quinta-feira, 15 de novembro de 2012

A QUESTÃO NACIONAL NA ESCÓCIA – PARTE II

marxismo.org


Socialist Appeal - CMI Inglaterra
A ideia de que uma Escócia independente sobre uma base capitalista resolveria os problemas do povo escocês é falsa. Pelo contrário, levaria a uma queda no padrão de vida, pois os salários seriam reduzidos para aumentar a competitividade.
Apesar do discurso do Partido Nacional Escocês (PNE) de “escoceses ricos contra britânicos pobres” e sobre um futuro baseado no “petróleo escocês”, o petróleo do Mar do Norte vai diminuir em 0,7% no orçamento britânico de 2011-2012 para 0,2% em 2022-2023. O setor bancário, que joga um papel preponderante na economia, esta em dificuldades e é mantido vivo graças ao estado britânico.
O PNE é um típico partido pequeno burguês, que aponta varias direções diferentes de acordo com sua constituição interna. Em uma tentativa de se afastar do estigma conservador, eles adotaram uma linha de esquerda e “socialista” nas áreas urbanas onde o Labour era a principal força de oposição. Eles compreenderam que essa era a única forma de desafiar o Labour dentro da própria base do partido. Agindo dessa forma, eles conseguiram reunir partes importantes da base operaria nas cidades. Nas áreas rurais, por outro lado, eles mantiveram sua política burguesa nacionalista.
Por trás dessa política de “esquerda”, há uma orientação pró-negócios que favorece o capitalismo na Escócia. Salmond prometeu “uma regulação leve para o setor financeiro” incentivando Fred Goldwin, presidente do Banco Real da Escócia, a comprar o ABN AMARO, um negocio que empurrou o banco para a falência. O manifesto do PNE também contem trechos que defendem o congelamento de salários no setor público e a redução de 20% no imposto empresarial.
A ideia deles de uma Escócia independente significaria uma “corrida para o fundo do poço”, com trabalhadores escoceses competindo com outros da Europa por mercados cada vez menores. No contexto de uma crise mundial, uma Escócia independente seria esmagada de uma forma parecida com a que vemos na Grécia, Portugal e Irlanda. O fato de a Grécia ser hoje governada por uma Troika europeia demonstra bem como a independência nacional diminuiu no contexto da crise. Toda a argumentação por uma “Europa independente” em uma época de crise econômica quando tudo, inclusive o Euro, ameaça afundar, provou não ter significado algum. Todos os países, embora nominalmente independentes, estão debaixo do mando do mercado mundial e das grandes corporações financeiras e industriais.
O verdadeiro caráter de classe do PNE esta demonstrado em sua defesa do congelamento dos salários dos servidores públicos por cinco anos e pela redução de 20% nos impostos dos ricos. A classe trabalhadora não deve esperar um tratamento muito melhor dos nacionalistas do que aquele que era oferecido pelos Tories ingleses e pelos liberais.
Na Escócia, o PNE, em acordo com Londres, conseguiu retardar a implementação dos cortes planejados, de maneira a aplacar a fúria da população. Isso talvez explique sua atual popularidade. Contudo, em Abril, eles serão forçados a impor um plano de cortes que vale por dois anos em apenas um. A medida que os cortes avançarem, o PNE culpará os conservadores de Londres e dará ao Labour a tarefa de aprová-los.
A curto prazo, isso pode causar dificuldades ao Labour. Podemos ver o exemplo da câmara de vereadores de Glasgow, onde o orçamento só foi aprovado por dois votos de diferença e depois de muitas deserções no lado dos trabalhistas. Seis desses vereadores pretendem lançar um partido rival. É pouco provável que tenham sucesso, mas esse gesto mostra as pressões envolvidas.
Enquanto isso, o PNE, que esta em alta nas pesquisas, pretende ganhar a prefeitura de Glasgow nas eleições de Maio. (O partido ocupou sete das quinze cadeiras de Glasgow no parlamento escocês), se isso ocorrerá temos que esperar para ver. No longo prazo, esse sucesso só viria a causar uma enorme queda de popularidade ao PNE, que se veria obrigado a implementar cortes tanto a nível municipal quanto em toda a Escócia.
 
Os Sectários e o Nacionalismo
 
Os mais diversos tipos de sectários tem uma coisa em comum: sempre capitularam diante do nacionalismo burguês. Eles veem os slogans de autodeterminação e independência nacional como “absolutos”, independentes de tempo e espaço. Essa abordagem nada tem a ver com a de Marx e Lênin, que sempre se basearam na situação concreta e principalmente, sempre submeteram as questões nacionais às questões de classe. Seria um grave erro para os marxistas vestir a toga nacionalista ou adotar uma defesa evangélica da independência da Escócia. Essa seria uma capitulação ao discurso da pequena burguesia, por mais que este estivesse disfarçado de revolucionário.
A questão nacional na Escócia resurgiu em um debate no Militant em 1991, quando a ascensão do nacionalismo escocês serviu como justificativa para a liderança local dar o “giro escocês”. Esse “giro” foi baseado no estabelecimento de uma organização aberta – o Labour Militant Escocês – para supostamente enfrentar os perigos do nacionalismo crescente. Na pratica, embora não admitissem, a maior parte da liderança estava abdicando diante das frustrações e sobretudo, do nacionalismo. Isso logo ficou evidente quando o Militant escocês virou o Partido Socialista Escocês, em 1998, por uma Escócia independente e socialista. No restante da Grã-Bretanha, eles adotaram o nome de Partido Socialista da Inglaterra e País de Gales, para demonstrar sua identidade separada da Escócia.
Toda essa linha política foi uma reprodução da que foi posta em pratica pelo equivoco de John MacLean, que defendeu a necessidade de um Partido Trabalhista escocês diferenciado. Esse erro nasceu da frustração e da falta de confiança na militância trabalhista em todo o Reino Unido. Contudo, em poucos anos toda a Grã Bretanha foi abalada com a greve geral de 1926.
Essa postura do LME e depois do PSE significou o abandono de tudo aquilo que havíamos defendido no passado. “Os socialistas devem estar preparados para apoiar a independência escocesa mesmo que seja sob uma base não socialista como a promovida pelo PNE”, escreveram Tommy Sheridan e Alan McCombes, então lideres do PSE, “os fundamentos materiais para uma democracia socialista já existem na Escócia... temos terra, água, pesca, madeira, petróleo, gás, e eletricidade em abundancia. Temos um clima moderado, onde enchentes, secas e tornados são praticamente desconhecidos.”
Isso demonstrou o quanto eles haviam capitulado diante do nacionalismo, e não somente na Escócia. Para sua vergonha, eles também deram apoio aos croatas no processo de separação da Iugoslávia. Nós apontamos que a separação da antiga Iugoslávia era um ato criminoso que não atendia aos interesses de nenhum dos povos envolvidos. A historia posterior da região comprovou a natureza reacionária do processo, que não pode ser justificado do ponto de vista da classe trabalhadora.
Apesar de seus clamores iniciais, essa iniciativa na Escócia foi uma tentativa de imitar o racha do Labour em 1976, quando John Sillars e Robertson lançaram o Labour escocês, já fadado ao fracasso desde o começo. Nós condenamos esse racha na época, mas isso foi convenientemente esquecido.
Os “marxistas” foram tão longe a ponto de propor a fundação de um partido escocês autônomo para falar em nome da classe trabalhadora escocesa. Essa abordagem errônea não era inédita. Originalmente, essas ideias foram defendidas por trotskistas nos EUA, que advogavam por partidos separados em raça, gênero e nacionalidade. Isso vai contra os princípios básicos do bolchevismo, que se opunha á perigosas divisões no movimento operário. Eles se opunham ao ABC do marxismo na questão das nacionalidades.
Mesmo na Rússia czarista (uma prisão de nacionalidades), onde os russos eram 43% da população, Lenin se opunha às divisões com base nas nacionalidades. Ele se mantinha firme na unidade da classe trabalhadora. Ele lutou contra as tentativas de organizar entidades separadas para trabalhadores judeus, apesar do fato de que eles sofriam opressões diferenciadas e falavam outro idioma.
O PSE teve algum impacto inicial. A desilusão com o governo Blair de Londres fez com que parte da esquerda do Labour os apoiasse temporariamente, o que resultou no ganho de seis parlamentares e dois conselheiros em 2003. Em 2007, porém, eles perderam tudo e o partido implodiu. A tentativa de romper a hegemonia do Labour ou de fundar um partido de esquerda forte em seu lugar fracassou. Desde então, o giro a direita do Labour e a sucessão de governos trabalhistas em Londres abriu ainda mais espaço para os nacionalistas.
Portanto, a tentativa de fundar uma alternativa a esquerda do Labour, em bases bastante oportunistas, fracassou. Desde então, o PSE se dividiu e hoje praticamente desapareceu.
 
Os Escoceses querem a Independência?
 
