segunda-feira, 28 de maio de 2012

Mészáros: o partido como ferramenta de luta ofensiva dos trabalhadores


Demétrio Cherobini - no DIARIO LIBERDADE
Todo mandato é minucioso e cruel
eu gosto das frugais transgressões
Mario Benedetti

Nos últimos anos, com as manifestações mais explosivas da crise do capital, muitas foram as tentativas de construção de mediações de combate que possibilitassem aos trabalhadores do mundo realizar reivindicações de variados tipos. Diversos foram os países em que homens e mulheres saíram organizadamente às ruas para questionar uma multiplicidade de acontecimentos, entre eles o fato de que as decisões fundamentais, de cunho político, econômico e social, que afetavam diretamente suas vidas, estavam sendo tomadas à revelia de suas vontades (1). Até mesmo o Brasil, guardadas as devidas proporções, foi palco para o pronunciamento de numerosas vozes, que, descontentes, clamavam por melhores condições de existência (2).
Essas organizações desempenham uma tarefa verdadeiramente árdua e indispensável: tomam ruas, ocupam praças, elaboram modos criativos de protesto, montam piquetes, pressionam, fazem agitação, enfrentam a repressão violenta do Estado, executam princípios de uma ação que se pode considerar como negativa em relação a essa ordem na qual a dinâmica sócio-metabólica se desenvolve sem que os sujeitos que a sustentam tenham a possibilidade de dar a ela um rumo consciente e coletivamente planejado.
A grande limitação de tais movimentos - e este é o seu calcanhar de Aquiles - é que são incapazes de transcender a ação meramente negativa (ou defensiva) e avançar no sentido deafirmar, na prática e em escala de massa, uma nova forma de regulação do metabolismo social que aponte para a superação definitiva do complexo contraditório do capital enquanto controlador fetichista e destrutivo da atividade produtiva humana.
Portanto, por mais valorosas que possamos considerar essas mediações, devemos forçosamente concluir que elas precisam, para levar suas batalhas adiante, até as últimas conseqüências, orientar-se de maneira ofensiva contra o capital. E esse salto programático só pode ser efetuado se os trabalhadores souberem fazer bom uso do instrumento cuja tarefa essencial é a de organizar as lutas de classes de uma forma em que se consiga ir além das reivindicações concernentes aos interesses parciais (econômicos) dos diversos setores da classe e, conseqüentemente, colocar em questão a própria relação antagônica - uma relação que épolítica, isto é, que envolve poder - existente entre capital e trabalho, que permeia a classe como um todo.
Esse instrumento de que estamos falando é o partido (3). A atribuição específica do partido é a de, justamente, politizar as lutas econômicas dos trabalhadores, ou seja, tornar-se veículo para que a consciência proletária ultrapasse o nível da particularidade e atinja o da totalidade concreta acerca do ser da sociedade na qual estão inseridos e que atualmente é controlada pelo sistema do capital. Numa palavra: o partido deve servir de mediação entre a classe revolucionária e a consciência revolucionária (4).
Para tanto, o partido necessita ter a melhor preparação teórica e política possível -profissionalizar-se, em todos os âmbitos da práxis revolucionária -, ao mesmo tempo em que se mantém organicamente vinculado às fileiras proletárias. Ele não é, nesse contexto, o causador da revolução, mas a ferramenta dialética que ensina e aprende com os trabalhadores e que lhes possibilita apreender concretamente as múltiplas determinações sócio-metabólicas que afetam as suas existências.
Comprando diariamente as lutas da classe trabalhadora, inserindo-se em seu interior, realizando denúncias sobre as arbitrariedades do capital, fazendo agitação político-ideológica, usando as palavras de ordem adequadas, educando e preparando material, tática e estrategicamente as massas para a atividade revolucionária – as batalhas ofensivas com o fim de formar mediações alternativas de regulação da produção -, o partido se converte em elemento efetivo de emancipação.
O partido não pode, portanto, em hipótese alguma, permanecer a reboque das causas economicistas dos trabalhadores, mas sim buscar a elevação da consciência das massas a partir da conjugação de ações negativas afirmativas em todos os espaços passíveis de intervenção política.
Sua própria forma de constituição interna, nesse contexto, precisa ser prenunciadora de uma formação social qualitativamente superior. Organização e orientação estratégica são, aqui, duas faces de uma mesma moeda. Isso quer dizer, em outras palavras, que as mediações alternativas da luta proletária – partido incluso - não podem se estruturar de uma maneira que reproduza a lógica de funcionamento sócio-metabólico do capital – um modo de controlehierárquico e fetichista da atividade produtiva.
A proposta da ofensiva socialista de que fala Mészáros exige dos interessados na superação do sistema esforços para a efetivação progressiva, já no presente, de um tipo de organização diverso do que está posto pela realidade alienante do capital.

Notas:
(1) O ano de 2011 foi marcante nesse sentido. Para uma boa leitura acerca de tais acontecimentos, vale a pena conferir a entrevista de Ricardo Antunes para Valéria Nader e Gabriel Brito, “Luta pelos direitos do trabalho é hoje vital diante da crise cabal do capitalismo”, Correio da Cidadania, 08/09/2011, disponível emhttp://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&;view=article&id= 6262. Como explica o sociólogo brasileiro, ainda que cada uma dessas manifestações tenha tido a sua singularidade, todas elas revelam um traço comum: expressar um profundo descontentamento em relação à ordem em que se inserem - ordem esta marcada, de uma forma ou de outra, pela grave crise do capital.

(2) Sobre esse ponto, é útil ler o bom artigo de Fernando Marcelino “Quatro lições sobre a nova dinâmica da luta de classes no Brasil”, Correio da Cidadania, 17/02/2012, disponível em http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&;view=article&id=6816:submanchete140212&catid=25:politica&Itemid=47. Ressalte-se, ainda, nesse contexto, o fato de que, entre os anos de 2009 e 2010, houve 964 greves no Brasil.

(3) Apesar de não ser um tema central de sua vasta obra, Mészáros afirma que os partidos podem ser mediações efetivas nas lutas de classes a favor dos trabalhadores. Apresentamos algumas de suas concepções a respeito num pequeno artigo, “Por um partido socialista de orientação estratégica ofensiva: notas a partir de István Mészáros”, Correio da Cidadania, 18/11/2011, disponível em http://www.correiocidadania.com.br/index.php?option=com_content&;task=view&id=6526&Itemid=79.

(4) Mészáros usa o termo – retirado d’A ideologia alemã – consciência socialista de massa para se referir à consciência revolucionária dos trabalhadores. Esse tipo de consciência deve dar conta de compreender não somente o que precisa ser negado pela práxis transformadora – o sistema de mediações do capital -, mas, também, fundamentalmente, aquilo que necessita ser afirmado em seu lugar, a comunidade dos homens e mulheres que regulam, de forma consciente e autônoma, o metabolismo social humano.

Luciana Genro: “Syriza é um exemplo para a esquerda mundial”


Luciana Genro esteve na Grécia em maio e reuniu-se com o líder do Syriza, Alexis Tsipras | Foto: Bernardo Ribeiro/Sul21

Samir Oliveira no SUL21

A ex-deputada federal Luciana Genro (PSOL) esteve na Grécia para acompanhar a atual conjuntura política do país, que assiste ao crescimento da coligação de esquerda radical (Syriza) em meio ao caos político e social em função das medidas de austeridade adotadas por exigência da chamada Troika: Banco Central Europeu, Comissão Europeia e Fundo Monetário Internacional.
Nas eleições realizadas no início de maio, o Syriza conseguiu expressivo apoio popular e conquistou 16% dos votos, tornando-se a segunda força no Parlamento, com 50 deputados. Com o fracasso na formação de um governo de coalizão, novas eleições ocorrerão no dia 16 de junho.
Até o momento, o partido lidera as pesquisas de intenção de voto na Grécia e, se vencer, representará uma mudança no padrão da política europeia recente, que se caracteriza pela alternância no poder entre os conservadores de direita e os sociais-democratas de centro-esquerda.
Durante sua visita à Grécia, Luciana Genro se reuniu com o líder do Syriza, Alexis Tsipras – possível primeiro-ministro do país, caso seu partido vença as eleições. Nesta entrevista ao Sul21, ela comenta as impressões que teve da situação grega e conta como foi o contato com as lideranças do Syriza.
“A eleição do dia 6 de maio foi um recado muito claro de que o povo grego não vai aceitar continuar fazendo sacrifícios em nome dos interesses do capital financeiro”
Luciana Genro: crise na Grécia é "resultado da política econômica implementada nos últimos dois anos, sob orientação da Troika" | Foto: Bernardo Ribeiro/Sul21

Sul21 – Quais as impressões que a senhora teve da situação atual da Grécia?
 
Luciana Genro – A Grécia hoje é um país com uma importância muito grande para o futuro da Europa e para o futuro da esquerda socialista no mundo inteiro. Os olhos do mundo estão voltados para lá, para entender o que vai acontecer a partir da eleição do dia 17 de junho. A primeira impressão que tive foi de uma crise econômica muito brutal, algo que não estamos acostumados a ver na Europa. Pessoas nas esquinas pedindo esmola, crianças no metrô pedindo esmola, velhos atirados pelas calçadas… É o resultado da política econômica implementada nos últimos dois anos, sob orientação da Troika, que está exigindo da Grécia ataques cada vez mais brutais ao nível de vida do seu povo. A eleição do dia 6 de maio foi um recado muito claro de que o povo grego não vai aceitar continuar fazendo sacrifícios em nome dos interesses do capital financeiro.

Sul21 – Qual a importância do crescimento da Syriza em uma Europa dominada por conservadores de direita e por uma centro-esquerda moderada?
 
