe operária e dos demais trabalhadores”.
Enquanto isso, no interior das Forças Armadas, a direita se articula. Um grupo de oficiais elabora o documento dos nove em que condena o radicalismo. Em 2 de setembro de 1975, uma assembleia do MFA define que a presença de Vasco Gonçalves no governo é incompatível com a coesão das Forças Armadas. Vasco é demitido.
Em 25 de novembro de 1975, um grupo de pára-quedistas se subleva, num episódio que nunca foi devidamente esclarecido. Adireita caracterizou-o como insurreição de esquerda para tomar o poder. Mas a esquerda define-o como manobra da direita para justificar a direitização do regime. O fato é que o 25 de novembro marcou a exclusão da esquerda do MFA. Oficiais e soldados considerados radicais foram expulsos, licenciados, presos e transferidos para a reserva.
Em 26 de fevereiro de 1976, eliminado a componente radical da revolução, novo acordo MFA- partidos políticos pôs Portugal na senda da democracia burguesa. Aos poucos, as conquistas da revolução dos Cravos foram eliminadas e o país integrou-se como sócio menor à União Europeia, sob a dependência dos monopólios capitalistas.
A ferrenha censura proibiu a música de Chico Buarque em homenagem à Revolução de Abril em 1974. Quando foi liberada na vigência da “abertura lenta, gradual e segura”, ele teve que refazer a letra que se imortalizou: “já murcharam tua festa, pá, mas certamente esqueceram uma semente nalgum canto do jardim.”


Luiz Alves
(Publicado no Jornal A Verdade, nº 60)

Os prejuízos de Toulouse: antijudaísmo ou islamofobia?



As ações dos pequenos grupos radicais islâmicos não representam a vontade da totalidades dos palestinos e da comunidade muçulmana global


Por Luciana Garcia de Oliveira, no Brasil de Fato


Antes mesmo do primeiro turno das eleições, ocorrido neste domingo (22), houve o inesperado, uma série de atentados no país com um forte impacto emocional e midiático. No dia 19 de março, um atirador então desconhecido matou a tiros um rabino professor e seus dois filhos na frente de uma escola judaica na cidade de Toulouse, na França e, em seguida assassinou uma menina. Todo o armamento utilizado nos crimes, pareciam os mesmos utilizados na data do dia 11 de março para matar um paraquedista (de origem norte-africana) e, em 15 de março, outros dois paraquedistas muçulmanos.

O responsável confesso, Mohamed Merah, nascido em Toulouse e descendentes de argelinos, teria afirmado pertencer ao grupo Al-Qaeda (o que parece ser pura bravata). Antes de morrer, teria inclusive dito que os atentados foram motivados em resposta às intervenções francesas no exterior mas, principalmente para vingar a morte das crianças palestinas.

Imediatamente após o ocorrido, a candidata (conservadora) as eleições francesas, Marine Le Pen que, até então havia cessado o discurso a qual revelava uma resistência extrema à entrada de novos imigrantes à França (reação conhecida como xenofobia), voltou à ofensiva e ainda exigiu retratação aos demais candidatos que haviam criticado o tom discriminatório de seu discurso.

Numa clara tentativa em evitar possíveis distorções com relação à grande comunidade árabe - muçulmana da França, no dia 21 de março, o primeiro ministro palestino, Salam Fayyad, afirmou (em um discurso) a necessidade de parar de usar a causa palestina como justificativa para atos terroristas. Reiterou no entanto que, “o povo palestino e seus filhos, que não podem aceitar crimes contra vidas inocentes, condenam categoricamente esses crimes terroristas”.

Apesar de tamanha ponderação, fato novo chamou a atenção, dessa vez pela violência do discurso, quando o primeiro ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, criticou veemente a alta representante europeia de Política Externa, Catherine Ashton. O motivo teria sido uma comparação, feita por ela, do atentado de Toulouse com os crimes perpetrados na Faixa de Gaza, na Palestina.

