John McLaughlin - guitarras
Francois Jeanneau - saxofones
Augustin Dumay - violino
Katia LaBeque - piano, sintetizadores
Francois Couturier - piano, sintetizadores
Jean Paul Celea - baixo
Tommy Campell - bateria
Jean Pierre Drouet - percussão
Steve Sheman - percussão
Paco DeLucia - guitarra (8)
1. Belo Horizonte - (4:26)
2. La Baleine - (5:54)
3. Very Early (Homage to Bill Evans) - (1:10)
4. One Melody - (6:25)
5. Stardust on Your Sleeve - (5:59)
6. Waltz for Katia - (4:26)
7. Zamfir - (5:43)
8. Manitas D'Oro (for Paco DeLucia) - (4:11)
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Um blog de informações culturais, políticas e sociais, fazendo o contra ponto à mídia de esgoto.
terça-feira, 2 de outubro de 2012
segunda-feira, 1 de outubro de 2012
Karl Marx manda lembranças
Por César Benjamin no GRABOIS
As
economias modernas criaram um novo conceito de riqueza. Não se trata
mais de dispor de valores de uso, mas de ampliar abstrações numéricas.
Busca-se obter mais quantidade do mesmo, indefinidamente. A isso os
economistas chamam "comportamento racional". Dizem coisas complicadas,
pois a defesa de uma estupidez exige alguma sofisticação.
Quem refletiu mais profundamente sobre essa grande transformação foi
Karl Marx. Em meados do século 19, ele destacou três tendências da
sociedade que então desabrochava: (a) ela seria compelida a aumentar
incessantemente a massa de mercadorias, fosse pela maior capacidade de
produzi-las, fosse pela transformação de mais bens, materiais ou
simbólicos, em mercadoria; no limite, tudo seria transformado em
mercadoria; (b) ela seria compelida a ampliar o espaço geográfico
inserido no circuito mercantil, de modo que mais riquezas e mais
populações dele participassem; no limite, esse espaço seria todo o
planeta; (c) ela seria compelida a inventar sempre novos bens e novas
necessidades; como as "necessidades do estômago" são poucas, esses novos
bens e necessidades seriam, cada vez mais, bens e necessidades voltados
à fantasia, que é ilimitada. Para aumentar a potência produtiva e
expandir o espaço da acumulação, essa sociedade realizaria uma revolução
técnica incessante. Para incluir o máximo de populações no processo
mercantil, formaria um sistema-mundo. Para criar o homem portador
daquelas novas necessidades em expansão, alteraria profundamente a
cultura e as formas de sociabilidade. Nenhum obstáculo externo a
deteria.
Havia, porém, obstáculos internos, que seriam, sucessivamente,
superados e repostos. Pois, para valorizar-se, o capital precisa
abandonar a sua forma preferencial, de riqueza abstrata, e passar pela
produção, organizando o trabalho e encarnando-se transitoriamente em
coisas e valores de uso. Só assim pode ressurgir ampliado, fechando o
circuito. É um processo demorado e cheio de riscos. Muito melhor é
acumular capital sem retirá-lo da condição de riqueza abstrata, fazendo o
próprio dinheiro render mais dinheiro. Marx denominou D - D" essa forma
de acumulação e viu que ela teria peso crescente. À medida que passasse
a predominar, a instabilidade seria maior, pois a valorização sem
trabalho é fictícia. E o potencial civilizatório do sistema começaria a
esgotar-se: ao repudiar o trabalho e a atividade produtiva, ao
afastar-se do mundo-da-vida, o impulso à acumulação não mais seria um
agente organizador da sociedade.
Se não conseguisse se libertar dessa engrenagem, a humanidade correria
sérios riscos, pois sua potência técnica estaria muito mais
desenvolvida, mas desconectada de fins humanos. Dependendo de quais
forças sociais predominassem, essa potência técnica expandida poderia
ser colocada a serviço da civilização (abolindo-se os trabalhos
cansativos, mecânicos e alienados, difundindo-se as atividades da
cultura e do espírito) ou da barbárie (com o desemprego e a
intensificação de conflitos). Maior o poder criativo, maior o poder
destrutivo.
O que estamos vendo não é erro nem acidente. Ao vencer os adversários, o
sistema pôde buscar a sua forma mais pura, mais plena e mais essencial,
com ampla predominância da acumulação D - D". Abandonou as mediações de
que necessitava no período anterior, quando contestações, internas e
externas, o amarravam. Libertou-se. Floresceu. Os resultados estão aí.
Mais uma vez, os Estados tentarão salvar o capitalismo da ação
predatória dos capitalistas. Karl Marx manda lembranças.
* César Benjamin, 53, é editor da Editora Contraponto e doutor honoris
causa da Universidade Bicentenária de Aragua (Venezuela), é autor de
"Bom Combate" (Contraponto, 2006)
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Morre o historiador marxista Eric Hobsbawm aos 95 anos
Um dos principais intelectuais do século XX, sua obra é reconhecida mundialmente
Agência Efe (28/01/20018)
O historiador, Eric Hobsbawm, desenvolveu pesquisas e estudos até os 94 anos, sendo responsável por extensa análise dos séculos XIX e XX e suas principais transformações
Um dos maiores historiadores do século XX e respeitado marxista, Eric Hobsbawm faleceu nesta segunda-feira (01/10) em Londres, aos 95 anos, segundo um comunicado de sua família divulgado em jornais britânicos. O estudioso deixou um amplo legado de pesquisas e análises sobre a história do mundo moderno a partir do viés marxista.
O intelectual estava internado no hospital Royal Free e não resistiu a uma pneumonia. Sua filha, Julia Hobsbawm, informou que o historiador estava passando por um longo período de doenças, mas não deu outros detalhes sobre seu quadro de saúde.
"Ele fará falta não apenas para sua esposa há 50 anos, Marlene, e seus três filhos, sete netos e um bisneto, mas também por seus milhares de leitores e estudantes ao redor do mundo", acrescentaram seus familiares em comunicado.
O historiador, Eric Hobsbawm, desenvolveu pesquisas e estudos até os 94 anos, sendo responsável por extensa análise dos séculos XIX e XX e suas principais transformações
Um dos maiores historiadores do século XX e respeitado marxista, Eric Hobsbawm faleceu nesta segunda-feira (01/10) em Londres, aos 95 anos, segundo um comunicado de sua família divulgado em jornais britânicos. O estudioso deixou um amplo legado de pesquisas e análises sobre a história do mundo moderno a partir do viés marxista.
O intelectual estava internado no hospital Royal Free e não resistiu a uma pneumonia. Sua filha, Julia Hobsbawm, informou que o historiador estava passando por um longo período de doenças, mas não deu outros detalhes sobre seu quadro de saúde.
"Ele fará falta não apenas para sua esposa há 50 anos, Marlene, e seus três filhos, sete netos e um bisneto, mas também por seus milhares de leitores e estudantes ao redor do mundo", acrescentaram seus familiares em comunicado.
Responsável por obra de quatro volumes sobre a história contemporânea,
Hobsbawm é considerado um dos principais historiadores dos séculos XIX e
XX. Seus estudos abrangem de 1789, data da revolução francesa, a 1991
com a queda da União Soviética e enfatizam, sobretudo, as transformações
políticas e sociais do mundo por meio de seus principais marcos
históricos.
O imperialismo das potencias sobre os continentes asiático e africano, a revolução russa e o estabelecimento dos regimes burgueses na Europa também foram objetos de estudo do marxista.
Para o historiador Niall Ferguson, os livros “A Era da Revolução” (1789 – 1848), a “Era do Capital” (1848 – 1875), “A Era dos Impérios” (1875 – 1914) e “A Era dos Extremos (1914 – 1991) são “o melhor ponto inicial para qualquer pessoa que deseje começar a estudar a história moderna”.
O trabalho de Hobsbawm, no entanto, não se limitou a essa série de estudos e a idade parece não ter impedido o historiador de continuar com suas pesquisas e análises. Tendo em vista recentes acontecimentos mundiais como os atentados terroristas do 11 de setembro e a guerra dos Estados Unidos “contra o terror”, Hobsbawm publicou “Globalização, Democracia e Terrorismo” em 2007, uma compilação de palestras e conferências.
Em 2011, aos 94 anos, o historiador fez sua ultima contribuição e análise aos estudos do pensamento e da história marxista com o livro “Como mudar o mundo”. Prefácios, artigos, conferências e ensaios reunidos na obra explicitam a preocupação central do historiador em refletir sobre as transformações e nesse caso, sobre uma teoria que alicerça a revolução.
Hobsbawm também se encontrou no ano passado com o ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e opinou sobre a situação política brasileira. “Lula ajudou a mudar o equilíbrio do mundo ao trazer os países em desenvolvimento para o centro das coisas", opinou o historiador.
O historiador, de origem judaica, nasceu no ano de 1917 em Alexandria, no Egito, mas cresceu em Viena, capital austríaca, e em Berlim, capital alemã. Junto de sua família, se mudou para Londres em 1933 quando Hitler chegou ao poder na Alemanha. Hobsbawm desenvolveu seus estudos no King’s College, na capital britânica, e em Cambridge. Em 1947, começou a lecionar na Universidade de Birbeck, onde, anos depois, acabou por se tornar o reitor.
O posicionamento político de Hobsbawm era público e muito conhecido, pois, em plena Guerra Fria, ele se afiliou ao Partido Comunista britânico. O historiador disse, anos depois, que “nunca tentou diminuir as coisas que aconteceram na Rússia”, informou o jornal britânico Guardian.
“Mas, acreditava que um novo mundo estava nascendo em meio a sangue, lagrimas e horror: revolução, guerra civil e fome. Por conta do colapso do Ocidente, nós tínhamos a ilusão de que mesmo que brutal, o sistema funcionaria melhor do que o ocidental. Era isso ou nada”, contou o historiador.
O imperialismo das potencias sobre os continentes asiático e africano, a revolução russa e o estabelecimento dos regimes burgueses na Europa também foram objetos de estudo do marxista.
Para o historiador Niall Ferguson, os livros “A Era da Revolução” (1789 – 1848), a “Era do Capital” (1848 – 1875), “A Era dos Impérios” (1875 – 1914) e “A Era dos Extremos (1914 – 1991) são “o melhor ponto inicial para qualquer pessoa que deseje começar a estudar a história moderna”.
O trabalho de Hobsbawm, no entanto, não se limitou a essa série de estudos e a idade parece não ter impedido o historiador de continuar com suas pesquisas e análises. Tendo em vista recentes acontecimentos mundiais como os atentados terroristas do 11 de setembro e a guerra dos Estados Unidos “contra o terror”, Hobsbawm publicou “Globalização, Democracia e Terrorismo” em 2007, uma compilação de palestras e conferências.
Em 2011, aos 94 anos, o historiador fez sua ultima contribuição e análise aos estudos do pensamento e da história marxista com o livro “Como mudar o mundo”. Prefácios, artigos, conferências e ensaios reunidos na obra explicitam a preocupação central do historiador em refletir sobre as transformações e nesse caso, sobre uma teoria que alicerça a revolução.
Hobsbawm também se encontrou no ano passado com o ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, e opinou sobre a situação política brasileira. “Lula ajudou a mudar o equilíbrio do mundo ao trazer os países em desenvolvimento para o centro das coisas", opinou o historiador.
