quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Raça, pra que te quero?

Discussão sobre cotas trouxe petistas e tucanos brandindo barbaridades científicas

O Senado aprovou, na terça-feira 7, um projeto de lei que prevê a destinação de 50% das vagas em universidades e escolas técnicas federais para quem cursou o ensino médio integralmente em escolas públicas. Universidades e escolas técnicas terão de levar em conta critérios "raciais".
Veja bem: os vocábulos "critérios raciais" foram verberados pelos quatro maiores jornais brasileiros. Em sua primeira página, O Estado de S. Paulo chegou a surdir, como se a inverossimilhança fosse tolerável, frase do tucano Aloysio Nunes Ferreira, para quem "sou contra essa diferenciação pro raça e não tenho medo dessas movimentos. O branco pobre não é filho de senhor de escravos".
Essa bobagem de atribuir valor ao vocábulo "raça" não é nova. Os jornais que se dizem tão moderninhos o vocábulo "raça" como se este fosse cientificamente tolerável. Só para lembrar, em 1998, em sua coluna à página A2 da Folha de S.Paulo, o ex-presidente José Sarney chegou a escrever que cientistas brasileiros já haviam encontrado o DNA que validava "uma raça tipicamente brasileira". Nessa mediania de desinformação, ainda existe por aí uma revista da comunidade negra, vulgo afrodescendente, intitulada Raça.
O vocábulo "raça" deveria ter sido banido do dicionário desde o começo da década de 50: que foi quando Watson e Crick, ao conjecturarem sobre a dupla hélice do DNA, notaram que tais hélices eram compostas por decágonos – figuras de dez lados que, sabe-se em geometria, são as que mais concentram a energia. E que se você comparar o índice de crescimento desses decágonos seja num judeu, alemão, russo, esquimó ou argentino, ou branco, ou negro, ou circassiano, ou pardavasco, verá que as medidas são iguais. Ou seja, desde o começo da década de 50 os cientistas sabem que não existe conceito científico de raça. Somos todos rigorosamente iguais apesar das flamantes mentiras que volta e meia os racistas tendem a vender por aí.
Qualquer beletrista de Engenharia, Artes Plásticas ou Ciências sabe que toda vida viva cresce na mesma proporção: é o chamado número áureo ou golden mean, representado por raiz de 5 mais 1 sobre 2. Toda vida viva cresce nessa proporção. Com as hélices do DNA não é diferente.
Quem emprega, portanto, o vocábulo "raça", cujo uso fez o valor racista do termo quase invisível de tão habitual são os egressos de um antigo determinismo biológico segundo o qual poderíamos nós, humanos, sermos diferentes em essência – se esquecendo de que geneticamente somos todos substantivos apesar das variações culturais, e de classe, adjetivas.
Foi a partir de 1846 que Gustav Klemm publicou os dez volumes do seu "História cultural e geral da humanidade", pelo qual estabeleceu os conceitos básicos de que éramos divididos em raças, e isso bastou para que o conde de Gobineau inventasse a cascata de que no norte da Índia havia vivido uma raça superior chamada Arya (cuja tradução quer dizer homem honrado). E que essa raça superior teria passado o seu bastão evolutivo de pureza para os vikings e teutogermânicos. O nazismo e o racismo costuraram suas bandeiras a partir desses retalhos.
Seja petistas ou tucanos, todos falaram em raça desde essa terça-feira. Todos se curvaram ante o determinismo biológico e se esqueceram, ou simplesmente nunca souberam, o que é mais provável, que os maiores especialistas do mundo em pedras preciosas foram roubados da África pelos portugueses, escravizados – e já no Brasil passaram a ensinar aos cutrucos de Lisboa a arte alquímica da extração e transformação de gemas.
O determinismo biológico continua vigindo no nosso país que se pretende tão moderninho, e mesmo entre as esquerdas nessa questão das cotas foi deixado de lado a tão louvada vulgara marxista de exploradores e explorados em prol da ideia de que uns são mais apequenados que outros porque pertencem a uma outra raça.
O pensador marxista alemão Ernst Bloch (1885-1977) gostava de apontar o que chamava de "a contemporaneidade do não-coetâneo (em alemão, "Gleichzeitigkeit der Ungleichzeitigkeit"). Ou seja: você vive no século 21, mas pode estar dividindo o seu espaço, lado a lado, com quem ainda mantenha valores medievais. Ou simplesmente com quem ache que a ida do homem à lua não passa de uma montagem de video. O que ainda existem "raças". É a esta categoria que pertencem os tucanos e petistas que empregaram o vocábulo "raça" para discutir a questão da quota. São todos, noto, nacionalistas do século 17.

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Argumentos contra o aumento de recursos para a educação manipulam e desinformam

  Otaviano Helene   no CORREIO DA CIDADANIA

O Plano Nacional de Educação (PNE), recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados, prevê investimentos crescentes em educação pública, os quais devem atingir 7% do PIB até o quinto ano de sua vigência e 10% até o décimo ano. Esses investimentos são absolutamente necessários se queremos, realmente, atingir as metas educacionais previstas no PNE. Sem os necessários recursos, o país repetirá o que ocorreu com o PNE que se encerrou no início de 2011: as metas não foram cumpridas, e até nos afastamos ainda mais de muitas das mais importantes, simplesmente porque não havia recursos para executá-las.

Como o projeto de PNE ora em discussão deverá ainda ser apreciado pelo Senado e promulgado pela presidência da República, que tem o poder de veto, as elites nacionais têm feito uma grande campanha contra o aumento de recursos para a educação pública usando, inclusive, argumentos falsos. Vamos examinar alguns deles.

1) Com a intenção de desqualificar a proposta, o velho e desgastado argumento “dinheiro tem, o problema é que ele é mal administrado” foi ressuscitado. Com investimentos da ordem de R$ 200,00 a R$ 250,00 por mês e por estudante na educação básica, como ocorre atualmente na enorme maioria das redes estaduais e municipais, por melhor que seja a administração, tudo o que se consegue é oferecer essa educação que temos.

A elite, que usa esse argumento, jamais colocaria suas crianças e seus jovens em escolas tão mal financiadas. Apenas as mensalidades escolares pagas por ela são da ordem de cinco a dez vezes superiores àqueles valores. Além disso, é muito comum nos segmentos mais abastados – e cujos representantes repetem o refrão “dinheiro tem” – complementos educacionais de vários tipos (atividades esportivas, cursos de línguas e músicas, acompanhamento psicológico, aulas particulares, viagens culturais etc.), o que faz com que os investimentos em educação por criança ou jovem distanciem ainda mais dos investimentos em favor dos mais desfavorecidos.

Além disso, o número de anos de permanência no sistema escolar também é muito maior entre os jovens e crianças dos segmentos mais favorecidos: a terça parte das nossas crianças, basicamente concentrada entre os mais pobres, sequer completa o ensino fundamental. Assim, quando calculamos os investimentos acumulados ao longo de toda a vida, a diferença entre os investimentos educacionais feitos em favor dos mais pobres e dos mais ricos torna-se gritante.

O argumento “dinheiro tem” é falso e cínico.

2) Argumenta-se, também, que há exemplos de boas escolas públicas com recursos limitados e que esses exemplos poderiam ser seguidos por todas elas. Será?

O Brasil tem perto de duzentas mil escolas públicas, com dezenas de milhões de estudantes, e elas apresentam um desempenho médio que é esse que vemos. Mas entre um número tão grande de escolas, encontraremos o padrão médio e, também, suas variações: como qualquer média, em especial de indicadores sociais, encontraremos um grande número daquelas que estão muito abaixo da média como daquelas que estão muito acima dela. Não é surpreendente, portanto, que encontremos algumas escolas que tenham, casualmente e em um determinado período, condições particularmente favoráveis (por causa daqueles que nelas trabalham naquele período, de seus alunos e pais de alunos e do seu entorno), que lhes permitam ter um bom desempenho.

Entretanto, essas são as exceções, não as regras, e assim como existem exceções para um lado, existem, também, exceções para o outro lado. Podemos aprender com ambas, descobrindo formas de aproveitar melhor as exceções positivas e reduzir as negativas. Mas não se fazem políticas públicas com as exceções, sim com as regras. É absolutamente impossível, com os atuais recursos, termos, como regra, um bom sistema educacional.

3) Outro argumento usado contra os recursos públicos para a educação é que seu aumento poderá ter consequências econômicas negativas. Ora, primeiro, investimentos em educação têm impactos econômicos positivos, não negativos. Diversos trabalhos acadêmicos têm calculado o retorno econômico (positivo) dos investimentos em educação, mostrando que eles são, frequentemente, até mesmo maiores do que investimentos diretos no setor produtivo.

É a ausência de investimentos em educação que tem consequências econômicas negativas, como ilustram bem as atuais dificuldades de aumento da produção do Brasil pela falta de trabalhadores altamente qualificados.

Nunca se ouviu falar de um país que tenha tido problemas econômicos por ter investido em educação; o contrário disso, sim, já ocorreu. Jamais se ouviu falar de algum país que tenha tido dificuldades econômicas por ter uma população bem escolarizada; o contrário, já. Investir em educação jamais provocaria ou intensificaria uma crise econômica.

Crises econômicas são provocadas ou intensificadas por catástrofes, naturais ou não, de grande escala, guerras, epidemias graves e, como o mundo está vivendo hoje, por um sistema liberal desregrado; jamais por investimentos em educação.

4) Muitas vezes, as argumentações contra o aumento dos recursos para a educação pública até atingir os 10% do PIB parecem usar uma ideia implícita de que os investimentos sairão do PIB, no sentido de reduzi-lo. Ou seja, se aumentarmos em 5% do PIB os investimentos em educação, o PIB será reduzido em 5%. Evidentemente, não é isso. Se aumentarmos os investimentos em educação, a construção civil será aquecida, como o seria por qualquer outro investimento que dela demandasse, mas mais intensamente na forma de prédios e equipamentos escolares; mais empregos serão gerados, mas mais concentradamente para professores e demais trabalhadores do setor educacional. Haverá, também, maior demanda por veículos e eletricidade, maior consumo de equipamentos elétricos e eletrônicos, de papel, de produtos gráficos etc., enfim, de tudo aquilo do qual o PIB é feito, mas beneficiando mais concentradamente a área educacional.

Portanto, no curto prazo, o PIB não diminuirá por causa de um aumento dos investimentos em educação e crescerá ou não independentemente deles; mas as condições sociais do país melhorarão. No médio e longo prazo, um melhor padrão educacional da população certamente terá um impacto positivo no PIB.

5) O previsto no PNE é que os investimentos cresceriam ao longo de dez anos, atingindo os 10% apenas no décimo ano. Isso significa aumentar a destinação de recursos para a educação em cerca de 0,5% do PIB ao ano, uma pequena parte do crescimento econômico médio anual desde 2004. Como investimentos em educação têm impacto positivo no crescimento do PIB, no fim do período de dez anos, o PIB já estaria crescendo por causa dos investimentos feitos nos primeiros anos e o aumento dos recursos para a educação já estaria sendo financiado pela própria melhoria na educação.