Enquanto que os nacionalistas ganharam a maioria dos assentos de Holyrood, seu apoio não vem de seu discurso de independência, e sim da desilusão dos trabalhadores com o Labour em Westminster e seu homônimo escocês. Devemos ser cuidadosos e não confundir apoio aos nacionalistas com apoio á independência.
O apoio a independência na Escócia variou ao longo dos anos, chegando a um pico de 47% em Março de 1998 a 20% em 2009. Em Dezembro de 2011, voltou a subir e chegou a 38% (uma pesquisa feita pelo site YouGov em Janeiro verificou 33% a favor da independência e 53% contrários). Esses números coincidiram com a ascensão dos nacionalistas, que chegaram a 50% nas pesquisas, contra 26% do Labour, 12% para os Tories, 8% para os Liberal Democratas e 4% para os demais.
Enquanto que não há uma maioria a favor da independência, o apoio por medidas como essa demonstram um desejo de assumir maior controle sobre seus próprios assuntos. Precisamos ser sensíveis a esse desejo, que parte da vontade do povo escocês de ter um maior controle sobre suas próprias vidas. Portanto, devemos apoiar uma maior autonomia para o parlamento escocês.
Até certo ponto o apelo ao nacionalismo sofreu um abalo com a crise, que viu o discurso de “um arco de prosperidade” que envolveria, além da Escócia, a Irlanda, Islandia e Noruega. O “arco da prosperidade” foi reduzido a um “arco de crise”. A crise do euro também levou a pique a ideia dos nacionalistas de adotar o Euro como alternativa à Libra. Mas desde então, o apoio aos nacionalistas se recuperou e até aumentou depois das eleições de 2011. Isso, porém, não vai durar a medida que os cortes forem sendo aplicados.
O apoio do PNE à independência sempre foi bastante qualificado. Eles garantiram aos eleitores que a Rainha continuaria a ser a chefe de Estado mesmo após a separação. Eles também manteriam o uso da Libra ao invés do Euro. Mais recentemente, eles declararam que teriam no Banco da Inglaterra uma fonte de investimentos!
Ao lado disso, apesar de sua retórica anti nuclear, a questão das bases militares britânicas e das armas nucleares permanece nebulosa na proposta de independência do PNE.
Ao contrário da Escócia, a questão do nacionalismo no País de Gales é bem menos preponderante. Assim como na Escócia, a política de direita do Labour levou a desilusão de boa parte da classe trabalhadora ao partido, que sempre teve uma base solida na região, refletindo a composição proletária do país. Isso permitiu que o partido nacionalista local (Play Cymru) crescesse e até formasse coalizão com o Labour em administrações passadas. Mas recentemente esse partido tem perdido força.
Nas eleições legislativas de 2011, pela primeira vez o Play Cymru conseguiu menos assentos que o Torie. Mais uma vez, para conseguir apoio, o partido lançou a questão da independência. Enquanto que o partido tem o apoio de 20% do eleitorado, a questão da independência tem apoio de metade dessa porcentagem. Como resultado, alguns lideres do partido, de forma ultra oportunista, qualificaram a questão como “irrelevante”. Eles dizem, na prática: “se você não gosta dos meus princípios, posso mudá-los”.
O Play Cymru esta hoje em conflito com sua identidade e deu um Lee giro á esquerda, com a eleição de Lianne Wood para a liderança do partido. Com um governo trabalhista em Cardiff se apresentando como defensor dos interesses nacionais contra a ação da coalizão conservadora em Londres, o Plaid Cymru percebe que é difícil se posicionar, que a ideia de independência tem muito pouco apelo. Rhodri Glyn Thomas, um membro do parlamento, disse o seguinte:
“A economia esta em crise, o desemprego cresce mês após mês e alguém que falar de um conceito (independência) que ninguém entende bem o que significa. Infelizmente, porque na Escócia eles farão um plebiscito sobre o assunto, alguns acham que deveríamos fazer o mesmo aqui. Eu sugiro que elas vão à Escócia.”
Por isso é que Lianne Wood quer se concentrar nos assuntos econômicos, tais como a queda dos salários, desemprego e estresse no trabalho. Essa é a única direção que eles podem tomar se quiserem desafiar a hegemonia dos trabalhistas galeses. Contudo, com a polarização de classes cada vez mais clara, o próprio Labour será forçado a assumir posições mais radicais para manter o apoio de sua base e assim, os nacionalistas à margem das massas trabalhadoras.
A posição marxista sobre o assunto nada tem a ver com a dos partidos nacionalistas ou sindicalistas. Nossa visão é baseada nos interesses do povo escocês e principalmente, da classe trabalhadora escocesa e da Grã Bretanha como um todo. A Escócia é uma nação e seu povo tem direito a auto determinação. Contudo, a questão nacional, quando não abordada da forma correta, pode terminar em desastre. Em todos os casos, devemos nos perguntar: isso ajuda ou atrapalha a luta pelo socialismo? Ajuda a classe trabalhadora ou apenas cria divisões em seu interior? A resposta para essas duas perguntas determinará nossa postura, e nada mais.
 
Referendo
 
Como marxistas, devemos apoiar o referendo na Escócia sobre a independência nacional como um direito democrático. O PNE conquistou maioria no parlamento escocês, e o plebiscito é sua política. Salmond disse que o referendo será no  outono de 2014, no 700º aniversário da batalha Bannockburn, quando Robert, o Bruce derrotou os ingleses, ou mais importante, quando a Escócia vai sediar os jogos da Comunidade Britânica e a Copa Ryder. Eles estão se esforçando para adiar essa votação para o mais longe possível, mas isso pode ser contraproducente se por acaso o mundo sofrer outro abalo financeiro.
Contudo, nós continuamos firmemente opostos ao nacionalismo pequeno burguês que procura dividir a classe trabalhadora e suas instituições. Continuaremos a defender maior autonomia na Grã Bretanha, mas permaneceremos contrários à separação. Ao invés disso, apoiaremos a luta pelo socialismo no Reino Unido e internacionalmente e a união vital da classe trabalhadora nas ilhas britânicas para atingir esse fim.
O povo escocês tem direito a um referendo democrático sobre a independência sem qualquer interferência do governo de Westminster. Marxistas defendem o direito de auto determinação dos povos, inclusive à separação, caso esses povos assim desejem. Nós apoiamos suas aspirações nacionais por um governo próprio. Se a questão econômica for determinante para deixar ou permanecer no Reino Unido, argumentaremos contra.
É claro que não apoiamos o status quo, uma vez que não oferece qualquer solução real para os problemas da classe trabalhadora escocesa. Ainda assim nós enfatizaremos que uma independência sob uma base capitalista não resolveria os problemas dos trabalhadores. Nós precisamos nos diferenciar dos Tories e liberais que simplesmente defendem a União. Por outro lado, devemos sempre manter firmes as bandeiras por uma Grã Bretanha socialista e pelo socialismo internacionalista.
A questão do referendo escocês tem certo paralelo com o referendo do Mercado Comum de 1975, em relação a posição que tomamos. Então nós nos opusemos á entrada do Reino Unido no bloco e colocamos uma palavra de ordem alternativa: “Estados Unidos Socialistas da Europa”. Isso nos permitiu manter distancia dos conservadores e dos reformistas (inclusive stalinistas) que se opunham ao Mercado Comum por razões puramente nacionalistas.
É importante que façamos uma distinção clara entre nossa análise e a dos liberais, conservadores, trabalhistas e outros que só vão apoiar “devolução máxima” de autonomia na cédula de voto. Precisamos explicar que apoiamos essa iniciativa como parte da luta socialista, ligando-a com um governo trabalhista socialista que use seu poder para implementar medidas socialistas, coordenar nacionalizações, etc. Também devemos esclarecer que vemos isso como parte da luta de classes e uma ferramenta que pode ser utilizada para conscientizar e mobilizar os trabalhadores no resto da Grã Bretanha e do mundo.
Naturalmente alguns sectários sairiam em defesa da independência da Escócia, argumentando que seria “um golpe contra o estado britânico”. Essas pessoas não possuem qualquer perspectiva ou princípios validos e nada têm a ver com o marxismo. Eles representam uma adaptação oportunista do nacionalismo pequeno burguês. A perspectiva de uma revolução socialista vitoriosa na Escócia ou no País de Gales passa obrigatoriamente pela derrubada do capitalismo britânico em seu conjunto. A ideia de “socialismo em um só país” foi uma utopia reacionária da URSS. O que alguém pode dizer sobre uma “Escócia socialista” ou um “País de Gales socialista”?
Nós consideramos o desenvolvimento dos sindicatos e organizações políticas em toda a Grã Bretanha como um enorme avanço histórico. Portanto, rechaçaremos sempre qualquer tentativa de fazer retroceder o relógio da história e dividir o movimento operário em fronteiras nacionais. A ideia de que as ações revolucionárias da classe trabalhadora de Glasgow estarão divorciadas das dos trabalhadores de Newcastle, Manchester, Liverpool e Cardiff é ridícula. Colocar a revolução socialista em termos nacionalistas é completamente reacionário e indica uma mentalidade provinciana infantil. Como internacionalistas, devemos colocar a questão da revolução britânica no contexto da revolução europeia e mundial.
 
Unidade da classe
 
Historicamente, a classe trabalhadora britânica é uma só classe. Trabalhadores ingleses, escoceses e galeses compartilham uma historia de lutas de mais de dois séculos. Manter essa unidade é fundamental para derrotar a classe dominante britânica, que luta para manter seu domínio. Para combater os capitalistas britânicos é necessária a unidade de todos os trabalhadores a nível britânico em uma luta comum contra um inimigo comum.
Para triunfar em sua luta para derrotar o capitalismo e construir uma nova sociedade, os trabalhadores escoceses devem juntar forças com os milhões de operários ingleses e galeses. Qualquer ruptura nessa unidade significaria um grande golpe na luta pelo socialismo. A luta de classes na Grã Bretanha já se expande a um nível nacional. A unidade instintiva já foi demonstrada pelo movimento estudantil, que fez protestos de massas contra medidas que só seriam aplicadas, naquele momento, na Inglaterra e no País de Gales. Mais tarde, mais provas dessa unidade seriam dadas na disputa pelo governo local.
Com base na crise e nas medidas de austeridade que irá aplicar, o PNE verá seu apoio diminuir cada vez mais. A ideia de um “arco de prosperidade” no norte da Europa se provou totalmente falsa. Suas tentativas de impor medidas que agradem os investidores os colocarão em conflito com a classe trabalhadora. Os eventos sombrios que se aproximam servirão para alterar a consciência das massas na Escócia e em outros lugares.
O desenvolvimento das lutas operárias na Inglaterra, Escócia e País de Gales, como vimos na magnífica greve de 30 de Novembro, tenderá a unificar ainda mais os trabalhadores e, consequentemente, diluir a influencia nacionalista e liquidar os partidos que a sustentam. Somente a retomada das tradicionais organizações de massa da classe trabalhadora com genuínas políticas socialistas e o desenvolvimento de uma esquerda dentro de suas fileiras poderá se apresentar como alternativa aos setores que têm referencia nos nacionalistas.
A principal tarefa do proletariado escocês é se juntar com seus companheiros ingleses e galeses no combate às medidas do governo de coalizão. É a luta por políticas socialistas que é a verdadeira resposta à crise capitalista. A luta por uma Grã Bretanha socialista incluirá a auto determinação da Escócia e País de Gales como parte dos Estados Unidos Socialistas da Europa e de uma Federação Mundial de Estados Socialistas. Essa é a única saída
Traduzido por Arthur Penna

quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Portugal, Greve Geral: o país amanhece paralisado

 



A noite e a madrugada da Greve Geral desta quarta-feira indicam uma adesão significativa dos trabalhadores ao protesto contra a austeridade e o orçamento do assalto fiscal. Transportes, hospitais e comunicações com adesões a rondar os 100 por cento.
Foto de Miguel A. Lopes/LUSA.
Foto de Miguel A. Lopes/LUSA.

