quarta-feira, 4 de julho de 2012

A desesperança italiana

A tragédia de um povo entre o desastre neoliberal e o aviltamento da classe política
 Achille Lollo, correspondente em Roma (Itália) no BRASIL DE FATO
O aumento dos suicídios de empresários, artesãos, pensionistas e de jovens é, hoje, o dramático termômetro de uma crise social, política, econômica e, sobretudo, financeira que o povo italiano vive sem saber quando vai acabar. Uma tragédia cujos efeitos se multiplicam com a atuação degradante de uma classe política corrupta e incapaz de propor alternativas aptas a impedir a crescente deterioração das relações sociais e econômicas cada vez mais em crise.
Há exato um mês, Alessio Bisori, atleta da seleção italiana de handebol se suicidava na estação de Bolonha, atirando-se contra o trem que o deveria levar ao centro de treinos da seleção. Aos pais deixou um bilhete dizendo “... Não agüento mais viver nessas condições”. No dia 29 de maio, outra atleta, a jogadora de vôlei Giulia Albini, de 24 anos, matou-se em Istambul, Turquia, atirando-se da ponte sobre o Bosforo. No dia 30 de maio era a vez do empresário Ermanno Gravellino , de 74 anos, que se enforcou em Cagliari após ter recebido da empresa de cobrança Equitália o aviso de sequestro de sua loja. Em 31 de maio, o oficial dos carabineiros Enrico Salinas, de 49 anos, se suicidou com um tiro na cabeça. Berardino Capriotti, de 49 anos, e antes dele Italo Agus, 64, se suicidavam deixando cartas em que denunciavam o pessoal da Equitália. Em sua despedida, Angus afirmou que por uma dívida de impostos de apenas 4.000 euros (cerca de 10 mil reais) queriam sequestrar um apartamento no valor de 100.000 para revendê-lo a preço de bananas em leilões forjados.
Parece uma cena dos filmes de Stanley Kubrick, mas a verdade é que na Itália, os primeiros seis meses do governo do primeiro ministro Mario Monti causaram uma verdadeira tragédia, que tem tudo a ver com a explosão da corrupção, do custo da vida, com o aumento estratosférico das taxas (governamentais, regionais, provinciais e municipais), bem como com os cortes orçamentários nos serviços públicos e o aumento do desemprego. Parece, mesmo, reviver os acontecimentos dramáticos da crise que em 1929 abalou os Estados Unidos, com a diferença de que naquele tempo eram os banqueiros e os industriais a se suicidar após ter declarado bancarrota, enquanto hoje a falência dos institutos financeiros ou dos grandes grupos industriais é logo premiada pela classe política com financiamentos do Tesouro do Estado.
Desastre neoliberal
Para Berlusconi, a ajuda a Monti lhe permitirá
voltar a governar - Foto: Forum PA/CC
Os últimos seis meses de gestão neoliberal do governo Berlusconi e as medidas ultra neoliberais do dito ”governo técnico” de Mario Monti provocaram o aumento do desemprego em 31%, o que na realidade significa que 621 mil trabalhadores, na sua maioria homens, foram demitidos. Por isso, a agência de estatísticas oficial, no seu relatório de maio informava que, em 31 de abril, havia 2.615.000 trabalhadores desempregados, dos quais 35% representados por jovens entre 18 e 30 anos.
Um número que, porém não abrange: os chamados “desocupados”, isto é aqueles que renunciaram a procurar trabalho sobrevivendo com biscates e vivendo nos limites da pobreza absoluta; os desempregados com subsidio; os subempregados que em media trabalham seis meses por ano com contratos mensais ou até semanais; os inativos por estarem acima de 50 anos.
Uma importante fração do exército de mão-de-obra barata e inativa totaliza sete milhões de trabalhadores, na maioria homens, que segundo o próprio Ministro do Desenvolvimento Econômico, o banqueiro Corrado Passera, “o alastramento da crise econômica coloca 28 milhões de italianos a beira da pobreza”. Um contexto que segundo o Codacons (Coordenação das Associações para a Defesa do Ambiente e dos Direitos dos Usuários e dos Consumidores) é bem mais grave porque “Esta dramática situação não será solucionada com a reforma do trabalho ou com uma maior flexibilidade, visto que se não há mais demanda e se os consumos continuam caindo não haverá soluções com tais reformas. Pelo contrário, haverá, sim, um continuo aumento do desemprego porque as empresas não vendem e os produtos ficam acumulados nas prateleiras das lojas. Um contexto difícil pelas empresas no momento em que as famílias, agora, começam a ter dificuldades em comprar até os alimentos”.
Mas os sintomas de uma crise que se apresenta como um fenômeno de caráter subjetivo provocado no interior do sistema capitalista italiano pelo desleixo dos institutos financeiros é hoje mais visível nas grandes fábricas que articularam com o governo Monti o cancelamento do artigo 18 do Estatuto dos Trabalhadores, com o qual, hoje podem desempregar como e quando querem.
Por exemplo, a Fiat, em 2009, manipulou os operários de suas fábricas no Brasil, na Sérvia e na Polônia com um contrato onde a flexibilidade é máxima e a remuneração é mínima. Uma nova metodologia de trabalho fabril que, em 2011, o administrador delegado da Fiat, Sergio Marchionne, com o apoio do governo Berlusconi e a traição das confederações sindicais Confederazione Italiana Sindacato Lavoratori (CISL) e Union Italiana Del Lavoro (UIL), apresentou aos italianos com a sonhadora etiqueta de “Projeto Itália”.
Sergio Bellavita, secretário nacional da Federação Italiana dos Trabalhadores Metalúrgicos (Fiom), ao denunciar o plano de Marchionne disse, “Teoricamente, em troca de um contrato de trabalho que não é aprovado pela Fiom e pela central sindical CGIL por ferir os princípios do Estatuto dos Trabalhadores, o administrador delegado da Fiat, Marchionne, pediu aos operários da Fiat para renunciarem a seus direitos para se tornarem “colaboradores” de uma empresa que no passado foi subsidiada com o dinheiro público do Tesouro do Estado e que hoje pretende explorar ainda mais seus operários, enquanto prepara sua transferência para os Estados Unidos. Quando isso acontecer, a Fiat vai fechar as principais linhas de montagens aqui da Itália, o que já aconteceu com o fechamento da fábrica de caminhões e ônibus em Lamecia Terme.”
Infelizmente as palavras de Sergio Bellavita surgiram como as sentenças de um oráculo, visto que o administrador da Fiat comunicou no dia 25 de maio, ao governo Monti , que a direção da empresa será transferida para os Estados Unidos. Enquanto isso 60% dos operários de Mirafiori e de Pomigliano continuam em “Cassa Integrazione” (salário desemprego), e apenas 25% deles voltaram a trabalhar depois de quatro anos de espera.
Classe política aviltada
Medidas ultraneoliberais de Berlusconi e Monti
provocaram o aumento do desemprego em 31%
- Foto: Kancelaria Premiera/CC
Para os analistas políticos o governo Monti foi a prova com a qual, hoje é possível averiguar, por um lado a consistência da direita reunida no Il Popolo della Libertà (PDL) – o partido fundado por Berlusconi – e por outro certificar a representatividade política de uma centro-esquerda liderada pelo Partido Democrático de Pier Luigi Bersani.
Os mesmos analistas avaliam que nem o PDL e tão pouco o PD estão dispostos a romper o acordo que assinaram com o governo Monti. De fato, Berlusconi acredita que ter ajudado Monti lhe permitirá voltar a governar e impor uma nova reforma constitucional para introduzir no sistema italiano um presidencialismo à francesa. Por sua parte, Bersani e todos os dirigentes do PD estão convencidos de que em 2013, com a Itália saneada financeiramente, o PD vai ganhar as eleições. Por sua parte os movimentos e o povo em geral acusa o PD de Bersani de ter dado um cego apoio ao governo Monti no lugar de mitigar ou diminuir os decretos ultra-liberais, evitando assim o sangramento dos trabalhadores, dos pensionistas e da classe média que foram golpeados com uma avalanche de impostos e de taxas, maiores em quase 230% em relação ao ano passado.
Praticamente 73% do rombo da dívida pública e privada serão pagos pelos italianos que, ao longo dos anos, perderam e continuam perdendo seus direitos, tornando-se setores sociais cada vez mais precários e carentes. Por exemplo, para ajudar os 150.000 desabrigados da região Emilia, vítimas dos tremores de terra, os movimentos sociais sugeriram ao governo Monti introduzir uma taxa sobre as transações financeiras de 0,1%. A resposta do Ministro do Desenvolvimento Econômico, Corrado Passera veio com um decreto extraordinário que aumentava em cinco centavos o preço da gasolina e do diesel, apesar desses combustíveis terem sofrido nos últimos três meses quatro reajustes. Ninguém no Parlamento, do PDL ou do PD, reagiu ou protestou. Agora é preciso sublinhar que por baixo de uma aparente estabilidade política, os principais partidos, o PDL e o PD, vivem uma situação dramática cujo principal constrangimento é o afastamento de seus eleitores.
Por exemplo, durante os governos chefiados por Berlusconi, conviviam educadamente no PDL os setores conservadores, os moderados, os liberais, os fascistas, os fundamentalistas católicos, a burguesia mais reacionária e até os grupos ligados às máfias e ao crime organizado.
Porém, ao deixar o poder os homens do PDL não conseguiram mais maquiar as colossais extorsões que empurraram a Itália na direção da bancarrota. Por isso o milagroso partido de Berlusconi corre o risco de se transformar em um conjunto de “caçadores de assentos parlamentares”, do momento que as sondagens indicam que em 2013 o PDL vai perder 23% do seu eleitorado. Isto significa que 128 deputados e 75 senadores não serão reeleitos.
Também no Partido Democrático – o partido dos ex-comunistas que rejeitaram o marxismo para serem aceitos no mercado – não há a mínima vontade em fazer oposição ao governo Monti. De fato, isso implicaria em enfrentar eleições antecipadas em setembro e apresentar um programa alternativo que no PD não existe. Além disso, o PD de Bersani deveria confrontar-se com a esquerda comunista, com os sindicatos e, sobretudo, com os movimentos sociais que nesses meses foram duramente atacados pelo governo Monti e pelo próprio PD, que é a principal argola de sustentação política no Parlamento.
Uma situação constrangedora que o PD viveu nas eleições administrativas de maio quando em algumas cidades importantes seus candidatos nem sequer passaram o primeiro turno. Em outras, como aconteceu em Palermo e Parma, a poderosa máquina eleitoreira do PD foi derrotada pelo espírito de sacrifício dos militantes dos movimentos.
*Achille Lollo é jornalista italiano, correspondente do Brasil de Fato na Itália e editor do programa TV Quadrante Informativo.