Luciana – Podemos traçar um paralelo com os partidos no Brasil. O Nova Democracia, que é o partido conservador, é o equivalente ao que temos com o PSDB e o DEM. E o Pasok, o partido dito socialista, é o equivalente ao PT, que, inclusive, tem relações com o Pasok há muitos anos. Quem estava na condução do país durante o primeiro momento da crise, quando foram adotadas as primeiras medidas draconianas, era o Pasok. A Grécia mostra que os velhos partidos que aplicam as receitas tradicionais do modelo econômico a favor do capital e dos interesses dos bancos estão totalmente desgastados e já não têm mais nenhuma representação real dos interesses do povo. E nessa esteira da queda desse bipartidarismo que sempre viveu a Grécia surge essa alternativa  de esquerda que se chama, inclusive, de esquerda radical. É um termo, em geral, utilizado de forma pejorativa. Eles escolheram esse termo porque querem voltar àquela etimologia original da palavra radical, que é ir à raiz dos problemas. Não se pode resolver o problema da Grécia sem romper com o sistema da forma como ele está posto hoje.

Sul21 – O Syriza é uma coalizão com 12 partidos. Como funcionam os processos internos de decisão do grupo? A esquerda costuma ser muito dividida, deve ser complicado manter a unidade.
 
Luciana – É interessante o funcionamento deles. Embora o Synaspismos seja o maior partido e seja muito maior que os demais, a coalizão é composta de forma a que todas as organizações tenham o mesmo peso na direção. Não é um peso proporcional ao tamanho. É uma coligação que funciona de forma bastante democrática. É evidente que eles têm divergências e embates internos. Conversei com o líder de um outro grupo e ele me contou que, em determinadas eleições municipais, o grupo dele saiu do Syriza e participou de outra coligação. Mas isso não impediu que agora eles se unam de forma muito forte, porque a situação da Grécia, que passou por 17 greves gerais nos últimos dois anos, é de muita convulsão social. Quando há mobilização e um processo de luta muito grande, as divergências políticas ficam secundarizadas e a esquerda se une em torno de bandeiras maiores. E a bandeira maior nesse momento na Grécia é dizer não a esse memorando da União Europeia e buscar, a partir da vitória da Syriza, um efeito dominó, no sentido de mostrar à Europa que um outro caminho é possível. É claro que a questão de a Grécia permanecer ou não na Zona do Euro é um debate forte acontecendo.
De acordo com Luciana Genro, Alexis Tsipras é "liderança muito carismática, que transmite uma segurança muito grande" | Foto: Bernardo Ribeiro/Sul21

Sul21 – Como foi a sua reunião com o líder da Syriza, Alexis Tsipras, que é cotado para ser primeiro-ministro da Grécia caso o partido ganhe as eleições?
 
Luciana – Ele é uma liderança muito carismática, com uma forma de se comunicar extremamente tranquila e que transmite uma segurança muito grande sobre o que está falando. É um líder que atua de uma forma muito coletiva, não é uma estrela que faz o que bem entende. Ele dá todos os passos buscando consultar o conjunto dos partidos que compõem o Syriza. Ele tem uma convicção muito grande de que essa oportunidade que o Syriza tem de disputar a possibilidade de governar a Grécia é única. Ele sabe que a dificuldade para vencer as eleições é muito grande e, mesmo assim, tem uma postura de muita ousadia, de não ter medo. Senti nele uma vontade muito grande de vencer e de mostrar que a esquerda radical pode governar e construir uma alternativa parta a Europa.
“Se a esquerda não conseguir capitalizar essa insatisfação antissistema, o perigo de a direita conseguir é real”

Sul21 – A posição do Syriza é de que a Grécia permaneça na Zona do Euro.
 
Luciana – Já é de conhecimento da esquerda do mundo inteiro que não se constrói um modelo alternativo, tenha o nome que tiver, num só país. A Grécia não quer se isolar do conjunto da Europa. Sair da Zona do Euro voluntariamente seria promover o próprio isolamento. É evidente que não farão isso. Mas o Syriza sabe que não vai ser fácil permanecer na Zona do Euro e construir um outro caminho. A oposição das classes dominantes europeias será muito forte. A possibilidade real de a Grécia permanecer no Euro e construir um caminho diferenciado é contaminar o resto da Europa com esse exemplo de luta, de que existe um modelo alternativo que não seja a submissão aos interesses do Banco Central Europeu e do FMI.
" Acredito que o perigo do crescimento de uma alternativa antissistema se expressar também pela direita é muito grande. A gente vê isso na França e na Grécia de uma forma ainda mais grave" | Foto: Bernardo Ribeiro/Sul21

Sul21 – A intensificação da crise na Europa fez com que os partidos e propostas antissistema crescessem bastante, tanto à esquerda quanto à direita. Na França, a Frente Nacional, com um discurso xenófobo, foi a terceira força mais votada. Na Grécia, os neonazistas conseguirem chegar ao Parlamento. A esquerda não tem conseguido capitalizar a insatisfação antissistema?
 
Luciana – A profundidade da crise e o fato de os partidos que representam os interesses das elites europeias estarem se revezando no poder há tanto tempo faz o povo perceber que não adianta ficar trocando um pelo outro. Acredito que o perigo do crescimento de uma alternativa antissistema se expressar também pela direita é muito grande. A gente vê isso na França e na Grécia de uma forma ainda mais grave. O partido Aurora Dourada é assumidamente nazista, muito embora muitas das pessoas que votaram neles não tenham essa consciência. Enxergaram neles um discurso antissistema. A Syriza tem a expectativa de conseguir capitalizar uma parte desses votos na nova eleição. Até a mídia, que é totalmente contra a Syriza, tem feito uma denúncia forte da Aurora Dourada como um perigo muito grande para a Grécia e para a Europa. Eles chegam ao ponto de agredir imigrantes nas ruas. Se a esquerda não conseguir capitalizar essa insatisfação antissistema, o perigo de a direita conseguir é real.

Sul21 – O Syriza não corre risco de ficar isolado, mesmo se vencer as eleições de junho? Eles teriam que buscar aliados para formar maioria no Parlamento e não parece haver muitos partidos dispostos a apoiá-los. Os comunistas já se recusaram a compor uma aliança antes.
 
Luciana – A situação não é simples. Mas na própria eleição de maio mais de 60% dos votos foram para partidos ou coalizões que propunham a ruptura com o memorando da União Europeia. O Syriza não conseguiu formar um governo quando teve a sua vez, pelo sistema parlamentarista grego, porque não teve apoio de alguns paridos que são a favor da ruptura do memorando, como o Partido Comunista, por mesquinharia. Porque o Syriza é, em grande medida, uma dissidência dos comunistas. Na medida em que o Syriza possa se converter no desaguadouro dessa insatisfação nas próximas eleições, acredito que as demais forças políticas da esquerda serão compelidas a apoiar o governo. Eles têm consciência de que, mesmo se eles ganharem as eleições, não será um governo da Syriza. Será um governo de coalizão, portanto terão que negociar. Mas tomando por pressuposto a necessidade de romper com o memorando e não continuar dando segmento aos ataques ao povo.
“A campanha que a grande mídia está fazendo contra o Syriza é muito forte. É uma campanha de terrorismo”
Líder do Syriza pode ser futuro primeiro-ministro da Grécia | Foto: Divulgação: Alexis Tsipras

Sul21 – Será que, ao chegar no poder, a Syriza não mudará o discurso em nome na manutenção de um sistema que possa privilegiá-los?
 
Luciana – A maior chance que tiveram para capitular ocorreu quando foram chamados a compor o dito governo de salvação nacional, para que não fosse necessário novas eleições. Eles poderiam ter sido governo se aceitassem partir da ideia de que o memorando precisa ser cumprido, embora com alterações. Eles poderiam ter sido governo fazendo essa concessão e jogando na lata do lixo o patrimônio político acumulado. Resistiram a essa tentação, correndo o risco de não conseguir obter resultados tão significativos nas próximas eleições, porque a campanha que a grande mídia está fazendo contra eles é muito forte. É uma campanha de terrorismo, dizendo que se o povo votar na Syriza a Grécia vai quebrar porque vai ser expulsa do Euro. Acredito que a própria situação política da Grécia ajuda a garantir que eles se mantenham firmes nesse caminho, porque é a vontade do povo, isso está cada vez mais claro.

Sul21 – Há muita expectativa em torno de uma possível vitória da esquerda radical. Mas e se o Syriza perder? Será o fim de qualquer possibilidade de mudança para a Europa?
 
Luciana – Esse foi outro ponto da minha conversa com o Alexis. Questionei ele sobre isso. Ele me disse que tem convicção de que, independentemente do resultado, a Syriza seguirá com muita força, porque será um segundo violino no Parlamento grego. O governo terá que negociar com a Syriza e ela terá força política para barrar determinadas medidas, principalmente se a luta seguir do lado de fora do Parlamento. Então, mesmo que o Syriza não governe a Grécia, vai seguir desempenhando um papel importante dentro do país, no sentido de ser um contraponto às medidas que o governo possa vir à tomar. E ao mesmo tempo vai continuar sendo uma referência política para a esquerda do mundo inteiro porque, mesmo sem vencer, chegou perto de vencer, porque teve uma forma de atuação correta.