Distrito de Lisboa
Segundo a União de Sindicatos de Lisboa, registam-se elevadas adesões nos Hospitais e Centros de Saúde, nos Serviços Municipalizados da recolha do lixo e limpeza urbana; nos transportes ferroviários, fluviais e Metropolitano; nos correios e telecomunicações; nos sectores industriais (Portugal Ibéria, Europack; Cobert Telhas, Centralcer, Tudor, Valorsul, Acral, TAP (manutenção), BA-Vidro, Saint Gobain Sekurit, etc.).
Alguns números:
100% de adesão no turno da manhã da recolha de lixo em Loures; 100% de adesão na recolha de resíduos sólidos na Câmara Municipal da Amadora; recolha de resíduos sólidos em Sintra com 100% de adesão; 100% de adesão no serviço especial de limpeza da CM Lisboa; 90% de adesão na recolha de resíduos sólidos em Vila Franca de Xira.
90% dos enfermeiros da Maternidade Alfredo da Costa fizeram greve; 100% dos enfermeiros do Hospital da Estefânia aderiram à greve; apenas serviços mínimos no Instituto de Medicina Legal; 100% de adesão no pessoal auxiliar e administrativo do Hospital dos Capuchos; 90% de adesão no INEM; 100% na urgência pediátrica do Hospital Amadora Sintra.
100% de adesão na Acral; 97% na Tudor Exide; 71% no primeiro turno da BA-Vidro; 93% de adesão na Centralce; 91% na Saint-Gobain Sekurit Portugal.
O metropolitano de lisboa está encerrado; a adesão à Greve Geral nos portos de Lisboa é de 100%; os pilotos da barra fizeram greve e o VTS (controle da navegação no rio Tejo), em Algés e Paço D’Arcos não está a funcionar.
Saúde
Os primeiros dados confirmados indicam uma adesão à greve geral superior a 90% no turno da noite nos hospitais de Lamego, Covilhã e Litoral Alentejano, IPO do Porto e São José, em Lisboa, disse à Lusa fonte da CGTP.
O dirigente da CGTP José Augusto Oliveira indicou que "a maternidade Magalhães Coutinho e o hospital D. Estefânia em Lisboa registaram uma adesão de 100%, funcionando apenas os serviços mínimos".
José Augusto Oliveira sublinhou também a paralisação registada no Instituto de Medicina Legal. "Pela primeira vez, parou de uma forma generalizada", disse.
Transportes e comunicações
Nestas primeiras horas da Greve Geral regista-se uma grande adesão dos trabalhadores a esta forma de luta que está a provocar a paralisação total do Metropolitano de Lisboa, dos STCP no Porto, da circulação ferroviária da CP em todo o País, da circulação fluvial em Lisboa e Setúbal, da circulação ferroviária da CP-Carga, que acabou por suprimir também os dois comboios denominados como mínimos, dos portos e controlo da navegação marítima. Regista-se, igualmente, o encerramento da maioria dos estabelecimentos da REFER e os que funcionam, apenas estão a assegurar os serviços denominados como mínimos.
Os centros operacionais de correios também estão paralisados, registando-se uma adesão superior a 85% em Lisboa, Coimbra e Porto. Em Lisboa, o piquete desta noite contou coma participação de mais de uma centena de pessoas, entre trabalhadores e populares.
A greve de hoje “é a que regista uma maior adesão quer no setor privado quer no setor público”
Os primeiros dados da greve geral nos transportes apontam para uma forte adesão quer no setor público quer no privado, adiantou esta manhã à Lusa fonte da Federação dos Sindicatos de Transportes e Comunicações. “Tendo como referência as últimas três greves podemos dizer que a de hoje é a que regista uma maior adesão quer no setor privado quer no setor público, com alguns transportes a registarem 100%, como o Metropolitano [de Lisboa] e uma paralisação quase total na CP e nos transportes rodoviário e fluvial”, disse à Lusa José Manuel Oliveira, da FECTRANS.
“Posso dizer também que o transporte fluvial está reduzido aos serviços mínimos quer no rio Tejo quer no Sado, a CP nem sequer está a conseguir fazer aquilo que são os serviços mínimos. Temos os Transportes Sul do Tejo (TST) com 90% de adesão e a Sociedade de Transportes Coletivos do Porto (STCP) com 100%”, disse.
De acordo com José Manuel Oliveira, a Rodoviária de Entre Douro e Minho, em Braga está a trabalhar com serviços mínimos, a rodoviária da Beira litoral, em Coimbra com 95% e os transportes urbanos de Coimbra com 90%.
“A Carris em Santo Amaro está com 70% de adesão e na Pontinha, apesar da intervenção da polícia que carregou sobre o piquete de greve, só tinham às 07:00 saído 20 autocarros”, contou.
No que diz respeito aos portos e controlo de navegação marítima e dos centros operacionais de correios, a FECTRANS refere que está a ser registada uma adesão superior a 85% em Lisboa, Coimbra e Porto.
A FECTRANS registou também vários tumultos envolvendo as forças de segurança e piquetes de greve na estação rodoviária da Pontinha e da Musgueira, nas instalações da Vimeca/Lisboa transportes e na estação ferroviária da Pampilhosa, Mealhada, “impedindo que se exercesse o direito previsto na lei”. Um dos elementos do piquete que foi agredido pela GNR na Pampilhosa teve de receber tratamento hospitalar.
Serviços municipalizados de cinco autarquias parados
Os serviços municipalizados de cinco autarquias do país estão parados devido à greve geral, que começou às 00:00 desta quarta-feira, registando-se uma adesão de cem por cento dos seus trabalhadores, indicou a CGTP, que convocou a paralisação.
Os serviços municipalizados de Almada, Loulé, Palmela, Évora e Seixal estão parados, indicou aos jornalistas o secretário-geral da CGTP, Arménio Carlos, que falava aos jornalistas junto ao piquete de greve do Metropolitano de Lisboa, onde se concentraram algumas dezenas de trabalhadores.
Madeira
A empresa Aeroportos e Navegação Aérea da Madeira (ANAM) estima em 1.600 o número de passageiros afetados pela greve geral desta quarta-feira, que já determinou o cancelamento de 18 voos com origem e destino na Região.
A adesão de trabalhadores de limpeza urbana e recolha de lixo da Câmara Municipal do Funchal atinge os 100 e os 60% respetivamente, segundo dados do Sindicato dos Trabalhadores da Administração Local (STAL) relativos aos turnos iniciados dia 13, às 20 e às 21 horas.
Governo está “nervoso” com esta greve geral
O secretário-geral da CGTP, Arménio Carlos, acusou esta manhã o Governo de estar nervoso por causa da greve geral e de querer intimidar os trabalhadores de empresas de transportes com polícia de choque para os forçar a quebrar a sua adesão à greve.
"Não é pela intimidação e repressão que vão por em causa o direito à greve e reafirmamos que os trabalhadores não deixarão de dar a resposta devida a esta provação do Governo, de quem está numa situação de desespero e que procura pela via da força impor a sua posição", afirmou.
Arménio Carlos fez, no entanto, um "balanço extremamente positivo" da greve geral iniciada às 00:00 de hoje, afirmando estarem a ser registadas adesões entre os 80% e os 100%.
O secretário-geral da CGTP referiu adesões muito significativas no setor da saúde, nomeadamente nos hospitais, um pouco por todo o país. Segundo o dirigente da central sindical, a estação da CP do Poceirão, em Palmela, está encerrada. Em várias empresas de Leiria do setor químico e metalúrgico, a adesão foi superior a 70 por cento.
A greve geral de hoje, de 24 horas, foi convocada pela CGTP em protesto contra o agravamento das políticas de austeridade e em defesa de políticas alternativas que favoreçam o crescimento económico. O protesto conta ainda com a adesão de 28 sindicatos independentes, bem como com a participação de cerca de 30 sindicatos da UGT, embora esta estrutura se tenha demarcado da paralisação.
A Confederação Europeia de Sindicatos convocou uma Jornada de Luta Europeia para esta quarta-feira, num protesto contra as medidas de austeridade em 20 países da Europa, com greves gerais também noutros países europeus, como Espanha, Itália, Bélgica e Grécia.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

O governo Dilma financia a direita


Assim, realmente, não dá para se entender a política de comunicação do governo. Será que todos nós jornalistas de esquerda que votamos na Dilma somos paspalhos?

