sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

‘Mídia brasileira ataca ´Ley de Medios` argentina por temer projeto semelhante no Brasil’

 Gabriel Brito e Valéria Nader, da Redação   do CORREIO DA CIDADANIA



Após cinco anos de sua idealização, a Argentina conseguiu concretizar a vigência de uma nova Lei de Mídia, redigida a fim de regulamentar a arena das comunicações e reordenar a ocupação do espectro eletromagnético, quebrando os monopólios da mídia comercial. Neste contexto, vários anos se passaram com os mesmos grupos empresariais dominantes bombardeando o governo de Cristina Kirchner, que estaria a “atentar contra a liberdade de expressão”.

Dessa forma, é para elucidar a chamada Lei de Serviços de Comunicação Audiovisuais que o Correio da Cidadania entrevistou o estudioso das comunicações, e editor da revista Caros Amigos, Laurindo Lalo Leal Filho. Com anos de estudo sobre os diferentes níveis de regulação midiática encontrados mundo afora, Lalo assegura que a nova lei é da mais alta consistência, além de amplamente debatida na sociedade: “são dois os grandes aspectos: o teórico-acadêmico e o da sustentação política”.

Como se trata de uma legislação que assegura grande parte das concessões audiovisuais para veículos de comunicação estatais e comunitários, abrindo grande campo para que movimentos e expressões sociais, inclusive minoritários, se manifestem, não foi nada imprevisível o rancor da mídia burguesa, cujos veículos comerciais se apresentam como únicos arautos da democracia.

“A Sociedade Interamericana de Imprensa (órgão que representa a mídia comercial nas Américas) é uma organização que não possui nenhuma legitimidade em relação à sociedade e às populações sobre as quais ela pretende influenciar. É uma organização empresarial, de um setor comercial das comunicações, defendendo os interesses de quem representa”.

Para avançarmos no debate da democratização das comunicações, Laurindo Lalo também recomenda que a lei argentina seja estudada nas escolas de comunicação do país, o que poderá gerar uma real compreensão de sua importância. Uma boa saída para o Brasil, haja vista nosso atual estágio de monopólio midiático, ao lado das dificuldades a serem enfrentadas para a aprovação de uma lei com tal conteúdo em um Congresso densamente permeado pelos interesses dos donos de concessões rádio-televisivas.

“Acredito que não só este governo, mas todos têm um receio muito grande de enfrentar esses poderosos grupos de comunicação. Acho que o fantasma do golpe de 64 perdura até hoje. É uma disputa bastante difícil, mas que aqui no Brasil já está passando da hora”.

A entrevista completa com o jornalista pode ser lida a seguir.

Correio da Cidadania: Como o senhor analisa o projeto da Lei de Serviços de Comunicação Audiovisuais, promulgada pelo governo argentino em 2009 e que passou a vigorar a partir do último dia 7 de dezembro, ainda que sob embargo de instâncias intermediárias da justiça local?

Laurindo Lalo Leal Filho: Por ora está embargado, é preciso aguardar um pouco, mas nos próximos tempos devemos ter nova decisão. De toda forma, avalio que essa lei de regulação audiovisual é a mais moderna e avançada de todo o mundo no momento. Serve como exemplo para a América Latina. São dois os objetos centrais da formulação da lei – de 2007. O primeiro é de que foi construída a partir de uma ampla análise jurídica e até acadêmica das legislações hoje existentes em países democráticos de todo o mundo, em relação à radiodifusão. Ela incorpora o que há de mais moderno e avançado em legislações da Europa, EUA e até América Latina.

A lei é muito consistente do ponto de vista teórico, pois, incorporando um pouco de cada uma das leis estudadas, avança para além delas, inclusive sobre os recentes avanços tecnológicos, respondendo também às exigências tecnológicas de hoje. Tenho dito que é muito importante que as escolas de comunicações estudem essa lei, discutindo-a com seus alunos, pois a partir daí vão descobrir como os países democráticos estão estruturados para dar conta das novas tecnologias da comunicação hoje em dia, no campo do audiovisual.

O segundo aspecto que dá consistência à lei é o fato de ter sido formulada através de um amplo debate na sociedade. É uma lei claramente construída de baixo pra cima. Quem tiver paciência de olhá-la por inteiro, poderá perceber que vários artigos e determinações são oriundos de propostas feitas por entidades do movimento social, dentre outras representações da sociedade, incluindo empresariais. Não foi formulada por um grupo fechado, de políticos ou acadêmicos, e imposta à sociedade. Começou com algumas e chegou, ao final de sua elaboração, a contar com praticamente 300 organizações sociais. É uma lei amplamente democrática, consolidada a partir da vontade popular.

Portanto, são dois os grandes aspectos: o teórico-acadêmico e o da sustentação política.

Correio da Cidadania: A seu ver, quais são os pontos mais importantes e que justificariam a aprovação da “Ley de Medios”?

Laurindo Lalo Leal Filho: O primeiro e mais polêmico, que segue dando pano pra manga e foi o que mais dificultou a aprovação da lei, é aquele que rompe um processo não só argentino, mas latino-americano, de concentração dos meios de comunicação nas mãos de poucos grupos. Esse é o aspecto central, pois faz com que a lei amplie a liberdade de expressão na Argentina. Ou seja, um espectro eletromagnético hoje ocupado por poucos grupos passa a ser ocupado por um número maior de atores. Setores da sociedade que estão calados por não terem espaço de colocarem suas vozes terão agora a oportunidade. Como diz o documento “Hablemos todos”, todos têm o direito de falar.