Um ideal neoliberal: o “Homo Economicus”


Vaz de Carvalho

 
Os filósofos representaram como um Ideal - o “Homem” – indivíduos que não se veem subordinados à divisão do trabalho (…) Deste modo se concebe este processo como um processo de alienação do “Homem” (Marx – A Ideologia Alemã). (1)

1 – Sem consciência do bem e do mal
 

O mundo perfeito do neoliberalismo – a que a social-democracia se submete, para além da retórica de ocasião - é formado por indivíduos perfeitamente livres, perfeitamente racionais, orientados pelas suas escolhas económicas. Trata-se do designado “homo economicus”. Que visão do mundo é que nos propõem? Seres humanos que se guiam e são guiados apenas por considerações económicas. Neste sistema, o lucro capitalista-financeiro sobrepõe-se a quaisquer outras considerações, os sacrifícios das pessoas não são tidos em conta, o desemprego, não é um acidente: é uma forma de gestão. (2) As “reformas estruturais” – eufemismo para iludir os incautos – postas em prática pelo governo e reclamadas pela “troika” – e apoiantes - são bem a confirmação do que dizemos.
“O direito ao trabalho e a proteção do ambiente tornaram-se excessivos na maior parte dos países desenvolvidos. O comércio livre vai reprimir alguns destes excessos, obrigando cada um a tornar-se competitivo” declara o Prémio Nobel, Gary Becker, pai de uma “economia generalizada”, segundo a qual toda alógica social é redutível a uma pura racionalidade económica” (2) Este “puro” faria sorrir não fosse a tragédia dos que sofrem as dramáticas consequências desta “racionalidade”, que se traduz em desemprego, pobreza e fome que alastram pelos países onde é aplicada.
Mas acerca da concorrência vale a pena recordar Marx e Engels: “A concorrência isola os indivíduos, não apenas os burgueses mas mais ainda os proletários enfrentando-se uns aos outros, apesar do que os une.” (3), O proletariado liberta-se suprimindo a concorrência (4)
Bem se pode dizer que o “homo economicus” é o grau zero do pensamento, um “Homem” imaginado sem História, sem sociologia, sem psicologia que não a das escolhas do mercado, sem ideias nem ideologia, passivamente explorado pela oligarquia triunfante eis, pois, o ideal “democrático” do neoliberalismo. Não admira que nos governos, tecnocratas adeptos destes preconceitos ocupem ministérios fundamentais. Neste sentido a sua mais brilhante argumentação – não parece disporem de mais – é classificarem de “ideologia” as críticas mais pertinentes. No fascismo era-se perseguido por ter ou fazer “política”, no neoliberalismo é-se marginalizado por ter “ideologia”.
Quando não há princípios tudo se pode equivaler, sendo que o equivalente universal é o dinheiro. O “homo economicus” a que querem reduzir a humanidade, parece-se com o protagonista de “O Estrangeiro” de Albert Camus, sem consciência do bem e do mal. Uma humanidade seguindo raciocínios que se traduzem em fórmulas matemáticas, que ora nos dizem ser simples e evidentes, ora nos apresentam inextrincavelmente complexas. Um mundo em que a irresponsabilidade moral dos indivíduos e da sociedade está coberta pela acção do mercado. Mas será só isto a vida? Não haverá nada para além deste modelo artificial com o qual querem construir uma hipotética realidade que seria perfeita quando abandonássemos toda a dimensão do humanismo?
Claro que não são negados valores, pelo contrário, são proclamados e lamenta-se a sua falta. Porém, não vão além de piedosos votos religiosos, de superstições diversas, de ilusória boa consciência dos voluntariados, de caridade, que serve para mascarar as crescentes injustiças e a desagregação social.
Na realidade, independentemente de toda a retórica “personalista” o “homo economicus” é forçosamente conformista. O objetivo do neoliberalismo é produzir seres humanos à medida de interesses assumidamente privados das transnacionais e da finança especuladora, para daí deduzir e aplicar os seus dogmas.

2 – A corrupção moral
 
A racionalidade neoliberal é evidente na corrupção moral da oligarquia. Gary Smith, um ex-executivo da Goldman Sachs expressa-o claramente: “o objetivo dos banqueiros de todo o mundo é maximizar o seu ganho independentemente das consequências para os outros (5)
Os paraísos fiscais são a expressão funcional desta corrupção. Enquanto os povos são sujeitos a sacrifícios apenas comparáveis aos tempos de guerra e de ditadura, o grande capital circula em livre simbiose com a fraude e o dinheiro sujo repleto de horrores das “máfias”. É hoje praticamente impossível distingui-los.
Nesta UE a racionalidade competitiva tem sentidos opostos conforme o poder de mercado de cada um. O povo trabalhador é sujeito a mais impostos e à perda de direitos laborais e sociais: são os “ajustamentos estruturais” e a austeridade; para os oligarcas da banca e mono ou oligopólios são oferecidos resgates financeiros (os “bailouts”) e paraísos fiscais onde praticamente sem impostos colocam “livremente” o resultado das fraudes e da exploração acrescida a que as camadas trabalhadoras estão sujeitas. As deslocalizações de empresas e ativos financeiros são um exemplo da corrupção de moral social de que o grande capital está possuído. A simples exigência de contribuírem com mais algumas migalhas de impostos em países sufocados por iníquas austeridades torna “os mercados traumatizados”, na expressão de um dos seus epígonos, perante o ar reverente do sr. entrevistador.
Na base de tudo isto estão três dogmas, afinal, atratores do capitalismo (6)
“- A obrigação moral de cada indivíduo para com a sociedade é alcançada maximizando o ganho pessoal
- Dinheiro é riqueza e ganhar dinheiro aumenta a riqueza da sociedade
- Ganhar dinheiro é o objetivo da iniciativa individual e a medida adequada da prosperidade e desempenho económico.” (5)
Como é que chegamos aqui? Negando que existam classes, camadas sociais, originadas pelas contradições não resolvidas, antagónicas, do capitalismo. Na prática, impõe-se um modelo no qual só há indivíduos isolados, separados uns dos outros, cuja ligação é estabelecida pelas leis do mercado. Ou seja, cada indivíduo guia-se pelo seu máximo interesse, isto é, pelo seu egoísmo. Porém, as escolhas da sociedade não podem guiar-se apenas pelos interesses individuais, ou seja, pelo seu egoísmo, numa sociedade que justamente o amplia, justificando assim uma hipotética eficiência na utilização dos recursos existentes, porém apenas no interesse da minoria dominante. A depredação dos recursos naturais e do ambiente representa a mais completa negação desta pseudo eficiência, na realidade corrupção moral.
Foi aqui que chegamos por se sobrepor o egoísmo individual às necessidades colectivas, com justificações apoiadas em abstracções matemáticas. A questão verdadeiramente importante não consiste em saber se as descrições causais podem ser expressas numa fórmula matemática precisa, mas em saber se a fonte do nosso conhecimento são as leis objetivas da Natureza ou proposições da nossa mente. (7)
A questão que se pode colocar é: como é que teses tão absurdas, frouxas sob qualquer perspectiva teórica, que os factos negam de forma evidente, fez escola, governa e submete os povos, com o apoio explícito da social-democracia.
Porém, por incrível, o absurdo faz por vezes história na História. No século XVII, o bispo Bossuet construiu uma tese demonstrando o direito divino dos reis. Era o que o absolutismo monárquico e em primeiro lugar Luis XIV desejava ouvir, a quem a obra foi dedicada. Quando, depois de Erasmo, os mais eminentes pensadores, como Espinosa, Hobbes, e outros - desfaziam os preconceitos e as superstições de um passado obscurantista e feudal, Bossuet, reformulava dogmas medievais. O direito divino dos reis, então outorgado pelo Papa, passava a ser recebido directamente de Deus, para governar os povos. Onde está direito divino leia-se hoje “os mercados”. Em ambos os casos, na prática, foi uma forma de aprofundar a arbitrariedade dos poderosos.

3 – O egoísmo como lei fundamental.
 
A economia neoliberal trouxe de volta o egoísmo individual e o mercado “livre” como lei fundamental das sociedades e princípio do máximo benefício para todos. O capital querendo libertar-se de todas as determinações que não favoreçam a maximização do lucro inventou um “homo economicus”.
A promoção do egoísmo é feita ao pretender reduzir a sociedade a uma soma de indivíduos, é como se a sociologia fosse uma simples aritmética. O curioso é que se vende este cúmulo de egoísmos, esta irracionalidade, como a suprema racionalidade.
Em cada passo deste contexto concepções voluntaristas substituem a análise dialéctica. Em termos sociológicos procura-se transformar as pessoas de cidadãos em – apenas - consumidores, autómatos programáveis de acordo com a maior vantagem para os mono e oligopólios. Tudo entrou no campo da mercadoria, assim a generalidade das pessoas para serem consumidoras são em primeiro lugar mercadorias como trabalhadores. A liberdade que se promove é, pois, a de consumir – se puder.
Os que detêm maior poder de mercado determinam as escolhas, ou pelo menos os seus contextos. São eles os donos do casino em que se tornou a economia, os outros jogam com as suas fichas e eles ganham sempre. Na realidade, a escolha de base já está feita: o máximo lucro do grande capital acima de tudo.
O livre arbítrio morreu há muito, mas é ressuscitado nos padrões do “homo economicus” para camuflar a alienação e a manipulação. As tese liberais de que cada indivíduo conhece melhor o que lhe convém faz por ignorar quais os critérios e contextos em que esse conhecimento se aplica. As pessoas agem no seu círculo de circunstâncias com graus de liberdade muito diferentes conforme a situação económica e, claro, também psicológica. Que espécie de liberdade existe, isto é, capacidade de autodeterminação, numa sociedade cujo funcionamento repousa em padrões de desemprego, precariedade e dita “flexibilidade” laboral? Note-se que os seus mentores consideram um desemprego de 3 ou 4%, “anormalmente baixo”…O desemprego nesta ideologia, para além das ditas “preocupações” de governantes que fazem tudo o que podem para o facilitar, não é um acidente, é como dissemos: uma forma de gestão.
Com o sofisma do “homo economicus” procura-se destruir as defesas sociais dos indivíduos criando-lhes novas necessidades: necessidades não satisfeitas, a todos os níveis. Desperta-se, em particular nos jovens, a exaltação de desejos, compulsões de origem psicológica desenvolvendo automatismos de procura de autosatisfação. Procura-se cristalizar na sua imaginação que tudo o que lhes é proposto apareça como belo e excitante. Quanto mais deprimido estiver, e a vida real gera a depressão pela insegurança fruto da amoralidade economicista, mais facilmente a pessoa assume essas acções de alienação. E aqui reside a libertação que o sistema lhe proporciona, não mais, e que vale apenas o dinheiro de que dispuser.

4 – Que racionalidade?
 