Rui Martins* no BRASIL DE FATO



Berna (Suíça) – Daqui de longe, vendo o tumulto provocado com o processo mensalão e a grande imprensa assanhada, me parece assistir a um show de hospício, no qual os réus e suspeitos financiam seus acusadores. O Brasil padece de sadomasoquismo, mas quem bate sempre é a direita e quem chora e geme é a esquerda.
Não vou sequer falar do mensalão, em si mesmo, porque aqui na Suíça, país considerado dos mais honestos politicamente, ninguém entende o que se passa no Brasil. Pela simples razão de que os suíços têm seu mensalão, perfeitamente legal e integrado na estrutura política do país.
Cada deputado ou senador eleito é imediatamente contatado por bancos, laboratórios farmacêuticos, seguradoras, investidores e outros grupos para fazer parte do conselho de administração, mediante um régio pagamento mensal. Um antigo presidente da Câmara dos deputados, Peter Hess, era vice-presidente de 42 conselhos de administração de empresas suíças e faturava cerca de meio milhão de dólares mensais.
Com tal generosidade, na verdade uma versão helvética do mensalão, os grupos econômicos que governam a Suíça têm assegurada a vitória dos seus projetos de lei e a derrota das propostas indesejáveis. E nunca houve uma grita geral da imprensa suíça contra esse tipo de controle e colonização do Parlamento suíço.
Por que me parece masoca a esquerda brasileira e nisso incluo a presidente Dilma Rousseff e o PT? Porque parecem gozar com as chicotadas desmoralizantes desferidas pelos rebotalhos da grande imprensa. Pelo menos é essa minha impressão ao ler a prodigalidade com que o governo Dilma premia os grupos econômicos seus detratores.
Batam, batam que eu gosto, parece dizer o governo ao distribuir 70% da verba federal para a publicidade aos dez maiores veículos de informação (jornais, rádios e tevês), justamente os mais conservadores e direitistas do país, contrários ao PT, ao ex-presidente Lula e à atual presidenta Dilma.
Quando soube dessa postura masoquista do governo, fui logo querer saber quem é o responsável por essa distribuição absurda que exclui e marginaliza a sempre moribunda mídia da esquerda e ignora os blogueiros, responsáveis pela correta informação em circulação no país.
Trata-se de uma colega de O Globo, Helena Chagas, para quem a partilha é justa – recebe mais quem têm mais audiência!, diz ela.
Mas isso é um raciocínio minimalista! Então, o povo elege um governo de centro-esquerda e, quando esse governo tem o poder, decide alimentar seus inimigos em lugar de aproveitar o momento para desenvolver a imprensa nanica de esquerda?
O Brasil de Fato, a revista Caros Amigos, o Correio do Brasil fazem das tripas coração para sobreviver, seus articulistas trabalham por nada ou quase nada, assim como centenas de blogueiros, defendendo a política social do governo e a senhora Helena Chagas com o aval da Dilma Rousseff nem dá bola, entrega tudo para a Veja, Globo, Folha, SBT, Record, Estadão e outros do mesmo time?
Assim, realmente, não dá para se entender a política de comunicação do governo. Será que todos nós jornalistas de esquerda que votamos na Dilma somos paspalhos?
Aqui na Europa, onde acabei ficando depois da ditadura militar, existe um equilíbrio na mídia. A França tem Le Figaro, mas existe também o Libération e o Nouvel Observateur. Em todos os países existem opções de direita e de esquerda na mídia. E os jornais de esquerda têm também publicidade pública e privada que lhes permitem manter uma boa qualidade e pagar bons salários aos jornalistas.
Comunicação é uma peça-chave num governo, por que a presidenta Dilma não premiou um de seus antigos colegas e colocou na sucessão de Franklin Martins um competente jornalista de esquerda, capaz de permitir o surgimento no país de uma mídia de esquerda financeiramente forte?
Exemplo não falta. Getúlio Vargas, quando eleito, sabia ser necessário um órgão de apoio popular para um governo que afrontava interesses internacionais ao criar a Petrobras e a siderurgia nacional. E incumbiu Samuel Wainer dessa missão com o Última Hora. O jornal conseguiu encontrar a boa receita e logo se transformou num sucesso.
O governo tem a faca e o queijo nas mãos – vai continuar dando o filet mignon aos inimigos ou se decide a dar condições de desenvolvimento para uma imprensa de esquerda no Brasil?

Rui Martins é escritor e jornalista, vive na Suíça, e é colaborador do Brasil de Fato.

Zumbi Vive!

Escrito por Mario Maestri no CORREIO DA CIDADANIA  

Em 20 de novembro de 1695, Nzumbi dos Palmares caía lutando em mata perdida do sul da capitania de Pernambuco. Seu esconderijo fora revelado por lugar-tenente preso e barbaramente torturado. Mutilaram seu corpo. Enfiaram seu sexo na boca. Expuseram a cabeça do palmarino na ponta de uma lança em Recife. Os trabalhadores escravizados e todos os oprimidos deviam saber a sorte dos que se levantavam contra os senhores das riquezas e do poder.
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Em 1654, com a expulsão dos holandeses do Nordeste, os lusitanos lançaram expedições para repovoar os engenhos com os cativos fugidos ou nascidos nos quilombos da capitania. Para defenderem-se, as aldeias quilombolas confederaram-se sob a chefia política do Ngola e militar do Nzumbi. A dificuldade dos portugueses de pronunciar o encontro consonantal abastardou os étimos angolanos nzumbi em zumbi, nganga nzumba, em ganga zumba. A confederação teria uns seis mil habitantes, população significativa para a época.

Em novembro de 1578, em Recife, Nganga Nzumba rompeu a unidade quilombola e aceitou a anistia oferecida apenas aos nascidos nos quilombos, em troca do abandono dos Palmares e da vil entrega dos cativos ali refugiados ou que se refugiassem nas suas novas aldeias.

Acreditando nos escravizadores, Ganga Zumba deu as costas aos irmãos de opressão e aceitou as miseráveis facilidades para alguns poucos. Abandonou as alturas dos Palmares pelos baixios de Cucuá, a 32 quilômetros de Serinhaém. Foi seduzido por lugar ao sol no mundo dos opressores, pelas migalhas das mesas dos algozes.

Então, Nzumbi assumiu o comando político-militar da confederação.

Para ele, não havia cotas para a liberdade ou privilegiados no seio da opressão! Exigia e lutava altaneiro pelo direito para todos!

Não temos certeza sobre o nome próprio do último nzumbi que chefiou a confederação após a defecção de Nganga Nzumba. Documentos e a tradição oral registram-no como Nzumbi Sweca.
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Nos derradeiros ataques aos Palmares, as armas de fogo e a capacidade dos escravistas de deslocar e abastecer rapidamente os soldados registravam o maior nível de desenvolvimento das forças produtivas materiais do escravismo, apoiadas na superexploração dos trabalhadores feitorizados. As tropas luso-brasileiras eram a ponta de lança nas matas palmarinas da divisão mundial do trabalho de então.

Não havia possibilidade de coexistência pacífica entre escravidão e liberdade. Palmares era república de produtores livres, nascida no seio de despótica sociedade escravista, que surge hoje nas obras da historiografia apologética como um quase paraíso perdido, onde a paz, a transigência e a negociação habitavam as senzalas. Palmares era exemplo e atração permanentes aos oprimidos que corroíam o câncer da escravidão.

Como já lembraram, nos anos 1950, o historiador marxista-revolucionário francês Benjamin Pérret e o piauiense comunista Clóvis Moura, a confederação dos Palmares venceria apenas se espraiasse a rebelião aos escravizados dos engenhos, roças e aglomeração do Nordeste, o que era então materialmente impossível.

Palmares não foi, porém, luta utópica e inconsequente. Por longas décadas, pela força das armas e a velocidade dos pés, assegurou para milhares de homens e mulheres a materialização do sonho de viver em liberdade de seu próprio trabalho. Indígenas, homens livres pobres, refugiados políticos eram aceitos nos Palmares. Eram braços para o trabalho e para a resistência.

A proposta da retomada da escravidão colonial em Palmares, com Zumbi com um “séquito de escravos para uso próprio”, é lixo historiográfico sem qualquer base documental, impugnado pela própria necessidade de consenso dos palmarinos contra os escravizadores. Trata-se de esforço ideológico de sicofantas historiográficos para naturalizar a opressão do homem pelo homem, propondo-a como própria a todas e quaisquer situações históricas.

Palmares garantiu que milhares de homens e mulheres nascessem, vivessem e morressem livres. Ao contrário, em poucos anos, os seguidores de Ganga Zumba foram reprimidos, reescravizados ou retornaram fugidos aos Palmares, encerrando-se rápida e tristemente a traição que dividiu e fragilizou a resistência quilombola.

A paliçada do quilombo do Macaco foi a derradeira tentativa de resistência estática palmarina, quando a resistência esmorecia. Ela foi devassada em fevereiro de 1694, por poderoso exército, formado por brancos, mamelucos, nativos e negros, entre eles, o célebre Terço dos Enriques, formado por soldados e oficiais africanos e afro-descendentes. Não havia e não há consenso racial e étnico entre oprimidos e opressores.

O último reduto palmarino, defendido por fossos, trincheiras e paliçada, encontrava-se nos cimos de uma altaneira serra.
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A serra da Barriga e regiões próximas, na Zona da Mata alagoana, com densa vegetação, são paragens de beleza única. Quem se aproxima da serra, chegado do litoral, maravilha-se com o espetáculo natural.

O maciço montanhoso rompe abruptamente, diante dos olhos, no horizonte, como fortaleza natural expugnável, dominando as terras baixas, cobertas pelo mar verde dos canaviais flutuando ao lufar do vento.

Se apurarmos o ouvido, escutaremos os atabaques chamando às armas, anunciando a chegada dos negreiros malditos. Sentiremos a reverberação dos tam-tans lançados do fundo da história, lembrando às multidões que labutam, hoje, longuíssimas horas ao dia, não raro até a morte por exaustão, por alguns punhados de reais, nos verdes canaviais dessas terras que já foram livres, que a luta continua, apesar da já longínqua morte do general negro de homens livres.