O historiador, de origem judaica, nasceu no ano de 1917 em Alexandria, no Egito, mas cresceu em Viena, capital austríaca, e em Berlim, capital alemã. Junto de sua família, se mudou para Londres em 1933 quando Hitler chegou ao poder na Alemanha. Hobsbawm desenvolveu seus estudos no King’s College, na capital britânica, e em Cambridge. Em 1947, começou a lecionar na Universidade de Birbeck, onde, anos depois, acabou por se tornar o reitor.
O posicionamento político de Hobsbawm era público e muito conhecido, pois, em plena Guerra Fria, ele se afiliou ao Partido Comunista britânico. O historiador disse, anos depois, que “nunca tentou diminuir as coisas que aconteceram na Rússia”, informou o jornal britânico Guardian.
“Mas, acreditava que um novo mundo estava nascendo em meio a sangue, lagrimas e horror: revolução, guerra civil e fome. Por conta do colapso do Ocidente, nós tínhamos a ilusão de que mesmo que brutal, o sistema funcionaria melhor do que o ocidental. Era isso ou nada”, contou o historiador.
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domingo, 30 de setembro de 2012
“Fui usada para espalhar o medo”, afirma a ex-pantera negra Angela Davis
Em entrevista, Davis analisa o período em que foi
presa e julgada nos Estados Unidos em um processo eminentemente
político que teve grande repercussão internacional
Luciano Monteagudo,
Traduzido pelo Coletivo Vila Vudu
Angela Davis, quando militava no Panteras Negras - Foto: Reprodução |
40
anos depois das graves acusações que a levaram a ser julgada e presa
nos Estados Unidos, em processo eminentemente político que teve grande
repercussão internacional, Angela Davis analisa nesta entrevista aquela
etapa difícil de sua vida. Ao referir-se à atual situação dos negros nos
EUA, Angela diz que “as coisas são piores, hoje, com um negro na Casa
Branca”.
“Acho que meus princípios não mudaram em
todos esses anos. Nem meu compromisso político.” É o que diz Angela
Davis, uma das mais famosas ativistas políticas dos anos 1960 e 1970,
figura icônica, não só pelo discurso fortemente revolucionário e pela
destacada militância nos “Panteras Negras”, mas também pelo penteado
‘afro’ que fez moda em todo o planeta entre as mulheres negras e
brancas.
Hoje, com 68 anos, intelectual e
professora universitária, formada na Universidade de Frankfurt onde
estudou sob orientação de Herbert Marcuse, Angela Davis participou do
Festival Internacional de Cinema de Toronto [Toronto International Film
Festival], no dia 15 de setembro, para apoiar o lançamento do
documentário Free Angela & All Political Prisoners [Liberdade para Angela & Todos os Prisioneiros Políticos].
Dirigida
por Shola Lynch, o filme narra os padecimentos de Davis há 42 anos,
quando foi envolvida pelo FBI no sequestro e morte do juiz Harold Haley,
do condado de Marin, na California. Angela acabou por ser absolvida,
apesar da pressão que fez contra ela o governador da California, Ronald
Reagan, o qual, em 1969, conseguira expulsá-la da Universidade da
California (UCLA) pela declarada militância de Davis no Partido
Comunista.
Foragida da Justiça, na qual
evidentemente não confiava, Angela Davis chegou a integrar, aos 24 anos,
a lista dos 10 foragidos mais procurados do FBI, até afinal ser
localizada e presa, em outubro de 1970. Cresceu então uma campanha
internacional por sua libertação, que contou com
a solidariedade até de John Lennon e Yoko Ono, que compuseram a canção
“Angela” para seu LP Some Time in New York City (1972) , e dos Rolling Stones, que gravaram um single, “Sweet Black Angel”, incluído em seguida no álbum Exile on Main Street (1972).
“Nunca
procurei esse grau de exposição pública e foi muito difícil de aceitar,
naquela época” – lembra Miss Davis em entrevista exclusiva ao jornal Página/12,
numa suíte do Soho Metrotel de Toronto. “Minha aproximação original foi
estritamente política, e nem nos meus sonhos mais loucos pensei que
seria empurrada nessa direção. Mas, ao mesmo tempo, fui consciente de
que era algo com que teria de aprender a conviver. Portanto, decidi
tratar de usar aquilo tudo, nem tanto em meu nome, mas em nome de tanta
gente que não tinha voz naquele momento.”
A senhora refere-se a seus companheiros de militância nos Panteras Negras?
Exatamente.
Porque a campanha nacional pela minha libertação começou sob a bandeira
de “Libertem Angela Davis”, mas decidi que teria de ser “Libertem
Angela Davis e todos os presos políticos” – a frase que Shola Lynch
escolheu para título do seu documentário.
No
filme, a senhora diz que a tripla pena de morte que os promotores
pediram, no seu caso, não se dirigia pessoalmente à senhora, mas a toda a
construção que a senhora encarnava. Pode falar um pouco mais sobre
isso?
Logo percebi que todo aquela fúria
contra mim excedia minha pessoa e a minha situação pessoal. Em primeiro
lugar, porque não conseguiriam me executar três vezes. Percebi também
do que se tratava ali. Estavam decididos a matar um inimigo imaginário
que estava sendo construído. E eu era a encarnação perfeita do inimigo
que eles começavam a construir: negra, mulher e comunista. Quando o FBI
começou a me perseguir, aproveitaram prender centenas de mulheres negras
e jovens como eu. Aproveitaram a situação para tentar espalhar o medo
em toda a comunidade negra nos EUA.
Desde então, o que mudou?
Acho
que muitas coisas mudaram. E penso que mudaram, em grande medida, por
causa da luta que fizemos. Quando cheguei à universidade, eram
raríssimas as negras em cursos superiores nos EUA. Hoje, são milhões,
embora ainda haja enorme desproporção entre negros e brancos nos cursos
superiores. Hoje o que me angustia muito é que, naquele tempo, quando
lutávamos pela libertação de todos os presos políticos em especial e
contra a instituição carceral em geral, surpreendeu-nos muito a
quantidade de gente presa nos EUA. Mas hoje, esse número é muitas vezes
maior. Hoje, em meu país, há 2,5 milhões de pessoas encarceradas. Um, de
cada 37 adultos vive no sistema penitenciário. É porcentagem altíssima.
Os EUA somos o país de maior população encarcerada no mundo.
E a que a senhora atribui isso?
Há
a miséria, sem dúvida. A maioria dos homens negros jovens nos EUA estão
hoje desempregados. Há aí o problema político, mas há também o racismo.
É verdade que os livros escolares já não manifestam abertamente o
racismo, como antes, e que já não há segregação racial oficial, mas em
muitos sentidos a situação é hoje pior que antes, há meio século.
Angela Davis, atualmente - Foto: Reprodução |
Apesar do presidente afroamericano, Barack Obama?
Sim,
é triste dizer, mas as coisas são piores com um presidente
afroamericano na Casa Branca. Essa é a ironia. Porque há meio século era
impensável que um negro chegasse, algum dia à presidência dos EUA.
Hoje, é possível. Mas também é preciso dizer que ninguém, na Casa
Branca, hoje, está preocupado com o fato de que há um milhão de negros
nas prisões norte-americanas. E isso tem relação direta com o
desmantelamento completo do sistema de bem-estar social e com a
desindustrialização pela qual os EUA estão passando, e a consequente
perda de postos de trabalho. Antes, a população negra tinha onde
trabalhar, na indústria siderúrgica, na indústria automobilística, em
tantas outras indústrias que já deixaram os EUA e mudaram-se para outros
países onde a mão de obra é muito mais barata. Eu nasci e fui criada em
Birmingham, Alabama, e ali a indústria siderúrgica era era a principal
fonte de trabalho. Ainda é, mas com muito menos postos de trabalho que
antes. E se se soma a isso a falta de assistência social, a falta de
educação, a falta de sistema eficiente de assistência pública à saúde,
as prisões viram uma espécie de solução ao avesso, para todos os
problemas sociais que não recebem qualquer atenção política.
Já que falamos de prisões... Por que, na sua avaliação, Obama não cumpriu a promessa de fechar a prisão de Guantánamo?
Deveria
tê-la fechado no primeiro momento. Deveria ter sido seu primeiro ato
oficial. Em vários sentidos, a chamada “guerra ao terrorismo” atropelou
Obama. Mas também é verdade que a principal razão pela qual Obama não
fechou Guantánamo foi que não saímos às ruas para exigir que fechasse.
Em várias instâncias, os eleitores que elegeram Obama não se mantiveram
mobilizados e em alerta. Teria sido preciso criar um movimento para
fechar Guantánamo, um movimento que pressionasse, até Guantánamo ser
fechada. Também para criar melhor sistema de saúde pública, de educação
etc. São coisas que ainda temos de fazer.
Para as próximas eleições?
Claro.
Já. Imediatamente. Temos de sair e ocupar os espaços, construir para
nós uma dimensão do que é necessário e possível fazer.
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[Eleições Municipais] A desconstrução política
Frei Betto
Escritor e assessor de movimentos sociais
Adital
A atual campanha eleitoral às prefeituras tem muito de
temperamental. No início, candidatos majoritários prometiam evitar baixarias e
se pautar pelos compromissos elencados nos programas partidários. Seria uma
campanha de "alto nível” disseram alguns, até porque representam partidos que
convergem no apoio ao governo Dilma.
Assim, nos primeiros debates no rádio e na TV cada candidato
se esforçava para convencer o eleitor de que, caso mereça ser eleito, a nova
administração municipal (ainda que de um candidato à reeleição) será melhor que
a anterior. Haverá avanços no atendimento à saúde, na qualidade da escola
pública, no transporte coletivo, na coleta de lixo etc. Gerenciar bem a cidade
é o que importa.
Então surgiram as pesquisas – o fantasma estatístico que,
como espada de Dâmocles, paira sobre a cabeça de cada concorrente ao pleito. A
pesquisa indica a chance de vitória de cada aspirante a futuro prefeito. Uma
outra pesquisa aponta ao candidato como o público reage a seus programas no
rádio e na TV.
Ora, o público televisivo-internáutico do Brasil não merece
aplausos em matéria de preferência. Gosta de baixaria real (Big Brother) ou
virtual (novelas). Nada que faça pensar e ter opções próprias. E programa de
governo faz pensar e exige um mínimo de discernimento crítico.
O que dá ibope é a relação conflituosa entre Carminha e
Nina, e não entre a máfia da especulação imobiliária e os sem-teto e os que
vivem de aluguel.
Assim, candidatos com índices insuficientes de preferência
eleitoral, e também aqueles que, à frente no páreo, se sentem ameaçados pelos
concorrentes tendem, na reta final da campanha, a esquecer as promessas
administrativas e partir para a agressão verbal. Qual mágicos de um circo de
terror, tiram da cartola todas as acusações, mazelas e maracutaias que possam
afetar os adversários.
O mais curioso é que, na falta de reforma política (sempre
prometida e adiada), os eleitores assistem à uma esdrúxula panaceia. Aliados de
ontem são inimigos de hoje nas eleições municipais. Ontem, beijos; hoje, tapas.
Ocorre que, com raras exceções, acusadores e acusados na
esfera municipal são, ainda hoje, aliados na esfera federal. O que revela uma
política cada vez mais despolitizada, desideologizada, atrelada à mera fome de
poder.
Como não há almoço de graça nem barraco sem roupa suja a ser
lavada, os efeitos dessa nefasta maneira de fazer política serão sentidos nas
próximas eleições para governadores e presidente da República, em 2014.
As fissuras no edifício da base aliada do governo federal já
começam a aparecer. PT e PSB andam se estranhando. O PMDB, por enquanto, fica
que nem bala de coco em boca de banguela. Mas pode, em breve, querer se livrar da
síndrome de linha auxiliar e, como glutão de votos, ocupar a posição central de
principal protagonista.