O axioma da racionalidade liberal foi definido por Marx quando expôs o que representava para a burguesia o consumidor racional: “Abaixamento do salário e longas horas de trabalho – é este o núcleo do comportamento racional e saudável do operário” (8)
Para suportar as suas teses o neoliberalismo inventa o tal “homo economicus, considerando que todas as motivações são conscientes e racionais. Faz por ignorar que a tomada de consciência é apenas a fase última do processo psíquico, condicionado por estímulos exteriores, que em muitos casos levam os indivíduos menos preparados ao consumo de objectos inúteis e de substâncias prejudiciais à saúde física ou mental e daí à frustração, aos comportamentos irracionais, ao desespero, à insanidade, à dependência e inclusive à marginalidade.
Para as escolhas, serem racionais e eficientes, deveria haver uma lista exaustiva dos estados futuros a que poderia conduzir cada uma das suas escolhas. Só que nesta economia não há futuro, é uma teoria sem tempo, ou melhor, cujo horizonte de tempo é uma derivada do presente, isto é, uma variação infinitesimal do presente numa função supostamente continua. Uma teoria que já mostrou não saber lidar com uma variável fundamental: a incerteza do futuro. Daqui que estes especialistas mostrem a sua competência quando tentam explicar por que erraram nas suas previsões ou se confessem “surpreendidos” com as nefastas consequências das suas políticas.
A racionalidade e a eficiência das escolhas têm sido experimentalmente postas em causa quando intervém a avaliação de probabilidades, em situações incerteza e de ambiguidade. Na economia, a complexidade das variáveis e sua evolução no tempo mostram que escolhas puramente racionais não podem ser tomadas individualmente. Estas escolhas estão desde logo condicionadas pelos interesses que dominam o ambiente social, sejam “os mercados”, seja a condução política. A racionalidade individual perde-se se aqueles interesses agirem em sentido contrário ao social, isto é, ao de cada vez maiores camadas da população.
A ilusão do “homo economicus”, vendida ao público como princípio de equidade moral e eficiência económica, serve apenas de álibi para a fraude, a corrupção e a especulação que lhe está associada. Trata-se da falácia da “Nova Economia”, que não passa da economia do desemprego e do empobrecimento das camadas trabalhadoras. As teses associadas ao “homo economicus” fazem parte do mecanismo de alienação necessário ao totalitarismo neoliberal.
A democracia só pode ser efectiva se consagrada por homens e mulheres livres, entenda-se com direitos sociais garantidos, sem existências precárias e não vivendo ao nível de uma incerta subsistência.
Perante o “homo economicus” amoral e unidimensional do neoliberalismo é necessário afirmar com Bento Jesus Caraça “a cultura integral do indivíduo” libertadora e revolucionária, pois, como afirma: “No seio das sociedades humanas manifestam-se dois princípios contrários, o individual e o colectivo, de cuja luta resultará um estado superior dessas mesmas sociedades em que o primeiro princípio – o individual – chegado a um elevado grau de desenvolvimento se absorverá no segundo.”
E estas palavras que podem até parecer estranhas à luz da dominante atual, exprimem afinal o conteúdo dos mais elevados momentos da Humanidade.

1 - Carl Marx – A Ideologia Alemã – Obras Escolhidas de Marx e Engels - p.76 – Ed. Progresso Moscovo - 1972
2 - A Ilusão Neoliberal – René Passet – Ed. Terramar – 2002 - p.109
3 - Carl Marx – A Ideologia Alemã – Obras Escolhidas de Marx e Engels - p.62– Ed. Progresso Moscovo - 1972
4 – F. Engels - Princípios do Comunismo - Obras Escolhidas de Marx e Engels - p.85 – Ed. Progresso Moscovo – 1972
5 - When Bankers Rule the World - By David Korten – www.informationclearinghouse - April 03, 2012
6- Um “atractor” pode ser definido como o conjunto de comportamentos característicos para o qual evoluiu um sistema dinâmico independentemente do ponto de partida.
7 – “A questão verdadeiramente importante da não consiste em saber qual o grau de precisão que alcançaram as nossas descrições das conexões causais e em saber se estas podem ser expressas numa fórmula matemática precisa - mas em saber se a fonte do nosso conhecimento dessas conexões são as leis objetivas da Natureza ou as propriedades da nossa mente, a faculdade que lhe é inerente de conhecer determinadas verdades apriorísticas, etc.” - V. I. Lenine – Materialismo e Empiriocriticismo – citado em “Sobre Lenine e a Filosofia” - J. Barata Moura – Ed. Avante 2010 – p.139.
8 - O Capital - Livro Segundo - Tomo V – Ed. Avante - p.550.
Dado que algumas pessoas ficam muito confusas ou perturbadas com o termo burguesia, esclareça-se que Marx e Engels distinguiram desde logo entre a burguesia e o pequeno empresariado. Os primeiros constituindo a “classe dos capitalistas modernos”, isto é “a indústria moderna que transformou a pequena oficina do mestre na grande fábrica do capitalista industrial” (Manifesto).

“A Veja deve explicações ao país”, diz presidente da Fenaj


"A Veja acaba de nos produzir um dos piores momentos do jornalismo" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Samir Oliveira no SUL21

A CPI realizada pelo Congresso Nacional que tenta investigar a influência do bicheiro Carlinhos Cachoeira sobre o poder público acabou suscitando um debate tão inesperado quanto necessário no país: a relação da mídia com as esferas de poder, sejam elas políticas ou econômicas.
A Polícia Federal identificou cerca de 200 conversas telefônicas entre o diretor da sucursal da revista Veja em Brasília, Policarpo Júnior, e o contraventor. A divulgação dessas escutas mostra que Cachoeira pautava a publicação da editora Abril, que se deixava levar pelos interesses políticos de um empresário fortemente ligado ao senador Demóstenes Torres (ex-DEM).
Diante desse cenário, alguns parlamentares têm defendido a convocação de Policarpo para depor na CPI, mesmo que o relator Odair Cunha (PT-MG) já tenha rejeitado pedido de informações a respeito. Para o presidente da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), Celso Schröder, a revista precisa explicar o que guiou sua prática jornalística nesse episódio. “A Veja tem que dar explicações ao Brasil. É preciso explicar como ela exerce a atividade jornalística com essas veleidades, com descompromisso e irresponsabilidade em relação a princípios éticos e técnicos consagrados pelo jornalismo”, entende.
Nesta entrevista ao Sul21, Schröder avalia a conduta da revista nesse e em outros episódios e defende a necessidade de um marco regulatório para a comunicação no país.
“Não é só um repórter, mas é a organização, a chefia da empresa, que conduz e encaminha uma atividade tecnicamente reprovável e eticamente inaceitável”
Sul21 – O que a CPI do Cachoeira pode nos dizer sobre a mídia brasileira?
 
Celso Schröder – A CPI está nos mostrando que a mídia é uma instituição como qualquer outra e precisa estar submetida a princípios públicos, na medida em que a matéria-prima do seu trabalho é pública: a informação. Quanto menos pública essa instituição for e mais submetida aos interesses privados dos seus gestores ela estiver, mais comprometida ficará a natureza do jornalismo. Como qualquer instituição, a mídia não está acima do bem e do mal, dos preceitos republicanos do Estado de Direito e do interesse público. Do ponto de vista político, a Veja confundiu o público com o privado. Do ponto de vista jornalístico, comete um pecado inaceitável: estabelecer uma relação promíscua entre o jornalista e a fonte. Não é só um repórter, mas é a organização, a chefia da empresa, que conduz e encaminha uma atividade tecnicamente reprovável e eticamente inaceitável. Todo jornalista sabe, desde o primeiro semestre da faculdade, que a fonte é um elemento constituidor da notícia na medida em que ela for tratada como fonte. A fonte tem interesses e, para que eles não contaminem a natureza da informação, precisam ser filtrados pelo mediador, que é o jornalista. A fonte, ao mesmo tempo em que dá credibilidade e constitui elemento de pluralidade na matéria, por outro lado, se não for mediada e relativizada pelo jornalista, pode contaminar o conteúdo.
"Os jornalistas não estão acima da lei e não podem estar acima dos princípios republicanos" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Em que pontos a relação entre Policarpo Júnior e Cachoeira extrapolaram uma relação saudável entre repórter e fonte?
 
Schroder – Ele não tratou o Cachoeira como fonte. O problema é um jornalista ou uma empresa jornalística atribuir a alguém uma dimensão de fonte única, negociando com ela o conteúdo e a dimensão da matéria e, principalmente, conduzindo a Veja para uma atuação de partido político. Esse é um pecado que a Veja vem cometendo há algum tempo. A oposição no Brasil é muito frágil. Por não existir uma oposição forte, a imprensa assume esse papel, o que é uma distorção absoluta. A imprensa não tem que assumir essa função, a sociedade não atribui a ela uma dimensão político-partidária, como a Veja se propõe. A Veja acaba de nos produzir um dos piores momentos do jornalismo. Quando houve o episódio da tentativa de invasão do apartamento do ex-ministro José Dirceu (PT) por um repórter da Veja, eu escrevi um artigo dizendo que, assim como Watergate tinha sido o grande momento do jornalismo no mundo, a atuação da Veja no quarto de Dirceu foi um anti-Watergate. Mal sabia eu que teríamos um momento ainda pior. Não foi a ação individual de um repórter sem capacidade de avaliação. Foi uma ação premeditada e sistêmica de uma empresa de comunicação, de um chefe que conduzia seu repórter para uma ação imoral, tangenciando perigosamente a ilegalidade.
“A Veja é uma revista que coloca em jogo a matéria-prima básica da sua existência: a credibilidade. Parece-me um suicídio”

Sul21 – O mesmo pode ser dito para o episódio recente entre Policarpo Júnior e Cachoeira?
 
Schröder - Neste momento, isso se consolida. É uma revista que coloca em jogo a matéria-prima básica da sua existência: a credibilidade. Parece-me um suicídio, inclusive do ponto de vista de um negócio jornalístico. A não ser que a Veja esteja contando com um outro tipo de financiamento, ou já esteja sendo subsidiada por outro mecanismo que não seja decorrente da credibilidade e da inserção no público. Não temos dados concretos sobre isso, mas tudo leva a crer que, nesse momento, o financiamento da Veja esteja se dando por outro caminho. O comprometimento e o alinhamento inescrupuloso da revista a uma determinada visão de mundo conduz à ideia de que a Veja possa ter aberto mão de ser um veículo de comunicação para ser um instrumento político com financiamento deste campo.