Soluções gaudérias

Juremir Machado no CP    
<br /><b>Crédito: </b> ARTE JOÃO LUIS XAVIER

Crédito: ARTE JOÃO LUIS XAVIER

O Rio Grande do Sul orgulha-se de ser um estado de vanguarda. Mas tão de vanguarda que resolveu avançar para trás. Amamos os cavalos. Queremos crescer como suas colas. Para baixo. Ninguém quer ficar de fora desse processo evolucionista original. Situação e oposição tentam dividir os louros dessas façanhas. Depois do êxito dos pedágios, que conseguiram melhorar um pouquinho as estradas - graças a tarifas exorbitantes e serviços subnutridos, pelos quais as concessionárias ainda se acham credoras de saldos mirabolantes -, parte da oposição quer privatizar (ou conceder a exploração) a água. As empresas privadas não querem entrar em parcerias em que o Estado seja majoritário, embora só entrem nas parcerias se tiver dinheiro público majoritário e barato.

É tudo muito lógico: como os governos não tinham dinheiro para melhorar as estradas, resolveram entregá-las à iniciativa privada, que, generosamente, só as aceitou depois que os governos as colocaram em dia com os recursos que não tinham, sobrando para as concessionárias fazer a manutenção e administrar, o que exige alta complexidade, a cobrança das tarifas. Sabe-se que para colocar moças arrecadando a grana é preciso um savoir-faire espetacular e fora do alcance do incompetente poder público. O mesmo sistema está sendo defendido para a água. Se der errado, ficaremos reféns por uns 25 anos. Que fazer? Centenas de cidades não possuem água tratada e sistema de esgoto. Privatizar, ou fazer concessões, parece ser a solução. Tão boa quanto aquela dos pedágios.

Na vanguarda, já no campo da situação, não pagamos o piso do magistério. Não somos maria vai com as outras. Não passamos todo o tempo fazendo o que o governo federal manda. Tanto é assim que não cumpriremos a Lei de Transparência, que obriga a divulgar os salários dos servidores públicos. Deu no Correio do Povo. Eu li com meus belos olhos: "Por enquanto, somente está definido que o Executivo gaúcho não seguirá o modelo adotado pela União. ''Será de forma individualizada, mas não necessariamente nominal'', afirmou a subchefe de Ética, Controle Público e Transparência da Casa Civil, Juliana Foernges. O governo federal divulgou no Portal Transparência, na semana passada, o nome e salário dos 620.533 servidores federais". Nós, os gaúchos, temos critérios próprios de transparência. Mostramos ocultando. Praticamos a clareza embaixo do poncho. Encontramos saídas gaudérias para tudo. Todos os poderes participam.

Li também esta incrível declaração de Alexandre Postal, presidente da Assembleia Legislativa: "Sou favorável à divulgação, mas é preciso analisar os critérios. O X da questão é a divulgação dos nomes". Elementar, senhor deputado, é o que estabelece a lei. O desembargador Túlio Martins não ficou atrás em capacidade de gerar surpresa ao dizer que o Tribunal de Justiça do Estado seguirá o determinado pelo Supremo Tribunal Federal, mas ainda está adaptando a folha de pagamento para divulgá-la. Já o Tribunal de Contas do Estado, cauteloso ou calculista, "aguarda posição do Piratini e discute o assunto internamente". Divulgaremos os nomes, desde que não em lista nominal.

terça-feira, 3 de julho de 2012

E se os lucros das montadoras ficassem no Brasil?