Mario Maestri é professor do programa de pós-graduação em História da UPF.
E-mail: maestri(0)via-rs.net

Nunca uma ditadura teve tantos êxitos



Por Juremir Machado


Leitores me garantem que nossa ditadura foi um sucesso. Admito. Que linda ditadura tivemos! Dizem que se podia dormir de noite e sair à rua sem medo. Salvo os resistentes ao regime, que eram torturados ou mortos. Mas, explicam-me, a culpa era deles. Quando Nelson Rockfeller visitou o Brasil, em 1969, seis mil “baderneiros” foram “preventivamente detidos” só no Rio de Janeiro. Liberdade, liberdade! Como gosto de números, vou compartilhar alguns aqui, tirados de um dos capítulos mais consistentes que já li, intitulado “O milagre econômico”, do livro, “Estado e oposição no Brasil”, de Maria Helena Moreira Alves. É de arrepiar, o nosso êxito.
A inflação do período militar foi modesta, em torno de 20% ao mês. A dívida externa pulou de 3,9 bilhões de dólares, em 1968, para 12,5 bilhões em 1973. A turma dos camarotes rurais adorava, pois as exportações eram subsidiadas. Mário Henrique Simonsen, um dos intelectuais orgânicos do regime, soltou esta pérola aos porcos: “A partir de 1964, logramos alcançar razoável estabilidade política”. Uau! Tem cada charlatão neste mundo de Deus. Maria Helena Moreira Alves resume: “A política governamental elevou acentuadamente a participação dos membros mais ricos da população na renda global diminuindo a dos 80% mais pobres”. Sem dúvida, um mecanismo eficiente de redistribuição de renda. Para cima. Os números dão uma surra de realidade. Que sucesso. Em 1970, 50,2% dos brasileiros ganhavam menos de um salário mínimo. Em 1972, já eram 52,5%. Que milagre! Apenas 78,8% dos trabalhadores ganhavam até dois salários mínimos. Uma proporção, com certeza, pequena. Um decreto de 1938 estabeleceu o que o salário mínimo devia comprar.
Nossa bela ditadura alterou esses dados. Passamos de 12 para 14 horas de trabalho diário para poder comer. Em 1959, um trabalhador precisava de 65 horas e cinco minutos de trabalho para comprar a cesta básica fixada pelo decreto de 1938. Em 1963, eram 88 horas. Em 1974, 163 horas e 32 minutos. Nenhuma democracia faria melhor. Saltamos para 25 milhões de crianças passando fome. Uma pesquisa revelou que 60% das crianças entrevistadas trabalhava mais de 40 horas por semana. Chamava-se isso de educação pelo trabalho: 18,5% da população entre 10 e 14 anos de idade trabalhava. O efeito pedagógico foi espetacular: 63% das crianças entre 5 e 9 anos de idade, em 1976, fora das escolas. Nunca mais se foi tão longe. Era difícil um país nos bater em analfabetismo ou semianalfabetismo. Tudo isso pela segurança nacional.
A ditadura também mudou a composição dos orçamentos. Uma extraordinária revolução. O da Saúde passou de 4,29% do total, em 1966, para 0,99% em 1974. O da Educação despencou de 11,07% para 4,95% no mesmo período. Em compensação, os três ministérios militares, muito mais úteis à nação, abocanhavam 17,96% dos recursos. Fixamos pena de morte, prisão perpétua, banimento, fechamos o Congresso, controlamos os meios de comunicação, prendemos e arrebentamos, montamos, segundo o general Viana Moog, “a maior mobilização de tropas do Exército”, 20 mil homens para caçar 69 guerrilheiros do PCdoB no Araguaia. Entre 1977 e 1981, foram mortos apenas 45 líderes sindicais rurais. Tivemos míseros 12 mil presos políticos entre 1969 e 1974. Uma ditadura realmente admirável. Tão admirável que conseguiu se autoanistiar. Nenhum torturador foi julgado ou punido. Que êxito!

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Em Palmasola se falar o bicho pega, se calar o bicho come

 



A Pública entrou em uma inacreditável cidade-prisão na Bolívia onde brasileiros convivem com tortura, extorsão – e o abandono do Itamaraty

  

Um muro alto e quatro horas de fila me separam do interior de um dos maiores presídios da Bolívia, onde vivem mais de 4.400 pessoas. A temperatura passa dos 35oC e o chão de areia aumenta o desconforto das muitas mulheres que esperam ali e tentam dar conta de seus sapatos de saltos altos, crianças pequenas e sacolas. Não é dia de visitas no Centro de Rehabilitación Santa Cruz Palmasola na cidade de Santa Cruz de La Sierra, na Bolivia. Ainda assim, elas esperam pacientemente pelo encontro com seus companheiros. Sabem que o passe será liberado com o pagamento de dez pesos bolivianos (cerca de 3 reais) aos policiais.
As horas vão passando e o abatimento vai surgindo, algumas histórias tristes começam a ser contadas e a cumplicidade aumenta. Logo todas estarão dividindo chicletes, garrafas de água e maquiagem para o retoque, já que a pintura caprichosa vai se desmanchando sob o sol quente. Uma moça pergunta a quem vou visitar. “Uns amigos brasileiros” respondo de forma vaga, ao que ela conclui rapidamente: “Mil ocho certamente, como a maioria aqui” referindo-se à lei 1008, que endureceu as regras para  tráfico de drogas, instituída em 1988, sob forte pressão do governo americano. A “milocho” determinou sentenças mais duras e longas para quem comete delitos relacionados ao narcotráfico – do cultivo, consumo e transporte da folha de coca, tradicional cultivo do país, à sua transformação em cocaína. As penas chegam a 20 anos de prisão, sem grandes distinções entre traficantes e usuários.
A moça diz que o companheiro “caiu” pelo mesmo motivo, mas após 4 meses em prisão preventiva, ainda não havia tido sequer uma audiência. História parecida chamou recentemente a atenção da imprensa internacional: Jacob Ostreicher, empresário americano de 53 anos,  preso há 17 meses por suspeita de lavagem de dinheiro e envolvimento com o crime organizado – e ainda sem sentença.
O companheiro da visitante, assim como dezenas de brasileiros, não tiveram a mesma sorte: suas histórias continuam desconhecidas. Segundo o advogado criminalista Hernán Mariobo, 80% dos detidos em Palmasola estão em prisão preventiva, aguardando julgamento. Muitos há mais de três anos, que é o máximo permitido por lei. “Estamos falando de mais de mil pessoas que estão com seus processos parados e, por consequência, tendo seus direitos humanos violados. Outros tantos que já poderiam ter saído ou poderiam responder em liberdade. Mas a Defensoria Pública em Santa Cruz tem no máximo 20 pessoas para dar conta de todos estes processos, e é claro que a coisa se complica ainda mais para os estrangeiros,  que são colocados no fim da lista”. Para um advogado que pediu para não ser identificado, temendo que seus clientes sejam prejudicados, o problema é que todo o sistema está imerso em corrupção: “Lamentavelmente em nosso sistema de justiça, especialmente em Santa Cruz – e dói reconhecer isso como advogado boliviano – a corrupção tem se proliferado muito. Para se tirar um xerox de documento para marcar uma audiência tem de se falar com o secretário, com o juiz, eles argumentam que a agenda está cheia, te pedem dinheiro”, diz. “Para fazer as notificações é ainda pior. É um eterno sofrimento. Tenho um cliente espanhol de 70 anos que teve a audiência cancelada 5 vezes porque chegou 5 minutos atrasado ou porque o juiz teve um problema na escola do filho, ou ainda porque era o dia do juiz e todas as audiências do dia foram canceladas sem aviso prévio”.
Enquanto esperamos na fila, alguns homens chegam algemados de táxi e de moto: não há um veículo oficial para entrar e sair dali. O preso deve pagar o táxi até Palmasola e, quando tem audiência marcada, precisa pagar escolta policial e o transporte de ida e volta. Subitamente, um policial aparece à porta da prisão e diz que “ninguém deve pagar um peso sequer” para entrar. As mulheres comemoram e apontam para um jornalista que espera a saída de um preso famoso com uma câmera em punho como motivo para a “gentileza”.
A administração de Palmasola não se parece em nada com o modelo penitenciário que conhecemos no Brasil. Passada a pequena porta se vê um grande descampado lotado de lixo e urubus, cortado por uma rua que separa os pavilhões: um de segurança máxima, conhecido como Chonchocorito – referência a um presídio de segurança máxima da capital La Paz –  outro reservado às mulheres, um terceiro para presos “comuns”; um para portadores de doenças contagiosas e o finalmente uma “área vip” para policiais e autoridades.
Todos são trancados. Mas a polícia fica do lado de fora. Lá dentro, quem garante a segurança são os próprios presos, que uma vez por ano elegem a “Regência”, espécie de administração penitenciária própria que, por sua vez, escolhe seu exército, conhecido como “Disciplina”, homens com penas perpétuas ou longas que andam uniformizados, armados com porretes, e garantem o cumprimento de leis estipuladas por eles. Leis que não estão em nenhum papel, segundo detentos, advogados e pesquisadores, mas que se não forem cumpridas, podem ser pagas até com a vida – como no caso de estupro ou abuso de crianças – ou com castigos exemplares.
Mas é dificil se aprofundar no assunto, já que maior lei é a do silêncio: o que acontece dentro de Palmasola, fica em Palmasola. Quem fala demais também é castigado. Ao que parece, a polícia não interfere da porta para dentro a não ser em casos extremos que podem repercutir de forma negativa. Foi assim no começo de 2012, quando uma equipe de reportagem da TV americana ABC filmou a realidade vivida por Jacob. A reportagem exibiu o rosto de crianças e homens usando cocaína. Quando foi ao ar, causou alvoroço nos EUA. Alguns dos detentos afirmam ter sido torturados e levados ao pavilhão de segurança máxima como castigo.