Sul21 – Mas a revista já passou por períodos em que era mais comprometida com o jornalismo. Como ocorreu essa mudança?
 
Schroder – Não é de agora que a Veja vem dando indícios de que abre mão de um papel de referência jornalística. A Veja foi fundamental para a redemocratização do país, foi referência para jornalistas de várias gerações e teve em sua direção homens como Mino Carta. Depois de um certo tempo, a revista começa a alinhar-se a um determinado grupo social brasileiro. É claro que os editores da revista têm opiniões e cumprem um papel conservador no país. Tudo bem que isso aconteça nas dimensões editoriais. Agora, que se reserve ao jornalismo informativo um espaço de discussão com contrapontos. Princípios elementares do jornalismo foram sendo abandonados e essa revista, que foi importante para a democracia e para o jornalismo, passa a ser um exemplo ruim que precisa ser enfrentado.
"Não é pouca coisa trazer o chefe da sucursal da Veja em Brasília para depor" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Como o senhor vê a possibilidade de Policarpo Júnior ser convocado para depor na CPI?
 
Schroder – Tenho visto declarações de alguns políticos, como da senadora Ana Amélia Lemos (PP-RS), que diz que o envolvimento do Policarpo nisso representa um ataque à imprensa. Os jornalistas não estão acima da lei e não podem estar acima dos princípios republicanos. Se ele for convocado pela CPI, tem o direito de não ir. Se ele for, tem o direito de exercer a prerrogativa do sigilo de fonte. Mas a convocação não representa uma ameaça. A Veja tem que dar explicações ao Brasil. É preciso explicar como ela exerce a atividade jornalística com essas veleidades, com descompromisso e irresponsabilidade em relação a princípios éticos e técnicos consagrados pelo jornalismo. Questionar isso é fundamental. Os jornalistas e a academia têm obrigação de fazer esse questionamento.

Sul21 – Nesse sentido, não seria válido também convocar o presidente do Grupo Abril, Roberto Civita?
 
Schroder – Parece que seria deslocar o problema. Na CPI, a Veja é um dos pontos. O problema é a corrupção entre o Cachoeira e o Parlamento brasileiro. Um depoimento do Civita geraria um debate que desviaria os trabalhos da CPI. Não há dúvida de que a Veja praticou um mau jornalismo e deve prestar contas. A CPI tem gravações de integrantes da revista com o bicheiro. Que eles sejam convocados, então. Não é pouca coisa trazer o chefe da sucursal da Veja em Brasília para depor.
“A Fenaj não vai proteger jornalistas criminosos”

Sul21 – As críticas à Veja costumam ser rebatidas com argumentos que valorizam o trabalho supostamente investigativo feito pela revista, com diversas denúncias de corrupção. Entretanto, as gravações entre Policarpo e Cachoeira revelam como funcionava a engenharia que movia algumas dessas denúncias.
 
Schroder – Há uma certa sensação de que estamos vivendo um momento de corrupção absoluta no país. E isso está longe de ser verdade. Basta olhar a história e ver que agora temos instituições democráticas funcionando. A imprensa cumpre um papel democrático e fiscalizador importante com a denúncia. O problema é que alguns setores, ao fazerem denúncias, atribuem um papel absoluto à ideia da corrupção. No caso da Veja, o pior de tudo é que a própria revista estava envolvida. Não é só um mau jornalismo sendo praticado. Há indícios perigosos de uma locupletação – que não precisa ser necessariamente financeira. Pode ser uma troca de favores, onde o que a Veja ganhou foi a constituição de argumentos para uma atuação política, não jornalística. Como se fosse o partido político que a oposição não consegue ser. Se a imprensa se propõe a esse tipo de coisa, volta a um patamar de atuação do século XVIII.  Se é para ser assim, que a revista mude de nome e assuma o alinhamento a determinado partido. Agora, ao se apresentar como um espaço informativo, a Veja precisa refletir a complexidade do espaço político brasileiro. Se ela não faz isso, está comprometendo o jornalismo e tangenciando uma possibilidade de ilegalidade que, se houver, precisa ser esclarecida. A Fenaj não vai proteger jornalistas criminosos.

Sul21 – A revelação desse modus-operandi da Veja está gerando uma discussão quase inédita no país: a mídia está debatendo a mídia. A revista Carta Capital tem dedicado diversas capas ao tema e a Record já fez uma reportagem sobre o assunto. É um fenômeno comum em outros países, mas até então não ocorria no Brasil.
 
Schroder – Nos anos 1980, quando a Fenaj propôs uma linha para a democratização da comunicação, partimos da compreensão de que a democratização do país não havia conseguido chegar à mídia. O sistema midiático brasileiro, ao contrário de todas as outras instituições, não havia sido democratizado. Temos cinco artigos da Constituição nessa área que não estão regulamentados. Durante 30 anos tivemos diversas iniciativas de tentar construir  esse debate. A lógica da regulamentação existe em todos os países do mundo. Mas, no Brasil, isso enfrenta resistências de uma mídia poderosa, que fez os dois primeiros presidentes da República após a democratização. Sarney e Collor são dois políticos que saíram dos quadros da Rede Globo. Na presidência do Congresso tivemos outros afilhados da Rede Globo, como Antonio Carlos Magalhães, que também foi ministro das Comunicações. A mídia não só está concentrada, no sentido de ter monopólios, como está desprovida de qualquer controle público. Está absolutamente entregue à ideia de que a liberdade de expressão é a liberdade de expressão dos donos da mídia. Enquanto que o preceito constitucional diz que a liberdade de expressão é do povo, e o papel da mídia é assegurar isso.
“O espírito conservador está no DNA da Rede Globo. Ela acostumou-se à ideia de que para o seu negócio não deve existir nenhuma regra”
"As empresas alinhadas à ideia de que não podem estar submetidas à lei protegem-se" | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Quanto se conseguiu avançar nesse debate desde então?
 
Schroder – Estamos há 30 anos pautando esse debate até chegarmos a Confecom (Conferência Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de 2009). A Fenaj consegue constituir a ideia de que esse debate precisa ser público, já que ele é omitido pela mídia, que atribui à essa discussão uma tentativa de censura. A Confecom, no início, teve a anuência das empresas. Eu fui junto com os representantes da RBS e da Globo aos ministros Helio Costa (Comunicações),  Tarso Genro (Justiça) e Luiz Dulci (Secretaria-Geral da Presidência) propor a conferência. As empresas compreendiam que, naquele momento, a telefonia estava chegando e ameaçava um modelo de negócios. Mas, durante a Confecom, a Rede Globo e todos os seus aliados se retiraram, tentando sabotar mais uma vez o debate. O espírito conservador está no DNA da Rede Globo. Ela acostumou-se à ideia de que para o seu negócio não deve existir nenhuma regra. Acostumou-se a impor seus interesses ao país e, portanto, é ontológicamente contra qualquer regra. Naquele momento em que a Globo se retirou da Confecom ficou claro que não é possível contar com esses empresários para qualquer tipo de tentativa de atribuir à comunicação no Brasil uma dimensão pública, humana e nacional, regida por princípios culturais, democráticos e educacionais, não simplesmente pelo lucro fácil e rápido.

Sul21 – O editorial do jornal O Globo defendendo a revista Veja é um indício de que há um corporativismo muito grande entre os donos da mídia tradicional?
 
Schroder – O princípio que os une é aquele verbalizado pela Sociedade Interamericana de Imprensa: Lei melhor é lei nenhuma. As empresas alinhadas à ideia de que não podem estar submetidas à lei protegem-se. Abrigadas no manto de uma liberdade de expressão apropriada por elas, protegem seus interesses e seus negócios, atuando de uma maneira corporativa e antipública.  O jornalismo é fruto de uma atividade profissional, não é fruto de um negócio. Jornalismo não é venda de anúncios. Jornalismo é, essencialmente, o resultado do trabalho dos jornalistas. Portanto, a obrigação dos jornalistas é denunciar sempre que o jornalismo for maculado, como ocorreu com a Veja. Seria, também, uma obrigação das empresas jornalísticas, na medida em que elas não estejam envolvidas com esse tipo de prática. Ao tornarem-se cúmplice e acobertarem esse tipo de prática, as empresas aliam-se a elas. Essas empresas disputam o mercado, mas protegem-se no que consideram essencial, no sentido de inviabilizar a ideia de que exercem uma atividade submetida aos interesses públicos, como qualquer outra.