Montadoras estão planejando demitir, apesar do aumento de vendas trazido pela redução de IPI. General Motors e a Volkswagen abriram programas de demissão voluntária, sendo que a GM estuda fechar a linha de montagem de veículos de São José dos Campos e extinguir 1.500 vagas, segundo o sindicato de metalúrgicos local. A informação é de matéria publicada nesta terça (3) pela Folha de S.Paulo, apontando que as empresas estão preocupadas que isso seja euforia passageira.
Outra matéria, do jornal Estado de S. Paulo, aponta que, desde o início da crise econômica internacional, o governo abriu mão de R$ 26 bilhões em impostos para indústria automobilística. E, nos últimos três anos, as montadoras enviaram US$ 14,6 bilhões ao exterior, o que dá cerca de R$ 28 bi em valores de hoje.
Brasileiros e brasileiras, um valor semelhante à nossa renúncia fiscal foi exportada para ajudar a manter as matrizes dessas empresas que não haviam se preparado para lidar com a crise.
O governo não consegue garantir, de fato, que as montadoras aqui instaladas não demitam trabalhadores por conta desses benefícios. Muito menos consegue a autorização delas para que sejam colocadas na mesa outros temas importantes, como um controle mais rígido sobre a cadeia produtiva dessas empresas. Hoje, ao comprar um carro, você não tem como saber se o aço ou o couro que entrou na fabricação do veículo foram obtidos através de mão-de-obra escrava e trabalho infantil ou se beneficiando de desmatamento ilegal. Por que? Porque essas empresas não rastreiam como deveriam os fornecedores de seus fornecedores, apesar das comprovações de ilegalidades apontadas pelo Ministério Publico Federal e pela sociedade civil.
Quando anunciadas, essas políticas são consideradas a salvação da pátria. Mas a história mostra que as coisas não são tão simples assim. Até porque é exatamente nesses momentos que a indústria aproveita para fazer aquele ajuste tecnológico básico, tornando mais gente desnecessária.
Durante o pico da crise de 2008, a General Motors demitiu 744 trabalhadores de sua fábrica em São José dos Campos (SP) sob a justificativa de “diminuição da atividade industrial”. Mesmo após ter recebido apoio dos governos da União e do Estado de São Paulo no sentido de facilitar a compra de seus produtos por consumidores. O setor também é beneficiário de recursos oriundos de fundos públicos, como o Fundo de Amparo ao Trabalhador e o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, ou seja, pertencente aos trabalhadores.
Carpideiras do mercado disseram e escreveram, na época, que o Ministério do Trabalho e Emprego e sindicatos faziam uma chiadeira irracional, pedindo contrapartidas à cessão de linhas de crédito ou corte de impostos. Atestaram que empresas não podem operar esquecendo que estão inseridas em uma economia de mercado, buscando a taxa de lucro média para continuar sendo viável. Em outras palavras, defendiam que não dá para esperar que o capital seja dilapidado da mesma forma que o trabalho em uma crise.
Essa “regra do jogo” me faz lembrar um restaurante self-service. Você passa com a bandeja e escolhe o que quer e o que não quer para o almoço. O que é bom para você, coloca no prato. O que é ruim, fica para a massa se servir depois. Traduzindo: o Estado tem que garantir e ajudar o funcionamento das empresas, mas as empresas não podem sofrer nenhuma forma de intervenção em seu negócio. Um liberalismo de brincadeirinha, de capitalismo de periferia, com um Estado atuante, mas subserviente do poder econômico, em que o (nosso) dinheiro público deve entrar calado para financiar os erros alheios. Privatizam-se lucros (que depois são exportados), estatizam-se prejuízos.
O governo tem a obrigação sim de exigir contrapartidas de quem vai receber recursos ou benefícios devido à crise econômica – aliás, este é o momento ideal para isso. Quando as empresas estiverem surfando novamente, após este ciclo recessivo mundial passar, vai ser mais difícil colocar cartas na mesa como agora.
Em momentos de crise como esse é que direitos trabalhistas e sociais têm que ser reafirmados, garantidos, universalizados e não o contrário. Pois é nesta hora que a população que sobrevive apenas de seu salário está mais fragilizada. E é em momentos como esse que sabemos quem é socialmente responsável e não aquelas que fazem propagandas na TV com carros cruzando lindas estradas cheias de macacos-prego-do-piercing-amarelo para mostrar é verde.
Em 2008, li depoimentos de montadoras dizendo que os trabalhadores tinham que entender que esta é uma crise global e muitas de suas sedes estão passando sérias dificuldades, correndo o risco, inclusive de fechar. O que é mais um caso self-service. Lembro um exemplo que pode ser ilustrativo: um dia, questionei a Ford, nos Estados Unidos, sobre o porquê de não atuar de forma mais incisiva para evitar que suas subsidiárias em países como o Brasil estivessem inseridas em cadeias produtivas em que há crimes ambientais ou trabalho escravo. Como resposta, disseram que há independência entre as ações da matriz e das subsidiárias e que as matrizes não podem interferir, apenas pedir que atuem de acordo com a legislação.
Ótimo! Tá resolvido o problema. Pois, elas não vão se incomodar se o Brasil regular o envio de remessas de lucros para o exterior, utilizando os recursos para ajudar a passar a tempestade de forma mais suave por aqui. E não estou falando em reestatizar a nossa renúncia fiscal porque o leite já foi derramado, mas de que as empresas invistam mais por aqui. De uma forma diferente, reorganizando o setor em padrões mais sustentáveis, por exemplo. Seria um bom momento para mudar a matriz de produção em direção a algo com menos impacto social e ambiental (o Estado poderia fazer isso diretamente, mas prefere injetar recursos em atores que professam modelos de desenvolvimento antigos e depois pede calma em encontros como a Rio+20 – vai entender).
Afinal de contas, já que muitas empresas não se incomodam tanto com a qualidade de vida dos trabalhadores em toda a sua cadeia de valor (da produção do carvão ao chão de fábrica), por que se incomodariam com o resultado dos lucros desse trabalho, não é mesmo?

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Greenpeace em Santos

 

                                   E as oliveiras palestinas?
 
 
Ei-lo que desponta glorioso diante de minha janela singrando as águas tranqüilas a caminho do porto de Santos.

Refiro-me ao navio da ONG Greenpeace, irmã gêmea da WWF, cujo presidente de honra vem a ser o rei da Espanha aquele que gosta de se divertir assassinando elefantes e na falta destes, búfalos.

Enfim, ambas as organizações se merecem.

Mas voltemos ao Greenpeace que ficou um fim de semana de alegria e júbilo em Santos.

Sim!

Por onde esse barco passa, há alegria e júbilo.

Pelo que eles fizeram no passado.

E que, desgracadamente nada fazem nos tempos atuais.

Marketing, isso eles fazem e muito bem.

O pessoal do Greenpeace é hoje o rei do marketing.

Sabem tudo e um pouco mais.

Hoje, o pessoal que mais trabalha nessa organização, é o pessoal encarregado das relações públicas.

Digo isso, e este blog é a prova, porque eles jamais condenaram Israel pela destruição da natureza.

Há mais de 60 anos que os israelenses destroem, derrubam e queimam oliveiras palestinas e nenhuma, absolutamente nenhuma manifestação, nenhum protesto dessa entidade que se diz defensora da natureza.

Já foram destruídas mais de 500 mil oliveiras palestinas pelos israelenses e o mutismo do Greenpeace é ensurdecedor.

Mas como vivemos em tempos em que a mídia deixou a informação de lado, quem sabe eles já protestaram e o protesto deles foi boicotado pela mídia?

Meu filho( que já viveu entre os índios e mergulhou em locais sagrados a pedido deles) esteve no barco para fazer apenas uma pergunta:

-Por que vocês nunca protestaram contra a destruição das oliveiras palestinas pelos israelenses?

Silêncio total.

Ninguém sabia o que responder.

Corrijo-me.

Apenas um respondeu e para dizer que ignoravam esse fato, mas que iriam ficar atentos a partir de agora.

Não quero ser cruel com essa entidade, por isso não vou me alongar.

Mas que isso é triste, isso é.

Triste Greenpeace.

Uma reles ONG marqueteira...

#YoSoY 132, a rebelião contra manipulação midiática no México


Se o movimento estudantil mexicano se definiu claramente contra o representante do PRI, Enrique Peña Nieto, sua irrupção na cena política foi muito mais além da disputa pela presidência. #YoSoY 132 instaurou um espaço de debate e diálogo que soube liberar-se da camisa de força tradicional com que os meios de comunicação do sistema oficial envolvem as sociedades. Por meio da internet e das redes sociais #YoSoY 132 criou um canal paralelo de discussão e de crítica global ao Estado mexicano que não tem precedentes no país. A reportagem é de Eduardo Febbro.




Cidade do México - O impensável sempre tem lugar. Em pleno processo eleitoral mexicano, o impensável se chamou #YoSoY 132, um movimento estudantil que surgiu na Universidade Iberoamericana contra o candidato do PRI, Enrique Peña Nieto, e contra o ultraje da informação simbolizado para os jovens no canal Televisa. Se o movimento estudantil mexicano se definiu claramente contra o representante do PRI, sua irrupção na cena política foi muito mais além da disputa pela presidência. #YoSoY 132 instaurou um espaço de debate e diálogo que soube liberar-se da camisa de força tradicional com que os meios de comunicação do sistema oficial envolvem as sociedades. Por meio da internet e das redes sociais #YoSoY 132 criou um canal paralelo de discussão e de crítica global ao Estado mexicano que não tem precedentes no país.

Ainda que o contexto seja diferente e o México seja uma democracia, a sua maneira repentina e mobilizadora #YoSoY 132 segue a trajetória dos jovens revolucionários do Egito que, graças à internet, conseguiram plasmar uma rebelião contra todo um sistema. Acusado de partidarismo, de servir aos interesses do candidato da esquerda, Andrés Manuel López Obrador, dividido, contaminado pela contrapropaganda, # YoSoY 132 sobreviveu aos ataques e manipulações para deixar uma marca fresca e duradoura.

Como no Egito da Revolução da Praça Tahrir, ou como ocorreu com os indignados espanhóis, #YoSoY 132 se inscreve em uma corrente universal de renovação e saneamento da democracia contra os poderes e interesses incrustados nos grandes meios de comunicação. Como desse chamado quarto poder que é a mídia depende em grande parte a qualidade da democracia, o movimento estudantil agrupado em #YoSoY 132 inventou um quinto poder: a possibilidade de difundir uma verdade não coincidente com a informação normalizada da indústria da informação. De ator periférico #YoSoy 132 se converteu em ator central e chegou até a realizar um debate presidencial com três candidatos, do qual Enrique Peña Nieto não participou.