Toda a questão de fundo dessa conjuntura reside na cultura
(a)política que respiramos nesse clima de neoliberalismo. Nenhum candidato
questiona o sistema em que vivemos. Já não se fala em aproveitar o período
eleitoral para "conscientizar e organizar a classe trabalhadora”. Tudo se
resume, como nas eleições presidenciais nos EUA, a criar impactos emotivos para
tirar o eleitor do marasmo e do desencanto. E os recursos mais utilizados são o
"retrato de família” (vejam como sou feliz com minha esposa e filhos) e o medo:
do desemprego, da crise financeira, do terrorismo, da perda de direitos civis.
Estamos todos sendo progressivamente domesticados pela mídia
controlada pelo grande capital, de modo a trocar liberdade por segurança,
opinião própria por consenso, espírito crítico por venerável anuência à palavra
do líder. Corremos o risco de ter, no futuro, uma sociedade de invertebrados
políticos.
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Golpista paraguaio sabota TV Pública
Por Altamiro Borges
A mídia brasileira, que tanto bravateia sobre liberdade de
expressão, nada tem falado sobre a regressão autoritária vivida atualmente no
Paraguai. Ela apoiou, aberta ou dissimuladamente, o “golpe constitucional” na
nação vizinha e, por isso, faz silêncio. Nos últimos dias, 28 profissionais da
TV Pública do Paraguai foram demitidos numa autêntica operação macartista de
caça as bruxas. O jornal Página 12, da Argentina, publicou recentemente uma
reportagem que evidencia a gravidade da situação.
Assinada pela jornalista Mercedes López, a reportagem relata
que o governo deposto de Fernando Lugo começou a trabalhar um projeto de tevê
pública em meados de 2010. O canal foi ao ar pela primeira vez em dezembro do
ano passado, mas seis meses depois foi vitima da conspiração das elites
paraguaias. “O golpe de Estado nos surpreende quando a televisão estava
consolidando a sua aliança com movimentos sociais e setores acadêmicos,
estudantis e culturais”, explica o cineasta Marcelo Martinessi, ex-diretor da
emissora.
Demissões e mentiras esfarrapadas
Diante das ameaças de fechamento da TV Pública, Martinessi
renunciou ao cargo. O governo autoritário se comprometeu a manter o canal no ar
e garantiu que não haveria represálias. A emissora se transformou no polo de
resistência dos setores democráticos, com manifestações diárias em frente à sua
sede. No programa “Microfone Aberto”, lideranças populares criticavam os
golpistas e exigiam a volta de Fernando Lugo. O espaço democrático, porém,
durou pouco tempo.
“As autoridades da Secretaria de Informação começaram a
buscar uma maneira de desarticular a equipe de trabalho do ‘Microfone Aberto’.
Foram demitidos 28 trabalhadores. A maioria teve participação ativa na semana
de resistência. Argumentaram que não há orçamento, mas é uma desculpa para
justificar a depuração ideológica que está havendo”, relata a jornalista. Em
meados de agosto, Cristian Turrini assumiu a direção da TV Pública. Ele foi
presidente da empresa de telecomunicações Calypso Wireless, nos EUA.
Turrini garante que é apenas um gestor. “Não pertenço a
nenhum partido, há cinco meses voltei ao Paraguai depois de morar 22 anos nos EUA
e eles precisavam de um administrador”. Ele justifica as demissões alegando falta
de dinheiro. “Não há recursos, os contratos venceram há três meses”. Martinessi
contesta esta versão. “O governo Lugo destinou US$ 2,5 milhões à TV Pública.
Pelo decreto 9097 de junho [pouco antes do golpe], este montante seria
destinado à rede de repetidoras. Não se sabe por que alegam falta de recursos”.
Os programas mais críticos exibidos pela emissora, como o “Entre
nós” e “Patrimônio Cultural”, já foram retirados do ar. Aos poucos a TV Pública
vai sendo asfixiada, para a alegria da mídia privada que apoiou o golpe. Os
jornais ABC Color e La Nación e o canal Tele Futuro, que fizeram de tudo para
desestabilizar o governo de Fernando Lugo, agora dão total apoio ao golpista
Federico Franco. “A concentração da mídia no Paraguai é, talvez, tão injusta
quanto à da terra”, conclui a repórter do jornal Página 12.
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sábado, 29 de setembro de 2012
O absoluto é Deus, e o coabsoluto são os pobres. Entrevista especial com Jon Sobrino
"Fazer teologia é ajudar, a partir do pensar, para que
Deus seja mais real na história e que os pobres – no caso, a fome –
deixem de sê-lo", afirmar o teólogo jesuíta.
Já são 40 anos de Teologia da Libertação e permanece a dúvida em relação às razões pelas quais ela é tão criticada, perseguida, difamada pelos poderes do mundo, inclusive pela hierarquia da Igreja. Pois quem ajuda nessa compreensão é o renomado teólogo jesuíta salvadorenho, de origem espanhola, Jon Sobrino, que aceitou conceder a entrevista a seguir para a IHU On-Line, por e-mail, afirmando que para responder a essa pergunta não é necessário nenhum estudo sofisticado, nem de discernimento diante de Deus. Tal perseguição ocorre “ou por má vontade ou por ignorância”, pelo fato de que aquela teologia “foi vista como uma ameaça”. E explica: “certamente, ameaça ao capitalismo, e daí a reação de Rockefeller em 1969 e dos assessores de Reagan, em 1980. E ameaça à segurança nacional, e daí as reações dos generais na década de 1980. Também no interior da Igreja, por ignorância, por medo de perder o poder ou por obstinação de não querer reconhecer a verdade com que se respondiam às críticas”.
Já são 40 anos de Teologia da Libertação e permanece a dúvida em relação às razões pelas quais ela é tão criticada, perseguida, difamada pelos poderes do mundo, inclusive pela hierarquia da Igreja. Pois quem ajuda nessa compreensão é o renomado teólogo jesuíta salvadorenho, de origem espanhola, Jon Sobrino, que aceitou conceder a entrevista a seguir para a IHU On-Line, por e-mail, afirmando que para responder a essa pergunta não é necessário nenhum estudo sofisticado, nem de discernimento diante de Deus. Tal perseguição ocorre “ou por má vontade ou por ignorância”, pelo fato de que aquela teologia “foi vista como uma ameaça”. E explica: “certamente, ameaça ao capitalismo, e daí a reação de Rockefeller em 1969 e dos assessores de Reagan, em 1980. E ameaça à segurança nacional, e daí as reações dos generais na década de 1980. Também no interior da Igreja, por ignorância, por medo de perder o poder ou por obstinação de não querer reconhecer a verdade com que se respondiam às críticas”.
Sobrino pensa que, no Concílio Vaticano II,
“a Igreja sentiu o impulso de humanizar o mundo e de se humanizar
juntamente com ele, sem se envergonhar diante do mundo moderno e de usar
o moderno para tornar mais crível o Deus cristão”. E o teólogo acredita
que, o que se chamou de Teologia da Libertação, “pode
aportar a ambas as coisas: racionalizar a fé em um mundo de injustiça e
oferecer uma imagem mais limpa de Deus, não manchada com a imundície das
divindades que dão morte aos pobres”.
Jon Sobrino é professor da Universidade
Centro-Americana - UCA -, de San Salvador. Doutor em Teologia pela
Hochschule Sankt Georgen, em Frankfurt (Alemanha) e diretor da Revista
Latinoamericana de Teologia e do informativo Cartas a las Iglesias.
Ele é autor de, entre muitos outros livros, Cristologia a partir da América Latina: esboço a partir do seguimento do Jesus histórico (Petrópolis: Vozes, 1983). Ele estará na Unisinos participando do Congresso Continental de Teologia, com a conferência inaugural do evento, intitulada “Um novo Congresso e um Congresso novo”.
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Para o senhor, qual o significado de celebrar os 50 anos do início do Concílio Vaticano II e os 40 anos da publicação do livro de Gustavo Gutiérrez – Teologia da Libertação? Que perspectivas podem se abrir a partir do Congresso Continental de Teologia?
IHU On-Line - Para o senhor, qual o significado de celebrar os 50 anos do início do Concílio Vaticano II e os 40 anos da publicação do livro de Gustavo Gutiérrez – Teologia da Libertação? Que perspectivas podem se abrir a partir do Congresso Continental de Teologia?
Jon Sobrino – Naqueles anos, de 1966 a 1974, estive em Frankfurt estudando Teologia. Tive notícias do Concílio, mas parciais. Por Medellín e o livro de Gustavo Gutiérrez, só cheguei a me interessar em 1974, com a minha chegada a El Salvador.
Com isso quero dizer que, diferentemente de muitos da minha geração, eu
fui um ignorante do que estava acontecendo e obviamente não fui nenhum
apaixonado. Depois, tudo mudou. Mais do que acontecimento, penso que foi
a realidade salvadorenha dos pobres e os companheiros que se entregavam
a eles que me levaram a valorizar os acontecimentos que haviam ocorrido
e a ler os textos de bispos e de teólogos que os acompanhavam. Esse
esclarecimento talvez ajude a compreender as respostas que vou dar a
seguir. Perguntam-me qual é o significado de celebrar, e penso que, se
levarmos a sério a pergunta, cada um terá uma resposta própria.
Dos acontecimentos mencionados, eu continuo celebrando que foram
rupturas profundas e humanizadoras na história da Igreja. Fizeram-nos
respirar. Pensando no Concílio, “o impossível se fez possível”. Pensando em Medellín, Gustavo Gutiérrez e depois em Dom Romero,
a Igreja decidiu se voltar ao pobre e a Jesus. E deu “ultimidade” à
justiça e à esperança de que fosse possível “que o rico não triunfe
sobre o pobre, nem o verdugo sobre a vítima”. Nessa tarefa, assomava-se
com clareza o Deus de Jesus. E se eu me centro mais em Medellín do que no Concílio é porque eu o conheço melhor.
Outro cristianismo é possível
Outro cristianismo é possível
Isso produziu alegria e esperança de que, como se diz hoje, não sei
se com demasiada facilidade, outra Igreja, outra fé, outro cristianismo
“é possível”, e o era porque “era real”. Hoje celebramos o despertar “do
sonho de séculos de cruel desumanidade”, como nos pedia Montesinos,
a decisão de trabalhar pelos pobres e sua libertação, e a lançar a
sorte com eles. Celebramos a difícil conversão e o novo que foi
aparecendo: liturgias, catequese, música popular, poesias, nova
teologia, a de Gustavo, um compromisso desconhecido e
uma luta contra os ídolos. E, sobretudo, a entrega da vida de centenas e
milhares de fiéis cristãos. De bispos e sacerdotes. Na vida e na morte
se pareceram com Jesus. Os feitos são evidentes. Dom Pedro Casaldáliga
escreveu “São Romero da América, pastor e mártir nosso”, embora várias
cúrias romanas não sabem o que fazer com esse mártires, tantos e tão
numerosos são eles. As normativas às que devem ser fiéis não são
pensadas para aceitar o evidente.
Hoje, no continente, mudaram algumas coisas, persistem a pobreza, as
estruturas de injustiça e de opressão, e aumenta a crueldade das
migrações.