O “mal-estar” gerado pelas palavras de Ashton, teria motivado Netanyahu a afirmar que “a comparação entre um massacre contra crianças e uma atividade defensiva cirúrgica do Exército para acabar com terroristas que usam menores como escudo, é um absurdo”.

Antes mesmo dessa declaração, o ministro das Relações Exteriores israelense, Avigdor Lieberman solicitou que Ashton retirasse suas declarações, sob alegação de que “as crianças com as quais Catherine deveria estar preocupada são as que vivem no sul de Israel, que vivem com medo constante dos mísseis de Gaza”. E, ainda complementou: “não há Exército mais ético que o israelense”.

Ao analisar esse tipo de reação, alguns estudiosos do tema antijudaísmo, como o professor Robert Wistrich, chefe do Centro Internacional de Estudos do Antijudaísmo da Universidade de Jerusalém afirmou, em uma recente entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo que, desde o holocausto, o sentimento antijudaico sofreu uma mudança, sobretudo na Europa (palco da II Guerra Mundial). Assim, na atual conjuntura, a principal força de discriminação judaica é atribuído, segundo ele, ao islã fundamentalista.

Num olhar mais particular ao caso francês, o professor de Jerusalém observa uma “tendência de apresentar a autodefesa de Israel contra o terrorismo como um genocídio contra o povo palestino”. O antijudaísmo, nesse sentido, seria uma expressão muito mais potente de ódio, inclusive quando comparado a quaisquer atos discriminatórios à comunidade árabe-muçulmana na Europa.

Todos esses discursos, mesmo advindo de autoridades israelenses, é comprovado não corresponder à realidade. A começar, o desequilíbrio de forças entre o exército israelense com a resistência palestina, no que tange a armamentos e tecnologia é extremamente desigual. Por isso, afirmar que a incidência de morte de todas as crianças seja tão somente em decorrência da culpa dos grupos radicais islâmicos como a Jihad Islâmica e o Hamas, serve tão somente para eximir a responsabilidade do exército de Israel que, desde a fundação do Estado no Oriente Médio tem adotado uma política de extrema truculência com relação ao povo palestino.

Muito embora os ataques com foguetes (de fabricação caseira) em Israel já tenha vitimado alguns cidadãos israelenses, quando comparado aos ataques contra a Faixa de Gaza, ou contra as bases terroristas fundamentalistas localizadas nessa região, de acordo com algumas autoridades israelenses, o número de vitimas civis é absolutamente maior, isso sem contar as inúmeras perdas materiais, como as casas, escolas e hospitais. Perdas de difícil reparação, tendo em vista a constante falta de recursos financeiros para construções e abastecimentos.

Tendo em vista esta mesma constatação, após os atentados em Toulouse e, sobretudo sendo o responsável, um francês de origem árabe-muçulmana é (naturalmente) prevista uma tendência bastante perigosa, qual seja, o acirramento do pavor da sociedade europeia com relação aos muçulmanos na Europa (denominado islamofobia). A sociedade europeia passaria assim a associar toda a comunidade muçulmana ao fanatismo e, principalmente ao terrorismo. Aliado à expansão da islamofobia (já presente em muitas sociedades europeias), a desqualificação de todas as reivindicações dos palestinos que vivem nos territórios ocupados pelo Estado de Israel não é menos preocupante.

O ato de expressar publicamente o desprezo com relação às vítimas palestinas não é tão somente uma atitude irresponsável, por parte de dirigentes estatais, como extremamente perigosa. Negar a pratica de crime de genocídio é negar a definição prevista na legislação internacional. [Baby Siqu1] Juridicamente, o crime de genocídio lesa humanidade tem por definição o cumprimento de algumas exigências, quais sejam, a presença de atos desumanos, como assassinatos, extermínios e desaparecimento; a sistematização dessas práticas; contra a população civil; durante conflito armado e deve ser correspondente a uma política de Estado levada a cabo por agentes públicos ou pessoas que promoveram essa política e com o conhecimento desses agentes.