Ana Rolón, estudante da Universidade Iberoamericana, e Rodrigo Serrano, estudante de Comunicação na mesma universidade, fazem parte do comitê logístico de #YoSoY 132. Têm apenas 22 anos, mas se expressam com a convicção e a maturidade herdada de uma luta política que não sonhavam protagonizar quando saltaram ao primeiro plano há apenas alguns meses.

Neste diálogo com Carta Maior mantido em uma praça do bairro boêmio de Coyoacán, os estudantes-dirigentes delineiam a sociedade na qual se projetam no futuro.

Com que postulado central nasceu e se manteve o #YoSoy 132.

Rodrigo Serrano: Nosso principal postulado é a democratização dos meios de comunicação e a democracia verdadeira. Acreditamos que o candidato do PRI, Peña Nieto, pode ganhar a eleição, mas pensamos que a fraude está também na manipulação da informação. Os meios de comunicação distorcem a informação. Queremos que a democracia mexicana seja uma democracia informada e não uma democracia puramente formal.

Ana Rolon: A democratização dos meios de comunicação vai muito além desta conjuntura eleitoral. Parte do movimento lutou muito pelo voto informado, ou seja, que se ofereça uma informação que integre as propostas dos candidatos e o que cada um deles fez. O que dizemos para as pessoas é: “não vá atrás do marketing político, da propaganda, da cara do candidato”.

Como se situa o movimento com respeito à violência que sacudiu o México nos últimos seis anos e às propostas bastante tímidas dos candidatos?

Ana Rolon: Somos um movimento pacifista. Trata-se de lutar, mas com nossas armas: educação, conhecimento, leitura, cultura, arte.
Rodrigo Serrano: Nos criticaram porque protestávamos contra o governo e não contra os narcos. Mas isso é uma contradição porque o narco é criminal, não obedece à sociedade, mas sim a interesses privados. Protestar contra o narco é como protestar contra uma árvore. Em troca, em teoria, o governo funciona para escutar os cidadãos. Por isso, se queremos acabar com a violência, primeiro precisamos de um governo que escute os cidadãos. E essa é a causa pela qual estamos lutando.

Ana Rolon: Nosso movimento exige este diálogo entre governo e cidadania. Por isso nós organizamos um debate entre os candidatos onde o formato mudou totalmente em relação aos debates anteriores organizados pelo IFE, o Instituto Federal Eleitoral. O formato que escolhemos foi: “escuta os que os cidadãos têm a dizer”. Recebemos as perguntas formuladas por toda a cidadania através da internet. E aí se abriu o debate para todos, não importando se o autor da pergunta fosse ou não estudante, do Distrito Federal ou de outra parte. Recebemos 7.100 perguntas provenientes de todo o país. Tomamos o debate desde um lado distinto, dizendo: “Escutem-nos, nós somos a cidadania”.

Vocês, graças às chamadas novas tecnologias, romperam o bloco tradicional no qual funcionam os processos políticos, ou seja, onde os meios de comunicação são intermediários absolutos entre os partidos e os eleitores.

Ana Rolon: Nosso movimento partiu de um vídeo feito por 131 alunos da Universidade Iberoamericana que respondiam aos ataques. Só quisemos dizer: “cuidado, quero usar meu direito de resposta, não preciso enviar uma carta aos editores. Posso usar as tecnologias e te desmentir”.
As novas tecnologias foram então determinantes para o auge do movimento estudantil mexicano.

Rodrigo Serrano: A tecnologia é a espinha dorsal desse movimento. Nos primeiros dias havia uma imagem muito interessante que circulava no Facebook e que dizia: “não é que o México estivesse adormecido, é que não havia a internet”. Há muita gente que está aqui enojada e com as redes sociais se abre a possibilidade de se organizar.

As redes sociais serviram para romper o cerco da informação.

Ana Rolon: Sim. Graças às redes sociais não precisamos ficar esperando que os meios tradicionais informem sobre uma marcha. Não faz falta mais. Nós jogamos muito com tecnologia e com a rua. Assim nós podemos saltar por cima desses meios que nós consideramos de “duvidosa neutralidade”. Por exemplo, como os meios tradicionais sempre distorcem a informação sobre quanta gente participa realmente das marchas, nós cantamos para eles: “não somos um, não somos cem, imprensa vendida, conta-nos bem”. As tecnologias tem nos ajudado muito a limpar o viés dos meios oficiais e ir muito mais além.

Rodrigo Serrano: Muitos canais de televisão não entenderam que, agora, nós somos o meio. Transmite-se através de nosso canal. Esses canais não gostam que não necessitemos deles. Chegaram até a dizer que havíamos firmado um contrato de exclusividade com o Youtube. Mas o Youtube não é um meio, o meio é nosso canal, o canal 131. O sinal está aberto para que seja acessado, mas a produção é nossa. Isso eles não aceitam. Não conseguem entender que agora os cidadãos também podem ser meios de comunicação. O problema central no México não está no fato de que os meios de comunicação e o poder político sejam cúmplices, mas sim que são a mesma coisa. Por isso, não temos uma democracia real.

Ana Rolon: O tema da democratização dos meios de comunicação vai mais além desta eleição presidencial. Vai para sempre. Ganhe quem ganhe, vamos seguir exigindo esse diálogo, essa interação muito mais direta entre cidadãos e políticos. Seguiremos em cima dos meios de comunicação que não respeitam os interesses da cidadania, mas sim os interesses políticos e os interesses privados. Não vamos dormir. Seguiremos exigindo o diálogo. Esse é o grande símbolo.

Como vocês projetam o futuro? Qual papel e que estratégia pretendem adotar?

Rodrigo Serrano: O México já tem um século de governos autoritários e paternalistas onde o governo acredita fazer o favor de promover algumas melhoras para alguns. Mas isso não deve ser assim. Nos últimos 12 anos, nossa democracia foi meramente formal, não se meteu na vida pública. Isso que ocorreu é um sintoma de que os cidadãos se deram conta de que podem exigir e serem escutados. Nós estamos hoje em condições de organizar debates. Os candidatos, o governo ou o presidente não são deuses com os quais não podemos falar. São pessoas e estão aqui para nos atender. São servidores públicos. O que importa agora não é nosso movimento como organização, mas sim como símbolo. Graças ao debate que organizamos com os candidatos, aos protestos contra Peña Nieto, aos protestos contra a Televisa, demonstramos que é possível falar cara a cara com os governantes. Isso, no México, era algo impensável. Eu creio que, ganhe quem ganhe, isso veio para ficar. Pode ser que o PRI conserve ainda o gene autoritário e repressor, mas nós temos agora novas tecnologias de comunicação e um novo modo de pensar. Não vai ser tão fácil.