Mudaram mais as coisas na Igreja. De Puebla em diante, deslizou-se por uma ladeira sem que Aparecida
tenha impedido isso significativamente. Há coisas boas e inovadoramente
boas, mas já não é o de antes. Havia honradez institucional, abundante,
ao menos o suficiente, com o real, denúncia vigorosa e analisada contra
o horror dos pobres, utopia pela qual trabalhar e lutar, cartas
pastorais que lembravam Bartolomé de las Casas e a ciência de Vitória,
homilias proféticas de sacerdotes, teologias audazes... Agora isso não
fica claro. Fizeram presente um Deus mais latino-americano, pobre,
esperançoso, libertador e crucificado. E devolveram ao continente e a
suas igrejas um Jesus que esteve sequestrado durante séculos.
Olhar para trás
Olhar para trás
O que significa, então, celebrar anos depois o Concílio, o livro de Gustavo Gutierrez, Medellín, o martírio de Dom Romero?
O que ocorreu foi muito bom e muito humanizador. Hoje, já não abunda. E
por isso é preciso olhar para trás, embora as palavras não soem
politicamente corretas. Certamente é preciso prosseguir com o novo no
pensar teológico: a mulher, os indígenas, as religiões, a irmã terra, a
utopia de outros mundos, igrejas, democracias “possíveis”. Mas é preciso
ter cuidado para não cair na ameaça de Jeremias:
“Abandonaram a mim, fonte de água viva, e cavaram para si poços, poços
rachados que não seguram a água” (2, 13). O que mencionamos antes são
fontes de água viva até o dia de hoje. E mais o serão se voltarmos a
elas ativa e criativamente. É certo, “o Espírito nos move para frente”.
Mas tal como estamos, menos se pode esquecer que “o Espírito nos remete a
Jesus de Nazaré”, eterna fonte de água viva.
IHU On-Line - O que significa fazer e pensar a Teologia a partir da realidade da América Latina e do Caribe?
IHU On-Line - O que significa fazer e pensar a Teologia a partir da realidade da América Latina e do Caribe?
Jon Sobrino – A teologia não é o primeiro a ser
pensado. O primeiro é a realidade e, no caso da Teologia, a realidade
absoluta. Com sua agudeza habitual, Dom Pedro Casaldáliga,
ao se referir ao absoluto, diz que “tudo é relativo, menos Deus e a
fome”. O absoluto é Deus, e o coabsoluto são os pobres. Fazer teologia
é, então, ajudar, a partir do pensar, para que Deus seja mais real na
história e que os pobres – a fome – deixem de sê-lo. Para que o pensar
possa ajudar nessa tarefa, lembremos o que Ellacuría entendia por inteligir a realidade. Explicava-o em três passos:
- O primeiro é “assumir a realidade”; em palavras simples, captar como são e como estão as coisas. Em 2006, olhando o mundo universo, Casaldáliga escrevia: “Hoje, há mais riqueza na Terra, mas há mais injustiça. Dois milhões e meio de pessoas sobrevivem na Terra com menos de dois euros por dia, e 25 mil pessoas morrem diretamente de fome, segundo a FAO. A desertificação ameaça a vida de 1,2 milhões de pessoas em uma centena de países. Aos emigrantes é negada a fraternidade, o solo abaixo dos pés. Os Estados Unidos constroem um muro de 1,5 mil quilômetros contra a América Latina. E a Europa, ao sul da Espanha, levanta uma cerca contra a África. Tudo o que, além de iníquo, é programado”. O presente não o desmente.
- O segundo passo é “encarregar-se da realidade”. Sua finalidade não consiste simplesmente em fazer crescer conhecimentos por bons e necessários que sejam, mas em fazer crescer a realidade. E em uma direção determinada: a da salvação, da compaixão, da misericórdia e do amor. A teologia é intellectus amoris.
- O terceiro passo é “carregar a realidade”, e com uma realidade que é pesada. Sob ela vivem os anawim da Escritura, os encurvados. A carga que pode fazer até com que privem a vida de alguém. Teólogos e teólogas sofreram perseguição, e alguns acabaram mártires. Isso pode acontecer quando o fazer teologia está perpassado de atitude ética.
Costumamos acrescentar um quarto passo: “deixar-se carregar pela realidade”. O trabalhar e o sofrer assim também podem ser graça para quem faz teologia. Então, o teólogo sabe que faz parte do povo pobre, não é externo a ele. Sabe que é levado por ele e recebe o agradecimento dos pobres. Fazer teologia é, então, “uma pesada carga leve”, como dizia Rahner, que é o Evangelho.
IHU On-Line - Como o senhor analisa a atual conjuntura cultural, socioeconômica e político mundial, a partir do horizonte latino-americano? Nesse contexto, quais os desafios e tarefas que implicam à teologia?
- O primeiro é “assumir a realidade”; em palavras simples, captar como são e como estão as coisas. Em 2006, olhando o mundo universo, Casaldáliga escrevia: “Hoje, há mais riqueza na Terra, mas há mais injustiça. Dois milhões e meio de pessoas sobrevivem na Terra com menos de dois euros por dia, e 25 mil pessoas morrem diretamente de fome, segundo a FAO. A desertificação ameaça a vida de 1,2 milhões de pessoas em uma centena de países. Aos emigrantes é negada a fraternidade, o solo abaixo dos pés. Os Estados Unidos constroem um muro de 1,5 mil quilômetros contra a América Latina. E a Europa, ao sul da Espanha, levanta uma cerca contra a África. Tudo o que, além de iníquo, é programado”. O presente não o desmente.
- O segundo passo é “encarregar-se da realidade”. Sua finalidade não consiste simplesmente em fazer crescer conhecimentos por bons e necessários que sejam, mas em fazer crescer a realidade. E em uma direção determinada: a da salvação, da compaixão, da misericórdia e do amor. A teologia é intellectus amoris.
- O terceiro passo é “carregar a realidade”, e com uma realidade que é pesada. Sob ela vivem os anawim da Escritura, os encurvados. A carga que pode fazer até com que privem a vida de alguém. Teólogos e teólogas sofreram perseguição, e alguns acabaram mártires. Isso pode acontecer quando o fazer teologia está perpassado de atitude ética.
Costumamos acrescentar um quarto passo: “deixar-se carregar pela realidade”. O trabalhar e o sofrer assim também podem ser graça para quem faz teologia. Então, o teólogo sabe que faz parte do povo pobre, não é externo a ele. Sabe que é levado por ele e recebe o agradecimento dos pobres. Fazer teologia é, então, “uma pesada carga leve”, como dizia Rahner, que é o Evangelho.
IHU On-Line - Como o senhor analisa a atual conjuntura cultural, socioeconômica e político mundial, a partir do horizonte latino-americano? Nesse contexto, quais os desafios e tarefas que implicam à teologia?
Jon Sobrino – Creio que na atualidade há muitos
rostos de Deus na América Latina. Uns emergiram no passado e ali
ficaram. Seguem mantendo muita gente com vida e dignidade – embora com a
limitação de não animar ao compromisso. Outros coexistem com
superstição desumanizante. Hoje proliferam novas Igrejas e movimentos de
todo o tipo, em sua maioria carismáticos e pentecostais, com seus novos
rostos de Deus. Pessoalmente, compreendo e às vezes aprecio a bondade
das pessoas que os veneram, pois, em parte, deve-se a longas épocas de
desamparo eclesial. Mas nem sempre é fácil para mim colocá-los junto ao
Jesus de Nazaré do Evangelho. Entre intelectuais e antigos
revolucionários existem agnósticos e alguns ateus. São minorias, mas
estão aumentando. Creio que, em poucos lugares, surgiu o rosto de um
Deus crucificado, de que fala Moltmann, mas não creio que em países como El Salvador e Guatemala seja
possível aceitar, a longo prazo, um Deus que não afeta o seu
sofrimento, que o próprio Deus sofra em seus filhos e filhas
crucificados. Em meio a esses rostos, creio que a novidade maior é a
dupla formulação que Puebla fez em 1979. Positivamente,
Deus é essencialmente um Deus libertador. Defende e ama os pobres – e
nessa ordem – pelo mero fato de serem-no. Seja qual for sua situação
pessoal e moral. Dialeticamente, Deus é essencialmente um Deus de vida
contra divindades da morte. Puebla analisou isso cuidadosamente e apresentou os ídolos de acordo com uma hierarquia: o ídolo da riqueza, o poder, as armas... Dom Romero, junto com Ignacio Ellacurría, explicou-o admiravelmente para a situação salvadorenha.
IHU On-Line - Qual é o rosto de Deus que emerge da realidade latino-americana? E como a Igreja tem assumido esse rosto?
IHU On-Line - Qual é o rosto de Deus que emerge da realidade latino-americana? E como a Igreja tem assumido esse rosto?
Jon Sobrino – É preciso perguntar isso a eles, e não tomarmos, nós, o seu lugar. Mas podemos dizer algo. Em Morazán,
em meio às atrocidades da guerra dos campesinos, perguntavam ao
sacerdote que os acompanhava: “Padre, se Deus é um Deus de vida, como
acontece tudo isso conosco?”. É a pergunta de Jó e de Epicuro . Para responder a essa pergunta não me ocorrem conteúdos nem razões, mas sim atitudes. A primeira é lhes falar “com proximidade”. E não qualquer proximidade, mas a de Dom Romero:
“Peço ao Senhor durante toda a semana, enquanto vou recolhendo o clamor
do povo e a dor de tanto crime, a ignomínia de tanta violência, que me
dê a palavra oportuna para consolar, para denunciar, para chamar ao
arrependimento”. A segunda é falar “com credibilidade”. E, de novo, não qualquer credibilidade, mas a de Dom Romero:
“Eu não quero segurança enquanto não a deem a meu povo”. O bispo não
respondia apelando a milagres celestiais, mas sim mostrando em sua
própria carne o amor terrenal. O que sentiam em seu coração os
campesinos que sofriam e perguntavam, pertence a seu mistério. Aqueles
que o viam de fora acreditam que o bispo lhes falou do amor de Deus. E
que as suas palavras foram uma boa notícia. Resta aos intelectuais
dialogar com Epicuro e Dostoiévski , acolher Paulo e Moltmann. E não é tarefa ociosa. Mas, entre nós, o que mais ressoa é a proximidade e a credibilidade do Monsenhor.
IHU On-Line - Como falar de Deus a partir da realidade de sofrimento que vivem os excluídos, os que estão à margem da sociedade privilegiada?
IHU On-Line - Como falar de Deus a partir da realidade de sofrimento que vivem os excluídos, os que estão à margem da sociedade privilegiada?
Jon Sobrino – As teologias não crescem, perduram ou decaem como sistemas formais de pensamento, não contaminadas pelo real. A Teologia da Libertação
formulou com rigor e vigor que no Êxodo Deus “libertou os escravos”,
que na sinagoga de Nazaré, Jesus “libertou os cativos”. O que, como e
quanto disso guiou o pensamento nesses 40 anos é uma coisa a se
analisar. Já disse que antes isso ocorreu mais do que agora. Desde já, a
Teologia da Libertação não está na moda. Mas não me parece correto responsabilizar disso o que começou com Gustavo Gutiérrez, Juan Luis Segundo, Leonardo Boff, Ignacio Ellacuría e com Dom Helder Camara, Leonidas Proaño, Angelelli e Romero.
Às pessoas mencionadas é preciso continuar agradecendo que ao longo
desses 40 anos se mantiveram impulsos de teologia libertadora e se
estenderam a novos âmbitos, como o do gênero, das religiões, da mãe
terra... E aqueles de boa vontade que lamentam a queda da teologia da
libertação, que voltem ao Deus do Êxodo e a Jesus de Nazaré.
Indubitavelmente, houve limitações, erros, exageros. Pode ter havido
reducionismos anti-intelectuais em favor da práxis, preguiça intelectual
diante de escritos como os de Juan Luis Segundo ou Ellacuría,
vislumbres de demagogia diante do pensamento científico de outros lares,
ignorância das críticas ou prepotência diante delas. Mas, pessoalmente,
não vejo que tenha surgido outro impulso teológico tão humano,
frutífero, evangélico e latino-americano como o que surgiu há 40 anos.
IHU On-Line - Como o senhor analisa esses quarenta anos da Teologia da Libertação? Por que ela foi tão criticada, perseguida, difamada pelos poderes do mundo, inclusive pela hierarquia da Igreja?
IHU On-Line - Como o senhor analisa esses quarenta anos da Teologia da Libertação? Por que ela foi tão criticada, perseguida, difamada pelos poderes do mundo, inclusive pela hierarquia da Igreja?
Jon Sobrino - Outra coisa é a menor qualidade na
produção da teologia da libertação. Não é fácil que se repita a geração
dos fundadores, embora tenham surgido novos teólogos e teólogas de
qualidade. E não se pode esquecer que algo parecido pode ocorrer hoje em
outras escolas, tradições e movimentos de teologia. Os Barth, Rahner, de Lubac, von Balthasar, Bultmann, Käsemann não têm muitos sucessores dessa altura.
A resposta à segunda pergunta não precisa de nenhum estudo
sofisticado, nem de discernimento diante de Deus. Ou por má vontade ou
por ignorância, aquela teologia foi vista como uma ameaça. Certamente,
ameaça ao capitalismo, e daí a reação de Rockefeller em 1969 e dos assessores de Reagan,
em 1980. E ameaça à segurança nacional, e daí as reações dos generais
na década de 1980. Também no interior da Igreja, por ignorância, por
medo de perder o poder ou por obstinação de não querer reconhecer a
verdade com que se respondiam às críticas. Lembre-se de Dom López Trujillo
e de vários bispos e cardeais. E a instrução da Congregação para a
Doutrina da Fé, de 1984, sem que a de 1986 conseguisse consertar
totalmente o anterior.
IHU On-Line - Qual o significado teológico e antropológico da expressão “libertação”, a partir do contexto latino-americano? Como essa perspectiva teológica se implica no atual contexto de sociedade e de Igreja?
IHU On-Line - Qual o significado teológico e antropológico da expressão “libertação”, a partir do contexto latino-americano? Como essa perspectiva teológica se implica no atual contexto de sociedade e de Igreja?
Jon Sobrino – Se me lembro bem, o conceito de
“libertação” foi usado para superar o conceito de “desenvolvimento”, a
solução que o mundo ocidental propunha para superar a pobreza. Na
Igreja, redescobriu-se que era um termo-chave no Êxodo e em Lucas para
expressar salvação. Parece-me importante ter presente que “a
libertação” foi redescoberta na América Latina, o chamado terceiro
mundo, por ser um continente não só atrasado ou subdesenvolvido, mas
também oprimido e escravizado pelo primeiro mundo, europeus e
norte-americanos. E em Igrejas, se não oprimidas pelas europeias,
fortemente dependentes delas. O termo “libertação” remetia de forma
muito importante à opressão e à repressão, isto é, à privação injusta e
cruel da vida, o que se mantém até os dias de hoje. Outra coisa é que,
felizmente, o conceito foi estendendo seu significado na teologia para
designar libertação da indignidade, da opressão de gênero, do despotismo
de uma religião... E é preciso ter presente também que a teologia da
libertação, diferentemente de outras teologias e ideologias, dá
prioridade ao “povo” sobre o “individualismo”, e à “abertura à
transcendência” sobre o “positivismo”, como disse Ellacuría em
uma reunião de religiões abraâmicas. Em todo caso, embora com o retorno
massivo a individualismos espiritualistas, a teologia da libertação
introduziu a dimensão religiosa do humano no âmbito do mundo exterior.
Ela a tornou presente na realidade social, por direito próprio e sem que
possa ser facilmente ignorada. É religião política, afim à de Metz, o que não é um pequeno benefício.
IHU On-Line - Fazendo memória de Dom Oscar Romero, Ignácio Ellacuría e Companheiros, dentre tantos outros rostos que foram assassinados porque assumiram a causa dos empobrecidos e marginalizados, o que significa ser Igreja, hoje, no limiar do século XXI?
IHU On-Line - Fazendo memória de Dom Oscar Romero, Ignácio Ellacuría e Companheiros, dentre tantos outros rostos que foram assassinados porque assumiram a causa dos empobrecidos e marginalizados, o que significa ser Igreja, hoje, no limiar do século XXI?
Jon Sobrino – Menciono duas sentenças. Ignacio Ellacuría, no funeral celebrado na UCA, disse: “Com Dom Romero,
Deus passou por El Salvador”. Ser Igreja é trabalhar com decisão e
simplicidade, para que Deus passe por esse mundo desumano. E para o não
crente trabalhar para que a solidariedade e a dignidade, o melhor do
humano, passe por este mundo, que embora seja mais secular, continua
sendo desumano. Dom Romero, na Universidade de Louvain,
no dia 2 de fevereiro de 1980, poucos dias antes de ser assassinado,
disse: “A glória de Deus é que o pobre viva”.
Ser Igreja é trabalhar pela glória de Deus. E para o não crente “a
glória da humanidade é que os pobres vivam, cheguem a formar parte da
família humana”. Por isso, é preciso trabalhar. E termino com algo que
me faz pensar. Penso que no Concílio a Igreja sentiu o
impulso de humanizar o mundo e de se humanizar juntamente com ele, sem
se envergonhar diante do mundo moderno e de usar o moderno para tornar
mais crível o Deus cristão. A finalidade é magnífica. Em Medellín,
a Igreja sentiu o impulso de não se envergonhar dos pobres e de não
escutar a repreensão da Escritura: “Por causa de vocês, blasfema-se o
nome de Deus entre as nações”. E com humildade se pôs a “limpar o rosto
de Deus”. Acredito que o que se chamou de Teologia da Libertação
pode aportar a ambas as coisas: racionalizar a fé em um mundo de
injustiça e oferecer uma imagem mais limpa de Deus, não manchada com a
imundície das divindades que dão morte aos pobres.
quarta-feira, 26 de setembro de 2012
‘Por causa do marketing, a eleição virou uma competição de produtos’
Escrito por Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação do CORREIO DA CIDADANIA |
Mais uma vez o calendário eleitoral girou e volta a se fazer
presente. Saturados por praticamente duas décadas de tucanato no estado,
com forte hegemonia também na capital, os paulistanos irão às urnas em 7
de outubro eleger vereadores e votar o primeiro turno da disputa pela
prefeitura.
Em entrevista ao Correio da Cidadania, Ivan Valente, deputado
federal pelo PSOL (a bancada mais bem avaliada da Câmara Federal),
qualificou os atuais processos eleitorais como “uma competição
artificial de propostas, sem aquelas que seriam mais elaboradas e
situadas numa realidade concreta”.
Para ele, obviamente por conta dos milionários financiamentos
privados que comprometem quaisquer campanhas e mandatos, “a eleição
virou, em muitos casos, uma competição de produtos. Os candidatos
inventam produtos, como esses vales, bilhetes únicos, apresentam
números, um conjunto de promessas e anúncios que não discutem com rigor
qual seria a proposta para a cidade”.
Valente lamenta ainda a capitalização do vazio político pelo
conservadorismo de Celso Russomano (“uma candidatura avulsa, sem nenhuma
movimentação real da sociedade civil, mas com destaque na mídia”),
ainda que acredite numa reviravolta de um de seus dois prováveis
adversários no segundo turno, Serra ou Haddad, por conta do poder
econômico de suas campanhas.
Por fim, critica o monopólio do mensalão nas discussões da mídia,
que em sua opinião “deforma o processo eleitoral”, por ser “monopólica,
concentrada, com uma visão de pensamento único”. Mesmo assim, Ivan
Valente não acredita que o julgamento do escândalo que abalou o PT em
2005 tenha valor preponderante. Mas espera que mais adiante seja
capitalizado à esquerda no eleitorado nacional.
Correio da Cidadania: Como você tem visto o atual processo
eleitoral em nosso país, no que diz respeito às campanhas municipais,
seu conteúdo e as propostas mais repercutidas? Acredita que tem
despertado real interesse na população?
Ivan Valente: O processo eleitoral brasileiro só
gera um grande interesse público na reta final, o que novamente acontece
em 2012. Mas neste ano há um agravante, pois a grande mídia brasileira
está tratando de forma bastante monopolista o julgamento do mensalão,
transmitido ao vivo e ocupando grande parte do noticiário com o assunto.
Isso está causando uma interferência grande nas atenções do momento.
Não sei qual vai ser o impacto geral do processo julgado pelo STF. Algum
impacto terá, mas não sei o quanto. De toda forma, ocupa um espaço
político grande demais. E de resto, o povo costuma se interessar pelas
eleições mais na reta final.
Correio da Cidadania: O que o conteúdo programático dessas
campanhas, no geral, diz a respeito de nosso momento político? Os temas
mais urgentes da vida das cidades estão sendo realmente contemplados?
Ivan Valente: Acho que a eleição virou, em muitos
casos, por causa da marketagem política, uma competição de produtos. Os
candidatos inventam produtos, como esses vales, bilhetes únicos,
apresentam números, como “triplicar a guarda municipal”, um conjunto de
promessas e anúncios que não discute com rigor qual seria a proposta
para a cidade. A dívida pública municipal seria pauta importante, assim
como a publicidade da arrecadação real, também em termos de sonegação e
evasão fiscal. E aí sim as prioridades poderiam ser definidas, baseadas
na realidade da cidade, tratando assuntos como transportes e educação,
por exemplo, e recebendo mais recursos e iniciativas. Mas, da forma
atual, fica uma grande competição marketeira pra conquistar o voto do
eleitor, ainda mais em relação aos partidos que têm muito tempo na
televisão. Uma competição artificial de propostas, sem aquelas que
seriam mais elaboradas e situadas numa realidade concreta.
Correio da Cidadania: Como analisa especificamente o processo eleitoral na cidade de São Paulo?
Ivan Valente: Em São Paulo sofremos com a realidade
específica da cidade, que concentra a sede, o núcleo duro dos maiores
partidos que têm competido nacionalmente, PT e PSDB. De fato, há uma
disputa cansativa nesse contexto. O PSDB é um partido que já “enjoou”,
pois há uma grande rejeição a seu candidato, Serra, com os tucanos há 18
anos governando o estado nessa supremacia neoliberal. E as propostas
petistas perderam apelo.
Infelizmente, esse fato não é explorado pela esquerda, mas exatamente
por alguém que se apresenta como novo sem ser novo. O Russomanno é uma
candidatura quase avulsa, de certa forma uma aventura que a cidade está
se dispondo a correr, também beneficiada pelo cansaço das propostas
apresentadas pelos outros. O povo de São Paulo não acredita nas
propostas, pois vê que a moradia não se resolve, o trânsito continua
entupido, entre outras questões atuais. A população é iludida com uma
proposta que parece ser nova, mas não tem estrutura, não é baseada numa
movimentação real da sociedade civil. Porém, conta com bastante destaque
midiático.
Essa é a situação predominante, com boa chance de o Russomano se
eleger, porque, ao passar pelo primeiro turno, o concorrente do PT ou
PSDB que ficar de fora do segundo turno tende a despejar nele seu apoio.
Mas ainda faltam 15 dias e o PT e o PSDB têm muito tempo de TV e muitos
recursos, marketing. Como tem muita grana envolvida, ainda é
precipitado fazer o prognóstico.
Correio da Cidadania: De modo que o fenômeno Russomano é um
evidente fruto do vazio de ideias no debate político e desse “enjoo” da
população.
Ivan Valente: Sim, aqui em São Paulo o vazio vem
dessa hegemonia tucana somada ao desgaste do petismo. Infelizmente, nós
ainda não conseguimos nos apresentar com uma opção real de esquerda. E
mesmo candidaturas que podem tentar se apresentar como alternativas não
tiveram poder pra alçar voos mais altos.
Correio da Cidadania: Um personagem marcante destas eleições
é, sem dúvida, como você mesmo já salientou, o chamado mensalão – na
cidade de São Paulo, explicitamente explorado pelo tucanato em sua
disputa voto a voto com o petismo para a chegada ao segundo turno. Teria
algo a dizer sobre o mensalão? Terá algum impacto nos resultados
eleitorais, especificamente na corrida do PT às prefeituras?
Ivan Valente: Acredito que na reta final, com a
condenação de algumas figuras públicas do PT, vai ter alguma influência,
até pela forma saturada como a mídia trata a questão. Não creio que
seja o elemento definidor, mas, pela mídia e por calhar justo na reta
final, quando o eleitor fica mais atento aos candidatos, algum efeito
vai ter. Espero que o efeito seja pelo lado da esquerda, que consigamos
capitalizar, digamos, os erros do PT. Que a capitalização não seja pela
direita, pela lógica que o PSDB e DEM tentam aplicar. Que o voto petista
originário migre para uma condição de esquerda, nacionalmente. Mas não
será simples fazer isso imediatamente. Possivelmente, o desdobramento
será futuro.
Correio da Cidadania: O que pensa da campanha de Giannazi, candidato de seu partido à prefeitura de São Paulo?
Ivan Valente: É uma campanha difícil, uma vez que há
uma concorrência muito forte, e não se tem conseguido romper o cerco
das precariedades do PSOL, como, por exemplo, o tempo de TV. Além disso,
é preciso fazer um embate mais calibrado contra os competidores que se
pretende atingir. Houve algumas falhas nesse sentido. Creio que
deveríamos tentar ganhar o voto mais consciente da sociedade, o voto
frustrado do PT, mas, para tal, precisaria de um calibre político
voltado à questão. Talvez houvesse um manancial de votos a ser explorado
de forma mais substantiva. De resto, a campanha tem dificuldades
naturais ao PSOL. Não conseguiu o destaque de outros locais, como Rio de
Janeiro, Belém, Macapá, Fortaleza, onde o desempenho é bom.
Correio da Cidadania: Já que falamos de outras capitais,
faria uma comparação entre a campanha de Giannazi por aqui e a que tem
se desenrolado por parte do PSOL no Rio (capital), onde a candidatura de
Freixo cresceu e se entusiasmou com uma grande adesão de camadas
progressistas?
Ivan Valente: Não quero fazer comparações, pois não
creio que seja o momento. Há outras questões complexas envolvidas. O que
quero dizer é que a campanha do Freixo tem solidez política, entrou no
vazio da direita carioca, bastando ver o Garotinho, Cesar Maia, seus
correligionários, o PSDB, com desempenho bem baixo. Além disso, empolgou
a intelectualidade do Rio de Janeiro, empolgou os artistas e ganhou um
grande apelo na juventude carioca. É uma candidatura que pode
surpreender e até chegar ao segundo turno, o que não depende só do PSOL a
essa altura, mas também dos outros partidos. O desempenho do PSOL já é
considerado excepcional na segunda cidade do país, até pela simbologia
que carrega o Rio de Janeiro. É uma candidatura que conseguiu empolgar,
tendo consistência política.
Correio da Cidadania: Como tem visto, no geral, a atuação das
correntes mais à esquerda no espectro político no atual cenário
eleitoral? Estão conseguindo se colocar à altura dos desafios que se
esperam para iniciar um debate e postura alternativos, de forma a
avançar efetivamente no enfrentamento das questões sempre negligenciadas
e que, de fato, afetam a população?
Ivan Valente: Acho que onde temos um acúmulo maior
tivemos condição de colocar melhor o nosso ponto de vista. Com um
candidato forte, conseguimos destaque, como em Belém, onde nosso
candidato já governou o estado por oito anos, ou como em Macapá, onde,
além de nosso candidato estar muito bem colocado, conta com o apoio do
Randolfe Rodrigues, nosso senador, que tem 80%, 90% de aceitação no
estado. Em Fortaleza acontece o mesmo, com o Renato Roseno. São todas
figuras que dão relevo ao partido. Onde as candidaturas são mais
expressivas, é mais fácil trazer o apoio popular ao PSOL.
Fora isso, o partido tem sido ajudado pelo reconhecimento da bancada
federal, pela sua atuação, pelos temas que aborda, pela ética política, o
que o ajuda nacionalmente. Tem havido um reconhecimento, mas não é
fácil competir com as máquinas e o marketing político nas grandes
cidades. Ainda faltam maior inserção social e chapas mais fortes para
vereador, apresentando pelo Brasil inteiro candidaturas que tenham
presença na população.
Correio da Cidadania: E o que dizer, neste contexto, dos
partidos hoje mais representativos da esquerda, além do PSOL, PSTU e PCB
entre alguns mais conhecidos? O que singularizaria cada um deles no
atual cenário, e qual a sua expectativa quanto ao saldo que deverão
deixar?
Ivan Valente: Eu diria que esses outros partidos se
destacam nas eleições em muito menor escala. A única candidatura do PSTU
que ganhou destaque é, inclusive, em aliança com o PSOL, em Aracaju,
onde há certo vácuo; outro exemplo é do PCB em Recife, também aliado ao
PSOL. Mas não chega a ser tão relevante. Creio que, por não terem
representação institucional, e também por suas posições muito
doutrinárias, têm dificuldades no processo eleitoral. Mais dificuldades
que o PSOL, embora também tenhamos muitas.
Correio da Cidadania: Arriscaria um palpite sobre os resultados do 1º turno: Russomano versus Serra ou versus Haddad?
Ivan Valente: Nesse momento ainda acho melhor
esperar pesquisas. É muito provável que o Russomano já esteja lá, basta
não cometer nenhum erro gravíssimo. Mas não há nada definitivo ainda.
Correio da Cidadania: De todo modo, considerando-se que, em
um segundo turno, Serra ou Haddad disporiam de artifícios e recursos
suficientes para passar à frente de Russomano, qual das duas
alternativas significaria uma relação um pouco menos truculenta e
insensível com a população mais periférica e desfavorecida
economicamente?
Ivan Valente: Apesar de todas as críticas
contundentes que temos ao PT, certamente o programa do PT tem mais
consistência. Mas não quer dizer que o PSOL se definirá nessa direção no
segundo turno. É bem provável que opte por um voto mais progressista,
contra o neoliberalismo privatista, apesar de o PT também enveredar por
tais caminhos. E o Russomano é uma incógnita, não faz parte de um
partido que possui projeto, um verdadeiro programa por trás.
Se fizermos um balanço do que foi o PT no governo da Erundina e mesmo
da Marta, pode-se dizer que foi melhor. Não grande coisa, mas a
Erundina foi bem, sim, era da época em que o PT ainda “estava na briga”;
com a Marta, foram maiores os percalços.
Correio da Cidadania: Você fez referências à mídia e ao
destaque que vem dando ao chamado mensalão. O que pensa do papel que a
mídia tem exercido nesse processo eleitoral?
Ivan Valente: A mídia brasileira certamente é
monopólica, concentrada, com uma visão de pensamento único. De certa
forma, ela deforma o processo eleitoral. As chances e espaço para os
candidatos e ideias não são iguais, as informações não são fidedignas e a
mídia, por fim, tem lado. Portanto, eu diria que é pouco democrática a
cobertura que a mídia realiza.
Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
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terça-feira, 25 de setembro de 2012
Mais uma traição da CNTE contra os trabalhadores em Educação...
Direção da CNTE decide aceitar alteração na Lei do Piso
Para ajudar os governos, a direção da
CNTE abre mão de defender índice do custo aluno do FUNDEB e concorda
que a Lei do Piso seja alterada
Em uma decisão burocrática, e
contrária à luta dos educadores de todo o País, a direção da
Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) aprovou, em
reunião do Conselho Nacional de Entidades, uma proposta de alteração do
índice de reajuste do Piso Nacional para negociar no Congresso Nacional.
Aceitando argumentos absurdos, a CNTE admite a retirada do critério de
correção que valoriza o Piso dos educadores.
Essa decisão ocorreu em uma reunião de dirigentes da Entidade, durante a realização da 8º Conferência Nacional de Educação da CNTE. A partir dessa decisão, a Conferência passou a debater centralmente esse tema. Muitos educadores presentes manifestaram a sua discordância frontal com a decisão e outros argumentaram que ela fragiliza a luta nacional contra os ataques dos governadores à Lei do Piso.
No entanto, os principais dirigentes da CNTE afirmavam que “dirigente foi eleito para decidir” e que “a luta pela manutenção do custo aluno já estava derrotada”! Os dirigentes do CPERS/Sindicato manifestaram publicamente o seu repúdio a essa atitude e afirmaram que, na verdade, essa decisão tinha relação com os vínculos que a CNTE mantém com os governos. Ou seja, mais uma vez os trabalhadores em educação poderão sofrer perdas pela postura de conivência da direção da CNTE com o governo federal.
A direção do CPERS/Sindicato apresentou, em forma de emenda ao documento da Conferência, uma crítica (ver abaixo) à resolução da CNTE. Essa emenda não foi aprovada, mas teve apoio de diversos educadores presentes ao encontro, que expressaram sua surpresa e descontentamento com os rumos da Confederação.
Essa decisão ocorreu em uma reunião de dirigentes da Entidade, durante a realização da 8º Conferência Nacional de Educação da CNTE. A partir dessa decisão, a Conferência passou a debater centralmente esse tema. Muitos educadores presentes manifestaram a sua discordância frontal com a decisão e outros argumentaram que ela fragiliza a luta nacional contra os ataques dos governadores à Lei do Piso.
No entanto, os principais dirigentes da CNTE afirmavam que “dirigente foi eleito para decidir” e que “a luta pela manutenção do custo aluno já estava derrotada”! Os dirigentes do CPERS/Sindicato manifestaram publicamente o seu repúdio a essa atitude e afirmaram que, na verdade, essa decisão tinha relação com os vínculos que a CNTE mantém com os governos. Ou seja, mais uma vez os trabalhadores em educação poderão sofrer perdas pela postura de conivência da direção da CNTE com o governo federal.
A direção do CPERS/Sindicato apresentou, em forma de emenda ao documento da Conferência, uma crítica (ver abaixo) à resolução da CNTE. Essa emenda não foi aprovada, mas teve apoio de diversos educadores presentes ao encontro, que expressaram sua surpresa e descontentamento com os rumos da Confederação.
EM DEFESA DO PSPN – DIREITO CONQUISTADO PELOS TRABALHADORES NÃO SE NEGOCIA
Apenas alguns dias após o ingresso da
Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.848, movida por seis governadores
contra a Lei do Piso Nacional, os trabalhadores em educação de todo o
País estão sendo surpreendidos com uma decisão do Conselho Nacional de
Entidades da CNTE de aceitar alterações no critério de reajuste definido
pela Lei.
Consideramos essa decisão um grave erro pelos seguintes motivos:
1) A Lei 11.738/08 já foi aprovada, sancionada e sua constitucionalidade já foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal, não cabendo mais recursos aos governos. Portanto, o cumprimento do Piso Nacional é um direito dos educadores de todo o País, do qual não há qualquer razão para abrirmos mão.
2) Além de aceitar a retirada de um direito conquistado, fruto de uma luta histórica dos educadores de todo o País, a decisão da direção da CNTE fortalece o ataque promovido pelos governadores e o discurso de que é inviável o cumprimento da Lei do Piso.
3) Não cabe à CNTE e ao movimento sindical propor alterações que signifiquem retrocesso nos direitos e na vida profissional dos educadores. Ao contrário, deveria ser papel de nossa Entidade buscar ampliar as conquistas e rechaçar os ataques dos governos.
4) Por fim, consideramos antidemocrática uma decisão tomada sem a ampla participação dos trabalhadores. Essa decisão afeta um direito de centenas de milhares de educadores, que sequer tomaram conhecimento do debate feito pelos dirigentes da CNTE.
Consideramos essa decisão um grave erro pelos seguintes motivos:
1) A Lei 11.738/08 já foi aprovada, sancionada e sua constitucionalidade já foi julgada pelo Supremo Tribunal Federal, não cabendo mais recursos aos governos. Portanto, o cumprimento do Piso Nacional é um direito dos educadores de todo o País, do qual não há qualquer razão para abrirmos mão.
2) Além de aceitar a retirada de um direito conquistado, fruto de uma luta histórica dos educadores de todo o País, a decisão da direção da CNTE fortalece o ataque promovido pelos governadores e o discurso de que é inviável o cumprimento da Lei do Piso.
3) Não cabe à CNTE e ao movimento sindical propor alterações que signifiquem retrocesso nos direitos e na vida profissional dos educadores. Ao contrário, deveria ser papel de nossa Entidade buscar ampliar as conquistas e rechaçar os ataques dos governos.
4) Por fim, consideramos antidemocrática uma decisão tomada sem a ampla participação dos trabalhadores. Essa decisão afeta um direito de centenas de milhares de educadores, que sequer tomaram conhecimento do debate feito pelos dirigentes da CNTE.
Fonte: 14] núcleo do CPERS
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educação
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
Juremir: “Muitos comemoram a Revolução mas não conhecem sua história”
Samir Oliveira no SUL21
O jornalista e historiador Juremir Machado da Silva publicou em 2010 o
livro “História Regional da Infâmia”, no qual relata, através de
documentos, uma série de fatos pouco divulgados sobre a Revolução
Farroupilha. Dentre eles, o de que ela foi financiada com a venda de
negros.
Nesta entrevista ao Sul21, Juremir fala sobre as
constatações do livro e o processo de mitificação que se deu em cima da
história da revolução. “Os republicanos positivistas tinham noção de que
uma identidade se constrói a partir de um mito fundador. Era preciso
uma mitologia época para construir essa unidade”, explica.
Bastante criticado por expor visões “pouco gloriosas” sobre a
Revolução Farroupilha – um dos principais elementos na construção da
imagem do gaúcho brasileiro -, o jornalista conta que muitos
historiadores deixam de pesquisar o tema por causa da repercussão
negativa e hostil de seus trabalhos no Rio Grande do Sul. “Recebi
e-mails e torpedos de pessoas dizendo que iam me capar. Senti
hostilidade em muitas situações”, comenta.
“Ninguém tinha dito que a Revolução Farroupilha se financiou com a venda de negros no Uruguai”
Sul21 – Como surgiu a ideia de escrever “A História Regional da Infâmia”?
Juremir Machado – Por muitas razões. Uma delas é a
inconformidade com esse culto tradicionalista mal embasado em fatos
históricos. Como fiz faculdade de História, tinha acompanhado desde
sempre as polêmicas provocadas, primeiro, pelo Tau Golim. Em seguida,
por Moacyr Flores, Mário Maestri, Décio Freitas… Todos os historiadores
que mexeram com isso foram muito atacados, criticados e, às vezes, até
estigmatizados. Mas em determinado momento me veio a ideia de fazer um
livro, na medida em que comecei a encontrar documentos que me pareciam
interessantes. Um grande amigo meu, Luiz Carlos Carneiro, que tinha sido
meu professor de História no cursinho universitário, lá por 1980, tinha
se tornado diretor do Arquivo Histórico do RS, que tinha todo o acervo
sobre a Revolução Farroupilha. Então pude fazer a pesquisa com toda a
tranquilidade. E as pessoas que trabalhavam lá me ajudaram muito fazendo
transcrição de documentos.
Sul21 – Quanto tempo durou a pesquisa?
Juremir - Eu li toda a bibliografia existente e fui às
fontes. Li mais de 15 mil documentos e trabalhei com mais de 12 pessoas.
Foram três anos de pesquisa com estagiários, bolsistas de iniciação
científica, pessoas que contratei em Pelotas, no Rio de Janeiro e em
Porto Alegre. Debulhamos 15 mil documentos, alguns que nunca tinham sido
trabalhados.
Sul21 – Que tipo de reações o livro provocou?
Juremir - Meu livro provoca dois tipos de polêmica:
aqueles que dizem que tudo é falso e que eu preciso estudar mais; e
aqueles que dizem que o livro não traz nada de novo. Isso é falso. É
claro que o livro não parte de coisas que ninguém nunca tinha examinado,
mas aprofunda muitas dessas coisas e descobre coisas novas. Eu chamo de
documento infame toda a documentação referente ao financiamento da
Revolução Farroupilha, à compra de munição, de fardamento, de
alimentação com a venda de escravos no Uruguai. Ninguém tinha dito que,
em determinado momento, por obra de Domingos José de Almeida, a
Revolução Farroupilha se financiou com a venda de negros no Uruguai. Em
algum momento se falou que teriam vendido alguns negros para comprar uma
impressora para o jornal “O Povo”. A venda de negros para financiar a
revolução gerou, inclusive, um processo judicial. Depois que deixou de
ser ministro da Fazenda, Domingos José de Almeida entrou na Justiça da
República pedindo o ressarcimento de tudo o que tinha investido. Ele
detalha, briga, insulta e polemiza. Quer de volta o dinheiro dos negros
que vendeu. Ele dá os nomes e todas as informações sobre as vendas.
Sul21 – Como era a relação dos líderes da revolução com os
negros? Havia uma retórica pretensamente abolicionista e uma prática
diferente?
Juremir – Todos eram proprietários de escravos e viviam
em uma sociedade escravista. Então eles podiam ser escravistas, seriam
simplesmente homens de seu tempo. Mas em outros lugares estavam
acontecendo revoltas pela libertação dos negros, como no Maranhão. No
Uruguai e na Argentina, o processo de libertação dos negros estava muito
mais acelerado. Era um tempo de escravismo, mas não da mesma maneira em
todos os lugares. Falamos de Rivera e de Rosas como se fossem caudilhos
hediondos, mas eles eram muito mais avançados, progressistas e
iluministas. Nossos fazendeiros gostavam de se aliar com eles, mas
tinham medo das coisas que eles faziam, como reforma agrária e
libertação de negros. Eles eram muito mais adiantados e “perigosos”
nesse sentido.
“Os farroupilhas não eram abolicionista e não pretendiam ser. Só queriam usar os negros”
Sul21 – Há o mito consagrado de que os farroupilhas eram abolicionistas.
Juremir - Não, eles não eram. Talvez um ou dois
tivessem algum ardor nesse sentido. Mas a maioria não era. Eles
prometeram liberdade para os negros dos adversários que aceitassem ser
incorporados como soldados. Era uma forma de atrair mão de obra militar.
Mas os escravos dos próprios farroupilhas continuaram nas fazendas
trabalhando para que eles pudessem fazer a guerra. Quando a Revolução
acabou e eles voltaram para casa, continuaram escravistas. Quando Bento
Gonçalves morre, deixa um inventário com 53 escravos aos seus herdeiros.
Escravos valiam muito. Ele morreu rico, com terras, fazendas e
escravos. Quando fizeram, em Alegrete, o texto da Constituição, ela não
previa a libertação dos escravos. Se eles tivessem vencido e a
Constituição entrado em vigor, o Rio Grande do Sul continuaria sendo uma
sociedade escravista. Eles não tinham nada de abolicionistas. Claro, em
determinado momento, com a mão de obra militar minguando –
principalmente quando o Império começou a mandar mais gente -, tiveram
de recorrer aos negros dos adversários. O Domingos José de Almeida, além
de ter vendido seus negros ao Uruguai para financiar a revolução, para
ele mesmo se sustentar como ministro da Fazenda e cérebro da revolução,
continuava alugando outros negros no Uruguai e vivendo das rendas desse
aluguel. Os negros trabalhavam no Uruguai para que ele pudesse ser o
chefe revolucionário. Existem muitos exemplos de situações mais
adiantadas de libertação de escravos. No Brasil, no Uruguai, na
Argentina, no Chile… Simón Bolivar tinha libertado os escravos. A
libertação de escravos estava acontecendo com frequência. Rivera fez
isso e nós não. Os farroupilhas não eram abolicionista e não pretendiam
ser. Só queriam usar os negros.
Sul21 – Teve o episódio da batalha de Porongos…
Juremir - É curioso… Muitos historiadores reconhecem
que houve traição em Porongos, mas não demonstram como isso ocorreu. A
maior parte dos historiadores que examina Porongos pula essa etapa. Em
determinado momento essa traição era negada. Como os líderes
farroupilhas tinham prometido liberdade aos negros dos adversários, com o
fim da revolução começam a ficar preocupados e receosos de que os
negros possam querer se vingar caso isso não ocorra. Era um contingente
expressivo de escravos. Então os líderes farroupilhas estavam numa
contradição, já que esses negros pertenciam a adeptos dos imperiais, que
os queriam de volta. Foi aí que veio aquela ideia “maravilhosa” de
diminuir esse contingente ao máximo e fazer um pacto para eliminá-los. A
cilada de Porongos chega a ser simplória. Os negros foram realmente
desarmados e dizimados. Canabarro recebeu o aviso de um possível ataque e
desarmou os homens, foi tudo muito preparado. Um outro aspecto que o
meu livro vai adiante é em relação ao destino dos negros farrapos. Nem
todos morreram. Sobraram alguns deles. Uns escaparam, conseguiram fugir a
cavalo, e muitos caíram prisioneiros. Sempre se discutiu o que teriam
feito com esses negros. Os farroupilhas dizem que Caxias libertou todos,
incorporou ao Exército e conferiu a eles uma condição quase de
enobrecimento. E alguns diziam que eles tinham sido enviados para o Rio
de Janeiro, para a fazenda imperial Santa Cruz.
Sul21 – O que aconteceu?
Juremir - Fui atrás e consegui documentos mostrando
para onde eles foram. Eles foram entregues pelos farroupilhas e foram
transportados. Consegui documentos sobre como eles foram transportados,
até com o nome do navio. Eles foram para o Rio de Janeiro, para o
arsenal da Marinha.
“A Revolução Farroupilha foi feita pela Farsul da época com os métodos das Farc”
Sul21 – Politicamente, havia alguma unidade entre os líderes da revolução?