Diante de todos esses elementos, somado às últimas notícias na Faixa de Gaza, mais especificamente às noticiadas desde o início do mês de março, quando havia sido publicada a morte de 15 palestinos (incluindo crianças), em um ataque mais uma vez brutal por parte do Exército de Israel em represália ao ataque com foguetes atribuídos ao grupo Jihad islâmica, todos os indícios, nesse caso, qualificam como genocídio as ações de Israel na Faixa palestina, isso sem contar a “Guerra de Independência” e a Operação Chumbo Fundido. Em Toulouse configurou-se um terrível massacre, uma vez que os assassinatos em série não foram cometidos por um agente estatal.

Todos os genocídios, massacres e assassinatos devem ser condenados, sem nenhuma exceção. O mesmo, com relação a atual ascensão do radicalismo político e religioso. Nesse mesmo sentido, as ações dos pequenos grupos radicais islâmicos não representam a vontade da totalidades dos palestinos e da comunidade muçulmana global assim como as afirmações infelizes e preconceituosas dos dirigentes israelenses não correspondem absolutamente à população de Israel como um todo, tampouco à comunidade judaica espalhada pelo mundo.

Fomentar a discórdia, realizar distorções históricas e factuais, terão como consequências principais o aumento da intolerância, desconfiança, violência e discriminação. Com reflexos na continuidade da expansão dos assentamentos judaicos no território palestino, tendente a diminuir os territórios para o tão almejado futuro Estado da Palestina.

*Luciana Garcia de Oliveira é pós-graduada em Política e Relações Internacionais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESP).

terça-feira, 24 de abril de 2012

A deliciosa história sobre a invenção do jogo do bicho

Luiz Antonio Simas, O Globo

O jogo do bicho surgiu no Rio de Janeiro em 1893. A criação da loteria popular mais famosa do Brasil se deve ao complicado contexto político daqueles tempos. A República, recentemente proclamada, tentava sepultar os resquícios da Monarquia derrubada — e desse quiproquó entre os adeptos dos regimes surgiu o jogo. Explico.
Nos tempos da Monarquia, o Barão de Drummond, eminência política do Império e amigo da família real, era fundador e proprietário do Jardim Zoológico do Rio de Janeiro — que então funcionava em Vila Isabel.
A manutenção da bicharada era feita, evidentemente, com uma generosa subvenção mensal do governo, suficiente, diziam as línguas ferinas dos inimigos do Barão, para alimentar toda a fauna amazônica por pelo menos dez anos.
Quando a República foi proclamada, o velho Barão perdeu o prestígio que tinha. Perdeu, também, a mamata que lhe permitia, segundo o peculiar humor carioca, alimentar o elefante com caviar, dar champanhe francesa ao macaco e contratar manicure para o pavão.
Sem o auxílio do governo, o nosso Barão cogitou, em protesto, soltar os bichos na Rua do Ouvidor — o que, admitamos, seria espetacular — e fechar em definitivo o zoológico do Rio.
Foi aí que um mexicano, Manuel Ismael Zevada, que morava no Rio e era fã do zoológico, sugeriu a criação de uma loteria que permitisse a manutenção do estabelecimento. O Barão ficou entusiasmado com a ideia.
O frequentador que comprasse um ingresso de mil réis para o Zoo ganharia vinte mil réis se o animal desenhado no bilhete de entrada fosse o mesmo que seria exibido em um quadro horas depois. O Barão mandou pintar vinte e cinco animais e, a cada dia, um quadro subia com a imagem do bicho vitorioso.
Caríssimos, se bobear essa foi a ideia mais bem-sucedida da história do Brasil. Multidões iam ao zoológico com a única finalidade de comprar os ingressos e aguardar o sorteio do fim de tarde.
Em pouco tempo, o jogo do bicho tornou-se um hábito da cidade, como os passeios na Rua do Ouvidor, a parada no botequim, as regatas na Lagoa e o fim de semana em Paquetá. Coisa séria.
A República, que detestava o Barão, proibiu, depois de algum tempo, o jogo no zoológico. Era tarde demais.
Popularizado, o jogo espalhou-se pelas ruas, com centenas de apontadores vendendo ao povo os bilhetes com animais dadivosos. Daí para tornar-se uma mania nacional, foi um pulo. O jogo do bicho deu samba — com trocadilho.
Contei rapidamente a história da criação do jogo para constatar o seguinte: a situação atual do zoológico do Rio de Janeiro não parece ser muito diferente daqueles tempos bicudos do velho Barão de Drummond.
Dia destes, o próprio O GLOBO veio com uma reportagem chamando atenção para o desleixo a que o jardim está entregue em tempos recentes. Enquanto a loteria popular prosperou e virou uma espécie de instituição nacional, o zoológico não teve a mesma sorte.
O jogo, que a rigor foi criado apenas para tirar o zoológico da situação de abandono e com uma inocência digna das histórias de Polyana, a moça, chegou longe demais. Vejam, por exemplo, as atuais peripécias republicanas do bicheiro Carlinhos Cachoeira (curiosamente chamado por alguns da mídia de “empresário da contravenção”).
A inocente loteria popular ganhou asas e se transformou em uma complexa organização criminosa, com tentáculos inimagináveis que envolvem até mesmo cândidas vestais de ternos e togas do moralismo tupiniquim.
Deixo aqui a minha sugestão: já que o poder público aparentemente não dá pelota para a bicharada, confisquem as fortunas que o crime organizado amealhou em aparente conluio com os bacanas e poderosos da República.
Separem um pouquinho da grana tungada e, por justiça histórica, destinem o tutu ao carente Jardim Zoológico do Rio de Janeiro.
Uma parte do dinheiro do mafioso Cachoeira deve servir ao nobre destino de alimentar cobras, leões, passarinhos e macacos que, afinal de contas, fazem a alegria da criançada carioca em fins de semana.
A César o que é de César. Ou alguém aí sugere a criação de uma loteriazinha inocente que pode salvar o zoológico carioca desse abandono? Não recomendo.