Tradução: Marco Aurélio Weissheimer

México, Paraguai e a onda direitista


As forças políticas aliadas aos EUA e adeptas do neoliberalismo obtiveram duas expressivas vitórias na América Latina nos últimos dias. No Paraguai, elas patrocinaram um golpe “parlamentar”, abortando o frágil ciclo de mudanças iniciado pelo ex-bispo dos pobres Fernando Lugo. No México, elas garantiram o retorno do PRI ao poder, com a vitória folgada do empresário Peña Nieto. Com estes dois resultados, as forças direitistas do continente sentem-se mais fortalecidas, animadas para as próximas batalhas.
Em ambos os casos, o império estadunidense – também envolto numa disputa presidencial – foi cauteloso no seu posicionamento. Não deu apoio explícito aos golpistas paraguaios e nem se pronunciou abertamente sobre a eleição mexicana. Mas é evidente que os EUA saíram satisfeitos com os dois desfechos. Há muito se opunham ao presidente Lugo, como revelaram documentos vazados dos Wikileaks, e não gostariam de ver no México um presidente que defendia a soberania nacional, como Lopes Obrador.
A fragilidade do projeto antineoliberal
Do ponto de vista prático, imediato, os EUA cravaram mais duas vitórias – que se somam ao golpe em Honduras e às vitórias da direita no Chile e na Colômbia. México e Paraguai serão fiéis aliados do império na sabotagem a qualquer projeto de integração soberana da América Latina – seja no Mercosul, na Unasul e, pior ainda, na Alba. Eles também manterão, na essência, o projeto neoliberal de desmonte do estado, da nação e do trabalho, sendo o contraponto aos governos progressistas do continente.
As duas vitórias da direita revelam ainda a fragilidade dos projetos mudancistas, antineoliberais, na região. No caso do Paraguai, a frágil base econômica – num país em que os ricaços não pagam impostos e no qual 70% das terras estão concentradas nas mãos de 2% dos latifundiários – dificultou a adoção de políticas sociais mais avançadas. Para piorar, Lugo não contava com movimentos sociais robustos, nem estrutura partidária e nem base parlamentar – apenas um senador votou contra o seu impeachment.
Obstáculos à construção de alternativas
Já no caso do México, as três últimas décadas de hegemonia neoliberal – a princípio lideradas pelo PRI, que traiu totalmente o seu projeto original transformador, e depois pelos conservadores do PAN – dificultaram a construção de alternativas políticas mais à esquerda. O país se transformou numa autêntica colônia dos EUA, a partir da imposição do Nafta. Ele regrediu economicamente e foi vitimado por todas as suas chagas – subemprego, miséria e crescimento vertiginoso da criminalidade e do narcotráfico.
Neste trágico cenário, a esquerda não conseguiu construir alternativas e o bloco neoliberal se recompôs. Como explica o sociólogo Emir Sader, a regressão foi o caldo de cultura para o fortalecimento do PRI, agora totalmente controlado por forças de direita. Ele cresceu com o “enfraquecimento do governo de Felipe Calderón, sobretudo com o fracasso do seu carro-chefe, a guerra contra o narcotráfico”. Já o PRD de Lopes Obrador “perdeu vários governos, como resultado de crise internas constantes”.
Luta de classes mais intensa
É certo que os golpistas do Paraguai e os neoliberais do México terão muitas dores de cabeça pela frente. Na nação vizinha, cresce a onda de protestos pelo retorno à democracia e os movimentos sociais dão passos para rearticular a resistência. Além disso, os golpistas cavaram seu isolamento na região, com o Paraguai sendo suspenso do Mercosul e da Unasul e recebendo reprimendas até da dócil OEA. Mesmo que o golpe se consolide, novas eleições deverão ocorrer no início do próximo ano.
Já no México, os neoliberais terão que governar um país devastado e ensanguentado – como quase 50 mil mortos nos últimos doze anos. Como aponta o escritor Eric Nepomuceno, “o México vive uma espiral de barbárie que ninguém sabe onde vai parar. E, pior, ninguém parece saber como parar. Uma estranha guerra civil, entre traficantes... Esse descalabro é, hoje, o cerne da vida mexicana. Há uma nuvem permanente de imagens macabras – decapitados dependurados em postes e pontes, decapitados em automóveis abandonados, corpos queimados atirados em praças, parques, esquinas –, pairando sobre o cotidiano de todos e de cada um dos habitantes do país”.
“E é debaixo dessa nuvem que o novo presidente mexicano irá enfrentar o dia seguinte ao da vitória. Ele herdará um país cada vez mais atado aos desígnios de Washington. Um México que, graças a esse atestado de boa conduta, atrai capitais, gera rendimentos, se tornou um país bom para os investidores. Resta saber quando, e como, o México deixará de estar mergulhado em sangue e passará a ser um país bom para os mexicanos”.

domingo, 1 de julho de 2012

Gilson Caroni: Golpes e democracia, a pedagogia do Mercosul


Os presidentes José Mujica, Cristina Kirchner e Dilma Rousseff não tomaram uma decisão meramente conjuntural. O ingresso da Venezuela no Mercosul sinaliza para um processo pedagógico inequívoco em favor do aprofundamento do conceito de democracia na América Latina.

 Gilson Caroni Filho no VIOMUNDO

Ao decidir suspender o Paraguai e incorporar a Venezuela como membro pleno do Mercosul, Brasil e Argentina sinalizaram para o aprofundamento do conceito de democracia na América Latina. Uma decisão que nos compromete no fluxo da vida, pela responsabilidade que criamos em relação a novas possibilidades de presente e futuro.
Os donos de colunas fixas na grande imprensa costumavam – e ainda costumam – invocar o Protocolo de Ushuaia, assinado em 1998, pelo Mercado Comum do Sul e por seus países associados, que define o regime democrático como condição indispensável para a existência e para o desenvolvimento dos processos de integração. A isso supostamente se aferravam – e ainda se aferram – para protelar a aprovação da Venezuela como membro pleno do bloco.
Usam o argumento de que o “impeachment” de Lugo foi executado dentro das normas legais previstas na Constituição paraguaia, esquecendo-se o que todos sabem: nem sempre legalidade é sinônimo de licitude. O mundo jurídico é especialista em romper com o espírito da lei dentro da letra da lei.
Não houve tempo para o exercício da defesa. O golpe ruralista foi perpetrado e calculado num tempo que impedisse qualquer articulação nacional em defesa do governo democraticamente constituído.
O mesmo vale para o suposto déficit democrático da Venezuela. Nunca é demais lembrar que Hugo Chávez chegou à presidência numa eleição, em 1998, em que obteve 56,2% dos votos. Dois anos depois resistiu a uma tentativa de golpe de Estado orquestrada pelas velhas oligarquias em conluio com o baronato midiático.
Em 2004, venceu o referendo revogatório da oposição para, dois anos depois, renovar seu mandato presidencial com quase 60% dos votos. Em 2008, o secretário geral da OEA (Organização dos Estados Americanos), José Miguel Insulza, não poupou elogios ao processo democrático venezuelano ao se referir às eleições regionais.
Na ocasião, Insulza parabenizou o governo da Venezuela pela “situação de normalidade” e destacou a participação maciça da população no pleito.
Destacou também o comportamento dos partidos e agradeceu pelos “tempos de paz e tranquilidade”. Em que país os cidadãos participaram mais ativamente de processos decisórios que os 16 milhões de eleitores venezuelanos?
É chegada a hora de os historiadores e os bons jornalistas cumprirem o seu papel em um continente marcado por uma institucionalidade construída por estruturas de dependência entre as oligarquias e os interesses do imperialismo. Comparar o que éramos com o que somos é imperativo.
É fundamental que nós, latino-americanos, nos reconheçamos nas culturas e histórias que moldaram o mundo como o temos, vemos e vivemos hoje. Precisamos confrontar os que – detendo o monopólio da narrativa – impedem o diálogo tão necessário entre sociedades, tempos, histórias, gerações e sujeitos, para continuarmos lutando por um mundo justo e democrático.
Nessa tensão dialética, a vida e seus atores são mobilizados por forças centrípetas e centrífugas, por meio, principalmente, de discursos que se reproduzem no cotidiano social. No sentido dessas forças, refletindo sobre o momento histórico, os presidentes José Mujica, Cristina Kirchner e Dilma Roussef não tomaram uma decisão meramente conjuntural. O ingresso da Venezuela no Mercosul sinaliza para um processo pedagógico inequívoco.
A luta pela hegemonia só é eficaz quando governar é educar para a mudança, desfazendo nós semânticos sobre golpes e democracia.

Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro

O racismo e a transformação social do Brasil

Por Dennis de Oliveira na REVISTA FORUM

O movimento negro brasileiro notabilizou-se em lutar contra injustiças sociais mais radicalizadas, como a violência social e policial, o extermínio de crianças e adolescentes negros, o aumento da miserabilidade, entre outros. Destaca-se a denúncia feita nos anos 1990 do documento da Escola Superior de Guerra, intitulado “Estrutura do Poder Nacional para o Século XXI”.
Esse texto, produzido em 1988 pelo think tank da ditadura militar, alertava que havia dois focos “perigosos” para a estabilidade do sistema: os “menores” de rua e os cinturões de pobreza. Por essa razão, o documento da ESG sugeria que os poderes constituídos lançassem mão de todos os mecanismos, inclusive “pedir o concurso das Forças Armadas para enfrentar esta horda de bandidos, neutralizá-los e mesmo destruí-los para que seja mantida a lei e a ordem”.