6) Hoje, o Brasil investe cerca ou menos de 15% da renda per capita anual por estudante e por ano no ensino básico. Investimentos, por estudante e por ano, em diversos países, pobres ou ricos, mas que cuidam da educação de suas crianças e de seus jovens são da ordem de 25% da renda per capita. Se reduzirmos a evasão escolar, aumentarmos o número de estudantes no ensino médio e ampliarmos a educação infantil, como previsto no PNE, teremos um aumento do contingente de estudantes que, com os mesmos recursos totais, faria com que o recurso por aluno fosse ainda mais reduzido.

Portanto, precisamos aumentar os recursos tanto para aumentar os investimentos por estudante como para incorporar novos alunos.

O que as elites querem ao fazer discursos, editoriais e artigos contra mais recursos para a educação pública? Que o Brasil continue a excluir do sistema educacional muitas crianças e jovens e a atender os que insistem em permanecer de forma tão precária?

7) O atual piso salarial (salário bruto) dos professores, por 40 horas semanais de trabalho, é inferior a R$ 1.500 por mês. Será que as elites poriam seus jovens e suas crianças em escolas cujo piso fosse igual a esse? Aqueles que atacam o aumento dos recursos para a educação pública estão querendo que essa situação perdure.

8) Nenhum país superou atrasos escolares tão grandes como os nossos sem investir percentuais do PIB próximos ou mesmo superiores a 10%. Nós precisamos fazer o mesmo e apenas quando os atrasos educacionais tiverem sido superados e o sistema estiver consolidado podemos reduzir os investimentos. Evidentemente, articulistas e editorialistas dos grandes jornais e outros que multiplicam a campanha contra o aumento de recursos para a educação sabem disso. Assim, ao fazerem tal campanha, estão, de fato, defendendo que o país permaneça atrasado no que diz respeito à educação. Se nenhum país conseguiu construir um sistema educacional aceitável e superar os atrasos acumulados sem investir os recursos necessários, alguém acredita que o Brasil conseguiria?

9) A proposta de aumentar os investimentos públicos em educação foi acusada de populista pelo editorialista de um jornal. Certamente o editorialista sabe muito bem o significado da palavra populismo e, portanto, sabe que a proposta, de fato popular, nada tem de populista. Ao fazer tal acusação, o editorialista se aproveita do fato de que, provavelmente, seus leitores não sabem o que significa aquela palavra, mas repetirão seu “argumento”. Até mesmo para evitar que aquele tipo de acusação vazia tenha alguma consequência, precisamos de mais e melhor educação pública.

10) Em um artigo de jornal, usou-se o fato de que o aumento de recursos para a educação é dez vezes maior do que para a bolsa-família. Que sentido tem essa comparação? A bolsa-família é um referencial econômico padrão, a ser usado como referência para outras políticas públicas?

Provavelmente, o autor do argumento pressupõe que seus leitores são preconceituosos em relação a programas do tipo bolsa-família e a comparação, ao mesmo tempo em que reforça esse preconceito, provoca uma aversão do leitor ao aumento dos recursos públicos para a educação.

11) O editorial de um jornal de grande circulação acusou aqueles que defendem o aumento dos recursos para a educação pública de corporativista. Na falta de argumentos, a estratégia pode funcionar, pois não analisa a proposta, mas desqualifica aqueles que a defendem. Tal acusação não tem nenhum sentido. A defesa de mais recursos para a educação pública está na pauta de muitas entidades científicas, profissionais, acadêmicas, religiosas, sindicais etc.

Obviamente, entidades de professores e estudantes – às quais, presume-se, caberiam a acusação de corporativismo – também têm se manifestado na defesa da educação pública, não por questões corporativas, mas por compromissos com o desenvolvimento social do país. Seria um total absurdo achar que exatamente essas entidades, que melhor conhecem os nossos problemas educacionais, se omitissem.

Será que aquele editorialista acusaria de corporativos médicos, secretários de saúde ou dirigentes de hospitais que participassem de discussões sobre saúde pública no Brasil, defendendo, por exemplo, o aumento dos recursos para o SUS? Ou sindicalistas, industriais e entidades que congregam engenheiros, por exemplo, que discutissem a política industrial do país? Ou editores e jornalistas que manifestassem opiniões sobre nossa política para o setor de comunicações?

12) Há, ainda, o argumento de que um aumento dos recursos para a educação pública pressionaria, de forma muito intensa, as contas da União, dos estados e dos municípios. Esse argumento também não está correto. Para responder a ele é necessário comparar os investimentos públicos brasileiros com os de outros países. (A comparação mostra que os investimentos sociais públicos no Brasil são bem menores do que se observa nos países organizados, não necessariamente apenas naqueles mais industrializados.)

Há, inclusive, um documento do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), órgão vinculado à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, que mostra que o aumento dos recursos para a educação poderia ser conseguido apenas reduzindo-se o encargo da dívida e aproximando muitos dos nossos impostos daquilo que é praticado nos demais países capitalistas.

Esse último tema será desenvolvido em um próximo artigo.

Leia também:

Otaviano Helene, professor no Instituto de Física da USP, foi presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
 

terça-feira, 7 de agosto de 2012

TV e o reino da mediocridade

Por Washington Araújo, no blog Cidadão do Mundo:

O que está acontecendo com nossos fins de semana? Temos a semana para ganhar o sustento pessoal e familiar, trabalhamos o horário nobre dos dias: todas aquelas horas em que o sol está firme no horizonte. Os restos do dia são dedicados ao repouso, tão necessário para refazer as energias a serem canalizadas para a jornada seguinte. E os vestígios do dia, essas poucas horas e momentos que sobram, passamos com quem amamos, nossos familiares, nossos amigos.


Chega então o fim de semana. Sábado e domingo, boa parte da população que ainda pode desfrutar do luxo de ter emprego, profissão ou apenas um meio de ganhar a vida finalmente pode desfrutar de dois dias para descansar e dar atenção aos que amamos. E o que fazemos, então? Boa parte desse “descanso” se passa diante da telinha mágica chamada televisão.

É da telinha que recebemos o passaporte para atravessar o mundo, ver suas guerras e revoluções, ser testemunha ocular de enchentes amazônicas, furacões norte-americanos, vulcões e tsunamis asiáticos. Da mesma telinha acompanhamos o jogo da vida real em que alguns assaltam bancos, sequestram pedestres, furtam idosos, incendeiam índios e mendigos na periferia das grandes cidades do mundo.

Será isso… descanso?

Gincanas culturais

Resta a opção da passividade absoluta, da leniência habitual com nossos valores pessoais, do arrastão da mais completa e torpe imbecilidade. Temos os programas dos canais abertos da tevê. E com eles todo o apelo pelo ridículo, pelo insano, pelo anseio de ridicularizar outras pessoas, gente como a gente. São os programas de auditório: Luciano Huck e Fausto Silva ocupando as tardes de sábado e domingo e contando com um arremedo de concorrência formada por programas do mesmo naipe, com um agravante: conseguem ser ainda mais ridículos que os que ocupam o pódio das maiores audiências do Ibope vespertino.

Todos, sem exceção, usam e abusam das chamadas ‘pegadinhas’, que são aqueles vídeos, alguns pura armação e outros nem tanto, em que pessoas simples protagonizam situações do mais completo ridículo, abordadas em praças e ruas, fazendo literalmente o papel que a mídia televisiva lhes impõe – o de ser ridículo o suficiente para fazer outros rirem de seus desatinos e ações muito pouco inteligentes. E se um cidadão mediano nacional tem altura regular de 1,65m a 1,80m, nessas pegadinhas são reduzidos a pouco mais de dois ou três centímetros de altura. Altura ética, bem entendido.

Parte expressiva da população brasileira desperdiçará seu bem mais precioso – o tempo – observando Fausto Silva fazer caras e caretas para seu cameraman, passar pela milésima vez pesadas descomposturas e anunciar seu circo de horrores de bolso, do tamanho exato para preencher as 3, 4 ou 5 horas em que o programa irá durar. Por outro lado, Huck encenará seu papel preferido – o de boneco de ventríloquo – com voz quase sempre empostada e fazendo o que mais gosta: posar de mecenas dos pobres e miseráveis, distribuindo casas e carros inteiramente reformados, tudo tinindo de novo, e focando ora a lágrima do pai de família que transformou o quarto e sala (sempre em péssimas condições de habitabilidade) onde vivia em uma casa classe média, ora em todos os eletrodomésticos e tevês de LCD. É em meio aos eufóricos agradecimentos de quem ganhou algo que os pontos de audiência sobem e a dignidade humana é aviltada, de maneira enviesada, mas é.

Como seria interessante que os programas fossem nivelados ao menos ao meio, nem tão baixo e nem tão alto. Entendo que dificilmente a população trocaria de bom grado um canal exibindo Michel Teló por outro em que a atração fosse a Orquestra Filarmônica de Berlim apresentando a Nona Sinfonia de Beethoven. E não trocaria por uma razão muito simples: tempo demais se investiu no apreço dos canais de televisão por números musicais em que o artista parece participar de maratona circense – levanta os braços, corre e salta, volta a levantar os braços à direita e à esquerda – e as letras das músicas trazem sempre apelos explícitos e com alto teor erótico. Bem pouco tempo se investiu na educação do ouvido popular para apreciar e se deixar levar pelos belos acordes, sons e arranjos que somente as Bachianas do genial Villa-Lobos ousariam ter.

Os programas poderiam reviver gincanas culturais bem ao estilo anos 1970, como O céu é o limite, apresentado na extinta TV Tupi por J. Silvestre, programas em que um tema central era objeto de perguntas e respostas e os temas variavam de eventos do Antigo Egito até a vida de Mozart, Galileu ou Carmem Miranda.

Goela abaixo

Faltam na tevê aberta programas que possam despertar na audiência jovem a descoberta de vocação para levar avante a vida adulta: quais os encantos da física e da medicina, da química e da astronomia? Quais os depoimentos de arquitetos, professores, filósofos e advogados bem sucedidos a compartilhar com milhões de jovens em idade de escolher uma vocação, uma profissão? Temos absoluta carência de programas que façam exclamar um jovem de 16 ou 18 anos: “Eu daria certo nisso!” ou “É isso que farei na vida!” Ao contrário do que muitos pensam, seriam programas com baixo custo de produção.

Já paramos para pensar quão interessante seria assistir numa mesma tarde de sábado ou domingo a entrevistas de quinze a vinte minutos com profissionais “bem sucedidos” em sua área de atuação”, como Adélia Prado, Ivo Pitanguy, Alberto Dines, Dráuzio Varella, Marina Colasanti, Fernanda Montenegro, Chico Buarque, Leonardo Boff, Elio Gaspari, Fernando Meirelles. E poderiam investir na produção de vídeos ilustrativos com a biografia de cada entrevistado.

Alguém já imaginou um quadro como o “Arquivo Confidencial”, em vez de ser pela enésima vez com Susana Vieira ou com o Cauã Raymond, fosse com Oscar Niemeyer ou com Affonso Romano de Sant’Anna? Ou com essa prenda maior da baianidade, Dona Canô? E se não com ela, por que não com seu filho-pavão Caetano Veloso? Ou, então, por que não uma entrevista com esta que é uma das mais emblemáticas cantoras da música popular brasileira, Maria Bethânia?