A primavera brasileira


Luis Nassif na CARTA CAPITAL

O conceito da “primavera” foi adotado para descrever países ou comunidades em que a Internet entrou quebrando barreiras de silêncio.
Nos países de regime ditatorial, a “primavera” significou romper o controle estatal sobre a informação. Mas em muitos países democráticos, significou romper cortinas de silêncio impostas pela chamada velha mídia – os grandes meios de comunicação nacionais.
Nos Estados Unidos, a blogosfera ajudou a romper o sigilo em torno das guerras do Iraque e Afeganistão. Na Espanha, antes mesmo da explosão da Internet, os sistemas de SMS (torpedos) telefônicos ajudaram a desarmar a tentativa de grandes grupos midiáticos de atribuir um atentado à oposição.
Na Argentina, há um conflito latente entre o governo Cristina Kirchner e os grandes grupos midiáticos. No momento, passeatas tomam as ruas da cidade do México, contra a imprensa local.
No Brasil, em pelo menos três episódios exemplares a blogosfera foi fundamental para romper barreiras de silêncio.
O primeiro foi na Operação Satiagraha, da Polícia Federal. Capitaneados pela revista Veja, a chamada grande mídia se esmerou em demonizar os agentes públicos, vitimizar o banqueiro Daniel Dantas e transformar Gilmar Mendes no maior presidente da história do STF (Supremo Tribunal Federal).
Apenas a blogosfera preocupou-se em mostrar o outro lado, o das investigações.
O episódio terminou com o Opportunity se safando junto à Justiça. Mas, no campo da opinião pública, poder judiciário, ministros que se aliaram ao banqueiro, o próprio banqueiro e Gilmar Mendes saíram amplamente derrotados. O episódio mostrou os limites da grande mídia para construir ou destruir reputações.
Várias armações foram denunciadas pela blogosfera, como o caso do falso grampo no STF, o grampo sem áudio da suposta conversa entre Demóstenes Torres e Gilmar Mendes, a lista falsa de equipamentos da ABIN (Agência Brasileira de Inteligência) brandida pelo então Ministro da Justiça Nelson Jobim.
O segundo episódio relevante foi a promoção do livro “A Privataria Tucana”, com indícios de enriquecimento pessoal do ex-governador José Serra. Apesar de totalmente ignorado pela velha mídia, o livro bateu todos os recordes de vendas do ano.
Agora, tem-se o caso do envolvimento da revista Veja com o bicheiro Carlinhos Cachoeira. Foram quase dez anos de parceria, que transformaram o bicheiro no mais poderoso contraventor da república.
Graças às reportagens de Veja, o senador Demóstenes Torres tornou-se símbolo da retidão na política. Com o poder conquistado, participou de inúmeros lobbies em favor de Cachoeira e de avalista das denúncias mais extravagantes da revista.
Veja sempre soube das ligações de Demóstenes com Cachoeira. Mas por quase dez anos enganou seus leitores, não só escondendo essa relação, como difundindo a ideia de que Demóstenes era político inatacável.
Na velha mídia, não há uma linha sobre essas manobras, nada sobre as 47 conversas gravadas entre o diretor da revista em Brasília e Cachoeira, as quase 200 dele com todos os membros da quadrilha.
Assim como no Egito, Estados Unidos, Espanha, México, França, é a Internet que está explodindo cortinas de silêncio.

domingo, 27 de maio de 2012

Blogueiros planejam grande mobilização

Do sítio Vermelho:

O segundo dia do 3º Encontro de Blogueiros começou, (26/5), com um debate empolgante em defesa da blogosfera e da liberdade de expressão.

Na mesa, Paulo Henrique Amorim, Eduardo Guimarães, Esmael Morais e Emílio Gusmão falaram do uso de ações judiciais como forma de intimidação e tentativa de censura de suas páginas. A mesma experiência foi relatada via telefone por Lúcio Flávio e por outros blogueiros de diversas partes do Brasil durante o debate que se seguiu à exposição dos palestrantes. Cansados de só reclamar, eles defenderam o início de uma grande mobilização nacional pelo cumprimento da Constituição Federal, que garante a liberdade de expressão aos brasileiros.


A ideia lançada na noite de ontem pelo jornalista e ex-ministro das Comunicações Franklin Martins foi encampada pelos participantes do encontro, que vão propor uma ampla campanha de mobilização nacional em defesa da regulamentação dos artigos da Constituição que tratam da comunicação. “Nada além da Constituição” seria o lema do movimento, que teria o seu auge no dia 5 de outubro, data em que se completa 24 anos de promulgação da Constituição de 1988, com uma grande ação em defesa da Carta Magna brasileira. “Vou pressionar o Miro (Altamiro Borges) para que a Barão de Itararé faça uma grande celebração neste dia”, afirmou Paulo Henrique Amorim, um dos principais defensores da ideia.

O autor do blog Conversa Afiada tem motivos de sobra para defender a campanha, já que responde atualmente a dezenas de processos referentes a conteúdos veiculados em sua página, 24 deles proposto apenas pelo banqueiro Daniel Dantas. Foi ele quem aconselhou os blogueiros presentes a enfrentar o uso da Justiça como forma de censura e não cumprir a decisões judiciais para a retirada de posts do ar, levando o caso para decisão no Supremo Tribunal Federal. “A Justiça não tem o poder de censura. Só tirem os posts do ar após a decisão do Supremo, porque nenhum juiz tem poder de censura no Brasil”, conclamou.

Amorim defendeu ainda que os blogueiros transcendam a batalha de judicialização da censura. “Nós fomos responsáveis por um processo político irreversível no Brasil. Antes de nós, o José Serra e o Fernando Henrique Cardoso davam três telefonemas e calavam o Brasil. Hoje isso não é mais possível”, afirmou, acrescentando que é preciso botar mais gente para participar das discussões sobre a blogosfera. “Temos que multiplicar o número de participantes dos debates por mil. O nosso debate não é de blogueiros políticos, é muito mais que isso, é o da democracia”, conclui o jornalista.

Enfrentamento

O enfrentamento também foi a solução sugerida pelo presidente do movimento dos Sem Mídia, Eduardo Guimarães em sua exposição. “Eu resolvi ir para o combate com esta gente a algum tempo. Em 2007, eu resolvi pegar um megafone e sair para protestar contra a situação e recebi o apoio de muita gente. Desde então, criamos uma ONG e fomos para o enfrentamento, entrando inclusive com ações contra o PIG”, informou, citando como exemplo do péssimo serviço da grande mídia o clima de medo gerado em torno da vacinação contra a febre amarela em 2008, em que mais pessoas morreram por vacinação indevida, do que pela doença.

Guimarães ressaltou também a mudança de posicionamento da grande mídia e de parte da sociedade em relação aos blogueiros. “Está havendo uma reação. Eles estão nos xingando e buscando formas de nos intimidar. Antes eles nos ignoravam, mas agora estão reagindo com a judicialização e a ameaças de agressão. As ações não existiam antes porque éramos ignorados. Hoje estamos incomodando e ninguém teria o trabalho de tentar nos intimidar se não estivéssemos incomodando. Por isso, precisamos avançar nesta proposta de uma associação de defesa dos blogueiros em todo o país. Precisamos avançar nisso, pois diante destas ameaças e judicialização, os que têm recursos reduzidos não poderão continuar o seu trabalho”, declarou.

O Encontro prossegue até domingo, com amplo debate sobre vários temas ligados à defesa da blogosfera, dos blogueiros e da liberdade de expressão.

Cartola, Um dos Maiores Poetas do Samba

Créditos: CARRANCASLITERARIAS


Cartola não existiu, foi um sonho que a gente teve. Assim Nelson Sargento definiu o amigo e parceiro Angenor de Oliveira, o mestre Cartola (1908-1980). Mestre pedreiro, mestre lírico: sambista refinado e elegante, de uma poesia que começava pela escolha dos títulos: As Rosas não Falam, Inverno do Meu Tempo e O Mundo é um Moinho. Como um trovador moderno, cantou o amor, a mulher e o morro, com sensibilidade e delicadeza.
[...] Ouvir Cartola é um exercício de sabedoria sutil. A cada audição treinamos nossa sensibilidade e nossa acuidade para o que é essencial, e aprendemos a perceber o espanto que há nas coisas simples, a ouvir o que as rosas têm a dizer. Nelson Sargento estava coberto de razão. Cartola, o pedreiro que virou poeta, não existiu. Foi um sonho bom. Que a gente não esquece.
CONTINUE A LEITURA: Por João Jonas Veiga Sobral em [O POETA IMPROVÁVEL] Revista Língua Portuguesa

VÍDEOS ESPECIAIS:

Para ouvir os dez maiores clássicos de Cartola acesse:

A política da linguagem e a linguagem da regressão política


Os capitalistas subverteram em grande medida ganhos fundamentais da classe trabalhadora e estamos a cair outra vez em direção ao domínio absoluto do capital


James Petras no BRASIL DE FATO

O capitalismo e os seus defensores mantém a dominação através dos "recursos materiais" sob o seu comando, especialmente o aparelho de Estado, e suas empresas produtivas, financeiras e comerciais, bem como através da manipulação da consciência popular via ideólogos, jornalistas, acadêmicos e publicitários que fabricam os argumentos e a linguagem para enquadrar as questões do dia.

Hoje as condições materiais para a vasta maioria dos trabalhadores deterioram-se drasticamente, pois a classe capitalista descarrega todo o fardo da crise e da recuperação dos seus lucros sobre as costas das classes assalariadas. Um dos aspectos gritantes deste contínuo rebaixamento de padrões de vida é a ausência, até agora, de um grande levantamento social. A Grécia e a Espanha, com mais de 50% de desemprego na faixa etária dos 16-24 anos e aproximadamente 25% de desemprego geral, experimentaram uma dúzia de greves gerais e numerosos protestos nacionais com muitos milhões de pessoas; mas não provocaram qualquer mudança real de regime ou de políticas. Os despedimentos em massa, os salários penosos, os cortes em pensões e serviços sociais continuam. Em outros países, como a Itália, França e Inglaterra, protestos e descontentamento manifestam-se na arena eleitoral, com governantes afastados e substituídos pela oposição tradicional. Mas no decorrer da agitação social e da profunda erosão socioeconômica das condições econômicas e de vida, a ideologia dominante que informa os movimentos, sindicatos e oposição política é reformista: apelos para defender benefícios sociais existentes, aumentar despesas públicas e investimentos, pela expansão do papel do Estado onde a atividade do setor privado deixou de investir ou empregar. Por outras palavras, a esquerda propõe conservar um passado em que o capitalismo estava arreado com o Estado previdência.

O problema é que este "capitalismo do passado" foi-se e um novo capitalismo mais virulento e intransigente emergiu forjando uma nova estrutura mundial e um poderoso aparelho de Estado obstinado e imune a todos os apelos por "reforma" e reorientação. A confusão, frustração e má direção da oposição popular de massa é, em parte, devido à adoção por escritores, jornalistas e acadêmicos de esquerda dos conceitos e linguagem adotados pelos seus adversários capitalistas: linguagem concebida para obscurecer as verdadeiras relações sociais de exploração brutal, o papel central das classes dominantes na reversão de ganhos sociais e as ligações profundas entre a classe capitalista e o Estado. Publicitários, acadêmicos e jornalistas elaboraram toda uma litania de conceitos e termos que perpetuam o domínio capitalista e desviam seus críticos e suas vítimas dos que perpetram o seu drástico deslizamento rumo ao empobrecimento em massa.