Uma entidade, a União de Negros pela Igualdade (Unegro) denunciou esse documento no I Encontro Nacional de Entidades Negras, realizado em 1991 no ginásio do Pacaembu,em São Paulo, lançando a palavra de ordem “Combate ao extermínio programado da população negra e pobre no Brasil”.
Foi um momento de resistência à ampliação da violência racial por conta da implementação do modelo neoliberal no País. O movimento negro participou ativamente da mobilização em prol do Estatuto da Criança e Adolescente, da campanha contra a esterilização indiscriminada de mulheres negras, contra o recrudescimento da violência policial, entre outras campanhas.
A pressão do movimento negro foi fundamental para que o Estado brasileiro reconhecesse, em1995, aexistência do racismo na sociedade brasileira. Naquele ano, de celebração do tricentenário de Zumbi dos Palmares, dois grandes eventos foram realizados. O primeiro, foi a Marcha Zumbi à Brasília, ocasião em que foi entregue ao então presidente da República um documento reivindicando políticas públicas de enfrentamento do racismo. O governo, ao receber o documento e constituir um grupo de trabalho interministerial, reconheceu publicamente a existência do racismo na sociedade brasileira.
Mas outro evento importante foi o Congresso Continental dos Povos Negros das Américas, realizado no Memorial da América Latina,em São Paulo, em que lideranças de organizações negras do continente se reuniram para discutir o panorama das relações raciais. O resultado disso foi a constituição de redes de articulação de entidades antirracistas na América Latina, que foi fundamental na participação na Conferência da ONU de Combate ao Racismo, em 2001, em Durban, África do Sul.

Racismo estrutural

No decorrer da preparação da Conferência de Durban, participei do Foro Social de las Americas na cidade de Quito, organizado pela Agência Latinoamericana de Información (Alai). Apresentei um texto intitulado “Racismo estrutural: apontamentos para uma discussão conceitual” (disponível em http://www.movimientos.org/dhplural/foro-racismo/noticias/show_text.php3?key=96).

A ideia básica desse texto é discutir o racismo como um mecanismo ideológico que legitima desigualdades sociais, culturais e de acesso ao poder. É retirar o tema do racismo do “comportamento individual” apenas e tão somente e discuti-lo na perspectiva das estruturas sociais de poder. Naquele momento, o neoliberalismo radicalizava a exclusão e a concentração de renda, razão pela qual as formas mais cruéis de racismo apareciam no cenário político – como a ideologia nazista em países europeus.
Dessa forma, o enfrentamento do racismo tem uma natureza política. E, aí, entram aspectos importantes que precisam ser refletidos pelos movimentos sociais na sua atuação.

Primeiro:O racismo como ideologia reproduz e consolida estruturas sociais de poder desigual e de concentração de renda. Dessa forma, a construção de uma sociedade mais justa e igualitária passa, necessariamente, pelo enfrentamento do racismo.

Segundo:O racismo cria privilégios de caráter racial, em maior ou menor grau, que beneficiam sujeitos mesmo entre classes sociais equivalentes. Assim, a vigilância antirracista tem de ser permanente, e não “seletiva” no sentido de “perdoar” eventuais manifestações racistas porque elas acontecem dentro de segmentos sociais que lutam por um mesmo ideal.

Terceiro:A luta contra o racismo necessita de uma ampliação do protagonismo das lideranças negras nos espaços de visibilidade pública dos movimentos sociais e organizações partidárias.
E, finalmente, o quarto aspecto: É preciso que a luta contra o racismo incorpore elementos importantes para a afirmação dos afrodescendentes como portadores de valores simbólicos próprios. A defesa das manifestações culturais de matriz africana não pode ser feita de forma meramente instrumental e até demagógica: deve ser parte efetiva de um projeto de transformação radical do País. 

sábado, 30 de junho de 2012

Um relampejo na memória social latino-americana


Em cartaz no Brasil, o filme “Violeta se fue a los cielos” debruça-se sobre a trajetória da artista chilena Violeta Parra

Deni Ireneu Alfaro Rubbo no BRASIL DE FATO

Representar avatares de personagens históricos, ainda mais aqueles de vida e obra carregadas de explosão e tortuosidade, na tela do cinema sempre trará incontornáveis riscos. Aplausos, vaias. Ainda mais quando o campo social contemporâneo está completamente dominado pela cultura da imagem e do visual.  Por exemplo, em Bird (1987), de Clint Eastwood, que procura dar luz e imagem ao percurso rebelde do músico Charlie Parker, a preocupação parece ter se centrado mais na reconstituição e recuperação estética dos lugares e objetos da época, expressando, no fim das contas, uma repetição do que é meramente representado, contemplação resignada, ou melhor – para ficarmos na expressão do crítico marxista Fredric Jameson –, um “pastiche nostálgico”, típico de uma época sedenta pelo espetáculo da estética.
Mas talvez seja exatamente o conteúdo do perigo dessa empreitada, da possibilidade da experiência vivida do contrassenso, que instigue ainda alguns (poucos) autores à sua realização. Porque apresentar e trazer à tona qualquer trajetória herética de um aventureiro(a), no sentido amplo e positivo da palavra, é também rememorar e sacudir o pensamento e a sociedade de determinada época. Assim, abrem-se fendas, bifurcações que buscam (re)colocar utopias e projetos da memória social coletiva e atualizá-la, transformando cinzas em fogo. Trata-se de uma preocupação, a um só tempo, que envolve a dimensão estética e política, forma e conteúdo.

“Violeta se fue a los cielos”, de Andre Wood (diretor do filme Machuca), em cartaz no Brasil, vem estimular esse terreno debruçando-se sobre a trajetória de Violeta Parra, uma querida personagem ainda pouco difundida no Brasil. Mulher. Chilena. Latino-americana. Mãe. Poetisa. Comunista. Índia. Pobre. Rebelde. Violeta nasce em 1917, no mês da revolução de Outubro. As marcas que leva no rosto a vida inteira são frutos deixados pela varíola contagiada durante a infância, que nutre para sempre insegurança com sua beleza. Vestia-se com a mesma simplicidade de uma camponesa, conservando os cabelos compridos e quase despenteados, em qualquer lugar que estivesse. Fez arte do bordado, da pintura, da cerâmica e, sobretudo, cantou: “a criação é um pássaro sem plano de voo que nunca vai chegar em linha reta”. Nas décadas de 1950 e 1960, sua criação barroca ecoou, continentalmente e universalmente, em meio a gerações vencidas que entoaram seu grito em diversas contestações nos países em que triunfava o partido dos vencedores provisórios, tanto em regimes de terror burocrático quanto em regimes de acumulação capitalista fordista.

Andarilha, como Che Guevara, Violeta viajou para muitas regiões, sempre junto de seus filhos, buscando e coletando a riqueza da música folclórica chilena e latino-americana, parte de extrema sensibilidade do filme de Wood. Certamente, foi pioneira em sua busca por uma música de raiz genuinamente popular, semelhante a muitos sambistas no Brasil. Considerava pertencer à linha musical da tradição camponesa, cantava sem artifícios, rusticamente, e quando sua doce voz se entrecruzava com os dedilhados no violão, como as mãos que se juntam de casais na primeira vez, parecia brotar da terra como um vulcão. Seguindo a estirpe dos românticos, amou loucamente e, por isso mesmo, jamais seus relacionamentos tiveram um curso sereno. Seu suicídio não foi exclusivamente amoroso, mas também por ter visto a dificuldade da universalização de uma cultura milenar relegada (“o mundo é maior do que eu imaginava”, diz à sua filha) ao passado em nome da técnica e do progresso que jamais evitaram os grandes desastres na periferia do capitalismo.
É preciso dizer, por fim, que o filme também contém suas fragilidades. As tensões entre vida privada e contexto político e social que vivia o país chileno, sem contar as mutações do mundo da Guerra Fria, são excessivamente suavizadas. Como se fossem secundários os cruzamentos dos ritmos sociais e culturais regionais e mundiais que eivavam à época, e como se isso não tivesse significado na formação da visão de mundo da folclorista chilena. É imperativo, no entanto, juntar os pedaços – ou os cacos, como preferem alguns – que fizeram sua materialização. É difícil também entender como o filme conseguiu simplesmente ignorar personagens que tiveram uma aproximação – inclusive pessoal – tão íntima com Parra como, por exemplo, o músico e diretor de teatro Victor Jara, assassinado pela contrarrevolução chilena, e o poeta Pablo Neruda.