Luiz Antonio Simas é historiador

Raul vive!!! Veja, e ouça, e viva Raul!!!

Ravel no blog ARQUIVOS CRITICOS

Me desculpe quem chegou a conclusão diferente, porventura até oposta, mas de minha parte estou convencido de que o documentário Raul: o início, o fim e o meio é uma obra-prima. Não um filme “perfeito”, bem entendido – mesmo porque um filme sobre Raul não poderia ser isso (ou melhor, cultivar a ilusão de ser isso) sem ser absolutamente infiel e desrespeitoso a seu “objeto” –, mas um filme de uma grandeza inamovível, na força (não importa se “única”) com que traz à tona a grandeza e a força – mas também os dramas e contradições – do próprio Raul.
Algo como a aura de um milagre cerca esse filme, como cercou, em seus auges intermitentes (mas constantes), a vida e “o trabalho”, ou seja, o ser em curso de Raul. Em primeiro lugar, é claro, pela mera “presença” de Raul no filme, em registros tão vivos e intensos que tornam essas aspas quase ofensivas. Quando, quase no início, Raul surge em estado de graça, cantando “Loteria da Babilônia” e declamando o manifesto da Sociedade Alternativa, a energia e a vitalidade (eu quase escrevia luminosidade) que emanam de seu corpo, sua voz e suas palavras contêm algo que não se pode chamar senão de divino. São cenas que já circulam na internet, mas mesmo os fãs que as conhecem, e que sabem o que foi Raul, provavelmente se assombrarão com a imponência e altissonância dessas imagens, como que devolvidas à grandeza de seu instante-evento na ampliação da tela e do som da sala de cinema.
E, cá entre nós, esse episódio fantástico e já tão comentado da mosca na sopa de Paulo Coelho (sopa de Coelho é maldade...), a aguadíssima sopa que Mr. Paul Rabbit tentava nos fazer engolir no momento em que uma vivíssima (e, como ele mesmo parece sugerir inconscientemente, quiçá brasileiríssima) mosca surgisse na cena, e, como que premiando nosso espanto, se tornasse tão incômoda a ponto de silenciar o Coelho e fazê-lo tentar eliminá-la com uma patada[1]; ou essa cena verdadeiramente incrível é uma prova de que uma espécie de chiste divino cerca a própria existência – e até ex-existência – do artista de gênio ou é (sabe-se lá!) fruto de um tremendo embuste, de um “planejamento” cujo imprevisível resultado, de qualquer forma, não poderia ser mais feliz. Se não for o caso, é claro, de uma transmigração meio à Quincas Borba, de um episódio, digamos, budista-tropical em plenos Alpes suíços, em pleno castelo medievalista de um dos escritores católicos mais vendidos do mundo...