Dificilmente serei convencido que a indigência mental que habita nossa telinha mágica no fim de semana é devido à falta de opções. É mais fácil que o seja por falta de cultura, cidadania e/ou bom caráter por parte dos que têm a última palavra na hora em que se fecha a grade programação de nossa tevê aberta – que, a rigor, é uma concessão do Estado, embora não pareça, dada à tradicional leniência com o lixo televisivo que fazem descer goela abaixo de uma população que ousa sonhar com novas utopias e redobrada esperança no futuro.

A sensação que tenho, depois de passar um fim de semana assistindo à televisão brasileira, é a de ter ficado mais pobre espiritualmente, diminuído em minha condição de humano.

Não será a hora de dar um chega pra lá nessa mediocridade toda?

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O outro lado da Olimpíada de Londres em cinco protestos


Nem tudo é festa na capital britânica: ativistas denunciam ações obscuras de alguns patrocinadores e são reprimidos por autoridades

Na contramão dos furores patrióticos por medalhas, manifestantes britânicos realizaram protestos contra a Olimpíada de Londres. Sem o mesmo holofote de Usain Bolt, Michael Phelps e Andy Murray, cinco ações anti-Jogos questionaram seus polêmicos patrocinadores, colocando em xeque a lógica dos “benefícios” do megaevento e a controversa reformulação da região leste da capital britânica para construção do Parque Olímpico.

Poucas linhas de jornal contaram sobre as prisões em uma bicicletada pacífica e outras detenções em um protesto bem-humorado com creme de baunilha na Trafalgar Square, centro de Londres.

Manifestantes também jogaram badminton em frente à principal loja da Adidas na cidade e fizeram um bem sucedido abaixo-assinado contra a isenção fiscal de patrocinadores.

Divulgação (Greenwash Gold)
Uma das principais intervenções aconteceu logo antes da cerimônia de abertura, no dia 27 de julho.

Um grupo de ativistas conseguiu autorização do comitê olímpico local – a única para o dia da abertura – e realizou um die-in (tipo de protesto pelos mortos de uma tragédia realizado por simulações) homenageando as vítimas da catástrofe de Bhopal, na Índia. Enquanto isso, na cidade de Bhopal, crianças deficientes realizaram uma “Olimpíada paralela”.

As manifestações, mesmo que à sombra do megaevento, mostraram que o modelo de negócios da Olimpíada de Londres está longe de ser unanimidade. Ele é, acima de tudo, controverso, e deixa diversas lições para os Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, daqui a quatro anos.

Veja quem foi às ruas (ou às redes sociais) e por quê.

Die-in

Há 28 anos, a cidade de Bhopal, norte da Índia, foi vítima de uma das maiores catástrofes ambientais da história. Em 1984, falhas em uma fábrica de pesticidas, de propriedade da Union Carbide, lançaram 27 toneladas de um gás tóxico, o isocianato de metila, e contaminaram 120 mil pessoas. A área nunca foi descontaminada e há indícios de que há grandes quantidades de mercúrio em seus lençóis freáticos.

Em 2001, a Dow Chemical Company, gigante do setor químico, comprou a Union Carbide, mas não assumiu total responsabilidade pela tragédia. Os efeitos foram devastadores. Os chamados “filhos de Bhopal” nasceram com deformidades. A empresa afirma que as indenizações pagas são suficientes para apagar a mancha da catástrofe, mas a área continua contaminada.

O caso raramente volta às páginas dos jornais. No dia 27 de julho, data da cerimônia de abertura, manifestantes mobilizados pela ONG DropDowNow foram às proximidades do Parque Olímpico e realizaram um die-in. Qual a relação disso com a Olimpíada?

A Dow Chemical, que também fabricou napalm para a Guerra do Vietnã, aportou 7 milhões de libras esterlinas (cerca de 21 milhões de reais) para ser patrocinadora dos Jogos Olímpicos. O acerto com o Comitê Olímpico Internacional, levou à renúncia ao vivo, na rede estatal BBC, de Meredith Alexander, ex-agente da Comissão para uma Londres Sustentável 2012.

O premiê conservador David Cameron saiu em defesa da multinacional e disse que a Olimpíada de Londres seria a mais verde da história. Segundo o contrato com o Comitê Olímpico Internacional, a Dow Chemical já é patrocinadora da Olimpíada do Rio de Janeiro, em 2016.

Contra a isenção

“Stratford [região do Parque Olímpico] será um paraíso fiscal”, escreveu Tim Hunt, da revista Ethical Consumer. A frase apontou o dedo para atletas e patrocinadores da Olimpíada, como McDonald’s e Visa, ambos com monopólio sobre suas respectivas áreas. Enquanto toda comida “de marca” vendida em Stratford é necessariamente do McDonald’s, a bandeira de cartões Visa está em todas as compras de bilhetes para os Jogos.

A isenção fiscal, segundo Hunt, foi preponderante para que os Jogos fossem sediados em Londres neste ano, com anuência do comitê olímpico local, chefiado por Sebastian Coe, do Partido Conservador. A legislação britânica sofreu mudanças para que isso acontecesse, em operação conjunta com o Tesouro.

A irritação de ativistas era questão de tempo. Eles rapidamente sublinharam a contradição entre isenção fiscal a multinacionais e políticas de austeridade do governo britânico, que enfrenta o mais longo período de recessão em 50 anos. A ONG 38 Degrees fez um abaixo-assinado virtual pedindo a todas as empresas patrocinadoras dos Jogos Olímpicos que paguem seus impostos sobre a exploração do megaevento.

Divulgação

Protestos na frente de uma loja da Adidas contra a exploração de trabalhadores

Houve uma enxurrada nas redes sociais e deu certo. Em duas semanas, 14 multinacionais enviaram comunicados à ONG informando que concordavam em pagar as taxas.

Bicicletada pacífica

Toda última sexta-feira do mês, ciclistas do grupo Critical Mass (ou Massa Crítica) saem pedalando por Londres. Desde 1994, eles se encontram no South Bank, perto da ponte Waterloo, e passeiam sem itinerário pela capital britânica como uma celebração do “andar de bicicleta”.

A última sexta-feira de julho caiu no dia 27, data da cerimônia de abertura da Olimpíada. Cerca de 500 ciclistas se reuniram para pedalar, mas não conseguiram cruzar a ponte Waterloo. O acesso à margem norte do rio Tâmisa estava fechado.
 

Motocicletas policiais com sirenes altíssimas escoltavam vans e ônibus que levavam os atletas ao Parque Olímpico, bloqueando ruas de toda a região central e leste de Londres. Segundo a polícia, era proibido pedalar na capital britânica naquela noite. Ciclistas disseram ter sido empurrados pela polícia para deixar o astro do futebol David Beckham passar e tiveram suas bicicletas confiscadas.

Ao todo, segundo dados oficiais da polícia britânica, 182 ciclistas foram presos durante a bicicletada, que contou com uso de spray de pimenta e da tática de contenção de manifestantes conhecida como “kettling”. Os policiais, unidos, formaram círculos em torno dos ciclistas, mantendo-os “presos” na rua.

Dos 182 detidos, 178 saíram no dia seguinte e quatro foram acusados de diversos crimes. “As pessoas não têm o direito de realizar um protesto que atrapalhe o direito de outras pessoas de seguir com suas vidas – atletas que treinaram durante anos por uma chance de competir, milhões de portadores de ingressos que queriam ver o maior evento esportivo do mundo e todo mundo em Londres que queria se locomover”, afirmou a polícia britânica em nota.

Creme de baunilha

Ativistas da Greenwash Gold 2012, campanha contra os patrocinadores “verdes” dos Jogos Olímpicos, foram até a Trafalgar Square, centro de Londres, para um pódio de mentirinha. Três pessoas, representando Rio Tinto, Dow Chemical e British Petroleum, posariam em frente ao relógio da contagem regressiva da Olimpíada e então jogariam um creme de baunilha com corante verde na cabeça, simulando lixo tóxico. Seis acabaram presos.

“Greenwash” é o termo usado por ativistas para empresas que fazem “lavagem verde de dinheiro”, ou seja, usam parte de seus lucros em patrocínios e projetos direcionados ao meio-ambiente, mas o destroem em suas atividades principais. A performance do grupo durou cerca de 15 minutos, tempo suficiente para que a polícia prendesse seis pessoas por “dano criminal” ao piso da Trafalgar Square – tudo isso porque caiu um pouco de creme de baunilha no chão.

“Era um protesto pacífico e legítimo contra patrocinadores terríveis, e os manifestantes acabaram presos por derrubar creme de baunilha”, disse o diretor da Bhopal Medical Appeal, Colin Toogood.

Além da norte-americana Dow Chemical, acusada como a responsável legal pela tragédia de Bhopal, a British Petroleum foi responsável pelo vazamento de petróleo no Golfo do México, em 2010. E a Rio Tinto, especialista em mineração, é duramente criticada por sua atuação em países como Indonésia e Papua Nova Guiné.

Badminton

Duas reportagens de jornal, uma do Daily Telegraph, mais à direita, e outra do The Independent, mais à esquerda, mostraram que a Adidas estava fabricando material esportivo para a Olimpíada à custa de trabalhadores em regimes desumanos, pagando salários baixíssimos e com carga horária de até 65 horas por semana. Os esforços foram grandes para revelar a história. O Telegraph foi até Camboja, enquanto o Independent viajou à Indonésia em busca de informações sobre a fabricação das roupas.



A ONG War on Want, de combate à pobreza, foi às ruas contra a Adidas e realizou um protesto em frente à principal loja da marca, em Oxford Street, e projetou um enorme logo da companhia em um prédio vizinho ao Parque Olímpico com os dizeres: “Exploitation. Not OK here, not OK anywhere. (Exploração. Não é OK aqui nem em qualquer outro lugar)”.

Todos os atletas do time olímpico do Reino Unido vestem Adidas e seus agasalhos estavam entre os mais vendidos. O design é de Stella McCartney, estrela mundial da moda. A empresa nega utilizar trabalhadores em regime de escravidão, cujos salários/hora não chegariam a um real.