Uma cidade entre muros

Ainda na zona que separa os pavilhões, encontro Darly Franco, advogada paulista que vive em Santa Cruz e há 6 anos milita pela causa dos brasileiros presos ali. Na sua tese de mestrado, ela sugere a modificação do código penal para estrangeiros que cometeram delito de narcotráfico. “Na verdade, para qualquer delito penal o procedimento é o mesmo. Os artigos principais são o 233, 234 e 235 que dizem que  a pessoa não vai em detenção preventiva se tiver trabalho, família, domicilio. Mas como a gente faz isso com estrangeiro? Existe um decreto que diz que nenhum turista pode exercer atividade econômica, então como vamos demonstrar que ele tem trabalho? Se eu estou de passagem e me pegam no aeroporto, como vou ter domicilio? Assim, é pouco provável que essa pessoa consiga responder em liberdade. Foi pego, vai preso. E se você não tem dinheiro, vai ficar lá, por causa de todo o esquema de corrupção, golpes de advogados fajutos e a lentidão da justiça”.
Muito respeitada pelos detentos, principalmente os brasileiros aos quais defende como pode, mesmo que paguem pouco ou nada, Darly conduz a reportagem pelos pavilhões. Assim que chega, os presos imediatamente se oferecem para carregar suas pastas de documentos, andam ao seu redor, fazem mil perguntas. “Praticamente vivi em Palmasola quando escrevi minha tese e desde então venho ao menos uma vez por semana para tentar fazer estes processos andarem”, explica.
Para entrar no “PC4”, maior pavilhão masculino, precisamos pagar cinco pesos a um policial que nos carimba o pulso. Assim entramos no maior pavilhão, onde estão, naquele dia, 70 homens brasileiros, a terceira maior população de estrangeiros, segundo Darly, atrás dos peruanos e colombianos. De cara é possível notar que não há celas e os homens caminham livremente ali dentro. Os brasileiros nos recebem na porta.
Para conversarmos mais à vontade, o paranaense Mário* – todos os nomes nesta reportagem são fictícios, para evitar que sofram represália – um senhor de fala mansa, extremamente educado, nos conduz à igreja onde mora. Isso mesmo: dentro da prisão. Ele conta que já vivia há mais de 20 anos na Bolivia quando brigou com um funcionário da fazenda onde trabalhava; matou-o com um tiro de espingarda. Há dez anos em Palmasola, é o brasileiro mais antigo no PC4. Para sobreviver e pagar os cerca de 30 pesos bolivianos diários que diz gastar com comida e ítens de higiene, faz redes e artesanato que vende dentro e fora de Palmasola, através de familiares de outros presos.
No caminho, passamos por tendas de artesanato, lanchonetes, um campo de futebol, uma universidade de direito e até uma pousada onde familiares e amigos dos presos podem se hospedar por alguns dias. Todas as construções são erguidas e administradas por eles e os produtos são vendidos ali dentro para os companheiros de pavilhão e também para o grande volume de pessoas que transita ali diariamente. Muitos criam um verdadeiro patrimônio, com quartos arrendados e pequenos negócios. Aos que têm condições financeiras é permitido inclusive morar com a família.
Segundo dados da Defensoría del Pueblo em Santa Cruz, há mais de mil crianças vivendo dentro de Palmasola. Elas saem para estudar em escolas próximas – há uma bem em frente ao portão de entrada – e voltam no fim do dia para dormir na “casa” dos pais.
Não havia muitas crianças transitando durante nossa visita porque estavam em horário de aula. Mas as que estavam por ali, pequenas, andavam grudadas nos pais. Os presos em melhores condições financeiras – que recebem dinheiro da família, de negócios internos ou com o tráfico de drogas – podem, além  de usufruir dos bens de consumo e serviços produzidos lá dentro, contratar prostitutas que chegam de fora e do pavilhão de mulheres, consumir drogas e incrementar suas celas  com pequenos luxos como televisão, aparelho de som.

A vida dos brasileiros

Como em uma verdadeira cidade, há “bairros” ricos e pobres. Quem não tem dinheiro, como a maioria dos brasileiros, que não têm família ou amigos por perto, tem de se virar com o “rancho”, como é chamada a comida da detenção. Naquela quarta-feira, o rancho era uma papa de arroz com lentilha coberta por um caldo laranja não identificado.  Para dormir bem, há de se contar com a ajuda das igrejas –algumas permitem que os presos pernoitem se ajudarem na limpeza – ou  ser um bom jogador de futebol: “Os bolivianos gostam muito do futebol brasileiro, então quem joga bem e participa dos campeonatos que a gente faz aqui, recebe mais ajuda do pessoal” explica Mauro*, em prisão preventiva por tentativa de estelionato há dois anos e três meses.
Quem não consegue ajuda vive literalmente como sem-teto, dormindo sobre papelões a céu aberto. “É claro que existe um regime penitenciário e alguns processos administrativos se encaixam na lei, mas o resto está totalmente à margem. O que acontece em Palmasola é o que acontece aqui fora: quem tem mais recursos vive melhor” explica o advogado Hernán Mariobo. “O que está na lei é o sistema padrão, como o norte-americano, com celas, horários. Mas os presos  criaram seu próprio sistema”.
Antes de entrarmos na igreja, Marcelo*, um moço jovem preso por roubo na cidade de San Matias, nos leva para conhecer “el bote”, uma cela pequena e escura, usada como medida punitiva, sem janelas, trancada por barras de ferro, como as do antigo Carandiru em São Paulo. Lá dentro há vários homens – nem eles sabem dizer quantos são.  Um brasileiro se apresenta, diz que não se lembra há quantos dias está ali e que foi trancado porque se atrasou para a chamada que a polícia faz diariamente. Os outros presos repassam o rancho pela grade.
Marcelo levanta a camiseta para mostrar as costas tomadas por um tipo de doença de pele, com grandes manchas vermelhas espalhadas e algumas feridas. “Peguei esse bagulho quando fiquei mais de 70 dias no bote. Uns brasileiros fugiram e a disciplina nos pegou como exemplo, bateram, quebraram minha costela na frente de todo mundo e nos trancaram aí”, diz, apontando para a cela. “Só que para se consultar com o médico tem que pagar 50 pesos bolivianos. Para ter remédio, precisa pagar. Isso é horrível e está se espalhando, mas não tenho o que fazer”, lamenta.
As reclamações aparecem num caos de vozes em uma mistura de português, espanhol e gírias locais. “Nós brasileiros somos tratados como cachorros aqui”, diz um. “Queria eu ser tratado como perro, somos é lixo”, retruca o outro. “A comida é ruim, não temos onde dormir, não temos remédios”, grita um terceiro. Uma criança pequena escuta tudo atentamente, do colo do pai brasileiro. A mãe, boliviana, está do lado de fora trabalhando.
A doutora Darly tenta organizar a bagunça, pede que as queixas sejam feitas por tema. Quase nenhum dos homens ali tem seus documentos, retidos pela polícia quando foram  capturados. Nenhum tem a cópia do processo, e muitos estão há anos em prisão preventiva por crimes considerados de bagatela, como tentativa de roubo. Um brasileiro que está lá há mais de três anos foi pego tentando abrir um carro com um arame.
A reclamação maior é contra o Consulado brasileiro: “O cônsul não vem aqui e o advogado representante aparece de vez em quando, mas nunca resolve nada. Ele só nos traz cestas básicas de três em três meses”, diz um detento, referindo-se ao advogado boliviano contratado há 12 anos pelo Consulado para agilizar os processos dos presos brasileiros. O preso rapidamente pede para não ser identificado. Entredentes, Marcelo justifica o medo dos companheiros: “tá vendo aquele ali com o colete? É da disciplina. Nós vamos apanhar hoje porque estamos falando com a senhora. Eu não me importo, porque a gente precisa de ajuda. Mas se falarmos demais a coisa pode ficar feia”.
Segundo os presos ouvidos pela reportagem, o assessor jurídico do consulado só aparece a cada três meses.
No começo de outubro, mais de 20 homens escreveram cartas de próprio punho destinadas ao Consulado brasileiro e ao Itamaraty, reclamando da negligência e denunciando um suposto esquema de extorsão. Uma delas, à qual a Pública teve acesso, relata: “Como cidadão brasileiro reclamo meus direitos a assistência social, médica e um advogado. Não temos nada disso. Precisamos de ajuda, estamos abandonados, esperamos que nos atendam como pessoas. Estou sem documentos, com a condicional cumprida”. Outra carta explica: “Estou preso há 6 anos e nunca tive visita porque meus pais estão mortos e não tenho atenção médica, não tenho trabalho firme, não tenho advogado. Por isso peço ajuda do meu país onde vivi. O advogado do Brasil não está fazendo nada a que nos corresponde (…) solicitamos a mudança de advogado”. Uma terceira diz: “Denuncio o doutor Solis que sabendo que cumpri a minha pena não fez nada por mim. Ele é um mentiroso (…) preciso dos meus documentos, do meu passaporte, estou esquecido na Bolívia. Doutor Soliz, chega de mentira, preciso de sua atenção”. As denúncias continuam: “Doutor Solis, deixe de ser mentiroso e de enganar nós aqui, porque não dá nenhuma informação sobre nossa situação aqui e quando vem aqui não faz nada. Solicito que troque o advogado (…) Ademais ele rouba todas as nossas coisas que mandam para nós aqui. Peço que o cônsul venha nos visitar para que falamos sobre a nossa situação urgente”.
Você pode ler algumas destas  cartas no final da reportagem.
Depois do PC4, fomos a Chonchocorito. Por algum tempo se proibiu a visita de mulheres ao pavilhão de segurança máxima por risco de estupro. De qualquer forma, éramos as únicas mulheres ali dentro. Darly estava calma e ambientada, cumprimentava os homens pelos nomes, perguntava sobre suas famílias. Um boliviano reincidente veio mostrar  seu bebê em um carrinho  dizendo que agora terá de tomar juízo.
Passados dois portões, estavamos por nossa conta. Ali, nada de lojas ou lanchonetes: Apenas um grande prédio cinza ao lado de um pequeno campo de futebol improvisado e uma espécie de pátio com bancos à sombra de um toldo de palha. Um brasileiro vem ao nosso encontro e sai para chamar outros cinco que vivem lá. Enquanto conversamos, homens passam armados com pedaços de canos e armas brancas de todo tipo para saber o que está acontecendo. Todos nos tratam com respeito. A maioria dos brasileiros caiu ali por tráfico de drogas ou roubo – ao contrário do PC4, onde muitos estão por assassinato e devem cumprir penas de mais de 20 anos.
Eles contam que quase todos os homens, quando chegam a Palmasola, vão direto para Chonchocorito. Os que podem pagar cerca de mil dólares são transferidos para o pavilhão mais cômodo. Entre os que nos recebem em Chonchocorito está o reincidente João*. Junto com um grupo de 22 brasileiros, em 2003 ele se crucificou e costurou os lábios para chamar a atenção do Consulado brasileiro para a situação em Palmasola.
“O cônsul veio aqui, prometeu melhorias, saiu em um monte de jornais no Brasil e depois ficou tudo igual. Igual não, pior na verdade, porque sofremos represália. Apanhamos mais por ter chamado a atenção, e o custo de vida aumentou”. Os detentos contam que, se um boliviano ganha 10 pesos por um dia de trabalho (limpando, arrumando, etc.), um estrangeiro ganha cinco. E que o mesmo acontece com o custo da comida e bebida, que aumenta para quem é de fora.
Um jovem que foi pego roubando há três meses conta que não teve nem a primeira audiência com o juiz. “Estou sem documento, sem meus pertences que foram tirados pela polícia e nunca vi ninguém do Consulado brasileiro aqui. Sei que existe um advogado porque os outros me disseram”.  No dia seguinte à nossa visita, Chonchocorito entraria em rebelião pacífica por melhores condições de vida, com uma greve de fome que foi noticiada apenas na TV local.