Mesmo quando formulam suas críticas e denúncias, os críticos do capitalismo utilizam a linguagem e os conceitos dos seus apologistas. Na medida em que a linguagem do capitalismo entrou no linguajar geral da esquerda, a classe capitalista estabeleceu a hegemonia ou dominação sobre os seus antigos adversários. Pior, a esquerda, ao combinar alguns dos conceitos básicos do capitalismo com a crítica aguda, cria ilusões acerca da possibilidade de reformar "o mercado" para servir objetivos populares. Isto faz com que falhe a identificação das ideias mestras das forças sociais que devem ser expulsas dos comandos da economia e do imperativo de desmantelar o Estado dominado pela classe. Enquanto a esquerda denuncia a crise capitalista e os salvamentos do Estado, a sua própria pobreza de pensamento mina o desenvolvimento da ação política de massa. Neste contexto, a "linguagem" da ocultação torna-se uma "força material" – um veículo do poder capitalista, cuja utilização primária é desorientar e desarmar seus críticos intelectuais através do uso de termos, estruturas concetuais e linguagem que dominam a discussão da crise capitalista.

Eufemismos chave ao serviço da ofensiva capitalista

Os eufemismos têm um duplo significado: o que os termos implicam (conotação) e o que eles realmente significam. Concepções eufemísticas sob o capitalismo implicam uma realidade favorável ou comportamento aceitável e atividade totalmente dissociada do engrandecimento da riqueza da elite e da concentração de poder e privilégio. Os eufemismos disfarçam o impulso das elites do poder para impor medidas específicas de classe e para reprimir sem serem adequadamente identificados, responsabilizados e opostos pela ação popular de massa.

O eufemismo mais comum é a palavra "mercado", a qual é dotada de características e poderes humanos. Como tal, dizem-nos que "o mercado exige cortar salários", desligado da classe capitalista. Mercados, intercâmbio de mercadorias ou compra e venda de bens, têm existido há milhares de anos em diferentes sistemas sociais em contextos altamente diferenciados. Eles têm sido globais, nacionais, regionais e local. Envolvem diferentes atores socioeconômicos e compreendem unidades econômicas muito diferentes, as quais vão desde casas comerciais gigantes promovidas pelo Estado até ao nível de aldeias camponesas de semi-subsistência e praças de cidades. Existiram "mercados" em todas as sociedades complexas: escravocratas, feudais, mercantis e em primitivas ou tardias sociedades capitalistas competitivas, monopolistas industriais e financeiras.

Ao discutir e analisar "mercados" e compreender as transações (quem beneficia e quem perde), deve-se claramente identificar as classes sociais que dominam as transações econômicas. Escrever na generalidade acerca de "mercados" é enganoso porque os mercados não existem independentemente das relações sociais que definem o que é produzido e vendido, como é produzido e que configurações de classe modelam o comportamento dos produtores, vendedores e do trabalho. A realidade do mercado de hoje é definida por corporações e bancos multinacionais gigantescos, os quais dominam o trabalho e os mercados de commodities. Escrever de "mercados" como se operassem numa esfera acima e para além das brutais desigualdades de classe é esconder a essência das relações de classe contemporâneas.

Fundamental para qualquer entendimento, mas ignorado pela discussão contemporânea, é o poder incontestado dos proprietários capitalistas dos meios de produção e de distribuição, a propriedade capitalista da publicidade, os banqueiros capitalistas que concedem ou negam crédito e os responsáveis do estado nomeados pelos capitalistas que "regulamentam" ou desregulamentam relações de troca. Os resultados das suas políticas são atribuídos às eufemísticas exigências do "mercado" as quais parecem estar divorciadas da realidade brutal. Portanto, como insinuam os propagandistas, ir contra "o mercado" é opor-se ao intercâmbio de bens. Isto é claramente absurdo. Em contraste, identificar exigências capitalistas sobre o trabalho, incluindo reduções em salários, bem-estar e segurança, é confrontar uma forma exploradora específica de comportamento de mercado onde capitalistas procuram ganhar lucros mais altos contra os interesses e o bem-estar da maioria dos trabalhadores assalariados.

Ao confundirem relações de mercado exploradoras sob o capitalismo com mercados em geral, os ideólogos alcançam vários resultados: eles disfarçam o papel principal dos capitalistas quando evocam uma instituição com conotações positivas, isto é, um "mercado" onde pessoas compram bens de consumo e "socializam-se" com amigos e conhecidos. Por outras palavras, quando "o mercado", o qual é retratado como um amigo e benfeitor da sociedade, impõe políticas presumivelmente penosas para o bem-estar da comunidade. É o que os propagandistas dos negócios querem que o público acredite ao mercadejarem sua virtuosa imagem do "mercado"; eles mascaram o comportamento predatório do capital na caça por maiores lucros.

Um dos eufemismos mais comuns lançado em meio a esta crise econômica é "austeridade", um termo utilizado para encobrir as duras realidades de cortes draconianos em salários, pensões e bem-estar público e o aumento drástico de impostos regressivos (IVA). Medidas de "austeridade" significam políticas para proteger e mesmo aumentar subsídios do Estado a negócios, criar lucros mais altos para o capital e maiores desigualdades entre os 10% do topo e os 90% da base. "Austeridade" implica autodisciplina, simplicidade, parcimônia, poupança, responsabilidade, limites em luxos e gastos supérfluos, evitar a satisfação imediata em benefício da segurança futura – uma espécie de calvinismo coletivo. A conotação da palavra é o sacrifício compartilhado hoje para bem-estar futuro de todos.

Contudo, na prática "austeridade" descreve políticas que são concebidas pela elite financeira para implementar reduções no padrão de vida de uma classe específica e em serviços sociais (tais como saúde e educação) disponíveis para trabalhadores e empregados assalariados. Significa que fundos públicos podem ser desviados numa extensão ainda maior para pagar altos juros a possuidores de títulos ricos enquanto sujeitam a política pública aos ditames dos senhores do capital financeiro.
Ao invés de falar de "austeridade", com sua conotação de severa autodisciplina, os críticos de esquerda deveriam descrever claramente as políticas da classe dominante contra o trabalho e as classes assalariadas, as quais aumentam desigualdades e concentram no topo ainda mais riqueza e poder. Políticas de "austeridade" são portanto uma expressão de como as classes dominantes utilizam o estado para comutar o fardo do custo da sua crise econômica para cima do trabalho.
Os ideólogos das classes dominantes apropriaram-se de conceitos e termos, os quais a esquerda originalmente utilizou para o avanço de melhorias em padrões de vida e que se voltaram contra si. Dois destes eufemismos, tomados da esquerda, são "reforma" e "ajustamento estrutural". "Reforma”, durante muitos séculos, referia-se a mudanças, as quais diminuíam desigualdades e aumentavam a representação popular. "Reformas" eram mudanças positivas que promoviam o bem-estar público e a restrição do abuso de poder por regimes oligárquicos ou plutocráticos. Ao longo das últimas três décadas, contudo, importantes acadêmicos, economistas, jornalistas e responsáveis da banca internacional subverteram o significado de "reforma" transformando-o no seu oposto: agora refere-se à eliminação de direitos do trabalho, ao fim da regulamentação pública do capital e à redução de subsídios públicos que tornavam a alimentação e o combustível acessíveis aos pobres. No vocabulário capitalista de hoje "reforma" significa reverter mudanças progressistas e restaurar os privilégios de monopólios privados. "Reforma" significa acabar com a segurança de emprego e facilitar despedimentos maciços de trabalhadores pelo rebaixamento ou eliminação da indenização por despedimento. "Reforma" já não significa mudanças sociais positivas; agora significa reverter aquelas mudanças arduamente conquistas e restaurar o poder irrestrito do capital. Significa um retorno à fase primitiva e mais brutal do capital, antes de existirem organizações de trabalhadores e quando a luta de classe era suprimida. Portanto "reforma" agora significa restaurar privilégios, poder e lucro para os ricos.
De um modo semelhante, os cortesões linguísticos da profissão econômica puseram o termo "estrutural", como em "ajustamento estrutural", ao serviço do poder desenfreado do capital. Ainda na década de 1970 a mudança "estrutural" referia-se à redistribuição da terra dos grandes latifundiários para os destituídos de terra; uma mudança de poder dos plutocratas para as classes populares. "Estruturas" referia-se à organização do poder privado concentrado no Estado e na economia. Hoje, contudo, "estrutura" refere-se às instituições e políticas públicas, as quais tiveram origem nas lutas do trabalho e da cidadania para proporcionar segurança social, para proteger o bem-estar, saúde e aposentadoria de trabalhadores. "Mudanças estruturais" são agora o eufemismo para esmagar aquelas instituições públicas, acabar com os constrangimentos ao comportamento predatório do capital e destruir a capacidade do trabalho para negociar, lutar ou preservar seus avanços sociais.
O termo "ajustamento", como em "ajustamento estrutural" (AS), é em si próprio um eufemismo suave que implica sintonia fina, a modulação cuidadosa de instituições e políticas públicas que apoiam a saúde e o equilíbrio. Mas, na realidade, "ajustamento estrutural" representa um ataque frontal ao setor público e um desmantelamento geral de legislação protetora e de agências públicas organizadas para proteger o trabalho, o ambiente e os consumidores. "Ajustamento estrutural" mascara um assalto sistemático aos padrões de vida do povo em benefício da classe capitalista.
A classe capitalista tem cultivado uma safra de economistas e jornalistas que apregoam políticas brutais em linguagem suave, evasiva e enganosa a fim de neutralizar a oposição popular. Infelizmente, muito dos seus críticos "de esquerda" tendem a apoiar-se na mesma terminologia.
Dada a corrupção generalizada da linguagem, tão difusa nas discussões contemporâneas acerca da crise do capitalismo, a esquerda deveria cessar de se apoiar neste conjunto enganoso de eufemismos apropriados pela classe dominante. É frustrante ver quão facilmente as expressões seguintes entram no nosso discurso:

"Disciplina de mercado" - O eufemismo "disciplina" denota uma fortaleza de caráter sério e consciente em face de desafios em contraposição ao comportamento irresponsável, escapista. Na realidade, quando vai a par com "mercado", refere-se a capitalistas a aproveitarem-se de trabalhadores desempregados e utilizarem sua influência política e o poder de despedirem massas de trabalhadores e intimidar os empregados remanescentes para maior exploração e excesso de trabalho, produzindo, portanto, mais lucro por menos pagamento. Ela também cobre a capacidade de grandes senhores capitalistas de elevarem sua taxa de lucro cortando os custos sociais de produção, tais como proteção ambiental e do trabalhador, cobertura de saúde e pensões.