E o que dizer da beleza quase transcendente do testemunho de Vivian Seixas, entrevistada pela própria mãe, Kika, e vertendo lágrimas de saudades pelo pai mas também de felicidade plena de se sentir filha dele, e 
poder falar dele?


Vivian Seixas
A força e a genialidade de Raul se espraiam de tal forma pelo filme de Walter Carvalho – sobretudo no início – que mesmo um Pedro Bial se deixa contaminar por ela, quando registra o privilégio de ter sido sua testemunha no auge de sua explosão. Mas se essa genialidade pode animar um farsante nato (ou inato) como Bial, ela também pode preocupar outro – vide a invectiva de Paulo Coelho de que não se fale do “mito” Raul (que, no entanto, afirmava: “não sou nenhuma ficção”) –, e ainda constranger um talentoso mas Veloso Caetano, cujos olhos, ou muito me engano, deixam ler, em algum momento, a velada confissão de que aquele artista ao qual finalmente alguém resolveu fazer justiça pública é maior do que ele.
Mas também pelos testemunhos propriamente documentais que colhe e registra o documentário de Carvalho é um grande filme. Por exemplo, o testemunho de críticos e produtores musicais a respeito da novidade, qualidade e centralidade de Raul – e não de outros baianos – na contracultura musical brasileira. Não que se trate de um trabalho exaustivo nesse sentido: muito ainda há a ser esclarecido, por exemplo, a respeito das parcerias e amizades de Raul, incluindo aí sua fase realmente mais problemática, a das farras com Oscar Rasmussem. Mas o pouco que Carvalho fez – sobretudo, é claro, no que diz respeito à mais famosa dessas parcerias –, além da própria visibilidade que ele deu a certos fatos, a certos pingos que há muito demandavam ser colocados nos is, já constitui um ato de justiça à memória e à obra, para sempre vivas e indomáveis, de Raul.
O maluco e o malandro, digo, “mago”

"Ó, pousou aqui, ó."
Ninguém em sã consciência pode negar a importância de Paulo Coelho na trajetória artística e pessoal (que são uma coisa só) de Raul, mas o êxito posterior do “mago escritor” parece ter confundido um pouco as coisas a esse respeito, levando muita gente a pensar que era ele o responsável pelas “super letras” (encontrei isso num blog) dos primeiros discos solo do parceiro. É grandemente constrangido, com uma humildade um tanto envergonhada (mas, enfim, corajosa), que Rabbit admite que foi Raul quem o ensinou a fazer letras de música. Que foi Raul, na prática, quem compôs Gita, ou seja, que deu acabamento ao Bhagavad-Gita do qual Coelho deve ter feito um resumão (que, no filme, ele chama de “poesia”); assim como compôs “Metamorfose Ambulante”, que dom Paulete assevera que gostaria de ter feito com Raul, meio que sabendo que isso teria feito mais diferença para si mesmo que para a canção, pois ele seria o que sempre foi: um coadjuvante na “relação” com Raul, alguém que este literalmente levava consigo, e não o contrário. Exatamente, aliás, como em “Super-heróis”: “Chamei dom Paulo Coelho e saímos lado a lado...”.