Brasileiras, abandonadas

O último pavilhão a visitar – o relógio apontava para as 17h, apesar do sol a pino que não dava trégua – era o das mulheres. Tensão e tristeza pareciam deixar o ar mais denso. Ao contrário do PC4, quase não há visitas. Muitas das 18 brasileiras presas em Palmasola são dependentes químicas, principalmente de crack e outras variações da pasta-base da cocaína, inclusive injetáveis.
Elas têm a pele solta no corpo, marcas de agulhas e facadas, arranhões, hematomas das brigas diárias. Poucas se juntam a nós, a maioria está dopada demais para conversar. Quando pergunto onde arranjam dinheiro para sobreviver ali dentro, uma responde: “Roubando. A gente rouba umas das outras, pede emprestado e não devolve, pega. Principalmente para as drogas. Eu sou uma viciada, não tenho vergonha de assumir isso. Só queria ter dinheiro para usar”.
Entre elas está uma senhora que aparenta de mais de 60 anos, presa no aeroporto transportando cocaína, que age de forma maternal com as outras, cuidando para que não falem demais, dizendo à doutora Darly que “pelo amor de Deus arranje ajuda médica para estas meninas”. Ela está presa por “mil ocho” como a maioria ali. E faz pães que são vendidos nos pavilhões para juntar algum dinheiro para pagar um advogado já que, como as outras, diz que não pode contar com o advogado do consulado. Quando perguntamos sobre ele, elas bufam, dão risada e uma diz: “Eu acho que nunca vi esse homem aqui”.
Ao final do dia, uma voz masculina em particular, sem rosto, ecoa sobre as outras: “moça, não sei como, mas eu saio daqui logo. Nem que seja com os pés gelados”.

Consulado e Itamaraty

Procurado pela Pública, o advogado contratado boliviano que atende em nome consulado brasileiro, Juan Soliz, diz que ajuda como pode, fazendo correr os processos, porém a verba é curta e a demanda é muito grande: “temos bastante indigentes, esses hippies que vem para cá, consumidores de drogas que decidem cometer alguns delitos, quando são presos ficam nestes lugares mais humildes. Normalmente minha atividade é centrada nessa gente. De maneira voluntária, o consulado manda um pouco de comida a cada dois ou três meses”. Segundo ele, a cesta básica é “voluntária” porque não é atribuição do consulado. “Hoje temos cerca de cem  presos brasileiros e a verba que temos para custos processuais e de ajuda a todos é de mil dólares”
Segundo o advogado especializado em direito internacional Claudio Fikelstein, não há uma lei que determine o que o Consulado brasileiro deve ou não fazer nestes casos. Mas regularizar a parte de documentos, avisar a família dos presos e prestar auxílio jurídico adequado é, sim, uma obrigação do orgão. “O que acontece é que alguns consulados realmente interferem mais em casos de prisões de brasileiros no exterior, como os que envolvem pena de morte e casos extremos e outros, talvez por falta de verba ou de pessoal, se envolvem menos.
Questionado a respeito, o Itamaraty declarou por meio de sua assessoria de imprensa que “em 2011 foram visitados 120 brasileiros em Palmasola em 95 visitas de periodicidade quinzenal” – ao contrário do que dizem os presos – e que o governo brasileiro não tem competência para representar em corte os brasileiros presos. Explicou ainda que “a responsabilidade básica da dignidade e bem-estar dos presos é da autoridade local, mas o cidadão detido pode se comunicar e levar suas denúncias ao Consulado sempre que necessário e em casos extremos adquirir artigos básicos como remédios, alimentos e peças de vestuário”.
Tais normas são regidas pela Convenção de Viena sobre Relações Consulares e no Manual de Normas do Serviço Consular e Jurídico (NSCJ) que regulamenta a assistência a presos brasileiros no exterior prestada pelo Itamaraty. Destaque para o artigo 3.10.7 do Manual: “A Autoridade Consular procurará apurar junto às autoridades locais qualquer fato que possa, a seu critério, colocar em risco a integridade moral, física e psicológica do preso brasileiro, solicitando a implementação de providências nesse sentido”.
Pouco antes do fechamento desta reportagem, a advogada Darly Franco levou as cartas dos presos ao Consulado brasileiro em Santa Cruz que, segundo ela, se negou a receber porque os papéis não estavam assinados.
  
Esta reportagem foi realizada por meio do Concurso de Microbolsas da Agência Pública, em parceria com a Rede Brasil Atual. A repórter da Pública Andrea Dip se uniu à jornalista Tatiane Ribeiro, que atualmente trabalha no site Mural, da Folha de S Paulo.  *Todos os nomes são fictícios.

Obama e a desilusão

 

Obama anuncia, à sua maneira profética, o mesmo que os governantes europeus anunciam com menos elegância oratória: que, sangrado o doente, virá a saúde eterna. Mas, na verdade, o que ele promete é apenas a continuidade da sangria.
Quatro anos chegaram para desvanecer a esperança com que tantos americanos - e tantos outros não americanos - encararam a primeira eleição de Obama. Na verdade, se algo marca a sua reeleição na semana que agora finda é a nítida sensação de que ela ocorreu em clima de profunda desilusão. Foi essa desilusão que, apesar das facilidades dadas por uma candidatura republicana refém do fundamentalismo estúpido do Tea Party - com pérolas como a das "violações legítimas" ou a da inspiração comunista da teoria da evolução -, determinou que a reeleição do grande vencedor de há quatro anos tenha sido conseguida em tremendo esforço e por uma unha negra.
Em 2008, Obama soube capitalizar a necessidade vital de esperança da sociedade americana. A agressão neoconservadora à grande maioria da sociedade americana - através da drenagem da economia para as guerras infinitas, do estímulo à especulação financeira crescentemente irresponsável ou da protecção dos mais ricos dos ricos no pressuposto fantasioso de que isso geraria estratégias de emulação pelo povo pobre - tinha deixado os Estados Unidos estilhaçados e tinha destruído boa parte dos laços de pertença de pessoas e de comunidades. Foi face a isso que Obama se assumiu como o american dream ele mesmo, redentor suave de todas as fraturas, de todas as culpas, de todos os traumas. Como em tantos melodramas de Hollywood, o personagem Obama alimentou a crença em que o capitalismo americano se poderia reconciliar consigo próprio e renascer.
Os últimos quatro anos foram a perda da inocência dessa crença. Obama não atacou as causas da crise financeira, antes transferiu os seus efeitos fazendo-a ser paga pelos cidadãos americanos e pelos não americanos apanhados pelas ondas de choque do sub-prime. Obama não afrontou o poder de Wall Street, antes designou altos quadros da Goldman Sachs e do Citibank para cargos estratégicos na condução da política económica americana. Obama não resolveu a chaga da falta de um sistema público de saúde, antes criou um mercado de serviços de saúde em que o Estado paga as faturas mas se coíbe de prestar ele próprio cuidados fundamentais. Obama não tratou os imigrantes de forma diferente, antes duplicou o número de 'ilegais' deportados por Bush para os seus países de origem. Obama ordenou a retirada do Iraque, mas manteve como Secretário da Defesa o homem que Bush nomeou para coordenar a máquina de guerra e redobrou a campanha no Afeganistão. A nova era não veio.
"O melhor ainda está para vir", proclamou na noite da reeleição. Obama anuncia, à sua maneira profética, o mesmo que os governantes europeus anunciam com menos elegância oratória: que, sangrado o doente, virá a saúde eterna. Mas, na verdade, o que ele promete é apenas a continuidade da sangria. Obama é um democrata clintoniano e não rooseveltiano. Nunca o ouvirão dizer - como disse esse seu antecessor - que compreende as razões dos que odeiam os ricos. Não, como Clinton, ele dará continuidade à orientação antissindical, à política de rebaixamento dos salários, à cumplicidade com Israel contra a Palestina, à manutenção do império dos combustíveis fósseis e ao dogma de que os bancos são demasiadamente grandes para falirem.
Um Obama assim é a prova da perversão de um sistema político em que os democratas dão por garantido o voto da esquerda e, por isso, apostam sempre na sedução à direita. De tal forma que ficam eles próprios seduzidos pelo objecto da sedução. Talvez esta seja a mais útil contribuição das eleições americanas para Portugal.
Artigo publicado no jornal "Diário de Notícias de 9 de novembro de 2012

domingo, 11 de novembro de 2012

Eduardo Galeano: "Ao trabalhador, restam a angústia e o desemprego"

          

Celebrado escritor uruguaio realizou a conferência de encerramento do congresso do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), realizado na capital mexicana, em que tratou do tema “Os direitos dos trabalhadores: um tema para arqueólogos?”. Em sua fala, Galeano demonstrou como esses direitos são resultado de uma árdua luta com 200 anos de história, mas têm sido cada vez mais violados por governos e grandes corporações.