Nesses casos, contudo, as músicas e os poemas sempre parecem salvar qualquer dificuldade que o filme supostamente apresenta. Talvez seja aquele paradoxal caso, mas não tão raro, de desencontro entre ritmo da protagonista e do filme – evidentemente, com a primazia do primeiro em relação ao segundo. Amamos Violeta, mas titubeamos se temos o mesmo sentimento apaixonado sobre o filme.
Em todo caso, o expectador brasileiro terá a oportunidade de conhecer essa artista tão autêntica e multifacetada, tão perigosa quanto uma guerrilheira. Para mais do que nunca, costurar, cantar e lutar pela radical diversidade na radical unidade latino-americana dos subalternos, nos milhares de “notas de pé de página”, como poderia dizer o escritor argentino Rodolfo Walsh, de ontem e hoje, dos sem-teto, dos sem-terra, dos camponeses, dos indígenas, dos operários, enfim, do conjunto heterogêneo da classe trabalhadora. Gracias Violeta. 

Deni Ireneu Alfaro Rubbo é cientista social.

Fala-se em nome dos pequenos agricultores, mas, de fato, beneficiam-se os grandes grileiros'

 Gabriel Brito, da Redação-Colaborou Valéria Nader   





Cada vez mais, os grandes debates políticos e projetos de infraestrutura são cercados pelas questões ambientais, levantando posturas apaixonadas e açodadas, mas nem sempre respaldadas por alguma profundidade argumentativa e conceitual. Tal vazio verificou-se novamente com a recém-encerrada Conferência Rio+20, promovida pela ONU em reedição da célebre Eco-92. Com a diferença de que o tema da preservação ambiental adquiriu centralidade muito maior nesses últimos 20 anos, sendo o Brasil palco de extremadas contradições na área.

Após aprovar uma nova versão do Código Florestal, do agrado dos ruralistas e bombardeado por todas as vertentes do ambientalismo, a presidente Dilma Rousseff fez todo o esforço possível para angariar ao país uma imagem vanguardista de responsabilidade ambiental. No entanto, na análise de José Juliano de Carvalho Filho, entrevistado pelo Correio da Cidadania, tal visão simplesmente “não se aplica à realidade dos fatos da macroeconomia brasileira”.

Para o professor da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP e membro da Associação Brasileira da Reforma Agrária (ABRA), todas as medidas do governo em questão no campo vêm no sentido de prejudicar a preservação ambiental, além de favorecer a concentração de terras. “Fala-se em nome dos pequenos agricultores, mas, de fato, beneficiam-se os grandes grileiros, abrem-se terras ao mercado e permite-se o avanço das monoculturas”, critica, deixando claro que o mesmo vale para outras decisões, como as MPs 422 e 458, também em benefício do agronegócio e em detrimento do meio ambiente e da justiça fundiária.

Para além das discussões nacionais, Juliano desacredita de cima a baixo os novos conceitos de responsabilidade ambiental que o capitalismo tentar erigir e dos quais já se apropria. “Não sei se defino ‘economia verde’ como camuflagem, enganação, talvez falte um termo elegante. É preciso uma ruptura com a forma capitalista, principalmente o capitalismo financeiro, e tirar tudo da mão do mercado para se almejar uma ‘economia verde’. Essas conferências servem como um espaço pra discutir, aumentar a conscientização, mas o fato é que os Brics e os países ricos não se comprometeram em nada. Não se trata de ver quem é de direita ou esquerda, a coisa é transversal, todos adotaram esse modelo macroeconômico”, resume.

A entrevista completa pode ser conferida a seguir.

Correio da Cidadania: Como o senhor avalia o novo Código Florestal aprovado no Congresso e o processo político que conduziu a este novo Código?

José Juliano de Carvalho Filho: Acho que segue aquilo que sempre acontece na nossa organização histórica, desde a escravidão. Um código que criou necessidades. Quem criou tais necessidades não foi o país, foram os ruralistas. O processo, em minha opinião, é uma história antiga, de duas vertentes, a do latifúndio e a ambiental. A tática foi criar um clima de insatisfação com o Código Florestal que vigorava e depois colocar o bode na sala. A partir disso, com o bode na sala (as propostas ruralistas), mal cheiroso, se discutiu o Código e suas alterações.

Dessa forma, foi um avanço muito grande em prol dos interesses dos chamados ruralistas – digo “chamados” porque deve ser a classe mais poderosa do país. Vai implicar em impactos muito negativos. Ainda estou tentando estudar se a MP editada pelo governo melhora ou piora a situação, mas o fato é que, comparando com o código anterior, esse é muito pior, pois permite mais derrubada de reservas, transformação legal de propriedades enormes em várias propriedades pequenas, consolidação de áreas agrícolas, além de outras contravenções do campo, como a anistia a crimes ambientais, contando também com uma justiça patrimonialista a serviço do latifúndio. São contraventores do campo, não querem recompor área, desmataram, grilaram.

O fato é que, no contexto geral, aumentou-se a vulnerabilidade da conservação ambiental brasileira, com claras vantagens aos ruralistas.

Correio da Cidadania: O que pensa dos argumentos que ressaltam que o Código supostamente protege os pequenos agricultores, o que se daria, por exemplo, pela não exigência de recomposição da reserva pra propriedades de até 4 módulos fiscais?

José Juliano de Carvalho Filho: É o agravante: discursar em favor dos pequenos. É idêntico ao que aconteceu no programa Terra Legal, por exemplo. Fala-se em nome dos pequenos, mas, de fato, beneficiam-se os grandes grileiros, abrem-se terras ao mercado e permite-se o avanço das monoculturas.

Em relação às populações tradicionais, continuarão como pobres brasileiros. Em linhas gerais é isso, com consonância muito grande com as medidas que passaram a ser editadas desde o fim do primeiro mandato de Lula, tais como as MPs que legalizaram grilagem e titulação de terras, dificultando algumas lutas indígenas pela terra, por exemplo. Não podemos esquecer de vários casos, como o dos guarani kaiowá, no Mato Grosso do Sul, em que se chegou a uma situação de barbárie total, com assassinatos, suicídios, esquartejamentos de índios, o que temos visto fartamente no noticiário.

É tudo muito consistente da parte deles, pois mexem com todas as regras passíveis de serem burladas. É o mesmo discurso da Transposição das águas do São Francisco, do Terra Legal etc. Faço trabalhos no campo desde os anos 70, já cansei de presenciar casos de políticas para o campo anunciadas como benéficas ao pequeno agricultor e que na verdade os prejudicava. Quando se dava crédito para pequenos em alguma área, eram as grandes empresas quem pegavam, de fato, os créditos subsidiados. A história se repete, com as mesmas relações sociais. Agora é a mesma coisa com o Código Florestal, chegando a um ótimo resultado em favor dos ruralistas. O país pagará tanto em danos sociais como ambientais.

Correio da Cidadania: Ou seja, têm sido, realmente, muitas e notórias as MPs que, nos últimos anos, beneficiam o latifúndio e os ruralistas, em detrimento da pequena produção e da agricultura familiar. E os governos Lula e Dilma seguem a tendência, certo?

José Juliano de Carvalho Filho: Sem dúvidas. Desde o final do primeiro governo Lula. A partir disso, editaram-se as MPs 422, 458 e tivemos o Terra Legal.

São duas questões a respeito da política agrária: se pegarmos todos os documentos de política agrária do PT, à época da primeira campanha vitoriosa, e também da segunda, tudo que define reforma agrária, ou seja, mexe com a estrutura agrária, como a revisão dos índices de produtividade, foi sumindo. Não ficou nada, de modo que não há compromisso do governo com a reforma agrária.

Paralelamente, podemos elencar mudanças nas políticas agrárias, com medidas que invariavelmente beneficiam o agronegócio. É uma mistura de capital fundiário de pessoas que investem no Brasil em parceria com “brasileiros” (entre aspas, porque o capital e seus agentes não têm pátria), avançando cada vez mais sobre as terras. A cana tem capital externo, o petróleo tem, e essa é a regra geral em nossas commodities. Como exemplo, no estado de São Paulo, os índices de Gini eram razoáveis, mas agora o estado é dominado pela cana, que vai crescendo sem parar, e o índice de Gini só se deteriora.