Mas não vou me deter muito nesse terreno delicado, talvez uma dessas histórias que, não fossem certos impedimentos, seriam mais bonitas – mas também mais dolorosas – do que foram. Também não sou partidário da tese da “perda” de Raul por Coelho, o que o filme também deixa perceber que é mais uma falácia que este sustenta implicitamente, quase se vangloriando dela. Coelho pode ter conferido – para o bem e para o mal – mais “substância underground” ao parceiro, mas quando Carvalho registra, por exemplo, a presença de Edy Star no trajeto inicial de Raul (apesar da ausência quase total, e imperdoável, de Sérgio Sampaio, que Edy apenas menciona), obriga o espectador a saber que essa substância já circulava nele; em suma, que antes da Sociedade Alternativa, Raul já havia “fundado” – e, ao lado de Star, Sampaio e Miriam Batucada, honrado com 
esse impagável “manifesto” sonoro – a Sociedade da Grã Ordem Kavernista.
Os kavernosíssimos Kavernistas
A importância de Paulo Coelho (mas também, anote-se, de Marcelo Motta) na vida e na obra de Raul foi ter lhe dado densidade – uma “densidade mística” que desde cedo foi também humana –, mas como parte de uma busca do próprio Raul (que foi quem o procurou, como fica muito bem registrado). O salto da circense Grã Ordem (a rigor, pouco mais que um Mutantes mais precário e “baianizado”) para o protéico – e magnífico – Krig-Ha-Bandolo! de alguma reflete esse processo. Ainda assim, como se diz, é lindo perceber que o momento de maior grandeza do “bruxo”, e que afinal o redime no filme de Carvalho, foi aquele em que, engolindo corajosamente o constrangimento, ele admite que “o maior parceiro de Raul foi ele mesmo”.

O que serve pra reafirmar que boa parte das obras-primas de Raul – por exemplo, “Ouro de tolo”, “Metamorfose ambulante”, "O trem das 7", "S.O.S.", "Para Nóia" e "É fim do mês" (pra ficar apenas nos três primeiros discos) – são de autoria mais ou menos exclusiva de Raul. Digo mais ou menos porque também é verdade que o próprio Raul praticou suas malandragens autorais: para ele, como atesta outro parceiro importante, Cláudio Roberto, os empréstimos tomados a canções estrangeiras eram casos de justiça social. Só faltou assinalar que, a despeito de assassinatos como o de “You really got me” (que, por outro lado, já pertence patrimônio universal do rock) por um estrambótico “Dá-lhe que dá”, quase todos os “plágios” de Raul foram na verdade recriações musicais extremamente bem-sucedidas, repletas de originalidade. Ou alguém vai reduzir o valor, por exemplo, de “Ave Maria da Rua” só porque seu arranjo é uma imitatio de “Bridge under troubled water”?
Os dois diabos

Uma das maiores virtudes do filme de Carvalho é abordar a relação de Raul com o misticismo de forma clara e, sem trocadilho, desmistificadora. Fica claro, em primeiro lugar, que Raul nunca foi submisso a quaisquer seitas ou ideias esotéricas, como, aliás, de qualquer tipo. É outro episódio engraçado envolvendo dom Paulete: o thelêmico Euclydes Lacerda, ao lado do idem Toninho Buda, antes ou depois de revelar que o catolicíssimo Coelho não havia pedido desfiliação da Ordo Templi Orientis (o que, depois, causa profundo incômodo no mesmo), confirma que era Mr. Rabbit, na dupla, o principal receptáculo da doutrina, sendo aliás bastante obediente a ela... "Raul não", Euclydes completa, com um sorriso finíssimo. Vale também o testemunho de Caetano, que, visitado por Raulzito em sua fase mais “alternativa”, não conseguia evitar a postura irônica, o que, ele assevera, despertava o instinto irônico do próprio Raul...
Toninho Buda