Gilmar investe contra Wikipédia e "blogs sujos"

Gilmar investe contra Wikipédia e Foto: STF/Divulgação_Divulgação

Ministro do STF pediu à Polícia Federal abertura de inquérito contra a enciclopédia virtual, que incluiu no seu verbete dados de reportagens da revista Carta Capital; Gilmar Mendes também pretende proibir anúncios de estatais em sites que o criticam, como os de Paulo Henrique Amorim e Luís Nassif

247 – O ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, acaba de comprar uma briga que ainda vai dar muito pano pra manga. Segundo informa o blog do jornalista João Bosco Rabello, do Estado de S. Paulo, ele pediu à Polícia Federal que abra investigação contra a Wikipédia, enciclopédia virtual, feita de forma colaborativa, que produziu um verbete a seu respeito.
Nele, Gilmar é tratado de forma predominantemente respeitosa (leia aqui o perfil completo), mas a Wikipédia também incluiu dados de reportagens que o criticam, especialmente de Carta Capital. Leia abaixo:
Denúncias veiculadas na Carta Capital
Em matéria de 2012, Carta Capital veiculou diversas denúncias contra Gilmar Mendes.[63] Nela, Mendes é acusado de sonegação fiscal[64], de ter viajado em aviões cedidos pelo ex-senadorDemóstenes Torres,[65][66] de intervir em julgamentos em favor de José Serra.[67][68][69], de nepotismo,[70] e testemunho falso ao relatar uma suposta chantagem do ex-presidente Lula para que adiasse o processo do Mensalão para depois das eleições municipais de 2012.[71][72] A revista repercute acusações de certos movimentos sociais[quem?] dele ser o "líder da oposição", de estar destruindo o judiciário e de servir a interesses de grandes proprietários. Mendes porém volta à afirmar não ser o líder da oposição.[73]
No dia 31 de maio de 2012, o PSOL protocolou uma representação na Procuradoria Geral da República contra o ministro Gilmar Mendes questionando a conduta do magistrado em relação às denúncias de que teria sofrido pressão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para adiar o julgamento do mensalão.[74] A representação se encontra em curso.
Em setembro de 2010, a reportagem da Folha de S. Paulo presenciou uma ligação de José Serra para Gilmar Mendes.[67] Segundo o jornal, José Serra teria ligado para Gilmar Mendes para pedir o adiamento de uma votação sobre a obrigatoriedade de dois documentos para votar (julgamento de ADI pedida pelo PT).[67] Gilmar Mendes foi acusado de nepotismo por[quem?]. Em março de 2012, a Folha de S. Paulo revelou que a enteada do ministro Gilmar Mendes é assessora do senador Demóstenes Torres. Segundo a Folha, especialistas afirmaram que o caso poderia ser discutido no âmbito da regra antinepotismo porque súmula do STF impede a nomeação para cargos de confiança de parentes de autoridades dentro da "mesma pessoa jurídica".[75]
Em uma conversa entre o senador Demóstenes Torres e o bicheiro Carlinhos Cachoeira, gravada pela Polícia Federal durante a Operação Monte Carlo, o parlamentar afirma a Cachoeira ter obtido favores junto ao ministro Gilmar Mendes para levar ao STF uma ação envolvendo a Companhia Energética de Goiás (Celg).[76] Considerada a "caixa preta" do governo de Minas, a Celg estava imersa em dívidas que somavam cerca de R$ 6 bilhões.[76] Segundo reportagem do Estadão, Demóstenes disse a Cachoeira que Gilmar Mendes conseguiria abater cerca de metade do valor com uma decisão judicial, tendo "trabalhado ao lado do ministro para consegui-lo".[77] O ministro Gilmar Mendes também foi acusado por Carta Maior - O portal da esquerda de ter relações com o contraventor Carlinhos Cachoeira e seu amigo Demóstenes Torres. O ministro porém negou ter viajado em avião de Cachoeira e apresentou documentos que, segundo ele mesmo, desmentem tais acusações.[78]
O ministro foi acusado em abril de 2011 pelo seu ex-sócio e ex-procurador-geral da República Inocêncio Mártires Coelho por desfalque e sonegação fiscal. Mendes recebeu, a seu favor, um parecer assinado pelo advogado-Geral da União, Luís Inácio Adams, o qual valida o despejo de Mártires Coelho do cargo de gestor do IDP. O denunciante deu o processo por encerrado em troca da quantia de R$ 8 milhões.[79]
Paulo Lacerda, ex-diretor da Policia Federal e da Abin, envolvido no escândalo dos grampos da Operação Satiagraha, foi acusado por Gilmar Mendes de estar "assessorando" o ex-presidenteLula. Lacerda acusou, em retorno, Mendes de mentir e dizer leviandades.[80] A Associação Nacional dos Delegados de Polícia Federal (ADPF) manifestou solidariedade a Paulo Lacerda.[8

Em razão da crítica, Mendes pediu a investigação. Segundo ele, o verbete de uma enciclopédia deve ter caráter informativo – e não ideológico.
Paralelamente, o ministro do STF também pedirá ao procurador-geral da República, Roberto Gurgel, que investigue os valores dos patrocínios de empresas estatais aos chamados “blogs sujos”. Seus principais alvos são os sites dos jornalistas Paulo Henrique Amorim e Luís Nassif, que, segundo ele, atacam as instituições democráticas – e o veto, segundo ele, não fere a liberdade de expressão.
É uma guerra inglória, que poderá transformar o ministro do STF em alvo constante da blogosfera.

sábado, 4 de agosto de 2012

As quatro crises e a teoria da grande unificação


Vaz de Carvalho
 
A compreensão profunda da realidade só é conseguida numa teoria que mostre a unidade e as contradições dos diversos fenómenos sociais do mundo atual e que estude as suas transformações. Essa teoria é o marxismo.

1 – METAFÍSICA NEOLIBERAL VERSUS MATERIALISMO DIALÉTICO
A ciência é pela sua própria natureza materialista e dialética. A ciência representa o esforço para compreender e explicar os fenómenos naturais, tanto no nosso mundo terrestre como no universo, procura as relações entre esses fenómenos, estuda as suas transformações. Uma fórmula da física é por si só um exemplo de dialética: as diversas variáveis estão unidas entre si num resultado, essa unidade exprime as contradições internas – as variações de umas opõem-se às de outras; as transformações quantitativas dão origem a transformações qualitativas. Por exemplo, conforme a escala em que se processam os fenómenos à física clássica sucede a da relatividade generalizada (escala do universo) ou a quântica (ao nível das partículas atómicas e subatómicas); conforme a pressão e temperatura um gás pode passar ao estado líquido, ao sólido ou tornar-se plasma.
Assim, as ciências sociais se pretendem ser ciência, só podem ser materialistas e dialéticas. Pelo contrário a ideologia conservadora, seja de direita, seja dita reformista da social-democracia, na defesa do sistema capitalista, adopta a metafísica. (1)
A metafísica opõe-se à dialética, no sentido em que analisa os fenómenos de forma parcial ou isolada, independentes das suas relações objetivas, considera o seu circunstancialismo invariável, remete vulgarmente a sua explicação para condicionalismos subjetivos ou imateriais, não reconhece mudanças qualitativas nem explica as contradições internas dos sistemas. É essencialmente estática. O raciocínio metafísico constitui na atualidade o instrumento da ideologia reacionária para a manipulação e alienação das populações, de que é exemplo a “austeridade”, atribuindo as causas da crise ao endividamento ao Estado, responsabilizando os desempregados pelo desemprego, atribuindo aos “custos salariais” e direitos dos trabalhadores a falta de incentivos que o capital especulador teria para proporcionar investimento.
A análise do défice e do endividamento do Estado, mesmo estando tecnicamente correcta no seu detalhe, mas não estabelecendo as relações com todas as outras componentes do sistema económico e social e as suas contradições, revela-se especulação de natureza metafísica. Em consequência verificamos o falhanço das previsões e a incapacidade de evitar o prolongamento e agravamento das crises, embora - pelo menos desde Aristóteles e da sua Lógica - se saiba que raciocínios baseados em verdades parciais conduzem a conclusões falseadas…
Um dos aspetos mais evidentes da desconexão da realidade a que a metafísica neoliberal procede é a dissociação entre o económico e o financeiro, que se manifesta nas proclamações de manter a austeridade, a ”consolidação orçamental”…para ter crescimento. É como se estas variáveis ou fossem independentes ou estivessem relacionadas por simples equações lineares.
Desligada das verdadeiras causas – como a especulação bancária e a distorção na repartição dos rendimentos - a crise é apresentada ora como um somatório de “inevitabilidades” contra as quais nada se pode fazer senão submeter-se aos “mercados” e reduzir as prestações sociais do Estado “despesista”: Chamam a isto: “rigor orçamental”, enquanto se desbarata a riqueza nacional nas PPP e concessões, nas rendas do sector energético, nas absurdas privatizações de empresas lucrativas, na livre transferência de lucros e rendimentos para paraísos fiscais.
O raciocínio metafísico em economia é evidente ao considerarem “os mercados” como entidades abstratas, absolutas, independentes da vontade humana, às quais nos teríamos de sujeitar.
“As pessoas são levadas a acreditar que a economia tem uma lógica por si própria a qual depende da livre inter-actuação de forças de mercado e que os poderosos atores financeiros não poderiam, sob quaisquer circunstâncias, ter deliberadamente influenciado o curso dos acontecimentos económicos” (2)
A análise metafísica da crise e das suas causas acentua os processos de austeridade a que se associa o presidente da República demarcando-se em público do que aprova no gabinete; ou o governador do Banco de Portugal num “estudo” em que se diz ser necessário reduzir a “rigidez laboral”; ou o ministro das finanças que vê a crise financeira como “insuficiente liquidez de capital” e “aversão ao risco” e não fruto da especulação e da corrosão económica permitida pela ausência de controlo sobre o movimento de capitais e pela proliferação dos paraísos fiscais, forma de fuga aos impostos e sabotagem das finanças públicas.
A política de direita assume a sociedade capitalista como “eterna” sem considerar as suas contradições, concluindo pelo conformismo das “inevitabilidades” antisociais e pelas consequências de uma globalização neoliberal considerada imutável e acima de quaisquer outros critérios.
O neoliberalismo é uma metafísica destinada a defender interesses inconfessáveis sob o eufemismo da “economia”. Daqui os apelos à “ética” e aos “sacrifícios para todos”, como soluções. A sua argumentação e compreensão das causas das crises assemelha-se à das querelas medievais sobre as quais se faziam extensos tratados e teses de doutoramento, como a questão dos “universais” ou de saber se “um porco conduzido para a feira é seguro pelo camponês ou pela arreata”.

2 - AS QUATRO CRISES (3)