De um lado, uma série de medidas que favorecem o agronegócio e, por outro, uma série de medidas que dificultam a vida dos pequenos agricultores. Agora vemos projetos de políticas que visam criar obstáculos para a titulação e homologação de terras indígenas e quilombolas. De vez em quando se faz um mise en scène, mas os fatos são esses.

Com as alianças que fez pra governar, vemos que o governo acabou refém dessa classe ultraconservadora e nociva.

Correio da Cidadania: Em sua opinião, o governo Dilma já deixou clara sua política para o campo? Ela pode vir a beneficiar em algum momento a agricultura familiar e a reforma agrária?

José Juliano de Carvalho Filho: Acho que ainda não está claro. Mas, novamente, pegando os documentos da campanha presidencial, em determinado trecho vemos que tanto Serra, candidato do PSBD, quanto Dilma, candidata do PT, com suas coligações e tal, ao apresentarem seus programas no TSE mostraram as semelhanças na “política” agrária. Assim como na Carta aos Brasileiros, do Lula, neste caso os dois programas deixaram claro, além dos discursos e convenções, que ninguém tinha compromisso com a reforma agrária. O documento do programa petista terminou apenas com generalidades.

No máximo, a Dilma poderia fazer algo como o Lula, ou seja, algumas pequenas medidas em favor dos pequenos, como o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA). Entretanto, fazendo políticas que beneficiam acima de tudo o agronegócio em termos estruturais. O problema é que não se coloca a questão da propriedade como origem da pobreza e desigualdade social, o que é uma “aparente” contradição do programa petista.

Os ministérios da Agricultura e o do Desenvolvimento Agrário fazem política à parte um do outro. Aquilo que se entende como pequena política ficou subalterna; negros, pobres, índios, sem terras, podem fazer o que quiserem desde que não incomodem. Se começam a incomodar a grande política, isto é, aquilo que gira em torno da macroeconomia...

Não tenho esperança de grandes mudanças no mandato da Dilma. Os programas do PT têm a tendência de superconcentrar as terras e deixar avançar as grandes monoculturas de exportação. Já as MPs de benefício ao agronegócio tornam o governo refém de suas contradições políticas, o que redunda em políticas pífias para a reforma agrária. O que funciona mesmo é essa sustentação macroeconômica encampada pelo governo e suas metas. Temos uma especialização e reprimarização retrógradas, como diz o professor Reinaldo Gonçalves, opinião da qual compartilho.

Correio da Cidadania: Como o senhor situa as intervenções de Dilma, que não seguiu a campanha maciça de setores mais progressistas pelo veto ao novo projeto de Código Florestal, sancionando-o com 12 vetos e 32 emendas?

José Juliano de Carvalho Filho: É difícil responder com convicção, porque o melhor seria ter em mãos todas as versões: o Código Florestal anterior, de 1965, o novo, e aquelas versões que passaram e foram alteradas pela Câmara e Senado, comparando-as ponto a ponto e tendo uma avaliação mais concreta. É preciso ter cuidado com as matas ciliares, propriedades familiares, as águas... Tudo isso tem sido feito em prejuízo do meio ambiente, a exemplo também da questão das áreas consolidadas. É preciso ver tudo detalhadamente pra saber o que pode depois ser revertido na justiça. Mais que isso, não posso dizer ainda.

Correio da Cidadania: Como o senhor tem visto a atuação dos movimentos sociais, aqueles ligados ao campo em particular, bem como sua relação com o atual governo?

José Juliano de Carvalho Filho: Sou a favor dos movimentos, de modo que toda crítica que faço é no sentido construtivo, pois é neles que vejo esperança de mudanças reais na sociedade. Mas estão tímidos frente ao governo. Claro que fazem suas reivindicações por aí, mas estão tímidos. Reforma agrária e justiça no campo sempre foram conquistas, não concessões, mas as pressões por cooptação são muito fortes. E os movimentos deveriam estar mais agressivos.

Correio da Cidadania: O que pensa do papel jogado pelo Brasil, e da imagem que o país tentou vender de si, na conferência Rio+20? A propaganda oficial de desenvolvimento sustentável, com a exploração de “energia limpa”, condiz com nossa realidade?

José Juliano de Carvalho Filho: O papel do Brasil é uma grande contradição. Falando do documento final, de acordo com o próprio secretário da ONU, podemos falar que foi fraco. Não há medidas imediatas, de modo que é um fracasso maior ainda que a Eco-92, que pelo menos tinha propostas. O conceito de sustentabilidade não se aplica à realidade do nosso país e, na verdade, desde o documento que o criou, em 1987, não existiu de fato. Os povos do campo estão sendo prejudicados por essas medidas de dita sustentabilidade. Foi uma conferência muito fraca, do G-7 só a França esteve realmente presente, de modo que não saiu nada de muito importante desse encontro. Fica uma mistura de posições, ninguém sabe direito o que é isso (desenvolvimento sustentável), e todo mundo usa o conceito.

Correio da Cidadania: Falando em conceito, o que o senhor teria a dizer sobre a “economia verde”, a grande novidade no vocabulário do capitalismo global?

José Juliano de Carvalho Filho: O mercado se apropriou dessa história e começou a falar em “verde”. Um exemplo de agora, pequeno, mas emblemático do que acontece, é essa história das sacolinhas de supermercado. São eles, os supermercados, que vão mudar a cultura nacional sobre preservação ambiental? Na verdade, apenas defendem seu interesse econômico, que também está envolvido, uma vez que forneciam as sacolinhas gratuitamente aos seus clientes. A imagem que o Brasil deixou foi um pouco superior pela falta de representação dos outros países. Mas os resultados são fracos. Quais são os resultados e compromissos? Nenhuns.

Não sei se defino “economia verde” como camuflagem, enganação, talvez falte um termo elegante. Cada um entende de um jeito e passa a imagem de estar fazendo algo pela preservação. É o capitalismo buscando novas formas de se reproduzir. Com o atual momento, a Europa em sua crise não resolvida, além da concentração de renda de alguns países, é uma roupagem nova.

Não vejo esperanças de economia realmente verde, não vejo compromissos realmente sérios e um freio na acumulação capitalista. São questões políticas importantes e diretamente relacionadas. É preciso uma ruptura com a forma capitalista, principalmente o capitalismo financeiro, e tirar tudo da mão do mercado para se almejar uma “economia verde”.

Outro exemplo é esse mercado de carbono, que não faz sentido, seria muito melhor taxar as empresas poluidoras. Uma empresa poluidora compra créditos de Moçambique, polui por lá, contamina grande parte do meio ambiente local, das águas, e ficamos assim. Acontece aqui no Brasil também.

Essas farsas de mercado não vão deixar de seguir a lógica do capital. Daqui a pouco vão comercializar o ar que o teu neto vai respirar no futuro, vai tudo pro mercado. Dessa forma, tal como já vemos acontecer, teremos a monopolização das águas e bens naturais mais essenciais. Empresas como Nestlé e Coca Cola estão adquirindo territórios que lhes garantem abastecimento de água, o que na verdade é uma apropriação da natureza. A Monsanto é outro exemplo dessa monopolização, como se vê com as sementes, enquanto as propostas e denúncias da Via Campesina, ainda que sendo as melhores para os povos, são ignoradas.

Lendo os cientistas (aqueles que merecem consideração), vemos que podemos atingir um desequilíbrio mundial sem retorno, com falta de bens naturais, aumentando ainda mais a pobreza, a barbárie, as disputas, impedindo os agricultores de terem sementes, tendo que se suprir de Monsantos e afins... Tais conferências e governos beneficiam esse modelo, dando pouca esperança para a humanidade.

Servem como um espaço pra discutir, aumentar a conscientização, mas o fato é que os Brics e os países ricos não se comprometeram em nada. Não se trata de ver quem é de direita ou esquerda, a coisa é transversal, todos adotaram esse modelo. Usam seus argumentos de sustentabilidade e o mundo se encaminha para mais desastres, prejudicando as populações mais pobres, um dos resultados mais diretos desse “desenvolvimento sustentável”. Os resultados pífios, mornos, da reunião não mudarão isso. E o modelo macroeconômico do país beneficia tal lógica destrutiva. Elogiei algumas medidas do governo Lula, mas elas vêm acompanhadas dessas histórias, do aumento da força da monocultura e da concentração de terras. Os camponeses saem do campo, vão pra cidade e vemos se agravarem as questões agrárias, sociais e ambientais.

Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania; Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania.