segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Imperialismo quer uma nova guerra no mundo

Síria - Imperialismo quer uma nova guerra no mundo  

Luis Falcão no A VERDADE

Para satisfazer a sede de lucros da poderosa indústria de guerra dos EUA e de outros países, as potências imperialistas querem mais uma guerra no mundo, não importa se contra a Síria ou contra o Irã, ou mesmo contra s dois países. Para tanto, a gigantesca máquina de propaganda do capitalismo espalha mentiras e esconde que a CIA fez acordo com a Al-Qaeda para organizar atentados na Síria.

A Síria não é um país socialista e, por isso mesmo, não é democrático. A principal lei da economia do país é o lucro e quem manda e governa é a classe dos ricos.  As eleições são manipuladas, há perseguição aos que lutam por uma revolução e pelo verdadeiro socialismo e são  numerosos os casos de corrupção no país. Os que têm dinheiro, as famílias ricas, conseguem resolver seus problemas, os que não têm, a imensa maioria da população, sofrem para conseguir até mesmo um emprego. Apesar de ter socialismo em seu nome e em seu programa, o Partido Baath (Partido do Renascimento Árabe Socialista) não defende nem pratica o socialismo cientifico de Marx e Lênin, embora quando de sua Constituição em 1963 foi um partido progressista, nacionalizou o petróleo, as terras e adotou medidas contra a espoliação estrangeira do país. Porém, desde a década de 80, se transformou num instrumento a serviço dos privilégios de algumas centenas de famílias e de grupos privados. Em decorrência, várias multinacionais têm cada vez mais negócios na Síria. A multinacional italiana do setor de armamentos – Finmeccanica – há dois anos está entre os principais fornecedores do governo sírio. Finmeccanica é o oitavo fornecedor do Pentágono e também produz em parceria com a norte-americana Lockheed Martin
Por ser um país dependente, a Síria sofre duramente as consequências da atual crise econômica capitalista. Este fato foi agravado porque desde os anos 90, o governo adota um conjunto de reformas neoliberais para permitir o avanço do capital estrangeiro, elimina programas de assistência social e reduz os investimentos públicos em 50%. As terras nas grandes cidades foram privatizadas e entregues a grandes empresas, que elevaram os preços dos imóveis, obrigando milhares de famílias a irem morar na periferia das cidades e formar favelas. Hoje, o país tem um elevado número de desempregados jovens, as desigualdades sociais aumentaram absurdamente e a pobreza é crescente. Tal situação levou em março de 2011, em meio aos levantes populares da Tunísia e do Egito, a juventude a ocupar as ruas exigindo mudanças sociais e políticas no país.
Foi nesse terreno que os países imperialistas começaram a operar, enviando à Síria mercenários que estavam no Iraque, para organizarem atentados e recrutarem insatisfeitos com o regime em vista de se formar um exército. Até a organização terrorista Al-Qaeda foi articulada pela CIA e é membro  ativo do chamado Exercito Livre da Síria. Também, a serviço dessa estratégia imperialista, o reacionário governo turco de Tayyip Erdogan ao bombardear a Síria cumpre o papel de provocador visando acelerar a nova guerra imperialista.
Entretanto, não é nem para acabar com o capitalismo na Síria nem com a corrupção e muito menos defender os direitos humanos que os EUA, a França, a Inglaterra e a Alemanha querem bombardear a Síria e derrubar o governo de Bachar Al Assad. Aliás, basta observar o que se tornaram a Líbia, o Afeganistão e o Iraque após as intervenções militares dos países imperialistas para concluirmos como ficará a Síria se ocorrer um ataque da OTAN (Organização do Tratado Atlântico Norte).
Com efeito, nenhum desses países tornou-se mais democrático ou menos violento após as guerras de que foram vítimas. Pelo contrário, hoje na Líbia, em vários edifícios públicos tremula a bandeira da organização terrorista Al-Qaeda, a mesma que é acusada de realizar o atentado às torres gêmeas nos EUA, o qual matou mais de 3 mil cidadãos norte-americanos,  e no dia 11 de setembro último realizou um atentado que matou o embaixador dos EUA na Líbia, Christopher Stevens. No Afeganistão, entre 1º de janeiro e 30 de junho de 2012, 1.145 pessoas morreram e 1.945 ficaram feridas devido a atentados. Mulheres e crianças representam 30% das vítimas.
Depois, se existisse por parte das potências imperialistas algum respeito aos direitos humanos, os EUA não teriam financiado e ajudado o golpe militar em Honduras, tentado derrubar o governo de Hugo Chávez e não continuariam apoiando e mantendo as sanguinárias ditaduras do Iêmen, do Bahrein e da Arábia Saudita.
Também, a defesa que a Rússia e a China fazem do governo sírio nada tem a ver com o respeito à autodeterminação dos povos. Lembremos que ambos os países foram favoráveis às criminosas guerras contra o Iraque e o Afeganistão e já aprovaram diversas sanções econômicas contra a Síria e o Irã, privando milhões de árabes de alimentos e de remédios.
A velha mentira repetida
Sem ter o que dizer para justificar uma nova guerra imperialista, os Estados Unidos e demais potências imperialistas repetem o mesmo argumento (ou melhor dizendo, a mesma mentira) usada contra o Iraque:  (“Saddam tem armas químicas de destruição massiva”) ou contra a Líbia (Kadafi massacra população civil).
Portanto, o principal motivo levantado pelos EUA e seus aliados para pressionarem a ONU a aprovar a agressão à Síria e usar sua máquina de guerra mortífera composta de satélites militares, bombas nucleares, submarinos, aviões não tripulados, mísseis intercontinentais e milhões de homens armados espalhados em mais de 1.000 bases militares estacionadas em cerca de 50 países, é que a Síria possui “poderosas armas químicas e pode usá-las contra a população”.
Vejamos o que declarou o secretário de Defesa dos EUA, Leon Panetta, no dia 28 de setembro ao ser perguntado pela imprensa de seu país sobre os depósitos de armas químicas na Síria:
“Informações da inteligência americana dão conta de que o arsenal está em locais seguros, mas parte tinha se movido. Não está claro quando as armas foram transferidas, nem se a movimentação aconteceu recentemente.” A notícia prossegue dizendo que os EUA acreditam que a Síria tem dezenas de depósitos de armas químicas e biológicas espalhados pelo país.
No final de agosto, o presidente Barack Obama declarou: “Vamos ser muito claros com o regime Assad, mas também com todos os outros combatentes, que a linha vermelha será quando começarmos a ver um monte de armas químicas sendo movidas e usadas. Isso mudará nosso cálculo”.
Ora, nunca uma missão internacional esteve na Síria para investigar se o país possui ou não armas químicas. E agora, não só o país tem, como está transferindo essas armas de um lugar para outro.
Mas como acreditar num governo que já mentiu tantas vezes? Lembremos algumas: disse que não jogaria bombas atômicas no Japão e jogou; disse que não usaria armas biológicas contra o Vietnã e usou, disse que Saddam possuía armas de destruição em massa e era mentira.  Diz que o Irã está produzindo arma nuclear e, até hoje, apesar de várias inspeções, a AIEA não foi capaz de encontrar nem uma só arma nuclear no país, embora os EUA possuam, de acordo com o Pentágono, 5.113  armas nucleares e Israel algumas centenas.
Aliás, mentira e desinformação é o que mais tem surgido em relação à Síria. No último dia 28, as agências de noticias norte-americanas e francesas deram a seguinte notícia:
“Ontem, foi o segundo dia consecutivo de ataques com bombas na capital (Damasco). Duas organizações de ativistas anti-Assad anunciaram que vários corpos foram encontrados num subúrbio situado ao sul da capital. Aparentemente, as mortes foram provocadas por forças leais à ditadura.”
O Observatório Sírio para os Direitos Humanos disse que 40 corpos, inclusive de mulheres e crianças, foram achados no subúrbio de Thiyabiyeh. O líder da organização, Rami Abdul-Rahman, afirmou não ter detalhes sobre as mortes.
Outro grupo de oposição a Assad, os Comitês de Coordenação Local, estimou em 107 o total de corpos encontrados e disse que muitos dos cadáveres mostravam sinais de execução -algumas das vítimas teriam sido degoladas. Os números indicam um dos piores massacres de civis desde o início do levante.” (O Globo, 28/09/2012)
Atenção: o Observatório Sírio de Direitos Humanos declarou que não tinha detalhes sobre as 40 mortes. O outro disse que eram 107 mortes. Será que eles não aprenderam a contar ou não tiveram tempo de combinar os números? E quem são realmente os assassinos?
Crimes contra o povo sírio, assassinatos e execuções não é algo raro praticado pelas chamadas forças rebeldes da Síria. Vejamos o que declarou o insuspeito embaixador brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro:
“Existem motivos razoáveis para acreditar que as forças antigovernamentais daquele país perpetram assassinatos, execuções extrajudiciais e tortura” – disse Paulo Pinheiro, chefe de um painel internacional independente que investiga a situação na Síria.
Paulo Pinheiro também denunciou o uso de crianças com menos de 18 anos de idade por grupos armados de oposição. “Estas forças não identificam seus membros com uniformes reais ou insígnias para diferenciá-los da população civil “,  acrescentou. Crimes realizados por esses elementos, como sequestros, tortura e maus-tratos de soldados do governo capturados, também foram repudiados pela Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, Navi Pillay.
Concluindo, Pinheiro criticou o governo por levar a cabo ataques indiscriminados, como ataques aéreos e bombardeios de artilharia a áreas residenciais. Ele também se posicionou contra a aplicação de sanções contra a Síria, por constituírem uma negação dos direitos fundamentais ao povo desse país, onde, segundo a ONU, existem 2,5 milhões de pessoas que necessitam de ajuda humanitária. O especialista reiterou a necessidade de uma solução política na Síria e ressaltou que “não há possibilidade de uma solução militar.” (Correio do Brasil, 22/09/2012).
Esta é a verdade.
Por que o império quer a guerra  
Porém, os grandes meios de comunicação da burguesia com o objetivo de convencer os povos da necessidade de mais uma guerra imperialista divulgam mentiras e mais mentiras certos do que afirmou o ministro da Propaganda de Hitler, o nazista Joseph Goebbles: “Uma Mentira contada mil vezes, torna-se uma verdade”.
Na realidade, o que está por trás da atual guerra que se desenvolve na Síria e que já matou mais de 25.000 sírios é o interesse das potências imperialistas em controlar uma nação que produz petróleo e gás natural – por dia, a Síria produz 380 mil barris de petróleo e tem reservas de 2,5 bilhões de barris e 240 bilhões de m3 de gás natural –; está situada na região estratégica do Oriente Médio  e faz fronteira com Iraque, Irã, Turquia, Líbano e Israel. Ademais, a Síria, até por força das circunstâncias, pois tem parte de seu território nas colinas de Golã ocupado por Israel desde 1967,  é um país que tem apoiado a luta pelo Estado da Palestina e tem em seu território quase 500 mil refugiados palestinos.
Dessa forma, a substituição do atual governo sírio por um governo submisso à dominação dos EUA, da França e da Inglaterra na região, além de garantir aos monopólios desses países o controle sobre petróleo e gás, também enfraquece o Irã, a luta do povo palestino e facilita o controle político do Oriente Médio. Em resumo, se trata de mais uma guerra para assegurar os interesses de multinacionais como a Exxon, BP, Chevron, Barrick Gold, Shell, Total, Monsanto, HSBC, Deutsche Bank, Goldman Sachs, entre outros e de criar demanda para a indústria militar dos países imperialistas: a Boeing (EUA), a Northrop (EUA), a General Dynamics (EUA), a Raytheon (EUA), a BAE Systems, a EADS (europeia), a Finmeccanica (italiana), a L-3 Communications (EUA) e a United Technologies (EUA).
De fato, há várias comprovações da existência de paramilitares a serviço da CIA na Síria e o governo denunciou na ONU a existência de 60.000 mercenários pagos pelas potências imperialistas atuando no país.
O chamado Exército Livre da Síria recebe há muito dinheiro e armas da Inglaterra, da França e dos EUA. Segundo a BBC, agência de notícias inglesa, o governo britânico entregou mais de 7 milhões de dólares em “abastecimento médico e equipamentos de comunicação’ aos grupos armados sírios. A França, que teve a Síria como colônia até 1949, defendeu, por intermédio do ministro das Relações Exteriores Laurent Fabius que “as zonas liberadas sírias que estão sob controle dos rebeldes recebam ajuda financeira, administrativa e sanitária.” O chanceler francês prometeu ajuda de 5 milhões de euros (R$ 12,8 milhões) aos opositores.
A Secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, anunciou no último dia 29 mais US$ 30 milhões de assistência em alimentos, água e serviços médicos e mais 15 milhões em “equipamentos de comunicação” à oposição política não-armada”.
Ora, apesar da ONU adotar sanções contra a Síria – o governo sírio é reconhecido pela organização e por centenas de países – uma intervenção como essa que ocorre no país fere todas as leis internacionais e mostra que há muito o imperialismo jogou na lata do lixo o princípio da convivência pacífica entre os países e o respeito à autodeterminação das nações.
São essas, portanto, as razões que asseguram que mais uma guerra imperialista está a caminho. Tal situação coloca perante todos os homens e mulheres livres que não querem nem aceitam uma ditadura mundial do capital e a escravidão da humanidade por um punhado de países imperialistas governados por meia dúzia de bancos e de monopólios, a questão de o que fazer para deter esses genocídios e impedir que novas guerras sejam desencadeadas por potências capitalistas. Tais potências, mergulhadas numa profunda e grave crise econômica, veem como sua salvação aumentar a exploração dos trabalhadores, abocanhar as riquezas dos povos e dominar o mundo. Com a palavra Che Guevara: “O imperialismo capitalista foi derrotado em muitas batalhas parciais. Porém é uma força considerável no mundo e não se pode aspirar à sua derrota definitiva sem o esforço e o sacrifício de todos”¹.

Luiz Falcão é membro do comitê central do PCR

Notas

¹ Che Guevara. Discurso em Seminário Econômico de Solidariedade Afroasiática. 1965)

Comunistas checos são segunda força


Governo conservador perde metade da votação
O Partido Comunista da Boémia Morávia (KSCM) alcançou um resultado histórico nas eleições regionais, realizadas dias 12 e 13, em simultâneo com a primeira volta do escrutínio de um terço do Senado.
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Já com praticamente todos os votos contabilizados, os comunistas checos obtiveram a maior votação de sempre a nível regional, desde que este sufrágio foi instituído em 2000. Em comparação com a eleição de 2008, o KSCM passou de 15,05 por cento, 114 eleitos, e 438 024 votos (terceira força eleitoral) para 20,44 por cento, 182 eleitos e 538 953 votos.
Este poderoso avanço foi obtido à custa do enfraquecimento dos dois principais partidos, CSSD (sociais-democratas) e ODS (conservadores) actualmente no poder, que perderam juntos 153 lugares e 23,55 por cento dos votos.
Particularmente acentuada foi a descida dos conservadores que passaram de 23,27 para 12,29 por cento, enquanto os sociais-democratas baixaram de 35,85 para 23,58 por cento.
O progresso eleitoral dos comunistas traduziu-se ainda na conquista de duas das 13 regiões do país, Karlovy Vary e Ústí nad Labem, ambas situadas na Boémia. Por seu lado, os sociais-democratas venceram em nove regiões, enquanto os conservadores apenas conseguiram manter a região de Pilsen, ficando ainda Liberec nas mãos de uma formação regional (SLK).
Nas eleições para o Senado, câmara alta do Parlamento, que decorrem em duas voltas, os comunistas têm 12 candidatos apurados, quatro deles em posição de liderança, os conservadores contam com dez candidatos na corrida, dos quais cinco venceram a primeira volta, havendo 23 candidatos sociais-democratas, 11 deles vencedores. Os nove restantes (com cinco na liderança) distribuem-se por pequenos partidos e coligações.
Na segunda volta para o Senado estão em disputa 27 dos 81 lugares daquele órgão.
Os resultados mostram uma severa punição do governo conservador, liderado por Petr Necas, responsável por cortes orçamentais antipopulares e desacreditado por vários escândalos de corrupção.
A fraqueza do actual executivo foi de resto reconhecida pelo presidente conservador Vaclav Klaus, que fez saber, no domingo, que considera o resultado da eleição «tão claro, inequívoco e compreensível que não requer nenhuma interpretação complicada». Segundo o seu porta-voz, Klaus está «convencido de que todos compreenderam o resultado e que todos retiraram as suas conclusões para si próprios».
As palavras do chefe do Estado prenunciam a queda do governo de Necas, cuja demissão já foi pedida pelos sociais-democratas.

Fonte: AVANTE

domingo, 21 de outubro de 2012

Che Guevara: uma biografia - Jon Lee Anderson

 





O anjo e o demônio
“Ali, onde o amor desperta, morre o eu, déspota sombrio”
O ser humano é multifacetado e esta é a beleza da humanidade Não somos nem anjos e nem demônios, mas um amálgama de desejos, sonhos e ações. Ainda assim, tendemos a cair na armadilha do maniqueísmo. A forma como analisamos a vida e a morte do revolucionário argentino Ernesto “Che” Guevara é um exemplo disso.
Quarenta e cinco anos após sua execução na Bolívia, sua imagem ainda divide opiniões, apaixonadamente. Endeusado por setores da esquerda como exemplo da pureza socialista, de homem de bem. Execrado por setores da direita como um assassino sanguinário, personificação do mal. Ambas as leituras deixam de lado o ser humano Ernesto. Menino, adolescente, homem repleto de virtudes e de defeitos, desejos e esperanças.
A maioria das obras sobre sua vida é formada por hagiografias oficiais cubanas ou demonizações montadas por inimigos políticos. É fato que Che encarnou todo o horror proveniente da cegueira ideológica que justifica os atos mais monstruosos em nome de uma causa superior, de uma verdade absoluta. É fato, também, que abriu mão de tudo o que estimava para lutar e morrer em um campo de batalha estrangeiro tendo em mente a construção de um mundo melhor.
Fruto de um trabalho hercúleo do escritor Jon Lee Anderson, o livro “Che Guevara: uma biografia” – cuja edição revisada foi lançada recentemente e cuja leitura finalizei esta semana – aborda com maestria esta dicotomia em uma viagem fascinante pela vida e pensamento de Che.
O livro de Anderson nos leva a uma jornada que aponta os caminhos que concretizaram a formação de seu caráter e, posteriormente, a construção de sua base político-ideológica que desagua em uma série de acontecimentos que transformaram um jovem argentino de classe privilegiada em um revolucionário internacional, revelando, ainda, como, no choque entre a bigorna e o martelo, surgiu um homem apaixonado por uma ideia e disposto a matar e morrer por ela.
Confrontado pelas marcantes diferenças sociais com que se deparou em suas andanças pelas Américas do Sul e Central na década de 50, e pela constante e despótica ingerência norte-americana na região durante o início da Guerra Fria, Che alimentou pouco a pouco uma concepção de mundo na qual o enfrentamento entre as massas exploradas do continente e o imperialismo norte-americano seria inevitável. Posteriormente, esta concepção encontrou o respaldo teórico no marxismo e, em última instância, na luta armada.
Para Che, a política era um mecanismo para as mudanças sociais e eram elas, e não o poder em si, que o impeliam. Mas é exatamente na manipulação prática do poder, em uma opção ideológica focada no marxismo, que repousa o principal equivoco de Che (e dos demais movimentos revolucionários de esquerda que irromperam no entre as décadas de 60 e 70): a supressão do indivíduo e da individualidade pela força e pela coerção, a adoção da “fé socialista” em detrimento das mais básicas noções de humanidade. Em suas próprias palavras: “Não lhe posso dizer, nem aproximadamente, em que momento deixei o caminho da razão e adotei algo parecido com a fé, porque o caminho foi muito longo e com muitos passos para trás.”.
Este caminho, cujo início é marcado por “Nota al Margen”, texto escrito por Che em Buenos Aires retratando suas experiências na Guatemala, levou-o a uma encruzilhada que, alguns anos depois, culminou em sua morte.
“O futuro pertence ao povo e, pouco a pouco, ou de um só golpe, ele vai tomar o poder, aqui e no mundo inteiro. O ruim é que eles têm de se civilizar e isso não pode acontecer antes, mas só depois que tomarem o poder. Eles se tornarão civilizados somente aprendendo às custas de seus próprios erros, que serão graves, e que custarão muitas vidas inocentes. Ou talvez não, talvez não sejam inocentes, porque terão cometido o imenso crime contra natura, que significa sua falta de capacidade de se adaptar. Todos eles, todos os que não forem adaptáveis, você e eu, por exemplo, morrerão amaldiçoando o poder que nós, com enorme sacrifício, ajudamos a criar”.
O texto acima é a primeira expressão de Che da abstração do “eu” em prol do “nós”. Ocorre que não existe “nós” sem o “eu”.
“Quando a sociedade chega a certo estágio de desenvolvimento e é capaz de iniciar a dura luta de destruir o poder opressor, de destruir seu braço forte, o Exército, e de tomar o poder, então o homem recupera uma vez mais a antiga sensação de felicidade no trabalho, a felicidade de cumprir com um dever, de se sentir importante dentro do mecanismo social. Torna-se feliz por se sentir um dente na engrenagem, um dente que tem suas próprias características e é necessário, embora não indispensável, para o processo produtivo, um dente consciente, um dente que tem seu motor próprio, e que tenta conscientemente esforçar-se mais e mais a fim de levar a um feliz desfecho uma das premissas da construção do socialismo: a criação de uma quantidade suficiente de bens de consumo para toda a população.”
O hábito de Che de se referir ao povo, aos trabalhadores, como peças de maquinaria permite vislumbrar seu distanciamento emocional da realidade individual. Ele tinha a mentalidade friamente analítica do pesquisador médico e do jogador de xadrez. Os termos que empregava para os indivíduos eram redutores, enquanto o valor do trabalho no contexto social era idealizado, apresentado liricamente.
Em carta a mãe, disse: “A noção do ‘eu’ desapareceu inteiramente, para dar lugar a noção do ‘nós’. Era um ponto da moral comunista e, naturalmente, pode parecer um exagero doutrinário, porém realmente foi (e é) maravilhoso ser capaz de sentir a remoção do ‘eu’”.
“Che Guevara agora estava em guerra, tentando criar uma revolução. Fizera um salto consciente de fé e entrara em um domínio no qual se podiam tomar vidas por um ideal e os fins de fato justificavam os meios. As pessoas não eram mais apenas pessoas. Cada uma representava um lugar dentro de um esquema global das coisas e poderia ser vista, na maioria das vezes, como amiga ou inimiga”, reflete Anderson.
Che abraçara a revolução como a encarnação definitiva das lições da história e como o caminho correto para o futuro. Agora, convencido de que estava certo, olhava em volta com os olhos de um inquisidor em busca daqueles que poderiam pôr em perigo sua sobrevivência.

É exatamente este ponto da personalidade de Che, a capacidade abstrair-se do indivíduo, da micro-humanidade, em prol de uma visão macro do homem é que mais me fascina, de uma forma negativa, porém. Seu pai, geralmente tão míope em relação ao filho, escreveu: “Ernesto tinha brutalizado sua própria sensibilidade” para se tornar um revolucionário.
Alberto Granado – que percorreu a América Latina com Che em 1952 - recordou uma conversa em que assinalou o que, na sua opinião, era a diferença fundamental entre os dois. Che era capaz de olhar pela luneta de um fuzil para um soldado e puxar o gatilho, sabendo que, ao mata-lo, estava “salvando 30 mil futuras crianças de viver na fome”, enquanto ele, Granado, veria um homem com esposa e filhos.
Este afastamento da realidade – mesmo que em prol de um ilusório bem maior – é o grande símbolo dos totalitarismos de esquerda, a vala na qual todas as experiências do socialismo real atolaram e sucumbiram.
O trecho a seguir é um exemplo da frieza cortante do revolucionário.
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Alguns dias depois, os irmãos testemunharam um exemplo da justiça sumária de Che. Enrique Acevedo relembrou essa ocasião de forma vívida: “De madrugada, trouxeram um homem grande, com uma farda verde, cabeça raspada como os militares, bigodes grandes: é [René] Cuervo, que anda causando encrencas na zona de San Pablo de Yao e de Veja la Yua. Cometeu abusos sob a bandeira do 26 de Julho (...). Che o recebe deitado na rede. O prisioneiro lhe estende a mão, mas não encontra resposta. O que dizem não chega aos nossos ouvidos, embora se perceba que o tom é duro. Parece ser um julgamento sumário. No final, [Che] o manda embora com um gesto de desprezo com a mão. Levam-no para uma ravina e o executam com um rifle de calibre 22, tendo que dar três tiros. [Finalmente] Che salta da rede e berra: Basta!
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A banalização da vida também é marcada por este trecho do diário de Che no qual ele se admoesta por uma “fraqueza” durante os combates. “Houve um pequeno combate e recuamos com muita rapidez. A posição era ruim e eles nos cercavam, mas oferecemos uma pequena resistência. Pessoalmente, notei algo que nunca sentira antes: a necessidade de viver. Isso precisa ser corrigido na próxima oportunidade.”.
Ora, nada mais amedrontador. Um homem capaz de suprimir sua própria necessidade de viver, fatalmente ampliará esta exigência aos demais. Não seria incorreto imaginar que Fidel Castro usou esta faceta de Che para que o argentino fizesse o trabalho sujo enquanto Castro tratava de assegurar sua liderança frente aos muitos grupos políticos envolvidos na vitória da revolução sob a bandeira do Movimento 26 de Julho.
Para Anderson, Fidel precisava de Che para a indispensável tarefa de expurgo do antigo Exército, para consolidar a vitória aplicando a justiça revolucionária contra os traidores, os chivatos (informantes do regime) e os criminosos de guerra de Batista. Che se transformou no promotor supremo, aquele que tomava a decisão final sobre o destino dos homens. E, pela revolução, não se furtou desta incumbência.
Em Janeiro de 1960 o arquiteto Nicolás Quintana teve um encontro marcante com Che – já um prócere da revolução. “Ele me disse: ‘Olhe, as revoluções são feias, porém necessárias, e parte desse processo revolucionário é a injustiça a serviço da justiça futura’”, recordou Quintana. “Jamais conseguirei esquecer essa frase. Repliquei que isso era a Utopia de Thomas Moore. Disse que nós tínhamos ficado na merda por causa dessa história durante muito tempo, por acreditarmos que conseguiríamos alguma coisa, não agora, mas no futuro.
Che ficou olhando para mim por um tempo e falou: ‘Bem. Você não acredita no futuro da revolução.’ Eu lhe disse que não acreditava em nada que fosse baseado na injustiça."
Che então lhe perguntou: “Mesmo que a injustiça seja salutar?”
Ao que Quintana retrucou: “Não creio que, para os que morrem, você possa falar em injustiça salutar.”
A resposta de Che foi imediata: “Você tem que deixar Cuba. Tem três opções: vai embora de Cuba e não há problema nenhum comigo, ou trinta anos [na prisão] no futuro próximo, ou o pelotão de fuzilamento.”
É fascinante perceber que por detrás desta frieza havia também um homem amoroso, ainda que este amor estivesse profundamente contaminado pela ideologia.
Em sua carta de despedida aos cubanos ao embarcar secretamente a Bolívia, Che diz: “Deixem-me dizer, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado por fortes sentimentos de amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem essa característica. Este é, talvez, um dos maiores dramas de um líder: ele precisa combinar um espírito apaixonado com uma mente fria, e tomar decisões dolorosas sem mexer um músculo. Nossos revolucionários de vanguarda precisam idealizar seu amor pelo povo, pelas causas mais sagradas, e torna-lo uno e indivisível. Eles não podem se rebaixar, com pequenas doses de afeto diário, aos lugares onde os homens comuns põem seu amor em prática”.
Em Che, a nossa dicotomia humana está presente, à flor da pele, escancarada. Eles estão ali, visíveis, o anjo ao lado do demônio.
“O que o levou a resolver operar em nosso país?”, perguntou o Coronel Andrés Selich ao seu prisioneiro, Che Guevara, em La Higuera, na Bolívia, sete anos depois do encontro com Quintana.
“O senhor não vê o estado em que vivem os camponeses?”, perguntou Che. “São quase como selvagens, vivendo em um estado de pobreza que deprime o coração, tendo apenas um aposento no qual dormem e comem, sem roupas para vestir, abandonados como animais (...).”
É terrível observar uma de suas últimas fotos, na qual Che aparece como uma fera selvagem subjugada, o rosto magro voltado sombriamente para baixo, os cabelos compridos emaranhados, os braços amarrados na frente do corpo, ao lado do agente cubano-norte americano Félix Rodriguez, da CIA, logo após a execução de Willy (Simeón Cuba Sarabia).
Seus últimos momentos, narrados por Anderson, são de uma força emocional estupenda e nos fazem conjecturar se no fim ele pensou em si mesmo como um homem, um indivíduo real em meio à coletividade subjetiva.
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Rodriguez levou Che de volta para dentro da escola e retomaram a conversa, mas foram interrompidos por mais disparos. Dessa vez o executado foi, ao que consta, Juan Pablo Chang, que fora capturado, ferido, e trazido com vida naquela manhã. A essa altura, os corpos de Aniceto e Pancho, que tinham sido abatidos na ravina, também estavam ali. “Che parou de falar”, recordou Rodriguez. “Não disse nada sobre os tiros, mas seu rosto espelhava tristeza e ele sacudiu a cabeça várias vezes, lentamente, de um lado para o outro. Talvez tenha sido nessa instante que se deu conta de que ele também estava condenado, embora eu não lhe tenha dito nada até pouco antes de uma da tarde”.
Rodriguez viu que não podia retardar mais e voltou para dentro da escola. Entrou na sala de Che e disse que estava triste, que fizera tudo que podia, mas as ordens tinham vindo do alto-comando boliviano. Ele não terminou a frase, mas Che entendeu. Seguindo Rodríguez, o rosto de Che ficou momentaneamente pálido, e ele disse: “É melhor assim (...). Eu nunca deveria ter sido capturado vivo”.
Rodriguez perguntou se ele tinha alguma mensagem para sua família, e Che lhe pediu para “dizer a Fidel que ele logo verá uma revolução triunfante na América (...) E diga à minha mulher que se case de novo e tente ser feliz”.
Diante disso, Rodríguez contou, ele deu um passo à frente para abraçar Che. “Foi um momento tremendamente emocionante para mim. Não o odiava mais. Sua hora da verdade tinha chegado e ele estava se portando como homem. Estava encarando sua morte com coragem e elegância.”
Pouco depois Che foi fuzilado pelo sargento Mario Terán, era uma e dez da tarde do dia 9 de outubro de 1967. Ele tinha 39 anos.

Crianças fora da escola

 



  
 
No mundo, 215 milhões de meninos e meninas trabalham para sobreviver ou complementar a renda de suas famílias
 
 
Frei Betto no BRASIL DE FATO
 
Os dados, divulgados pelo IBGE em fins de julho, são alarmantes: 3% do total de crianças brasileiras de 6 a 14 anos se encontram fora da escola, o que representa quase 1 milhão de excluídos dos bancos escolares. Se incluirmos o contingente de 4 e 5 anos e de 15 a 17, o percentual aumenta para 8%, ou seja, 3,8 milhões de crianças e adolescentes.
O Amazonas é o estado que apresenta maior número de crianças de 6 a 14 anos fora da escola – 8,8%. Ali, as distâncias e as dificuldades de transporte pesam no índice. Já Santa Catarina aparece na pesquisa como o estado onde há maior inclusão escolar. Apenas 2,2% daquela faixa etária estão fora da escola.
Nenhum estado do país conseguiu, até hoje, incluir todas as crianças de 6 a 14 anos na escola. A pesquisa do IBGE revela ainda que, dessas crianças desescolarizadas, 62% já frequentaram a escola por algum tempo, mas abandonaram os estudos.
As razões da evasão escolar precoce são muitas. As mais frequentes, porém, são a falta de interesse (falha pedagógica dos educadores), repetência, gravidez precoce e o imperativo de ingressar no mercado de trabalho para ajudar a família.
A desescolaridade provoca na criança e no adolescente baixa autoestima, tornando-os vulneráveis a propostas ilusórias de enriquecimento e consumismo fáceis através do tráfico de drogas e outras práticas criminosas.
O programa “Todos pela educação”, do qual participo, estabelece 5 metas até 2022, data do bicentenário da independência do Brasil: 1) 98% das crianças e jovens entre 4 e 17 anos devem estar matriculados e frequentando a escola; 2) 100% das crianças deverão apresentar as habilidades básicas de leitura e escrita até o final da 2a série ou 3o ano do ensino fundamental; 3) 70% ou mais dos alunos terão aprendido o que é essencial para a série que cursam; 4) 95% ou mais dos jovens brasileiros de 16 anos deverão ter completado o ensino fundamental e 90% ou mais de 19 anos deverão ter completado o ensino médio; 5) O investimento público em educação básica deverá ser de 5% ou mais do PIB.
São metas elementares e, no entanto, essenciais para qualificar as gerações futuras e permitir ao nosso país acesso ao desenvolvimento sustentável com justiça social. Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT ), no mundo 215 milhões de meninos e meninas trabalham para sobreviver ou complementar a renda de suas famílias. Dessas crianças, metade está exposta a condições degradantes de trabalho, como escravidão, servidão por dívidas, exploração sexual com fins comerciais e atuação em conflitos armados.
O governo brasileiro já desenvolve intensa campanha contra a exploração sexual de crianças e o trabalho infantil. No entanto, é preciso aprimorar o combate a toda forma de violência contra crianças, em especial no âmbito familiar. Há que considerar também como violência à infância a extrema pobreza e determinados conteúdos do ciberespaço, pelo qual atuam os pedófilos e disseminadores de pornografia.
 
Frei Betto é escritor, autor do romance Minas do ouro (Rocco), entre outros livros.

sábado, 20 de outubro de 2012

80 anos – A linhagem sagrada de Andrei Tarkovsky

 


Andrei Tarkovsky (1932-1986): apenas sete filmes lhe garantiram um lugar central na história do cinema | Foto: Divulgação
Publicado na Revista Continente
 
Andrei Tarkovsky entrou para a história do cinema com apenas sete longas-metragens, cinco deles feitos na União Soviética e os outros dois na Itália e na Suécia, na década de 1980, já no exílio. Seu legado, entretanto, não é exclusivamente cinematográfico. Seguindo uma tradição russa de artistas que são também teóricos da arte – entre o final do século 19 e o começo do século 20, Tolstoi escrevera seu polêmico ensaio O que é a arte?, Kandinsky, o livro Do espiritual na arte, e Malevitch, junto com o poeta Maiakovsky, o Manifesto Suprematista –, Tarkovsky escreveu (“por falta de coisa melhor a fazer”, como ele dizia) um dos mais influentes e poderosos escritos teóricos sobre o cinema: o livro Esculpir o tempo.
Tarkovsky – cujo pai, Arseni, era poeta – nasceu num pequeno vilarejo a cerca de 350 quilômetros de Moscou, em abril do ano de 1932. A família com esse nome surgiu há aproximadamente sete séculos, e, até meados do século 19, o Principado Tarkovsky existiu na região do Cáucaso – sua linhagem espiritual, contudo, parece ser muito mais antiga do que a genealógica.
O apuro visual de A infância de Ivan (1962) | Foto: Divulgação
Depois de realizar o seu primeiro longa-metragem, A infância de Ivan (1962), que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza, concorrendo com diretores como Kubrick, Godard e Pasolini, Tarkovsky partiu para um ambicioso projeto: retratar uma figura central da cultura e da ortodoxia russa, Andrei Rublev, pintor de ícones do século 15. A falta de informações existentes sobre a vida de Rublev, em vez de uma dificuldade, foi uma grande oportunidade para o seu gênio criador. O resultado foi um filme de 3 horas e 20 minutos, em preto e branco, com exceção da cena final, colorida, em que surgem os ícones dourados pintados por Rublev.
O épico Andrei Rublev: obra-prima absoluta | Foto: Divulgação
Ao fazer um épico sobre o pintor de ícones medieval, que incorpora uma tradição pictórica que vem desde Bizâncio, Tarkovsky não se liga a uma tradição de arte religiosa de inspiração cristã? O fato é que ele viveu num contexto político em que esses temas religiosos, se não proibidos, eram mal vistos pelas autoridades soviéticas, que então seguiam a cartilha marxista-leninista. Rublev, contudo, era uma símbolo internacional da arte russa, e o quinto centenário do seu nascimento ajudou Tarkovsky a aprovar ideológica e financeiramente o seu projeto.
Depois de pronto, entretanto, o filme foi apresentado ao presidente soviético Leonid Brejnev e, em seguida, censurado, sob alegação de passar uma imagem negativa da história da Rússia. Apesar da censura, o diretor do Festival de Cannes já havia visto a película e, junto à direção do Festival de Veneza, ameaçou não incluir mais nenhum filme soviético, caso Rublev não fosse permitido. O filme não só participou em Cannes como ganhou o prêmio da crítica internacional, o que possibilitou a sua exibição em todo o mundo.
O interesse de Tarkovsky na história residiu no profundo paradoxo entre a obra de Rublev, reconhecida universalmente pela serenidade e harmonia, e o contexto social em que ele viveu, de guerras sangrentas, fome e morte – tudo que foi retratado no filme e que desagradou as autoridades soviéticas. Terá Tarkovsky, homem de interesses metafísico-religiosos, vivendo em plena Guerra Fria na União Soviética, se identificado com a situação paradoxal de Rublev? A questão é mais ampla do que essa. Parece haver uma afinidade estética entre ele e o pintor medieval, e, mais do que estética, uma afinidade espiritual entre a sua arte imagética e a tradição iconográfica.
“Se eu usar cores muito marcantes o filme se caracterizará por elas” | Foto: Divulgação
Ídolo e ícone
No livro O ícone – Uma escola do olhar, Jean-Yves Leloup faz uma distinção entre ídolo e ícone. O primeiro seria qualquer forma de representação religiosa que prende o olhar em si mesmo, pelas formas, cores ou movimentos que chamam a atenção, provocando emoções. O ícone, ao contrário, não tem movimento nem profundidade, as cores e formas obedecem a padrões tradicionais. Nele, a transcendência é o fator essencial, a intenção é mostrar o “Invisível no visível, Presença na aparência”. Mas como relacionar uma arte tão antiga como a iconografia com uma tão nova como o cinema? Tarkovsky criticava tanto o modelo de criação cinematográfica que coloca a emoção como objetivo primordial, a saber, o modelo hollywoodiano de cinema comercial, como o modelo que coloca o intelecto no centro dessa atividade – os chamados filmes de arte.
Ele se mostrou profundamente decepcionado, por exemplo, com o que viu nos festivais de Cannes dos quais participou, de diretores como Fellini, Polanski, etc. Podemos dizer que o cinema que Tarkovsky rechaça seria como o ídolo de que fala Leloup? Para ele, “um artista sem fé é como um pintor que houvesse nascido cego”: a “função” do seu cinema é, portanto, essencialmente espiritual. Ele se recusava a usar cores vivas nos seus filmes (“Se eu usar cores muito marcantes o filme se caracterizará por elas”), repelia a expressividade excessiva dos atores (o recém falecido Erland Josephson, ator preferido de Bergman, afirmou certa vez, em entrevista, a imensa dificuldade em interpretar como Tarkovsky queria: sem emoção, de modo que o espectador pudesse livremente interpretar o que estivesse vendo). Além disso, ele dispensava o uso da música como muleta para produzir efeitos pré-definidos e, o que foi motivo da sua principal divergência com Eisenstein, negava os excessos da montagem.
Enfim, Tarkovsky buscava a pureza, podemos dizer até infantil, do olhar cinematográfico, que aspira a um hieróglifo da verdade – o mesmo poderia ser dito do ícone e sua tradição, com os quais Tarkovsky, desde muito cedo, teve contato em seu país natal. As semelhanças são profundas e podem indicar uma ancestralidade espiritual, coisa estranha a uma arte nova como o cinema, mas que é muito rica para a compreensão do fenômeno artístico como um fenômeno que transcende o tempo e o espaço.
1 Josias Teófilo, jornalista, é mestrando em Filosofia pela Universidade de Brasília com o tema A cumplicidade espiritual: o papel social do artista segundo Andrei Tarkovsky no filme Andrei Rublev.
Foto: Divulgação

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Para aonde vai a “Democracia Socialista”? Final

 


Andreas Maia no ESQUERDA MARXISTA
 
A DS, o Estado e a Revolução
 
Chegamos na última parte de nossa polêmica com a DS, a mais importante¸ dedicada ao Estado capitalista. A discussão sobre o papel do Estado capitalista sempre esteve presente na polêmica entre todos os defensores da estratégia reformista e os revolucionários marxistas. Os dirigentes da DS conhecem bem esta discussão, pois ela sempre esteve presente em todos os grandes debates ocorridos no movimento operário brasileiro, e em particular, dentro da luta interna no PT. Desde o 5º ENPT, em 1987, que consagrou o reformismo das Frentes Populares, até o recente 4º Congresso que ratificou a política do governo Dilma Roussef, o fio condutor de toda a discussão entre as tendências do partido, no fundo, estava a questão do papel do Estado.
Vejamos o que a DS diz hoje sobre o Estado:
“Uma tradição do socialismo democrático deve ser capaz de superar estes limites teóricos e históricos da social-democracia a partir da perspectiva de construção de um novo Estado, baseado no autogoverno e no planejamento democrático, que conduza a uma afirmação inédita dos direitos dos trabalhadores e a um planejamento púbico democrático, capaz de se projetar continentalmente e internacionalmente em torno de um programa de mudanças da ordem capitalista”. E continua:
“A construção de um Estado da Solidariedade, Feminista, Multiétnico, a partir dos valores do socialismo democrático, é possível e viável historicamente pela conquista do governo por parte de uma coalizão liderada por um partido do socialismo democrático por longo período em uma dinâmica crescente de revolução democrática e, pelo caráter semi-periférico do país que já construiu elementos públicos importantes de formação de um Estado do Bem-Estar social, apresentando um quadro crescente de formalização da mão-de-obra e de cobertura previdenciária. A possibilidade de que o Brasil viva um novo ciclo sustentado, inclusivo e distributivo, de crescimento significa exatamente a criação de uma massa crescente de excedentes que podem e devem ser reinvestidos em políticas sociais de caráter universalizante, conformando uma macro-economia dinâmica do setor público na área de bens e serviços fundamentais”.
Que Estado é esse da “Solidariedade, Feminista, Multiétnico” e do “Bem Estar Social”? Qual o caráter de classe deste Estado? Que coalizão é essa “liderada pelo partido do socialismo democrático” que vai construir esse novo Estado? A linguagem ambígua e rebuscada do texto serve para ocultar a verdadeira natureza da proposta. Um militante da DS para entender a política dos seus chefes vai ter que fazer uma enorme ginástica intelectual. Vamos tentar entender. A DS afirma em suas teses que não está na ordem do dia a abolição do capitalismo, pois “o país não tem cultura” para isso. Portanto estamos falando do Estado capitalista, mas isso eles não dizem. Falam do Estado da “Solidariedade, Feminista, Multiétnico”  que vai gerar o “Estado de Bem Estar Social”. Se nesta proposta consiste em preservar as relações de propriedade existentes, então a DS acabou de inventar o capitalismo de “Bem Estar Social” e um Estado burguês “solidário, feminista e multiétnico”, pois é disto que eles estão falando só que usam expressões sofisticadas e rebuscadas para deliberadamente  ocultar o fato de que o único poder que eles reconhecem é o poder da burguesia.
Isto é tão verdadeiro que a “coalizão liderada por um partido do socialismo democrático” que vai implementar “uma dinâmica crescente de revolução democrática” é a coalizão que existe, com a base aliada, com os partidos burgueses, com Sarney, Collor, Michel Temer e Sergio Cabral & Cia. Pois até agora são esses os aliados do PT no governo, e não os sindicatos, a CUT, as organizações populares. Pois do contrário, a DS deveria exigir que o PT rompa com os ministros capitalistas, com os partidos burgueses. Mas isso ela não faz. A resposta para esta atitude vem adiante:
“A possibilidade de que o Brasil viva um novo ciclo sustentado, inclusivo e distributivo, de crescimento significa exatamente a criação de uma massa crescente de excedentes que podem e devem ser reinvestidos em políticas sociais de caráter universalizante, conformando uma macro-economia dinâmica do setor público na área de bens e serviços fundamentais”.
Não podia ser mais claro. Trata-se aqui de expandir o capitalismo, o agro negócio, as commodities, o poder dos monopólios multinacionais, a especulação financeira, as privatizações, a devastação ambiental, o regime social de exploração da classe trabalhadora, e gerar com isso, quem sabe, um “excedente” para as compensações sociais. Ou seja, as migalhas que caem da mesa dos capitalistas, empresários e banqueiros e que vão desaparecer como fumaça na hora em que capitalismo entra em crise. E tudo isso em nome de uma república fictícia chamada de “Solidariedade Feminista Multiétnica” e de uma via para um socialismo a ser comemorada nos dias festas. Dessa forma, esse “novo Estado” refundado, com um caráter tão nobre e democrático, não passa do velho aparato burocrático militar do Estado capitalista, que se mascara na política oficial do “governo para todos”. A função dos reformistas no governo consiste em mascarar a natureza do Estado através das políticas de colaboração de classes, que no fundo, consistem em enganar a classe trabalhadora e sabotar a sua força reivindicativa.
Mas fazemos questão de desmascarar estes oportunistas mostrando o que o marxismo revolucionário entende pela natureza do Estado capitalista. Vamos retomar aqui alguns conceitos clássicos do marxismo.
O Estado é produto de contradições de classe inconciliáveis. Segundo o marxismo revolucionário, o Estado é um organismo de dominação de classe, um organismo de opressão de uma classe por outra; é a criação de uma “ordem” que legaliza e fortalece esta opressão diminuindo o conflito de classes.
Lênin deixa bem claro a natureza do estado que os reformistas fazem questão de ocultar:
“Mas perde-se de vista ou se oculta o seguinte fato: se o Estado nasce do fato de que as contradições de classe são inconciliáveis, se ele é um poder colocado acima da sociedade e que se torna cada vez mais estranho a ela, está claro que a libertação da classe oprimida é impossível, não sómente sem uma revolução violenta, mas também sem a supressão do aparelho do poder do Estado que foi criado pela classe dominante e no qual está materializado este caráter estranho.” (Lênin, O Estado e a Revolução).
Aí está de forma clara e cristalina o verdadeiro conceito marxista acerca do Estado burguês. Esse aparelho burocrático do Estado capitalista “cada vez mais estranho à sociedade” é um instrumento de dominação da burguesia sobre o proletariado e a todas as massas oprimidas. É um instrumento de opressão que pode e deve ser destruído por meio de uma revolução e não por reformas graduais como dizem os reformistas. O esqueleto do aparelho de estado burguês deve ser destruído osso por osso. Por se recusarem a romper com a burguesia, expulsando-a do poder, os reformistas podem ter o governo mas não o poder. É por isso que a política reformista sempre fracassa, não faz reforma alguma e aplica duramente todas as políticas preconizadas pela burguesia.
O Estado é um comitê para melhor gerir os negócios da burguesia. Os reformistas dentro da classe operária fazem de tudo para mistificar o papel do Estado, um “Estado para todos”, onde seria possível introduzir reformas sociais no sentido de melhorar as condições de vida da classe trabalhadora. Na realidade não conseguem. O Estado capitalista é um instrumento de dominação de classe e portanto tem como meta regular a economia capitalista favorecendo a expansão dos negócios da burguesia. Qualquer que seja a politica econômica adotada, o Estado capitalista não vai contra os interesses da classe dominante. Conforme vimos acima, quando o Estado faz o contrário, sob pressão das massas – que obriga os dirigentes operários reformistas a introduzirem medidas sociais que prejudicam os capitalistas – estes deixam de investir gerando uma crise econômica e política generalizada. Foi o que acontecu no Chile durante a Unidade Popular em 1973 e que agora acontece na Venezuela. Sabendo disso, os reformistas acabam fazendo o papel de facilitadores da economia capitalista ao invés de defenderem as reivindicações dos trabalhadores. É o que faz o PT nos governos Lula-Dilma. Governam para os capitalistas. Quer melhor exemplo disso qe o propagado PAC (Programa de Aceleração de Crescimento) cujo objetivo é aplicar no país a política do “quanto mais capitalismo melhor”? O problema é que a economia capitalista entra em crises periódicas, decorrentes do fato de que as forças produtivas da sociedade estão contidas dentro dos marcos estreitos da apropriação privada dos meios de produção e dentro dos limites dos Estados nacionais. A Grécia hoje é um bom exemplo disso onde a crise econômica deslocou os reformistas, o partido socialista, PASOK, que a despeito da maioria da população, insistiram em aplicar no país as medidas draconianas e anti-populares preconizadas pela Comunidade Européia. O que acontece hoje na Grécia é uma projeção do que pode acontecer com o PT no Brasil.
Reduzido a sua forma mais pura, o Estado é um destacamento de elementos armados para defesa da propriedade privada. Esta é uma das características do Estado burguês que conhecemos muito bem. Desde 1964 o Brasil foi governado por uma ditadura militar, por quase duas décadas, oriunda de um golpe que derrubou o governo reformista burguês de João Goulart que tinha perdido o controle sobre os movimentos de massa da classe operária. A ditadura militar criou as condições de uma brutal repressão sobre o proletariado e as suas organizações o que permitiu uma expansão dos negócios do capitalismo no Brasil durante um longo período, chamado na época de “milagre brasileiro”, tendo como base uma superexploração dos trabalhadores e uma integração crescente da economia brasileira com o capital estrangeiro. Mas a ditadura não resistiu ao impetuoso movimento operário grevista de massa que eclodiu a partir de 1978. O capitalismo gerou a sua própria negação. Hoje os reformistas esquecem este fato e alegam que agora as instituições militares e policiais do Estado são “democráticos”. Mas não são. Continuam, mesmo sob a fachada do “estado democrático”, a cumprirem o papel de destacamento armado da burguesia a serviço da preservação da propriedade privada. Na verdade, os reformistas do governo, é que são reféns deste aparato burocrático policial-militar que se eleva por cima da sociedade. Está aí para demonstrar esta verdade o acordo do governo Dilma com a cúpula das Forças Armadas para garantir a impunibilidade dos militares envolvidos com as torturas e assassinatos durante a ditadura. Está aí para demonstrar esta verdade os constantes assassinatos de trabalhadores no campo praticados por forças policais e para-policiais. Está aí para demonstrar também a brutal repressão policial sobre a ocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos, para garantir a reintegração de posse de um terreno abandonado em favor de uma mega especulador da Bolsa, o sr. Naji Nahas, sem que o governo reformista nada pudesse fazer. A lista de exemplos é infinita mas destacamos que, até mesmo a nossa tendência, a Esquerda Marxista, vem sendo alvo de uma tentativa de criminalização por parte do “Estado de direito democrático” por estar a frente do movimento das fábricas ocupadas, que foram falidas e abandonadas pelos seus proprietários, defendendo as reivindicações dos operários, em defesa do emprego e do trabalho.
O velho Engels, em fins do século XIX, um pouco antes de morrer, escreveu uma introdução polêmica do livro de Marx, “As lutas de classes na França”. Nesta introdução Engles sublinhava a mudança que estava ocorrendo nas forças policais e militares dos Estados capitalistas que cada vez mais se profissionalizavam e que tornava inviável o assalto a cidadela capitalista por forças revolucionárias limitadas, Muitos enxergaram neste texto que o coração e a mente do velho tinham amolecido e que o velho companheiro de Marx tinha se transformado em um reformista vulgar. Mas pelo contrário, Engels reafirmava que o aparato policial militar da burguesia só poderia ser destruído, e é disto oque Engels falava, a não ser por uma grande e massiva ação da maioria do proletariado. Foi por esta razão que os guerrilheiros no Brasil foram massacrados e os operários do ABC paulista em 1978-79, ao estimularem uma onde de greves em escala nacional, conseguiram botar a ditadura abaixo.
O Estado capitalista é um aparato burocrático, que se eleva por cima da sociedade, com a finalidade de exercer a dominação de classe, ou seja, a ditadura da burguesia, mesmo sob a forma de uma “república democrática”. Aí está a verdadeira natureza do Estado burguês. Ele é uma ditadura da burguesia. Não importa a forma de governo – fascista, bonapartista ou república democrática – pois é a burguesia, como classe possuidora dos meios de produção, quem “dita” as leis. A ditadura da burguesia é uma ditadura de uma minoria sobre a grande maioria da população. Não adianta mistificar o papel do Estado como faz o PT ao dizer que existe “para todos”. Ou como quer fazer crer a DS em dizer que luta pela “refundação do Estado”. No fundo, defendem a ditadura da burguesia contra a maioria do povo brasileiro. Este é o sentido reacionário, em toda a linha, da política reformista da DS, que acompanha a política de colaboração de classes praticada pela direção do PT, em comum acordo com os governos Lula-Dilma.
Os marxistas revolucionários não defendem a “refundação” do Estado, Mesmo quando defendemos as reivindicações democráticas ou quando chamamos a convocação de uma Assembleia Constituinte, o fazemos, não em nome da defesa da república burguesa “democrática” (a ditadura velada da burguesia) mas sim em nome da defesa das reivindicações dos trabalhadores com o o claro objetivo de destruir, derrubar tijolo por tijolo, do edifício burocrático militar do poder de Estado da burguesia. Nós defendemos a formação de um governo dos trabalhadores como forma de governo de transição na direção da “abolição da ordem existente” (Marx).
Em outras palavras, a tarefa central de um governo dos trabalhadores consiste em não só atender as reivindicações dos trabalhadores da cidade e do campo, mas sobretudo em destruir o Estado burgues, seu aparato burocrático, suas instituições corruptas e o exercito e a polícia permanentes, substituindo por um Estado Comuna, uma República de Conselhos, constituída por delegados eleitos e revogáveis, onde a maioria da população, as grandes massas de trabalhadores possam “ditar” as leis. Este regime, de transição ao socialismo, um processo oque só pode ocorrer em escala internacional, nos chamamos de ditadura do proletariado. Este regime o proletariado “expulsa a burguesia do poder” (Gramsci), dita as leis e a política, governa para a maioria e garante as mais amplas liberdades democráticas, estabelecendo um governo muito mais democrático do que a mais democrática das repúblicas burguesas pode realizar historicamente.
 
Conclusão: A DS e a política dos três macaquinhos
 
Abordamos nas duas partes deste texto sobre a tendencia Democracia Socialista o seu curso regressivo, que passou da defesa da IV Internacional de 30 anos atrás para a posição reacionária de hoje, expressa no apoio ilimitado à política de colaboração de classes da direção do PT e na participação nos governos Lula-Dilma que aplicam descaradamente a política da burguesia e do grande capital. Denunciamos a farsa da “revolução democrática” como uma forma de “revolução permanente” tentando utilizar o legado de Trotsky e do programa da IV Internacional para justificar uma política completamente oportunista de defesa do Estado capitalista. Igualmente denunciamos a ursupação indevida do pensamente de Antonio Gramsci com o objetivo de, em nome de formar “blocos históricos para conquista da hegemonia”, legitimar a aliança do PT com os partidos burgueses. Mas esta política de duplicidade, de falar uma coisa e fazer outra começa a ter o seu prazo de validade vencido.
A crise economica internacional do sistema capitalista aperta a economia brasileira que por sua vez impele o governo Dilma a agir em benefício dos patrões e dos capitalistas, o que implica em criar as condições para aumentar a taxa de exploração da mais valia sobre o proletariado. Ataques contra as greves (como na greve dos servidores públicos federais), decretos para implementar os fura-greves, processos judiciais e criminalização dos movimentos populares. Ao mesmo tempo amplia os benefícios do dinheiro público para financiar o capital privado (investimentos do BNDES) em detrimento de investimentos sociais e promove uma nova escalada das privatizações. A fúria anti-operária e anti-popular do governo Dilma é uma evidencia de que no fim do maravilhoso arco-íris da economia brasileira, propagado pelo Palácio do Planalto, não existe nenhum pote de ouro. A crise do capitalismo é mundial mesmo que afetando os países de diferentes maneiras e ritmos. Assim como a exacerbação da luta de classes, decorrente do esgotamento do regime capitalista, é também um fenômeno mundial.
Nesse contexto, não há nada que o governo brasileiro possa fazar para viabilizar a paz social preconizada pela demagogia do reformismo “lulista” Para se credenciar perante o patronato o governo Dilma vai atacar cada vez mais forte o movimento operário organizado. O resultado vai ser a intensificação das lutas de classes. O que pode levar, pela primeira vez em trinta anos, a um deslocamento político do PT enquanto a principal representação da classe operária no Brasil.
A DS está selando o seu destino ao futuro incerto que ameaça o PT. Agarrada às instituições do Estado burguês como marisco na pedra, a DS aplica a política dos três macaquinhos: não vê, não escuta e não fala. Como seus dirigentes, Raul Pont, Juarez Guimarães, Arlete Sampaio e outros, vão explicar para seus militantes sindicais a política do governo, do qual fazem parte, de ataque contra a luta dos trabalhadores, como no caso da greve dos servidores federais? Como eles vão explicar o crescimento das privatizações (estradas e ferrovias por ex.) para os seus militantes se nas suas teses aprovadas em congresso dizem defender o contrário? Como a “ecológica” e “multietnica” DS vai se explicar diante da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e da recente instrução 303 promulgada pelo Advogado Geral da União que permite o governo construir em terras indígenas sem dar satisfação alguma? Como é que fica a “feminista” DS diante da posição do governo brasileiro contrário a introdução do direito ao aborto na resolução final da Rio+20?
Ao que tudo indica os seus dirigentes vão continuar se fingindo de mortos. Parecem aqueles soldados que desertaram da guerra e foram se esconder no meio do campo de batalha. Mas a base de militantes nem pode e nem deve aceitar esta política. As rupturas podem ocorrer mais cedo ou mais tarde, como aconteceu recentemente no Congresso da CUT com delegados da DS do nordeste. Todo militante sincero e honesto, que acredita na emancipação dos trabalhadores e na alternativa socialista deve ser perguntar: para onde está indo a DS?
O único caminho é a ruptura com a política da burguesia, é a defesa da ruptura do PT com a coligação com os partidos burgueses. O único caminho consiste na defesa de um governo de frente única de todas as organizações operárias constituindo um governo socialista dos trabalhadores que expulse a burguesia do poder e atenda as reivindicações das massas. Pois do contrário, significa acompanhar o trágico destino da DS, o de marchar em direção à lata de lixo da História.

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Justiça arquiva processo e bar para público gay é liberado em Porto Alegre

 


Ramiro Furquim/Sul21
 
Rachel Duarte no SUL21
 
Uma luta de dois anos contra a discriminação a um estabelecimento para o lazer de homossexuais em Porto Alegre parece ter chegado ao fim nesta terça-feira (16). O bar Passefica, no bairro Cidade Baixa, foi absolvido de processo judicial movido pelo ex-síndico do prédio e acolhido pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul. Na ação, os argumentos eram de que o local ultrapassava os limites estabelecidos por lei municipal para funcionamento, além de suposto desrespeito a normas de civilidade e convivência. Devidamente adequada à Lei do Silêncio, a proprietária do bar provou que não estava irregular e acusou o autor da ação de motivação homofóbica.
O ingresso da ação ocorreu ainda em 2011, quando a empresária Jucele Azzolin passava por desentendimentos com o síndico Ricardo Han Brum sobre a utilização das mesas na calçada do bar. Segundo ele, os frequentadores cometiam excesso no barulho. “A Rua da República é um local tradicional da noite de Porto Alegre, onde já é uma cultura o uso de mesas na rua. Eu sou homossexual, meus clientes também. É um bar para o público LGBT e o que está por trás disso é preconceito e discriminação com o meu estabelecimento”, disse.
Depois de muitas audiências e ameaças do ex-síndico, além de notificações da Prefeitura de Porto Alegre, o Passefica hoje funciona com mesas na calçada da rua. Porém, além do ganho de causa para o uso do recuo da calçada, o bar sofria outras acusações, como exceder o horário de funcionamento dos bares da Cidade Baixa e causar mau cheiro no local. “Nós estamos sempre orientando os clientes quanto a estas normas e nunca tivemos problemas de desordem. Tenho testemunhas de moradores inclusive”, alegou Jucele.
Algumas testemunhas acompanharam a audiência pública desta terça (16) na 18º Vara Criminal do MP-RS, entre elas a cliente Graciela Carpio. “Eu presenciei uma batida da Brigada Militar, atendendo a pedido de algum denunciante, completamente abusiva e descabida. Ainda não era meia noite (horário de funcionamento dos bares da Cidade Baixa) e eles entraram dizendo que estava uma baderna. Só existiam oito pessoas no bar, que inclusive foram embora depois daquilo”, conta. Graciela optou em ficar no bar naquele dia e conversou com os policiais. “Eles disseram que realmente não havia nada errado e pediram desculpas. Ao saírem, no bar ao lado tinha uma festa muito agitada na calçada e eles não fizeram nada. Esta intervenção foi apenas no Passefica, que já é um local estigmatizado para as autoridades”, afirma.
Vereador Pedro Ruas acredita que caso Passefica inspira luta contra homofobia./Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
A tese da perseguição por motivação preconceituosa com o local LGBT também é acolhida pelos advogados de defesa da empresária. “Todas as adequações à lei foram feitas. Nenhum descumprimento foi verificado no período em que o processo vigorou. O fiscal do MP vistoriou e comprovou a normalidade do bar. Porque a insistência na ação? Preconceito”, fala o vereador Pedro Ruas (PSOL), um dos advogados da defesa do Passefica.
No histórico de ações que envolvem a motivação homofóbica justificada pela dona do bar estão também autuações da Secretaria Municipal de Indústria, Comércio e Serviço. Parte da ação, o ex-secretário Valter Nagelstein não compareceu à audiência. Dois funcionários da pasta o representaram.
“Estas medidas excessivas no regramento dos bares fazem parte de um antigo processo de ‘higienização da cidade’. Os locais que são considerados pontos de encontro de pessoas marginalizadas tem exigências muito mais rigorosas do que os demais. É um estímulo ao fechamento destes locais. As instituições, para não admitir que fecham bares, vão exigindo uma série de obstáculos para o seu funcionamento. Foi o que aconteceu com os bares do bairro Bom Fim que foram fechados para reforma de três meses e tem seis anos que não abriram mais”, recorda a companheira de Jucele, Karen D´Ávila.
O promotor da ação, Luciano Brasil, reconheceu a adequação do bar Passefica às exigências da lei e o esforço de Jucele em manter o bar em funcionamento. Ele fez questão de destacar que o órgão “é estranho ao histórico de perseguição ao bar”. “Não sabíamos do extrato que vinha por trás desta ação, por isso a acolhemos. Vimos que não há irregularidades, portanto, não teria razões para dar continuidade ao processo”, disse.
Audiência pública encerra processo contra bar Passefica./ Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Por sua vez, o síndico e autor da ação, Ricardo Brum, aceitou o acordo e pediu desculpas a qualquer inconveniente ou prejuízo causado ao bar. “Não queria que isto tivesse ido tão adiante. Mas a multa e os questionamentos judiciais atendem à necessidade de tranquilidade no local, que também é residencial. Eu não sou homofóbico. Convivia com as antigas inquilinas, que também eram homossexuais. Minha religião não permite discriminação”, falou, explicando que é espírita.
O juiz João Ricardo dos Santos Costa declarou arquivado o processo devido a constatação do MP-RS de o bar estar dentro das exigências legais e em concordância com a Lei do Silêncio que vigora em Porto Alegre. “Mas é importante nós reconhecermos a existência de preconceito na nossa sociedade. É algo velado que se evidencia nas relações comerciais e institucionais, mas existe. Não podemos negar. Enquanto existir preconceito, não existirá a plena democracia”, argumentou. Para o juiz, a atuação dos movimentos LGBT na visibilidade dos direitos homossexuais é fundamental para enfrentar problemas sociais. “É só assim que poderemos transformar a nossa sociedade”, disse.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Boas razões para a presidente Dilma não ter ido à SIP

 




O dirigente do Grupo Estado, Júlio César Mesquita, não escondeu sua frustração. Diante da cadeira vazia na cerimônia de abertura da 68ª Assembleia da Sociedade Interamericana de Imprensa, comparou a atitude da atual presidente a de seus antecessores, Ernesto Geisel e Fernando Collor, nos dois convescotes da agremiação anteriormente por aqui realizados.
A comparação pode ser estapafúrdia, mas o rancor tem sua razão de ser. As famílias que controlam os meios de comunicação na região, sem aliados importantes além dos Estados Unidos, ambicionavam aval implícito de Dilma Rousseff para sua ofensiva contra políticas de democratização e regulação levadas a cabo por diversos governos progressistas.
Apesar de sua administração manter intactos os privilégios dos monopólios de imprensa, a presidente pode ter sido eloquente ao dar silencioso bolo no evento dos marajás da informação. Como não foram tornados públicos os motivos dessa decisão, é natural que provoquem especulações. Uma abordagem possível remete à trajetória da associação. A SIP, afinal, congrega a fatia mais ativa e influente das elites continentais, com expressiva folha de serviços prestados às ditaduras.
Fundada nos EUA em 1946, a entidade teve papel fundamental durante a Guerra Fria. Empenhou-se com afinco a etiquetar como “antidemocráticos” os governos latino-americanos que não se alinhavam com a Casa Branca. Constituiu-se em peça decisiva do clima psicológico que antecedeu levantes militares no continente entre os anos 60 e 80.
Entre seus membros mais proeminentes, por exemplo, está o diário chileno El Mercurio, comprometido até a medula com a derrubada do presidente constitucional Salvador Allende, em 1973, e a ditadura do general Augusto Pinochet. Outros grupos filiados são os argentinos La Nación e El Clarín, apoiadores de primeira hora do sanguinário golpe de 1976.
              A lista é longa. O vetusto matutino da família Mesquita, O Estado de S.Paulo, também foi adepto estridente das fileiras anticonstitucionais, clamando e aplaudindo, em 1964, complô contra o presidente João Goulart. Mas não foi atitude solitária: outras empresas brasileiras de comunicação, igualmente inscritas na SIP, seguiram a mesma trilha.
Seus feitos, porém, não fazem parte apenas da história. Estes veículos, mais recentemente, apoiaram o golpe contra o presidente Hugo Chávez (2002), a derrocada do hondurenho Manuel Zelaya (2009) e o afastamento ilegal do paraguaio Fernando Lugo (2012). Funcionam, a bem da verdade, como uma aliança intercontinental do conservadorismo.
Às vésperas das eleições de 2010, em julho, o então presidente da SIP, Alejandro Aguirre, afirmou que Lula “não poderia ser chamado de democrata” e o incluiu entre os líderes que “se beneficiam de eleições livres para destruir as instituições democráticas”. Seu objetivo era evidente: como porta-voz dos barões da mídia, queria colaborar no esforço de guerra contra a condução de Dilma Rousseff, pelo sufrágio popular, ao Palácio do Planalto.
A SIP, no entanto, vai além de movimentos pontuais, ainda que constantes, para a desestabilização das experiências de esquerda. Trata-se de um laboratório para estratégias de terceirização política dos Estados nacionais, na qual as corporações privadas de imprensa ditam a agenda, articulam-se com esferas do poder público e se consolidam como partidos orgânicos da oligarquia.
Diante deste inventário de símbolos e realizações, fez bem a presidente ao se recusar a emprestar o prestígio de seu mandato e a honradez de sua biografia. Ainda mais em um momento no qual sócios nacionais da associação animam julgamento de exceção contra dirigentes históricos de seu partido e integrantes de proa do governo Lula.
Oxalá esse gesto possa dar início a uma batalha firme pela democratização da imprensa e a adoção de marco regulatório que rompa com o feudalismo midiático.
Breno Altman é diretor do site Opera Mundi e da revista Samuel