O capitalismo mergulhou o mundo em 4 crises insuperáveis neste sistema que apenas as agrava: a crise económica e financeira, a crise social, a crise ambiental e a crise extreminista.
A crise económica e financeira atual é consequência das teses monetaristas de criar dinheiro a partir de dinheiro, sem valor acrescentado pelo trabalho. O endividamento generalizado através do apelo ao crédito, foi o entorpecente que levou largas camadas das populações a aceitarem que era possível o aumento do consumo sem passar pela produção e pelo seu rendimento salarial, entregando o seu poder de decisão – e o seu futuro - na mão de mixordeiros da política populista e dita reformista
O valor acrescentado nas empresas, passou a ser absorvido pelos accionistas, pelo sector rentista e especulador – a “engenharia financeira” - em vez de dar lugar à correspondente retribuição salarial e ao investimento produtivo. Desde o predomínio neoliberal as crises sucederam-se de forma praticamente ininterrupta através do mundo inteiro: bolsa de Nova York em 1987; falências de instituições de crédito EUA em 1989-1990; Japão 1990; México, 1994-95; crise asiática 1997-98; Rússia 1998; crise bolsista de 2000 – 2001; Argentina em 2001-02. As medidas adoptadas apenas prolongaram e agravaram estas situações até que a partir de 2007 a crise atingiu os EUA e a UE.
A crise económica e financeira que se tornou e endémica é consequência da criação de capital fictício, apenas números nas contas dos bancos, sem contrapartida de valor real criado na produção, dando origem a dívidas absolutamente impossíveis de serem pagas. Trata-se, pois, de uma crise sem fim nem solução dentro do sistema actual. A austeridade é a forma de transformar o capital fictício em valor real aumentando a taxa de exploração e apropriando-se do património público.
Sabe-se como o BCE promove e financia a especulação cujas custas recaem sobre os povos, financiando a banca a uma taxa de juro muito baixa (1%), não sendo impostos quaisquer condicionamentos à utilização desse dinheiro, para depois os bancos obterem lucros extra à custa de elevadas taxas de juro que cobram aos Estados, às famílias, às empresas.
Sem regulação, em nome de uma hipotética eficiência, o grande capital financeiro criou um caos de corrupção e especulação. A economia, a vida política e social foi colocada ao sabor de gente egoísta, corrupta, fraudulenta que se disfarça com a mistificação de “os mercados”.
Apesar dos biliões de dólares aplicados em “resgates financeiros “ e “políticas de estímulo” - mais de 13 biliões de dólares nos EUA e 4,5 biliões de euros na UE - estas economias permanecem estagnadas ou em recessão; a pobreza e o desemprego não param de aumentar.
A crise social tem origem no facto dos sectores monopolistas e financeiros drenarem em seu benefício a riqueza criada. A estagnação económica resulta assim da insuficiência dos investimentos produtivos e da desequilibrada distribuição dos rendimentos nacionais, cuja evidência são as crescentes desigualdades e o empobrecimento relativo e absoluto das camadas trabalhadoras, de pequenos empresários e profissões liberais, temporariamente camuflado pelo crédito barato.
Em termos sociais podemos dizer que existe estagnação sempre que o crescimento não pode absorver a força de trabalho disponível e que existe recessão quando o desemprego tem tendência a aumentar. Apesar dos imensos progressos tecnológicos o desemprego, a pobreza, as desigualdades aumentaram entre as pessoas e entre os países. A livre circulação de capitais é ouro sobre azul para o crime organizado e para a corrupção que vive paredes meias com as intocáveis entidades financeiras, que os povos acabam por ter de salvar em nome do “risco sistémico”. Contudo, o único risco “sistémico” para os povos é o prosseguimento das actividades especuladoras que se sobrepõem ao tecido produtivo e aos direitos sociais. O avanço dos dogmas do mercado livre traduzido na “globalização” representou mais pobreza, mais crise global: “mais comércio livre mais fome” (4)
O sistema, incapaz de assegurar o pleno emprego e direitos sociais, apresenta-os quer como miragens quer como intoleráveis “privilégios”. Em nome dos dogmas da competitividade e da “eficiência” do mercado livre afirma-se então (como o presidente da República) que não possível manter o “Estado social”. Claro que não, atendendo à crescente riqueza levada para fora do país: mais de 73 mil milhões de euros nos últimos quatro anos.
A OIT considera que mais de 200 milhões de trabalhadores estão desempregados, situação que aumenta de ano para ano. Nas presentes condições, será praticamente impossível encontrar trabalho para os 80 milhões de pessoas que nos próximos dois anos se estima aumentarem o exército de reserva da força de trabalho, designado por “mercado de trabalho”.
A crise social trazida pelo sistema é uma crise de direitos; de desemprego e de precariedade – a patologia crónica do sistema capitalista. O neoliberalismo – o capitalismo da actualidade – não é democracia: é pauperização e depredação. “Milhões de crianças morrem cada ano porque os ricos recusam-lhes alguns centavos de ajuda”, escrevia Noam Chomsky em “A globalização excludente”.
“O principal objectivo das classes dominantes não é simplesmente administrar as consequências da crise financeira. Elas têm um plano a longo prazo para esmagar totalmente a classe trabalhadora, deitar abaixo o consumo e remodelar as expectativas de como o ser humano tem direito de viver. Como mencionou um responsável do Tesouro Britânico ao Financial Times: “Isto é uma oportunidade que só ocorre uma vez numa geração de transformar o modo como o governo funciona.” (5)
“Um quarto de todo o rendimento criado nos EUA vai para a 1% da população, enquanto a classe trabalhadora tem menores rendimentos que há uma década. Os mais ricos viram os seus impostos reduzirem-se, a desigualdade social disparou e arrancou uma ofensiva antisindical. Na UE há 115 milhões de pessoas em risco de pobreza ou exclusão social, 23% da população. Contudo nos últimos 15 anos os ativos dos 3 milhões de milionários europeus cresceu mais que a soma total das dívidas dos países europeus. Estes capitais poderiam resolver de uma assentada a crise das dívidas dos países europeus, porém a atual aristocracia financeira tem tão pouca intenção de ceder seus privilégios como a aristocracia francesa antes da revolução de 1789. (6)
A crise ecológica tem origem no sistema baseado numa competição que visa exclusivamente o aumento dos lucros das empresas dominantes do comércio mundial, segundo os critérios da OMC. Em consequência, verificamos o esgotamento dos recursos naturais. Apesar da pobreza e da fome (1 200 milhões de pessoas com rendimento inferior a 1,25 dólares por dia) o consumo de recursos naturais é superior em 57% à capacidade do planeta. Apesar dos cerca de 48 milhões de pobres nos EUA se toda a população mundial tivesse os mesmos níveis e padrões de consumo médios dos EUA seriam necessários 4,5 planetas. Seguindo as mesma vias de “sucesso” e “eficiência” da “economia de mercado” o Global Footprint Network estima que em 2030 sejam necessários 2 planetas para satisfação das necessidades. Registe-se que nos relatórios GEO das Nações Unidas, todas as medidas apontadas para defesa do ambiente incluem o reforço do papel do Estado e uma sua maior independência dos poderes privados.
É neste contexto que têm de ser avaliadas as ilusões de prosperidade pela “livre iniciativa privada”.
O esgotamento dos recursos naturais imporá alterações drásticas no modo de vida e no funcionamento das sociedades. Trata-se do fim da era da energia barata (peak oil); do esgotamento dos recursos naturais como a água, as florestas, os solos férteis, a pesca, que afectará milhares de milhões de pessoas. Mil milhões de seres humanos numa centena de países estão ameaçados pela desertificação. A biodiversidade declina rapidamente; milhões de toneladas de solo fértil são perdidos. Muitos minerais fundamentais atingem o ponto de esgotamento, implicado a sua extração cada vez maior dificuldade e maiores custos.
A incompreensão do que são custos e benefícios sociais e, por consequência também ambientais, está bem expressa pela afirmação de um dos homens mais ricos de Portugal, que se congratulava por ser possível colocar – nos seus supermercados – pescado fresco do Chile em 36 horas ou frutos tropicais em 9 horas, transportados de avião. Para ele e para quem pensa como ele “eficiência”” e “criação de valor” é isto, que represente desemprego na pesca e na agricultura nacionais, endividamento do país que tão superlativamente criticam, não parece ser relevante tal como os custos ambientais de tal “eficiência”.
A WWF, organização internacional para a conservação da natureza, lista 16 prioridades que passam pela alteração dos padrões de consumo, a valorização económica do capital natural ou a criação de estruturas legais e políticas para promover a gestão ao acesso equitativo à água, alimentos e energia. “Enquanto a biodiversidade revela uma tendência decrescente, a pegada ecológica aumenta, ilustrando bem como a nossa crescente procura pelos recursos naturais se tornou insustentável”.
De salientar ainda o impacto da urbanização, pois estima-se que em 2050 duas em cada três pessoas vão viver em cidades, o que implica uma forma completamente diferente da atual na gestão dos recursos naturais, mas também dos aspetos económicos e sociais.
A globalização corresponde à necessidade que o capitalismo tem de constante alargamento dos mercados, mas é também uma guerra para extorsão de mais-valia a nível mundial por um capitalismo decadente. Um sistema totalmente absurdo, atendendo aos limitados recursos materiais de que o planeta dispõe. Porém a economia conduzida sob a égide do FMI, da OMC e do BM, promove a chantagem da maximização do lucro privado, bloqueando controlos, fiscalização, autoridade eficaz. Os organismos que o poderiam fazer acabam por ficar ao serviço dos interesses privados sem interferência nos comportamentos que deviam regular.
O Prémio Nobel, Gary Becker afirmava que “O direito ao trabalho e a proteção do ambiente tornaram-se excessivos na maior parte dos países desenvolvidos. O comércio livre vai reprimir alguns destes excessos, obrigando cada um a tornar-se competitivo.” (7)
A crise exterminista, consiste nas crescentes agressões e ameaças militares, levadas a cabo pelos “EUA e os seus fantoches da NATO” (Paul C. Roberts) “Não há preocupações com o orçamento quando se trata de guerras ilegais ou ocupações militares que o governo dos EUA leva a efeito em pelo menos 6 países ou na ocupação de 66 anos no Japão e Alemanha ou o anel de bases militares construídos à volta da Rússia. O valor total do orçamento militar e segurança dos EUA anda à volta de 1,1 a 1,2 biliões de dólares, 70 a 75% do défice federal (8)
Em vez de segurança e justiça social para os povos encontramos “pirataria, “austeridade” e “guerra perpétua”: um extremismo destinado ao derrube da democracia. Aplicado a um indivíduo, isto identificaria um psicopata. Por que aceitamos isto? (9)
Os EUA dispõem de um número indeterminado de instalações militares espalhados por todo o globo que se estima serem mais de um milhar. O fim da URSS não representou mais segurança e paz para o mundo, pelo contrário, o orçamento militar dos EUA (5% da população mundial) aumentou, representando mais de 42% do total mundial procedendo a guerras “preventivas” e à “defesa de direitos humanos” com bombardeamentos sobre indefesas populações civis.
A corrida armamentista foi acelerada com a persistente instabilidade no Médio Oriente, a intenção do “escudo antimíssil” na Europa, a proliferação de bases militares. Recentemente a Rússia testou a sua última geração de mísseis intercontinentais dotados de múltiplas ogivas nucleares hipersónicas, e de contra medidas electrónicas que se considera tornar ultrapassado o escudo antimíssil que a na NATO pretende instalar. Poderão ser lançados de submarinos atómicos de 4ª geração.
Os EUA são um Estado falido que só o poder militar e a exacção sobre o resto do mundo através da aceitação do dólar como moeda global vão escondendo e adiando e que arrasta o esfrangalhado capitalismo da UE para as suas aventuras.
Os custos das guerras no Iraque e no Afeganistão custaram já mais de 1,3 biliões de dólares, porém considerando os custos assumidos em substituição de material, tratamentos médicos, pensões aos combatentes ou famílias, juros, etc., aquele valor, dentro do calendário estipulado pelo congresso, pode atingir globalmente uns 5 biliões de dólares.
Será bom lembrar que a História nos mostra que o destino de todas as nações agressoras foi destruírem-se também a si próprias.