Mas também é importante o esclarecimento – e não há palavra melhor – a respeito do conteúdo do esoterismo de Raul. O gesto fundamental, nesse caso, pertence a Toninho Buda, que, devidamente caracterizado, lembra distinção, em "Rock do diabo", entre o diabo dos toques e o do exorcista, o demônio grego e o católico, para afirmar o disparate que é a redução de um ao outro, assim como a da imagem de Lúcifer enquanto iluminado à figura chifruda e ridícula da iconografia católica. E Euclydes ainda lembra que “faz o que tu queres” não quer dizer simplesmente “faz o que quiseres”, deixando implícito que aquele “tu” remete a uma vontade interior autêntica e profunda.
Não que isso tenha valido o tempo todo para o próprio Raul. O fato, porém, é que todo o filme de Carvalho – e mesmo nos momentos mais dolorosos –, transpira o panteísmo raulseixista, ou aquilo que de bom grado eu chamaria seu egoísmo-panteísmo. Aliás, não sei se eu devo ficar muito grato ou muito puto com Carvalho, pois tenho a impressão de que seu filme diz, indireta mas suficientemente, tudo o que eu gostaria de dizer sobre Raul, e que eu arrolaria sob sua divisa, a meu ver, mais importante: "O amor de todos os mortais".
As mulheres

Um mérito indiscutível de Carvalho foi ter conseguido colher entrevistas de todas as ex-mulheres mais ou menos oficiais de Raul – à exceção da primeira delas, a sempre esquiva Edith Wisner, mas mesmo nesse caso as cenas e fotos (sobretudo do casamento), de uma beleza tão tocante quanto a da própria Edith, de alguma forma suprem a lacuna. Ou melhor, não suprem, mas é até melhor que seja assim, tudo apenas tocado, em se tratando da que foi, provavelmente, a relação mais “romântica” de Raul.
Edith e Raul
Nos outros casos, principalmente de Kika e Gloria Vaquer, fica o testemunho do quão apaixonante foi Raul, o que transpira na orgulhosa reivindicação dessas mulheres belas e fortes de terem sido amadas por ele; e também, no caso de Gloria, no abatimento, ainda presente mas não reduzido à mágoa, de ter sido preterida em algum momento. A certa altura, aliás, Gloria explica o fato de Raul ter tido amantes como um fato relacionado à cultura brasileira, na qual a fidelidade conjugal geraria a suspeita de homossexualismo – o que naturalmente faz pouca justiça à filosofia libertária do próprio Raul, esta sim, à qual ele nunca deixou de ser fiel.
Por outro lado, é pena que Carvalho não tenha chegado a explorar um dos aspectos mais interessantes das relações amorosas de Raul, que é sua imbricação com o trabalho artístico, por meio de parcerias em obras-primas como as delicadíssimas “Sunseed” e “Mata virgem” e a enfezadíssima "Pagando brabo", a primeira com Gloria Vaquer e as outras duas com Tânia Menna Barreto (ambas do excelente Mata virgem), ou as, digamos, transcendentais "DDI (Discagem Direta Interplanetária)", "O segredo da luz" e "Nuit", todas  e várias outras  com Kika Seixas; a última, com um "toque" especial de Schopenhauer.

“E quão longa é a noite...”

Outro registro importante: a declaração de, salvo engano, Gloria Vaquer de que foi o álcool e a cocaína, não a maconha, que esvaíram as forças – e a beleza – do Maluco Beleza. É chocante, aliás, a percepção de como foi abrupto o início da decadência de Raul, cujo primeiro sintoma inequívoco, no filme, é justamente um registro de “Maluco Beleza”, realizado, provavelmente, em estado de semiembriaguez. É comovente ver Raul, a certa altura, tentando interpolar um pequeno discurso sobre si mesmo no meio da canção e obrigando-se a calar, ao perceber que a pausa da letra não era suficiente. É comovente ver as fotos e imagens do ídolo combalido, com os olhos mortiços e o rosto inchado, em contraste com as performances vigorosas de poucos anos antes.
Mas é comovente constatar, também, que esse vigor nunca arrefeceu totalmente, e nesse sentido as imagens dos derradeiros shows com Marcelo Nova já redimem, por si sós, o que quer que eles possam ter significado de ruim em termos de saúde para Raul. O fato fundamental a esse respeito é muito simples, e perceptível no filme: Marcelo proporcionou a Raul a chance de continuar vivo e ativo, além de produzir com ele sua última obra-prima discográfica, não menos irregular mas não menos vigorosa que a maioria delas, a caudalosa A panela do diabo.
Marcelo e Raul, + ou novos
Só pra terminar