"Choque de mercado" - Refere-se a capitalistas ocupados com maciços e abruptos despedimentos brutais, cortes em salários e eliminação de planos de saúde e pensões a fim de melhorar cotações de ações, aumentar lucros e assegurar maiores bônus para os patrões. Ao ligar o termo suave e neutro de "mercado" com "choque", os apologistas do capital disfarçam a identidade dos responsáveis por tais medidas, suas consequências brutais e os imensos benefícios desfrutados pela elite.

"Exigências do mercado" - Esta frase eufemística é destinada a antropomorfizar uma categoria econômica, afastar a crítica de proprietários reais de carne e osso, dos seus interesses de classe e do seu despótico estrangulamento do trabalho. Ao invés de "exigências de mercado", a frase deveria ser lida: "a classe capitalista ordena aos trabalhadores que sacrifiquem seus próprios salários e saúde para assegurar mais lucro para as corporações multinacionais" – um conceito claro que provavelmente despertará a ira daqueles adversamente atingidos.

"Livre empresa" - Um eufemismo que é a combinação de dois conceitos reais: empresa privada para lucro privado e competição livre. Ao eliminar a imagem subjacente do ganho privado para os poucos contra o interesse dos muitos, os apologistas do capital inventaram um conceito que enfatiza as virtudes individuais de "empresa" e "liberdade" em oposição aos vícios econômicos reais da cobiça e da exploração.

"Mercado livre" - Um eufemismo que implica competição livre, justa e igual em mercados não regulados encobrindo a realidade da dominação de mercado por monopólios e oligopólios dependentes de maciços salvamentos do Estado em tempos de crise capitalista. "Livre" refere-se especificamente à ausência de regulamentações públicas e intervenção do Estado para defender a segurança dos trabalhadores bem como a do consumidor e a proteção ambiental. Por outras palavras, "liberdade" mascara a destruição desumana da ordem cívica por capitalistas privados através do seu exercício desenfreado do poder econômico e político. "Mercado livre" é o eufemismo para o domínio absoluto de capitalistas sobre os direitos e meios de vida de milhões de cidadãos, na essência uma verdadeira negação da liberdade.

"Recuperação econômica" - Esta frase eufemística significa a recuperação de lucros pelas grandes corporações. Ela disfarça a ausência total de recuperação de padrões de vida para as classes trabalhadora e média, a reversão de benefícios sociais e as perdas econômicas de detentores de hipotecas, devedores, os desempregados a longo prazo e proprietários de pequenos negócios em bancarrota. O que é encoberto na expressão "recuperação econômica" é como a pauperização em massa se torna uma condição chave para a recuperação de lucros corporativos.

"Privatização" - O termo descreve a transferência de empresas públicas, habitualmente aquelas lucrativas, para capitalistas de grande escala privados, bem conectados, a preços bem abaixo do seu valor real, levando à perda de serviços públicos, emprego público estável e custos mais elevados para os consumidores, pois os novos proprietários privados elevam preços e despedem trabalhadores – tudo em nome de outro eufemismo: "eficiência".

"Eficiência" - Eficiência aqui refere-se apenas ao balanço de uma empresa; não reflete os custos 
pesados da "privatização" arcados por setores relacionados da economia. Exemplo: "privatizações" dos transportes aumentam custos de negócios a montante e jusante tornando-os menos competitivos em comparação com competidores de outros países; "privatização" elimina serviços em regiões que são menos lucrativas, levando ao colapso econômico local e ao isolamento dos mercados nacionais. Frequentemente, responsáveis públicos, que estão alinhados com capitalistas privados, desinvestem deliberadamente em empresas públicas e nomeiam compadres políticos incompetentes como parte da política clientelista, a fim de degradar serviços e fomentar descontentamento público. Isto cria uma opinião pública favorável à "privatização" da empresa. Por outras palavras, a "privatização" não é um resultado das ineficiências inerentes das empresas públicas, como os ideólogos do capital gostam de argumentar, mas um ato político deliberado destinado ao ganho do capital privado às custas do bem-estar público.

Conclusão

Linguagem, conceitos e eufemismos são armas importantes na luta de classe "dos de cima", concebidos por jornalistas e economistas capitalistas, para maximizar a riqueza e o poder do capital. Na medida em que críticos progressistas e de esquerda adotam estes eufemismos e seu quadro de referência, as críticas e alternativas que propõem são limitadas pela retórica do capital. Colocar "aspas" em torno dos eufemismos pode ser um sinal de desaprovação, mas isto não promove o quadro analítico diferente que é necessário para o êxito da luta de classe dos "de baixo". Igualmente importante, deixa de lado a necessidade de uma ruptura fundamental com o sistema capitalista, incluindo sua linguagem corrompida e seus conceitos enganosos. Os capitalistas subverteram em grande medida ganhos fundamentais da classe trabalhadora e estamos a cair outra vez em direção ao domínio absoluto do capital. Isto deve relançar a questão de uma transformação socialista do Estado, da economia e da estrutura de classe. Uma parte integral desse processo deve à rejeição total dos eufemismos utilizados pelos ideólogos capitalistas e a sua substituição sistemática por termos e conceitos que verdadeiramente reflitam a implacável realidade, que claramente identifiquem os perpetradores deste declínio e que definam as agências sociais para a transformação política.
O original encontra-se em http://petras.lahaine.org/?p=1898
Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

sábado, 26 de maio de 2012

Considerações sobre a reprovação dos educadores



Eunice Couto*
Professora Estadual
Para o Amigos

Impossível não ouvir, sem despertar a indignação dos educadores, os comentários acerca da baixa aprovação no concurso do magistério gaúcho. Em primeiro lugar, creio ser importante analisar o resultado como consequência das políticas educacionais implantadas no país ao longo das últimas duas décadas.

No início da década de 90 a disciplina de Língua Portuguesa contava com quatro ou cinco horas-aulas semanais para o Ensino Médio e ainda eram ensinados conteúdos gramaticais relevantes, sem que os professores fossem tachados de pré-históricos. Atualmente a carga horária diminuiu (duas a três aulas semanais) e tais assuntos – cobrados em qualquer concurso público de forma tradicional – devem ser trabalhados de forma disfarçada. Leia-se: superficial!

Por outro lado, há que se refletir sobre quantos desses quase 70 mil inscritos são vítimas da “expansão universitária”, a qual, entre outros aspectos, possibilitou a criação de centenas de universidades a distância, dessas que “formam” licenciados em Letras, Pedagogia, História, Biologia, etc, em dois ou no máximo dois anos e meio, a baixo custo, “popularizando o acesso ao diploma”. Destaque para o termo ‘Popularizar’ que, aqui, significa baixar a qualidade.

Ainda importantíssimo pensar que, ao contrário do que apregoam os governos sobre avaliação escolar e reprovação – buscando inclusive responsabilizar os educadores pelo baixo rendimento dos alunos, sem considerar aspectos gerais da vida dos educandos – o formato da prova exigia pontuação mínima de 60% em cada uma das quatro partes que a compunha: Língua Portuguesa, Legislação, Conhecimentos Pedagógicos e Conhecimentos Específicos. Ou seja, o candidato poderia totalizar 70% da prova, mas se numa delas não atingisse os 60%, estaria desclassificado.

Além dessas observações, outros pontos necessitam de atenção:

• Foram abertas 10 mil vagas, porém o número de contratos, ditos emergenciais, é bem superior a este número. Assim, o problema da falta de profissionais não seria solucionado, nem mesmo para o ano de 2013 por este concurso;

• Existe uma lei que prevê um piso salarial nacional (proporcional às 20 horas semanais) de R$ 725,50, em 2012, mas o salário básico oferecido no Edital é de apenas R$ 395,54;

• O valor da inscrição variava entre R$ 53,38 (para a formação mínima: Ensino Médio/Magistério) e R$ 121,70 (para formação em curso superior) – um dos processos seletivos mais caros, observando, principalmente, a remuneração oferecida.

Ao considerar esses aspectos, pode-se imaginar que houvesse seriedade na promoção do certame? Real interesse na solução dos problemas de falta de professores na rede pública de ensino do RS? Ou seria, além de fazer um bom caixa – fala-se numa arrecadação aos cofres públicos em torno de R$ 8 milhões (!?) – passar a ideia de atender a uma reivindicação ou promessa eleitoral e, por fim, consolidar suas posições de desmoralizar a categoria e justificar o não cumprimento da lei salarial perante a sociedade?

Ainda há outro ponto importante: é necessário, ao Estado, manter o maior número de profissionais contratados, precarizados, ou seja, sob a ameaça da perda do emprego, caso não se submetam às suas determinações; como também é fundamental que esses trabalhadores não tenham vínculos, não tenham direito à estabilidade, não gerem ônus futuros.

Simplificando: este concurso foi apenas engodo, ilusão para toda a sociedade gaúcha, passando a ideia de que o governo é bom, os trabalhadores é que não se esforçam, são preguiçosos ou desinteressados e, assim, colocar a população contra si própria.

* Eunice Couto é natural de Caçapava do Sul, Licenciada em Letras - Língua e Literatura Portuguesa pela URCAMP/Bagé, em 1991, Especialista em Educação, Professora na rede pública há 25 anos, sendo 17 anos somente na rede pública estadual e militante no movimento sindical desde 2000. Há 3 anos leciono no Colégio Estadual Dom João Braga, no Ensino Médio e Fundamental diurno. "Acredito na mudança da sociedade, rumo à justiça social, mas esta passa, inevitavelmente, pela educação e pela explicação nítida e objetiva acerca dos fatos que nos cercam" - diz a autora.