3 - A TEORIA DA GRANDE UNIFICAÇÃO NO CAMPO POLÍTICO E SOCIAL É O MARXISMO

A ciência atual mais avançada procura na física unir na mesma teoria, num mesmo sistema de equações, as quatro forças fundamentais da natureza. (10) O mesmo se deveria passar com a análise social ao tratar das atuais crises.
Análises, medidas, comentários normalmente apresentados na comunicação social sobre a crise ou as crises esforçam-se por não pôr em causa o sistema capitalista. Admite-se uma crise económica e financeira, uma crise social, uma crise ambiental, uma crescente insegurança bélica a nível mundial, como se pudessem ser resolvidas de forma independente.
É neste contexto que o esquema financeiro, defendido contra a ineficiência e despesismo do Estado – nas prestações sociais, mas não na corrupção e na fiscalidade distorcida – se tornou responsável pelas graves crises que atingem os diversos países como uma forma de espoliação da mais-valia produzida, com uma redistribuição do rendimento em desfavor dos trabalhadores e pequenos e médios empresários, em nome da do dogmatismo da ortodoxia financeira.
O “despesismo” do Estado está bem documentado com a entrega de biliões de euros ao “racional e eficiente” sector bancário, às grandes transnacionais e na entrega de serviços públicos a oligopólios.
A questão é na sua essência simples. Não há solução para estas crises no sistema capitalista. As propostas apresentadas – imposições de troikas – são confessadamente apenas para resolver os problemas que a especulação provocou, aliás com as medidas que lhes deram origem. Fazer as mesmas coisas à espera de resultados diferentes configura um quadro de insanidade mental (um mundo dirigido por loucos…) caso não se tratasse de puro dogmatismo para uns, de oportunismo para outros, de ganância sobretudo para os que controlam estes.
Vemos títeres criticarem aquilo que efectivamente defenderam e praticam, enunciarem promessas de reformas e fazerem apelos à ética, fraseologia oca de conteúdos concretos, inconsequente e irrelevante, como o “ganhar credibilidade” – o que quer que isto queira dizer – obviamente perante “os mercados”, que o ministro espanhol das finanças considerou agora agirem de forma “irracional”.
O sistema capitalista não tem quaisquer soluções para resolver os problemas das 4 crises, pelo contrário é a sua própria natureza, as suas leis fundamentais que as provocam, ignorando custos e benefícios sociais, funcionando em função do lucro privado, precisamente em sentido contrário do que seria desejável e necessário.
O sistema capitalista nas nossas sociedades, já não tem condições de criar emprego senão em precariedade e sem direitos – a “flexibilidade” - nem garantir serviços sociais, nem proporcionar mais democracia, uma significativa redução do desemprego está confessadamente fora de causa.
Este sistema é imune à ética e ao reformismo, porque a questão não reside em razões práticas, ou de competência dos seus medíocres dirigentes, que são aqueles que o grande capital define e apoia, colocou-se, na sua deriva metafísica, à margem da realidade.
A evidência dos factos mostra que a questão de reforma ou revolução está ultrapassada. O que se designa por “reformas” são tão-somente retrocessos civilizacionais de décadas, largas décadas em muitos casos, cuja tendência é a generalização do trabalho sem ou com um mínimo de direitos: trabalho semiescravo. O mito social-democrata de criar mais riqueza para melhor a distribuir, sem ter em conta as relações de produção, cai pela base com a livre circulação de capitais, o domínio dos paraísos fiscais e dos critérios de especulação financeira.
As crises exprimem a incapacidade do capitalismo para criar valor real, estando a acumulação capitalista atulhada de capital fictício e de ativos tóxicos. “Além disto, sendo os recursos naturais limitados, a necessidade de crescimento constante do capitalismo é estritamente impossível. Manter o capitalismo indefinidamente é matematicamente impossível. O seu desaparecimento é imperativo” (11)
A análise não dogmática, materialista e dialética da realidade, permitiu prever com exactidão o ocorrer da crise e sua evolução, quando a propaganda ao serviço da oligarquia a negava, afirmando o seu fim sempre adiado de ano para ano. Agora se evidencia que mais austeridade só traz mais austeridade, o governo e os seus propagandistas, continuam a propagar uma metafísica de equilibrar as contas públicas – custe o que custar. A única entidade que reconhecem é uma abstração a que chamam “mercados” - a especulação financeira de indivíduos corruptos, mais uma vez comprovada no caso do Barclays Bank - a ditadura à qual os povos são submetidos.
A compreensão profunda – materialista e dialética – da realidade só é conseguida numa teoria que mostre a unidade e as contradições dos diversos fenómenos sociais do mundo atual e que estude as suas transformações. Essa teoria é o marxismo.

1 – A metafísica constitui uma forma de pensamento ultrapassada, no entanto necessária à sua evolução no passado, permitindo a análise e classificação de fenómenos da natureza. Esta designação tem origem em Aristóteles, dado na sua obra filosófica seguir-se à física, significando depois (meta) da física, tratando das questões que ultrapassavam os limites da experiência.
2 A crise económica global A Grande Depressão do século XXI - Michel Chossudovsky e Andrew Gavin Marshall* - www.odiario.info - 20.mai.2010
3 – Não temos a pretensão nem poderíamos desenvolver neste texto o muito que há a dizer sobre as crises do capitalismo. O odiario.info, bem como o resistir.info, têm relevantes textos sobre este tema. Desejaríamos destacar pela abordagem global – e pelo seu nível – como bibliografia, “Crise e Transição Política – Metabolismo social e material”, de Rui Namorado Rosa, Edições Avante.
4 - Más libre comercio, más hambre - Esther Vivas - www.rebelion.org – maio.2008
5 – “Unidos contra nós, divididos entre si” por Ben Hiller - Colaborador de Socialist Alternative O original encontra-se em http://mrzine.monthlyreview.org
6 – “Alemania en la Gran Desigualdad” - Rafael Pochla – Vanguardia – www.rebelion.org – 24-maio.2012
7 - A Ilusão Neoliberal – René Passet – Ed. Terramar – 2002 - p.109
8 – “An Economy Destroyed” Paul Craig Roberts –July 22 / 24, 2011 – www.couterpunch.org - Paul Craig Roberts was Assistant Secretary of the US Treasury, Associate Editor of the Wall Street Journal, and professor of economics in six universities.
9 – “A história é o inimigo quando as psy-ops se tornam notícia”, John Pilger, www.resistir.info – 23.junho.2012 - O original encontra-se em www.johnpilger.com/…
10 – Trata-se da designada GUT (Great Unification Theory). As 4 forças fundamentais da natureza são: a força electromagnética, a força nuclear fraca, a força nuclear forte e a força gravitacional. Em 1850 James Maxwell estabeleceu no mesmo sistema de equações a força eléctrica e a força magnética, levando ao posterior desenvolvimento teórico e tecnológico da electricidade, electrónica, emissão de ondas electromagnéticas. A força nuclear fraca - responsável por certos tipos de radiação quando algumas partículas atómicas se transformam noutras mais leves (diz-se que “decaem”). Está atualmente unida ao electromagnetismo constituindo a força electrofraca. A força nuclear forte é responsável pela constituição de protões e neutrões e a estabilidade dos núcleos atómicos. As tentativas a associar à força electrofraca não têm sido conclusivas. Quanto á gravitação considera-se um passo final da unificação de que se tem ocupado a física quântica.
11 - Jean Mathieu - http://www.papamarx.wordpress.com - Crise Economique : Un changement d’époque.- Le fruit de la misère ne tombe jamais loin de l’arbre de l’exploitation.

sexta-feira, 3 de agosto de 2012

O empobrecimento do debate político



Vladimir Safatle no CARTA CAPITAL

Há várias maneiras de despolitizar uma sociedade. A principal delas é impedir a circulação de informações e perspectivas distintas a respeito do modelo de funcionamento da vida social. Há, no entanto, uma forma mais insidiosa. Ela consiste em construir uma espécie de causa genérica capaz de responder por todos os males da sociedade. Qualquer problema que aparecer será sempre remetido à mesma causa, a ser repetida infinitamente como um mantra.
Isto é o que ocorre com o problema da corrupção no Brasil. Todos os males da vida nacional, da educação ao modelo de intervenção estatal, da saúde à escolha sobre a matriz energética, são creditados à corrupção. Dessa forma, não há mais debate político possível, pois o combate à corrupção é a senha para resolver tudo. Em consequência, a política brasileira ficou pobre.
Não se trata aqui de negar que a corrupção seja um problema grave na vida nacional. É, porém, impressionante como dessa discussão nunca se segue nada, nem sequer uma reflexão mais ampla sobre as disfuncionalidades estruturais do sistema político brasileiro, sobre as relações promíscuas entre os grandes conglomerados econômicos e o Estado ou sobre a inexistência da participação popular nas decisões sobre a configuração do poder Judiciário.
Por exemplo, se há algo próprio do Brasil é este espetáculo macabro onde os escândalos de corrupção conseguem, sempre, envolver oposição e governo.
O que nos deixa como espectadores desse jogo ridículo no qual um lado tenta jogar o escândalo nas costas do outro, isso quando certos setores da mídia nacional tomam partido e divulgam apenas os males de um dos lados. O chamado mensalão demonstra claramente tal lógica. O esquema de financiamento de campanha que quase derrubou o governo havia sido gestado pelo presidente do principal partido de oposição. Situação e oposição se aproveitaram dos mesmos caminhos escusos, com os mesmos operadores. Não consigo lembrar de nenhum país onde algo parecido tenha ocorrido.
Uma verdadeira indignação teria nos levado a uma profunda reforma política, com financiamento público de campanha, mecanismos para o barateamento dos embates eleitorais, criação de um cadastro de empresas corruptoras que nunca poderão voltar a prestar serviços para o Estado, fim do sigilo fiscal de todos os integrantes de primeiro e segundo escalão das administrações públicas e proibição do governo contratar agências de publicidade (principalmente para fazer campanhas de autopromoção). Nada disso sequer entrou na pauta da opinião pública. Não é de se admirar que todo ano um novo escândalo apareça.
Nas condições atuais, o sistema político brasileiro só funciona sob corrupção. Um deputado não se elege com menos de 5 milhões de reais, o que lhe deixa completamente vulnerável -para lutar pelos interesses escusos de financiadores potenciais de campanha. Isso também ajuda a explicar porque 39% dos parlamentares da atual legislatura declaram-se milionários. Juntos eles têm um patrimônio declarado de 1,454 bilhão de reais. Ou seja, acabamos por ser governados por uma plutocracia, pois só mesmo uma plutocracia poderia financiar campanhas.
Mas como sabemos de antemão que nenhum escândalo de corrupção chegará a colocar em questão as distorções do sistema político brasileiro, ficamos sem a possibilidade de discutir política no sentido forte do termo. Não há mais dis-cussões sobre aprofundamento da participação popular nos processos decisórios, constituição de uma democracia direta, o papel do Estado no desenvolvimento, sobre um modelo econômico realmente competitivo, não entregue aos oligopólios, ou sobre como queremos financiar um sistema de educação pública de qualidade e para todos. Em um momento no qual o Brasil ganha importância no cenário internacional, nossa contribuição para a reinvenção da política em uma era nebulosa no continente europeu e nos Estados Unidos é próxima de zero.
Tem-se a impressão de que a contribuição que poderíamos dar já foi dada (programas amplos de transferência de renda e reconstituição do mercado interno). Mesmo a luta contra a desigualdade nunca entrou realmente na pauta e, nesse sentido, nada temos a dizer, já que o Brasil continua a ser o paraíso das grandes fortunas e do consumo conspícuo. Sequer temos imposto sobre herança. Mas os próximos meses da política brasileira serão dominados pelo duodécimo escândalo no qual alguns políticos cairão para a imperfeição da nossa democracia continuar funcionando perfeitamente.

E se o golpe de 2005 tivesse dado certo?