       Cidade do México – O escritor uruguaio Eduardo Galeano encerrou na noite de sexta-feira (9) o congresso do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (Clacso), realizado na capital mexicana, com uma concorrida conferência pautada em um tema caro para os cientistas sociais: a decadência do mundo do trabalho.

Intitulada “Os direitos dos trabalhadores: um tema para arqueólogos?”, a intervenção de Galeano, assistida por ao menos mil pessoas, que lotaram auditório e salas anexas do hotel onde acontecia o congresso, foi construída como um “mosaico” de histórias essenciais sobre os “200 anos de lutas dos trabalhadores do mundo”.

A maior parte delas está disponível no último livro do escritor, “Os filhos dos dias", lançado neste ano no Brasil. Galeano tratou, por exemplo, da greve operária de Chicago em primeiro de maio de 1886, violentamente reprimida pelas forças de segurança. A data tornou-se o Dia do Trabalho em muitos países, mas não nos Estados Unidos.

“Há sete ou oito anos estive em Chicago e pedi aos amigos que me receberam que me levassem onde aconteceram os protestos. Mas me surpreendi porque eles não conheciam a história”, disse ele. “Só recentemente recebi uma carta deles contanto que tinha acabado de haver uma manifestação na cidade, para lembrar as greves daquela época”, completou.

O escritor, de 72 anos e mundialmente conhecido pela obra "As veias abertas da América Latina", também lembrou o médico italiano Bernardino Ramazzini (1633-1714), precursor da medicina do trabalho. Segundo o uruguaio, o médico natural de Pádua escreveu o primeiro tratado do gênero, vinculando tipos de ocupações laborais com enfermidades específicas.

“Mas ele também escreveu que pouco poderia ser feito com as condições de vida daquelas pessoas, que comiam mal e trabalhavam de sol a sol”, afirmou. Ainda sobre a dureza do trabalho, Galeano lembrou que em 1998 a França reduziu a jornada a 35 horas por semana, mas a medida já foi desfeita.

“Era o sonho de Thomas Morus. Para que servem as máquinas, senão para ampliar nossos espaços de liberdade? Mas acabou em apenas 10 anos. Para o trabalhador, restou desemprego e angústia”, disse o uruguaio, lembrando a crise financeira global iniciada em 2008.

Galeano ainda citou o pouco interesse dos países e grandes empresas pelos 189 acordos e convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), dos quais só 14 foram ratificados pelos Estados Unidos.

“Justamente o país em que o primeiro de maio não é celebrado”, destacou. Ao encerrar sua participação, Galeano contou a história de Maruja, trabalhadora doméstica e moradora de Lima, no Peru, também disponível em seu último livro. É esta que segue:


"Marzo, 30, Día del servicio doméstico"

"Maruja no tenía edad.
De sus años de antes, nada contaba. De sus años de después, nada esperaba.
No era linda, ni fea, ni más o menos.
Caminaba arrastrando los pies, empuñando el plumero, o la escoba, o el cucharón.
Despierta, hundía la cabeza entre los hombros.
Dormida, hundía la cabeza entre las rodillas.
Cuando le hablaban, miraba el suelo, como quien cuenta hormigas.
Había trabajado en casas ajenas desde que tenía memoria.
Nunca había salido de la ciudad de Lima.
Mucho trajinó, de casa en casa, y en ninguna se hallaba. Por fin, encontró un lugar donde fue tratada como si fuera persona.
A los pocos días, se fue.
Se estaba encariñando."


* Viagem realizada a convite do Clacso

sábado, 10 de novembro de 2012

Brasil, país dos contrastes

 





Frei Betto

Escritor e assessor de movimentos sociais


Stefan Zweig intitulou Brasil, país do futuro seu livro de ensaios lançado em 1941, quando veio conhecer o país que o acolheria e no qual morreria no ano seguinte. Ora, pode ser aplicado ao futuro o que diz Eduardo Galeano a respeito da utopia: como o horizonte, está sempre ali na frente, mas não se pode alcançá-la, por mais que se caminhe em sua direção.
Prefiro afirmar que o Brasil é um país de contrastes. Com população de 192 milhões de habitantes (dos quais 30 milhões na zona rural, onde predomina o latifúndio com grandes extensões de terras improdutivas), apenas 6,6 milhões de brasileiros se encontram na universidade. E dos 92 milhões de trabalhadores, quase a metade não tem carteira assinada.
Temos a maior área fundiária da América Latina e nunca se fez aqui uma reforma agrária. Somos o principal exportador de carne e temos a segunda maior frota de helicópteros das Américas, e convivemos com a miséria de 16 milhões de habitantes (dos quais 40% têm até 14 anos de idade e 71% são negros e pardos).
As marcas de 350 anos de escravidão no Brasil ainda são visíveis no fato de a maioria da população negra ser pobre e, com frequência, discriminada. O Brasil, considerado hoje a 6ª economia do mundo, ocupa a vergonhosa posição de 84º lugar no IDH da ONU (2012).
Embora 65% da renda nacional se concentrem em mãos de apenas 10% da população, o país experimenta sensíveis melhoras nesses primeiros anos do século XXI. Graças aos programas sociais dos governos Lula e Dilma, 30 milhões de pessoas deixaram a miséria. O controle da inflação, o crédito facilitado e a redução dos juros ampliam o segmento da classe média. A desoneração da indústria automobilística e dos produtos de linha branca (geladeiras, máquinas de lavar etc.) dão acesso a bens de consumo.
No entanto, 4 milhões de menores de 14 anos de idade ainda se encontram fora da escola e submetidos a trabalhos indignos. Cinco milhões de agricultores sem-terra se abrigam em precários acampamentos à beira de estradas ou habitam assentamentos com baixo índice de produtividade. Dos domicílios, 47,5% carecem de saneamento básico. Isso abrange um universo de 27 milhões de moradias nas quais vivem 105 milhões de pessoas.
Há cerca de 25 mil pessoas submetidas ao trabalho escravo, sobretudo nos Estados da Amazônia, cujo desmatamento, provocado pelo agronegócio e a exploração predatória feita por empresas mineradoras, não cessa de despir a floresta de sua exuberância natural.
Na ponta mais estreita da pirâmide social, os brasileiros gastam, em viagens no exterior, US$ 1,8 bilhão por mês! O rombo nas contas externas atingirá, este ano, a cifra recorde de US$ 53 bilhões. Nos últimos anos, a baixa cotação do dólar em relação ao real afetou a indústria nacional e favoreceu a entrada de produtos estrangeiros.
Como a economia brasileira está ancorada principalmente na exportação de commodities, a crise financeira mundial reduz progressivamente as encomendas, tornando pífio o crescimento do PIB, previsto este ano para 1,2%.
Considerado o segundo maior consumidor de drogas no mundo (atrás apenas dos EUA), o Brasil convive com expressiva violência urbana. Os homicídios são a principal causa de mortes de jovens entre 12 e 25 anos.
Embora a situação social do Brasil tenha melhorado substancialmente na última década (a ponto de europeus afetados pela crise financeira migrarem para o nosso país em busca de emprego), falta ao governo implementar reformas estruturais, como a agrária, a tributária e a política.
O sistema de saúde pública é precário e somente neste ano os deputados federais propuseram dobrar para 10% do PIB o investimento federal em educação. Convivemos com 13,6% de adultos analfabetos literais e 29% de adultos analfabetos funcionais (sabem ler e assinar o nome, mas são incapazes de escrever uma carta sem erros ou interpretar um texto).
Segundo o Instituto Pró-Livro, o brasileiro lê apenas 4 livros por ano. E apenas 5% da população é capaz de se expressar em inglês, dos quais a maioria sem domínio do idioma.
O poder público brasileiro, com raras exceções, é avesso à cultura. O orçamento 2012 do Ministério da Cultura é de apenas R$ 5 bilhões (o PIB atual do Brasil é de R$ 4,7 trilhões). O que explica o país dispor de apenas 3 mil livrarias, a maioria concentrada nas grandes cidades do Sul e do Sudeste do país.
Apesar das dificuldades que o Brasil atravessa, somos um povo viciado em otimismo. Temos, por hábito, guardar o pessimismo para dias melhores...
Agora o nosso horizonte de felicidade se coloca na Copa das Confederações em 2013; na Copa do Mundo em 2014; e nas Olimpíadas do Rio de Janeiro, em 2016.
Como o nosso país estará no centro das atenções mundiais, o governo apressa obras, reforma estádios, aprimora a infraestrutura e promete festas que nos farão esquecer que ainda somos, socialmente, uma das nações mais desiguais do mundo.