Eu já disse, e repito, que Raul: o início, o fim e o meio não é filme "perfeito" – eis aí, aliás, uma bela e espúria palavra. Pelo contrário, é um filme tão irregular quanto foi a vida e a obra de Raul, e não poderia ser diferente, se Carvalho decide ser fiel à vida de Raul, não só a seus fatos mas, principalmente, seu espírito. É um tipo de “respeito pelo objeto” nos obriga a assistir e até nos saturar com cenas mais ou menos ridículas – mas sempre, também, seu quê de poesia. Como, por exemplo, Carvalho poderia ser fiel ao espírito de Raul se não concedesse o espaço reivindicado por seus amigos de infância, com suas demandas de publicidade ou suas “performances” tão risíveis quanto, às vezes, admiráveis? É verdade que às vezes o excesso de edição incrementa (ou até determina) o kitsch da situação[2], mas nem o kitsck – e, claro, o brega – era estranho a Raul nem Carvalho se furta ao outro lado, digo, um dos outros lados de Raul, a acidez irônica, permitindo-se, por exemplo, acentuar o ranço autoritário de um desses tipos impagáveis que encarrega-se, ele mesmo, de mandar cortar a cena – o que é impagavelmente mantido na edição.
Trazer à tona o espírito de Raul significa ouvir seus espíritos, os que emergiram dele e os que o rondaram, os que se comunicaram com ele, incluindo aí aqueles de onde ele adveio (por exemplo, Élvis, Gonzaga etc.). Ouvi-los e respeitá-los, menos, porém, no sentido de uma atitude formal ou servil que no de atender ao que eles demandam – de responder-lhes, de dialogar com eles. Às vezes, talvez, de formas meio abusivas, como me parece ser pelo menos um caso: o da inclusão da mensagem que uma das filhas de Raul lê pela internet recusando-se a conceder entrevista sobre o pai – inclusão algo birrenta e perfeitamente desnecessária, mesmo porque a moça acabou concedendo a entrevista, que aliás tinha acabado de ser mostrada. Se também uma pequena baixeza como essa pode ser tributada ao “espírito de Raul” (por exemplo, em “Você roubou meu videocassete”), este seria um caso, talvez, em que o diretor poderia evitar esse “contágio”...
Mas são detalhes, embora detalhes importantes, como tudo o que diz respeito a Raul para seus fãs inesgotáveis. Pois Raul é eterno, e sempre vai haver um maluco para gritar, em alguma “cover night” de rock inglês: TOCA RAUL!!! Sempre vai haver uma criança que, distraída ou atentamente, ouvirá Raul e se encantará, no mesmo instante e para sempre, com sua verve, seu ritmo e seu canto.

[1] Não fica claro se ele conseguiu, o que aliás é bem possível: acertar na mosca, como mostra outra cena (também, aliás, algo impressionante), é uma especialidade de Coelho. Mas é claro que, a despeito disso, Carvalho não deixaria de dar a última palavra a Raul: “Porque cê mata uma e vem outra em meu lugar!”.

[2] Numa cena, um dos amigos – o, digamos, mais “maluco beleza” – de Raul canta “Blue suede shoes”, em cenas intercaladas com as de um registro ao vivo de Élvis, cenas que – é o pior de tudo – se fundem no fim.