Por Emir Sader

Um historiador inglês (Neill Ferguson, História virtual) se dedicou a pensar vias alternativas daquelas que triunfaram efetivamente na história realmente existente, como exercícios de pensamento sobre o que teria sido se não fosse. Por exemplo: e se a Alemanha de Hitler tivesse triunfado na Segunda Guerra? E se a URSS não tivesse desaparecido? E outras circunstâncias como essas.
No Brasil podemos pensar o que teria acontecido se várias tentativas de golpe militar – antes e depois da de 1964 – tivessem triunfado, o que teria acontecido com o Brasil. Um bom exercício também para entender o presente, quando as mesmas forças que protagonizaram essas tentativas no passado – as fracassadas e a vencedora de 1964 – se excitam de novo e, como toda força decadente, tratam de dar aos estertores da sua última tentativa, uma dimensão épica, que somente uma classe que não pode olhar para sua vergonhosa historia golpista, pode fazer. Juizes, jornalistas, políticos derrotados, usam os superlativos que suas pobres formas de expressão permitem, para falar “do julgamento do século”, do “maior caso de…”.
Pudessem assumir a história do Brasil como ela realmente ocorreu e ocorre, se dariam conta que o maior julgamento da nossa história teria sido o da ditadura militar – aventura da qual essas mesmas forças participaram ativamente -, que destruiu a democracia no país, violou todos os direitos humanos, em todos os planos – políticos, jurídicos, sociais, culturais, econômicos -, abriu as portas para o assalto do Estado e do pais às grandes corporações nacionais e internacionais, impôs a ditadura também no plano da liberdade de expressão, prendeu, torturou, assassinou, fez desaparecer, alguns dos melhores brasileiros.
Em suma, passar a limpo essa página odiosa da nossa história – que tem as impressões digitais dos mesmos órgãos de comunicação que lideraram a ofensiva golpista de 2005 – teria sido o maior julgamento da nossa história, onde seriam réus eles mesmos, junto à alta oficialidade das FFAA, grande parte dos empresários nacionais e internacionais, entre outros.
Podemos, por exemplo, especular o que teria sido o país se tivesse triunfado o golpe contra Getúlio, em 1954. Era um movimento similar ao que triunfou uma década depois, com origem na Doutrina de Segurança Nacional, típica ideologia da guerra fria. Na Argentina, por exemplo, a queda de Peron, um ano depois do suicídio do Getúlio, introduziu o tipo de militar “gorila” (a expressão nasceu na Argentina, com o golpe de 1955), que se generalizaria a partir do golpe brasileiro.
Na Argentina, com a proscrição do peronismo, Arturo Frondizi conseguiu se eleger presidente, mas nem ele, nem os presidentes ou ditadores que o sucederam – houve novo golpe em 1966, que também fracassou, como o de 1955 – conseguiram estabilizar-se, frente à oposiçao do peronismo, principalmente do seu ramo sindical, que tornou impossível a vida a todos os governos, até o retorno de Peron, em 1973.
No Brasil, um objetivo central do golpismo era evitar a continuidade do getulismo, expressada no JK, mas também no Jango. A famosa frase – suprassumo do golpismo – de Carlos Lacerda, de que “Juscelino não deveria ser candidato; se fosse, não deveria ganhar; se ganhasse, não deveria tomar posse; se tomasse posse, não deveria poder governar”, espelhava aquele objetivo.
Se Getulio nao tivesse apelado para o gesto radical do suicídio, para brecar a ofensiva golpista, o movimento de 1964 teria surgido uma década antes. Ao invés das eleições relativamente democrática de 1955, teríamos tido uma ditadura militar mais ou menos similar à de 1964. As consequências teriam sido ainda mais catastróficas, porque o sacrifício do Getúlio conquistou dez anos, que o movimento popular aproveitou para se fortalecer amplamente. Nessa década avançou não apenas a industrialização, mas também o movimento sindical e outros movimentos populares, assim como a consciência social na massa da população. Uma ditadura – ou algum regime duro, mesmo se recoberto de formas institucionais, mas que impedisse a continuidade do regime getulista – teria atuado sobre um movimento popular com muito menor capacidade de organização e de consciência social.
Na Argentina os militares tiveram que, em prazos mais ou menos curtos, convocar novas eleições, o fizeram depois de prescrever o peronismo, a grande força politica e ideológica, do campo popular argentino. No Brasil, teriam feito algo similar, castrando a democracia brasileira da vitalidade que os movimentos populares possuíam e imprimiam ao país.
De qualquer forma, grande parte dos retrocessos que a ditadura
impôs ao Brasil, teriam sido antecipados por um movimento de direita que tivesse se apropriado do Estado brasileiro em 1964. Nossa história seria ainda pior do que ela foi, a partir do golpe triunfante de 1964.
Outras tentativas golpistas existiram durante o governo do Juscelino, pelo menos duas de caráter militar – por membros da Aeronáutica -, de menor monta, mas as articulações golpistas nunca deixaram de existir, de tal maneira que os antecedentes do golpe de 1964 vem da fundação da Escola Superior de Guerra, por Golbery do Couto e Silva e Humberto Castelo Branco, vindos da guerra na Itália, sob influência e patrocínio diretos dos EUA, que desembocou finalmente no golpe vitorioso de 1964, que não por acaso teve nesses dois militares seus protagonistas fundamentais.
E se nos perguntarmos o que teria sido do Brasil se o movimento de um golpe branco contra o Lula – que poderia ter sido um impeachment ou uma derrota eleitoral em 2006 – tivesse triunfado?
Se nos recordamos que o candidato da direita era o neoliberal acabado que é Alckmin, podemos imaginar os descalabros a que teria sido submetido o país. (O que torna ainda mais absurda a posição da ultra esquerda, que se absteve ou pregou o voto nulo diante da alternativa Lula ou Alckmin.) Só para recordar uma circunstância concreta, quando Calderon triunfou no México, de forma evidentemente fraudulenta, nas eleições presidenciais de julho de 2006, Alckimin saudou-a como o caminho que o Brasil deveria seguir. (Ver artigo aqui na Carta Maior, comentando essa similitude assumida por Alckmin.)
Significaria, antes de tudo, a retomada de um Tratado de Livre Comércio com os EUA, ja que a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) tinha sido substituída por tratados bilaterais com países do continente, como o Chile, entre outros, pelos EUA, depois que o Brasil contribuiu decisivamente para enterrar a ideia de uma America Latina totalmente aderida ao livre comercio, subordinada completamente aos EUA.
Os processos de privatização que FHC não tinha conseguido completar, pela resistência do movimento popular brasileiro, seriam retomados, atingindo a Petrobras, o Banco do Brasil, a Caixa Economica, a Eletrobras, entre outras empresas sobreviventes do vendaval privatizando do governo dos tucanos.
Mas sem ir mais longe, bastaria imaginar o que teria sido o Brasil – e também a América Latina – se a crise internacional do capitalismo, iniciada em 2007 e ainda vigente, tivesse encontrado o Brasil tendo ao neoliberal duro e puro do Alckmin como presidente. Estaríamos ainda pior do que um país como a Espanha ou a Grécia ou Portugal. Estaríamos devastados pela recessão, pelo desemprego, pelos compromissos escorchantes do FMI.
Basta esse quadro realista do que estaríamos vivendo se o golpe de 2005 tivesse dado certo. O seu objetivo inicial era tentar impor uma derrota de longo prazo à esquerda, que teria fracassado, com Lula, seu principal dirigente, por um prazo longo, permitindo que as forças tradicionais da direita retomassem o controle do Estado brasileiro.
O julgamento que começa esta semana é, sobretudo, o julgamento de uma tentativa frustrada de golpe branco contra um governo popular e democrático, eleito pelo voto popular e legitimado pela reeleição do Lula e pela eleição da Dilma. O povo já disse sua palavra.

Emir  Sader é escritor, sociólogo, mestre em filosofia política e doutor em ciência política pela USP

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Cuba, a ilha da saúde

 
Doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos da Universidad Paris Sorbonne-Paris IV. Professor nas Universidades Paris-Sorbonne-Paris IV e Paris-Est Marne-la-Vallée. Jornalista, especialista sobre relaciones entre Cuba e Estados Unidos


Após a Revolução, a medicina virou prioridade e transformou a ilha em referência; hoje, Cuba concentra o maior número de médicos por habitante

Desde o triunfo da Revolução de 1959, o desenvolvimento da medicina tem sido a grande prioridade do governo cubano, o que transformou a ilha do Caribe em uma referência mundial neste campo. Atualmente, Cuba é o país que concentra o maior número de médicos por habitante.
Em 2012, Cuba formou mais 11 mil novos médicos, os quais completaram sua formação de seis anos em faculdades de medicina reconhecidas pela excelência no ensino. Trata-se da maior promoção médica da história do país, que tornou o desenvolvimento da medicina e o bem-estar social as prioridades nacionais. Entre esses médicos recém graduados, 5.315 são cubanos e 5.694 vêm de 59 países da América Latina, África, Ásia e até mesmo dos Estados Unidos, com maioria de bolivianos (2.400), nicaraguenses (429), peruanos (453), equatorianos (308), colombianos (175) e guatemaltecos (170). Em um ano, Cuba formou quase o dobro de médicos do total que dispunha em 1959. [1]
Após o triunfo da Revolução, Cuba contava somente com 6.286 médicos. Dentre eles, três mil decidiram deixar o país para ir para os Estados Unidos, atraídos pelas oportunidades profissionais que Washington oferecia. Em nome da guerra política e ideológica que se opunha ao novo governo de Fidel Castro, o governo Eisenhower decidiu esvaziar a nação de seu capital humano, até o ponto de criar uma grave crise sanitária. [2]
Como resposta, Cuba se comprometeu a investir de forma maciça na medicina. Universalizou o acesso ao ensino superior e estabeleceu a educação gratuita para todas as especialidades. Assim, existem hoje 24 faculdades de medicina (contra apenas uma em 1959) em treze das quinze províncias cubanas, e o país dispõe de mais de 43 mil professores de medicina. Desde 1959, se formaram cerca de 109 mil médicos em Cuba. [3] Com uma relação de um médico para 148 habitantes (67,2 médicos para 10 mil habitantes ou 78.622, no total), segundo a Organização Mundial da Saúde, Cuba é a nação mais bem dotada neste setor. O país dispõe de 161 hospitais e 452 clínicas. [4]
No ano universitário 2011-2012, o número total de graduados em Ciências Médicas, que inclui 21 perfis profissionais (médicos, dentistas, enfermeiros, psicólogos, tecnologia da saúde etc.), sobe para 32.171, entre cubanos e estrangeiros. [5]