Juremir - Era um saco de gatos. Antes de 1835 havia
gente que oscilava. Bento Gonçalves, por exemplo, era um monarquista,
não era republicano. Neto não era republicano. Bento Gonçalves tinha
pendores para fazer uma associação com o Uruguai. Ele se relacionava com
o Rivera e pensava, volta e meia, em uma perspectiva de junção com o
Uruguai. Mas também não era algo muito convicto. Em 1834 aconteceu a
principal causa da Revolução Farroupilha: um surto de carrapatos que
devorou o gado. Os fazendeiros ficaram com um prejuízo enorme e fizeram
exatamente como os pecuaristas fazem hoje em dia: quiseram repassar o
prejuízo ao Império. Mas essa ajuda do governo central não vinha. Por
outro lado, havia um contexto de muitos militares no Rio Grande do Sul.
Em 1831, quando Dom Pedro I abdicou, muitos militares foram mandados
para cá, numa espécie de geladeira, porque tinham se insubordinado.
Então se juntam esses militares cansados e insatisfeitos com os
fazendeiros que se sentiam prejudicados pelo Império. No começo das
conspirações, eles só desejam que o Império atenda às suas
reivindicações. Alguns querem ver reconstituída sua dignidade militar e
serem transferidos para outros lugares. Nossos fazendeiros queriam
atendimento às suas reivindicações econômicas. O movimento vai ganhando
vida e eles não conseguem mais recuar. Em determinado momento, surge a
perspectiva da República, que nenhum dos líderes tinha em mente. No meu
livro, publico uma carta que Neto enviou aos vereadores de Pelotas. Ele,
que tinha proclamado a República, disse “não sou republicano”. Eles não
eram republicanos, mas aos poucos foram sendo empurrados para aquela
situação e acabaram proclamando uma República que o Império nunca
reconheceu. Para o Império, sempre se tratou apenas de uma província
rebelada.
Sul21 – E por que a guerra durou tanto tempo?
Juremir - Quando os liberais estavam no poder, no
período regencial, eles, no fundo, gostavam dessa gente daqui. Eles não
queriam mandar muito efetivo para cá e deixaram a Revolução correr.
Quando finalmente Dom Pedro II ganha a maioridade e os conservadores
assumem o poder e passam a ter o primeiro ministro, eles enviam muito
efetivo para o Rio Grande do Sul. Então por volta de 1842 já está
liquidada a fatura. A revolução se transforma em uma guerra de
guerrilhas. Os farroupilhas começam a fugir para todos os lados e, de
vez em quando, fazem algumas emboscadas. Quando a coisa ficava muito
pesada, todo mundo se refugiava no Uruguai. Foi uma guerra de guerrilhas
na qual o exército imperial ficava atrás dos rebeldes e, de vez em
quando, tinha algum combate. Houve muito pouco combate e morreu pouca
gente. Em dez anos de guerra, morreram 2,9 mil pessoas. Morria mais
gente de gripe do que de guerra. Passava meses sem que houvesse combate.
Claro que houve momentos de heroísmo e momentos de infâmia absoluta,
com estupro, degola, sequestro e execução sumária. É por isso que eu
digo que a Revolução Farroupilha foi feita pela Farsul da época com os
métodos das Farc. Do ponto de vista ideológico, eles eram a Farsul da
época, com uma ideologia liberal incipiente. Eram proprietários rurais
em defesa dos seus interesses. E utilizavam os métodos que hoje se
condena nas Farc: sequestro, apropriação do gado e das terras alheias.
Sul21 – Em seu livro, o senhor também aponta casos de corrupção entre os líderes farroupilhas.
Juremir – Quando eles se reúnem em Alegrete para fazer a
Constituição, estavam totalmente rompidos. Antonio Vicente da Fontoura
pertencia à chamada minoria. Ele havia sido ministro da Fazenda,
sucedendo Domingos José de Almeida. Quando ele assumiu o Ministério,
constatou que a corrupção corria solta. Ele descreve isso fartamente em
seu diálogo e os historiadores nunca quiseram dar muita atenção. Os
farroupilhas pegavam a fazenda de um adversário e arrendavam e o lucro
desse arrendamento desaparecia. Até Neto foi acusado por Antonio Vicente
da Fontoura de ter desaparecido com dinheiro. Um dos grandes problemas
da Revolução Farroupilha foi a corrupção. Eles brigaram e se separaram
por causa disso. O duelo entre Bento Gonçalves e Onofre Pires tinha na
sua base acusações de corrupção.
“Os cariocas acham esse negócio de Semana Farroupilha quase ridículo, uma espécie de carnaval a cavalo”
Sul21 – Como se pautaram as relações dos farroupilhas com as
lideranças uruguaias e
argentinas? Havia, de fato, a intenção de se
criar uma república que anexasse o território do Uruguai e algumas
províncias da Argentina?
Juremir – Quando viram que Rivera estava libertando
escravos e que tinha propensões à reforma agrária, a parceria deixou de
ser interessante. A Revolução Farroupilha foi uma espécie de golpe
militar. Esse golpe militar sofreu muita influência platina. Houve muita
influência desses caudilhos uruguaios e argentinos. Mas depois houve
momentos de aproximação e de separação. Essas alianças só não
prosperaram definitivamente porque os líderes farroupilhas eram muito
mais conservadores que os caudilhos uruguaios e argentinos. Rivera
queria uma revolução benéfica para a população uruguaia. Bento Gonçalves
e sua turma só entraram em ação por causa dos seus interesses
particulares.
Sul21 – Como se deu a construção dos mitos em cima da Revolução Farroupilha?
Juremir - São várias etapas. Uma delas é quando Julio
de Castilhos e os republicanos positivistas estão trabalhando pela
construção da República no Rio Grande do Sul. Julio de Castilhos vai
estudar direito em São Paulo e manda uma carta dizendo que é preciso
estudar aquela guerra civil, porque ela poderia servir de fundamento
para o que hoje nós chamaríamos de construção de uma identidade
regional. Na época, a Revolução Farroupilha era chamada de guerra civil.
Esses republicanos positivistas tinham bem a noção de que uma
identidade se constrói a partir de um mito fundador. Então era preciso
uma mitologia épica para construir essa unidade. Isso foi fartamente
explorado. Depois, historiadores como Varela e Alfredo Ferreira
Rodrigues ajudaram a construir uma ideia épica de revolução,
influenciados pela perspectiva histórica dominante no século XIX. Nos
anos 1930, os militares ligados ao Instituto Histórico e Geográfico
fazem, em plena Era Vargas, uma recuperação dos fatos com interesse
cívico de engrandecimento das atitudes militares. O interessante é que a
Revolução Farroupilha foi feita por militares e escrita por militares.
Sul21 – E qual o papel dos historiadores na desmistificação da revolução?
Juremir – Os grandes historiadores estão
desmistificando a Revolução Farroupilha. Nomes como Tau Golin, Moacyr
Flores, Mário Maestri, Sandra Pesavento, Margeret Bakos, Décio Freitas…
Moacyr Flores talvez seja aquele que trabalhou mais intensamente a
Revolução Farroupilha. O livro “O Modelo Político dos Farrapos” é um
marco na desmistificação. Tau Golin fez uma espécie de panfleto que teve
muito impacto, questionando se Bento Gonçalves seria herói ou ladrão.
Margaret Bakos trouxe muitos dados sobre a condição do negro na
Revolução Farroupilha. São esses os caras que realmente têm escrito
coisas importantes sobre a Revolução Farroupilha. Se fosse na França,
esse pessoal estaria sendo destacado. Mas aqui é o inverso. Talvez
porque o Rio Grande do Sul, como qualquer lugar, precisa de um mito
fundador. E o que tem à mão é esse. A história, nesse sentido, estraga
um pouco este prazer. Os fatos históricos não confirmam toda essa
grandeza.
Sul21 – O que significa hoje comemorar a Revolução Farroupilha?
Juremir – Vale lembrar que a comemoração da Semana
Farroupilha, tal qual a fazemos hoje, começa em dezembro de 1964. É uma
obra da ditadura militar. O patriotismo servia muito bem nessa época.
Acho muito interessante a ideia de que essas pessoas se reúnem para
comemorar outra coisa. Comemoram um ideal de vida agropastoril, uma
nostalgia da vida no campo, quando éramos realmente gaúchos e tínhamos
estâncias. Há também o gosto de estar junto, de conviver e ter algo a
compartilhar – algo que o sociólogo francês Michel Maffesoli chama de
“tribalismo”. Esse fenômeno pode estar no escotismo, numa torcida de
futebol, ou nesse congraçamento anual onde todos se encontram e brincam
um pouco de casinha, como dizia Flávio Alcaraz Gomes. A Revolução
Farroupilha surge como uma espécie de cimento para fortificar esse
interesse de estar junto. Mas ela também tem um componente ideológico
conservador. Muitos dos que estão comemorando a Revolução Farroupilha
não conhecem grande coisa da sua história. Se for examinar no detalhe,
eles não sabem. Conhecem a cartilha do Movimento Tradicionalista Gaúcho,
que só destaca aquilo que exclusivamente lhes convém.
Sul21 – Qual o papel da mídia na consolidação do mito?
Juremir – A mídia precisa adular esse público para
poder fidelizá-lo. É uma estratégia de marketing que reforça os mitos e
dificulta a desconstrução feita pelos historiadores. O interesse da
mídia nessa questão é meramente comercial. É uma estratégia de reforço
de algo que é caro ao público. Ninguém quer brigar com boa parte do Rio
Grande do Sul. É melhor dar uma adulada e deixar os universitários e
acadêmicos falarem outras coisas. Se o público está feliz, por que
estragar o prazer? Além de tudo, a mídia é conservadora. Muitas vezes os
jornalistas compartilham esses valores e acreditam nessas histórias
porque foram formados nessa matriz. Tudo isso entra no mesmo caldeirão
e, ano a ano, as vozes dos historiadores ficam praticamente inaudíveis.
Sul21 – O Rio Grande do Sul tem uma relação mais intensa com seus mitos do que outras regiões do país?
Juremir – Talvez, até pelo tipo de construção história
do Rio Grande do Sul, com tantas guerras de fronteira. Vários movimentos
e situações se aproveitaram disso: a República, os anos Vargas, a
ditadura militar e o crescimento do movimento tradicionalista.
Sul21 – Isso contribui para uma imagem mais arrogante do Rio Grande do Sul nos outros estados brasileiros?
Juremir – Isso é algo que só nós enxergamos. Os
cariocas acham esse negócio de Semana Farroupilha quase ridículo, uma
espécie de carnaval a cavalo.
Sul21 – E o nosso hino? Cantamos um hino que fala em uma “ímpia e injusta guerra”.
Juremir – Nosso hino é racista, ainda por cima, quando
diz que “povo que não tem virtude acaba por ser escravo”. É um insulto
àqueles que lutaram com os farroupilhas e foram atraídos a eles com a
promessa de liberdade.
Sul21 – Até hoje, o senhor ainda recebe críticas por causa do livro?
Juremir – Alguns historiadores preferem se afastar
desse tema. Cansam de brigar e ouvir insultos. Eu mesmo sofri todo tipo
de desqualificação. Diziam que eu não sou historiador e que o meu livro
só requenta outras informações. Na época que saiu o livro, a Farsul
ameaçou me processar, até por um mal entendido. Acharam que eu tinha
dito que a Farsul tinha os métodos das Farc. O que eu disse, na verdade,
foi que os farroupilhas tinham a ideologia da Farsul e os métodos das
Farc. Recebi e-mails e torpedos de pessoas dizendo que iam me capar.
Senti hostilidade em muitas situações. Já perdi a conta do número de
insultos que recebi por e-mail, Twitter e Facebook. O maior insulto é a
tentativa permanente de desqualificação do teu trabalho.
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