Sede da Escola Latino-Americana de Medicina em Havana. Wikimedia Commons

A ELAM

Além dos cursos disponíveis nas 24 faculdades de medicina do país, Cuba forma estudantes estrangeiros na Elam (Escola Latino-Americana de Medicina de Havana). Em 1998, depois que o furacão Mitch atingiu a América Central e o Caribe, Fidel Castro decidiu criar a Elam – inaugurada em 15 de novembro de 1999 – com o intuito de formar em Cuba os futuros médicos do mundo subdesenvolvido.
"Formar médicos prontos para ir onde eles são mais necessários e permanecer quanto tempo for necessário, esta é a razão de ser da nossa escola desde a sua fundação”, explica a doutora Miladys Castilla, vice-reitora da Elam. [6] Atualmente, 24 mil estudantes de 116 países da América Latina, África, Ásia, Oceania e Estados Unidos (500 por turma) cursam uma faculdade de medicina gratuita em Cuba. Entre a primeira turma de 2005 e 2010, 8.594 jovens doutores saíram da Elam. [7] As formaturas de 2011 e 2012 foram excepcionais com cerca de oito mil graduados. No total, cerca de 15 mil médicos se formaram na Elam em 25 especialidades distintas. [8]
A Organização Mundial da Saúde prestou uma homenagem ao trabalho da Elam: "A Escola Latino-Americana de Medicina acolhe jovens entusiasmados dos países em desenvolvimento, que retornam para casa como médicos formados. É uma questão de promover a equidade sanitária (…). A Elam (…) assumiu a premissa da "responsabilidade social”. A Organização Mundial da Saúde define a responsabilidade social das faculdades de medicina como o dever de conduzir suas atividades de formação, investigação e serviços para suprir as necessidades prioritárias de saúde da comunidade, região ou país ao qual devem servir.
A finalidade da Elam é formar médicos principalmente para fornecer serviço público em comunidades urbanas e rurais desfavorecidas, por meio da aquisição de competências em atendimento primário integral, que vão desde a promoção da saúde até o tratamento e a reabilitação. Em troca do compromisso não obrigatório de atender regiões carentes, os estudantes recebem bolsa integral e uma pequena remuneração, e assim, ao se formar, não têm dívidas com a instituição.
[No que diz respeito ao processo seletivo], é dada preferência aos candidatos de baixa renda, que de outra forma não poderiam pagar os estudos médicos. "Como resultado, 75% dos estudantes provêm de comunidades que precisam de médicos, incluindo uma ampla variedade de minorias étnicas e povos indígenas”.
Os novos médicos trabalham na maioria dos países americanos, incluindo os Estados Unidos, vários países africanos e grande parte do Caribe de língua inglesa.
Faculdades como a Elam propõem um desafio no setor da educação médica do mundo todo para que adote um maior compromisso social. Como afirmou Charles Boelen, ex-coordenador do programa de Recursos Humanos para a Saúde da OMS: "A ideia da responsabilidade social merece atenção no mundo todo, inclusive nos círculos médicos tradicionais... O mundo precisa urgentemente de pessoas comprometidas que criem os novos paradigmas da educação médica”. [9]

A solidariedade internacional

No âmbito dos programas de colaboração internacional, Cuba também forma, por ano, cerca de 29 mil estudantes estrangeiros em ciências médicas, em três especialidades: medicina, enfermagem e tecnologia da saúde, em oito países (Venezuela, Bolívia, Angola, Tanzânia, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Timor Leste). [10]
Desde 1963 e o envio da primeira missão médica humanitária a Argélia, Cuba se comprometeu a curar as populações pobres do planeta, em nome da solidariedade internacional e dos sete princípios da medicina cubana (equidade, generosidade, solidariedade, acessibilidade, universalidade, responsabilidade e justiça). [11] As missões humanitárias cubanas abrangem quatro continentes e têm um caráter único. De fato, nenhuma outra nação do mundo, nem mesmo as mais desenvolvidas, teceram semelhante rede de cooperação humanitária ao redor do planeta. Desde o seu lançamento, cerca de 132 mil médicos e outros profissionais da saúde trabalharam voluntariamente em 102 países. [12] No total, os médicos cubanos curaram 85 milhões de pessoas e salvaram 615 mil vidas. [13] Atualmente, 31 mil colaboradores médicos oferecem seus serviços em 69 nações do Terceiro Mundo. [14]
Segundo o Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), "um dos exemplos mais bem sucedidos da cooperação cubana com o Terceiro Mundo é o Programa Integral de Saúde para América Central, Caribe e África”. [15]
Nos termos da Alba (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América), Cuba e Venezuela decidiram lançar em julho de 2004 uma ampla campanha humanitária continental com o nome de Operação Milagre. Consiste em operar gratuitamente latino-americanos pobres, vítimas de cataratas e outras doenças oftalmológicas, que não tenham possibilidade de pagar por uma operação que custa entre cinco e dez mil dólares. Esta missão humanitária se disseminou por outras regiões (África e Ásia). A Operação Milagre possui 49 centros oftalmológicos em 15 países da América Central e do Caribe. [16] Em 2011, mais de dois milhões de pessoas de 35 países recuperaram a visão. [17]

A medicina de catástrofe

No que se refere à medicina de catástrofe, o Centro para a Política Internacional de Washington, dirigido por Wayne S. Smith, ex-embaixador dos Estados Unidos em Cuba, afirma em um relatório que "não há dúvida quanto à eficiência do sistema cubano. Apenas alguns cubanos perderam a vida nos 16 maiores furacões que atingiram a ilha na última década e a probabilidade de perder a vida em um furacão nos Estados Unidos é 15 vezes maior do que em Cuba”. [18]
O relatório acrescenta que: "ao contrário dos Estados Unidos, a medicina de catástrofe em Cuba é parte integrante do currículo médico e a educação da população sobre como agir começa na escola primária […]. Até mesmo as crianças menores participam dos exercícios e aprendem os primeiros socorros e técnicas de sobrevivência, muitas vezes através de desenhos animados e, ainda, como plantar ervas medicinais e encontrar alimento em caso de desastre natural. O resultado é a assimilação de uma forte cultura de prevenção e de uma preparação sem igual”. [19]

Alto IDH

Esse investimento no campo da saúde (10% do orçamento nacional) permitiu que Cuba alcançasse resultados excepcionais. Graças à sua medicina preventiva, a ilha do Caribe tem a taxa de mortalidade infantil mais baixa da América e do Terceiro Mundo – 4,9 por mil (contra 60 por mil em 1959) – inferior a do Canadá e dos Estados Unidos. Da mesma forma, a expectativa de vida dos cubanos – 78,8 anos (contra 60 anos em 1959) – é comparável a das nações mais desenvolvidas. [20]
As principais instituições internacionais elogiam esse desenvolvimento humano e social. O Fundo de População das Nações Unidas observa que Cuba, "há mais de meio século, adotou programas sociais muito avançados, que possibilitaram ao país alcançar indicadores sociais e demográficos comparáveis aos dos países desenvolvidos”. O Fundo acrescenta que "Cuba é uma prova de que as restrições das economias em desenvolvimento não são necessariamente um obstáculo intransponível ao progresso da saúde, à mudança demográfica e ao bem-estar”. [21]
Cuba continua sendo uma referência mundial no campo da saúde, especialmente para as nações do Terceiro Mundo. Mostra que é possível atingir um alto nível de desenvolvimento social, apesar dos recursos limitados e de um estado de sítio econômico extremamente grave, imposto pelos Estados Unidos desde 1960, que situe o ser humano no centro do projeto de sociedade.

Referências bibliográficas:

[1] José A. de la Osa, "Egresa 11 mil médicos de Universidades cubanas”, Granma, 11 de julho de 2012.
[2] Elizabeth Newhouse, "Disaster Medicine: U.S. Doctors Examine Cuba’s Approach”, Center for International Policy, 9 de julho de 2012. http://www.ciponline.org/research/html/disaster-medicine-us-doctors-examine-cubas-approach (site consultado em 18 de julho de 2012).
[3] José A. de la Osa, "Egresa 11 mil médicos de Universidades cubanas”, op. cit.; Ministério das Relações Exteriores, "Graduados por la Revolución más de 100.000 médicos”, 16 de julho de 2009. http://www.cubaminrex.cu/MirarCuba/Articulos/Sociedad/2009/Graduados.html (site consultado em 18 de julho de 2012).
[4] Organização Mundial da Saúde, "Cuba: Health Profile”, 2010. http://www.who.int/gho/countries/cub.pdf (site consultado em 18 de julho de 2012); Elizabeth Newhouse, "Disaster Medicine: U.S. Doctors Examine Cuba’s Approach”, op. cit.
[5] José A. de la Osa, « Egresa 11 mil médicos de Universidades cubanas », op.cit.
[6] Organização Mundial da Saúde, "Cuba ayuda a formar más médicos”, 1º de maio de 2010. http://www.who.int/bulletin/volumes/88/5/10-010510/es/ (site consultado em 18 de julho de 2012).
[7] Escola Latino-Americana de Medicina de Cuba, "Historia de la ELAM”.
http://www.sld.cu/sitios/elam/verpost.php?blog=http://articulos.sld.cu/elam&post_id=22&c=4426&tipo=2&idblog=156&p=1&n=ddn (site consultado em 18 de julho de 2012).
[8] Agência Cubana de Notícias, "Over 15,000 Foreign Physicians Gratuated in Cuba in Seven Years”, 14 de julho de 2012.
[9] OMS, "Cuba ayuda a formar más médicos”, op. cit.
[10] José A. de la Osa, "Egresa 11 mil médicos de Universidades cubanas”, op. cit.
[11] Ladys Marlene León Corrales, "Valor social de la Misión Milagro en el contexto venezolano”, Biblioteca Virtual en Salud de Cuba, março de 2009.
http://bvs.sld.cu/revistas/spu/vol35_4_09/spu06409.htm (site consultado em 18 de julho de 2012).
[12] Felipe Pérez Roque, "Discurso del canciller de Cuba en la ONU”, Bohemia Digital, 9 de novembro de 2006.
[13] CSC News, "Medical Brigades Have Treated 85 million”, 4 de abril de 2008.
http://www.cuba-solidarity.org.uk/news.asp?ItemID=1288 (site consultado em 18 de julho de 2012).
[14] Felipe Pérez Roque, "Discurso del canciller de Cuba en la ONU”, op. cit.
[15] PNUD, Investigación sobre ciencia, tecnología y desarrollo humano en Cuba, 2003, p.117-119. http://www.undp.org.cu/idh%20cuba/cap6.pdf (site consultado em 18 de julho de 2012).
[16] Ministério das Relações Exteriores, "Celebra Operación Milagro cubana en Guatemala”, República de Cuba, 15 de novembro de 2010.
http://www.cubaminrex.cu/Cooperacion/2010/celebra1.html (site consultado em 18 de julho de 2012) Operación Milagro, "¿Qué es la Operación Milagro?”. http://www.operacionmilagro.org.ar/ (site consultado em 18 de julho de 2012).
[17] Operación Milagro, «¿Qué es la Operación Milagro?», op. cit.
[18] Elizabeth Newhouse, "Disaster Medicine: U.S. Doctors Examine Cuba’s Approach”, op. cit.
[19] Ibid.
[20] Ibid.
[21] Raquel Marrero Yanes, "Cuba muestra indicadores sociales y demográficos de países desarrollados”, Granma, 12 de julho de 2012.
[Doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos pela Universidade Paris Sorbonne-Paris IV, Salim Lamrani é professor encarregado de cursos na Universidade Paris-Sorbonne-Paris IV e na Universidade Paris-Est Marne-la-Vallée e jornalista, especialista nas relações entre Cuba e Estados Unidos. Seu libro mais recente é "Etat de siège. Les sanctions économiques des Etats-Unis contre Cuba” ("Estado de sítio. As sanções econômicas dos Estados Unidos contra Cuba”, em tradução livre), Paris, Edições Estrella, 2011, com prólogo de Wayne S. Smith e prefácio de Paul Estrade. Contato: Salim.Lamrani@univ-mlv.fr /Página no Facebook: https://www.facebook.com/SalimLamraniOfficiel
Fonte: Opera Mundi]