Assim, esse é o aspecto prático mais importante da lei, dividindo o espectro de forma mais equilibrada, seja para as emissoras públicas, estatais ou comerciais. É uma lei que amplia a liberdade de expressão ao mesmo tempo em que quebra monopólios. Isso tem um desdobramento político muito importante porque representa um aprofundamento da democracia. Não é só uma questão do campo das comunicações. Quando se amplia o número de vozes, idéias e valores, amplia-se a participação democrática da sociedade. Exemplo disso é o ponto que garante o espaço também para os grupos originários, como o de Bariloche, cujo grupo de habitantes de povos originários está colocando no ar sua emissora de TV. Um grupo que sempre esteve calado. Mas, com um terço do espaço reservado às emissoras públicas, agora também poderão falar à sociedade.

Portanto, esse é o aspecto fundamental, a voz a setores sempre silenciados. Mas existem outros, como a garantia da produção nacional, o que abre espaço a muitos grupos que querem mostrar seu trabalho. Há a classificação indicativa estabelecida em lei, porcentagens máximas de publicidade, enfim, uma série de aspectos, todos voltados não só ao aumento da participação pública, mas também à qualidade do que é oferecido ao público.

Correio da Cidadania: Como se viu, é necessário um grande movimento para levar adiante um combate aos monopólios midiáticos, tocando fortes interesses políticos e econômicos com diversos tentáculos de influência. O que teria a dizer, neste sentido, da decisão parcial da justiça de permitir que o grupo Clarín siga adiando seu processo de desmembramento, no qual deve abrir mão de boa parte de seus veículos de comunicação?

Laurindo Lalo Leal Filho: O grupo Clarín, como o grupo Globo aqui, foi ocupando os espaços, gradativamente, pela falta de uma presença mais forte do Estado na regulação. Quando o espaço estava vazio, era como um terreno baldio, e foi se criando o latifúndio. E depois se consolidou um grupo muito forte, como se viu, com 240 concessões de TV a cabo, 4 de TVs abertas, 9 emissoras de rádio AM e FM... É um grupo que tem um poder econômico e político muito grande.

Se fosse qualquer outro ramo social ou comercial, poderia ter só o poder econômico. O problema nas comunicações é que, quando se detém o poder econômico, também se detém o poder político. É um poder muito grande, que sempre se confrontou com o Estado, jogando muita influência sobre os outros poderes, isto é, o legislativo e judiciário. O poder judiciário também sofre muitas pressões do grupo Clarín. A lei foi promulgada em outubro de 2009 e até agora não se conseguiu aplicá-la pelas diversas ações promovidas pelo grupo Clarín sobre os vários poderes.

Superados pelo executivo e legislativo, que já deram vigência à lei (o judiciário também, em suas instâncias maiores), restam as instâncias intermediárias do judiciário para pressionar e conseguir recursos no sentido de adiar a aplicação da lei. O que acontece agora é uma disputa entre um grupo poderoso e os poderes da República.

Correio da Cidadania: O que você responderia aos setores críticos da lei, inclusive aqueles do próprio meio midiático, como a Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP)?

Laurindo Lalo Leal Filho: A Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP) é uma organização que não possui nenhuma legitimidade em relação à sociedade e às populações que ela pretende influenciar. É uma organização empresarial, de um setor comercial das comunicações, defendendo os interesses de quem representa. Quer defender os mercados nos quais atua. Portanto, não tem sustentação política alguma.

É uma organização comercial, que tem a sustentá-la empresas comerciais da América que sempre sustentaram governos conservadores e até ditaduras. As ditaduras da América latina, dos jornais e da própria SIP. Basta lembrar que ela foi fundada durante a ditadura de Fulgencio Batista, antes da revolução cubana. Tem uma articulação com os regimes conservadores de direita muito grande.

Na verdade, quando esses governos populares da América Latina – como os da Argentina, Bolívia, Equador, Venezuela – começaram a colocar algum limite ao poder de seus filiados, a SIP obviamente saiu em defesa deles. Mas é uma defesa de mercado, não tem nada a ver com cidadania, liberdade de expressão, de imprensa. Tem a ver com os interesses comerciais das empresas que a SIP representa.

Correio da Cidadania: Ainda quanto às críticas à nova lei, e talvez nesse mesmo sentido explicado, a maioria dos meios de comunicação de nosso país bombardeia que, a despeito de serem razoáveis as precauções contra o monopólio das comunicações, o que se vê na Argentina é uma “descarada perseguição movida pela presidente Cristina Kirchner contra um grupo de mídia, o Clarín, cujo principal pecado é publicar reportagens e opiniões que a desagradam” (segundo Editorial da Folha de S. Paulo, 09/12/2012). O que diria frente a um argumento desta natureza?

Laurindo Lalo Leal Filho: É uma forma de distorcer o debate, ofuscar o debate real. A mídia ressalta essa divergência existente entre o governo e o grupo Clarín para esconder a realidade da lei, que é a ampliação da liberdade de expressão. Pegam um aspecto – o confronto – e o colocam em destaque. O grupo Clarín representa hoje a oposição política ao governo Cristina. Mas isso é um aspecto parcial, é direito deles fazer oposição ao governo. Isso não tem nada a ver com uma questão muito maior, o debate em torno da ampliação do espaço para outras vozes e grupos, a fim de que possam estes também se manifestar.

Pra deixar claro, a lei não toca em momento algum nos meios impressos. É uma lei de comunicação audiovisual. E quando os jornais, como Folha, Estadão e Globo, falam em “ataques do governo ao Clarín” parece que o governo argentino está querendo intervir no jornal Clarín. Este jornal continuará fazendo o que faz hoje, com liberdade total. O que acontecerá com a aplicação da lei é que o grupo Clarín, não o jornal, será obrigado a abrir mão de licenças de rádio e TV que vão além do limite estabelecido pela lei.

Creio ser um aspecto importante porque aqui no Brasil os meios de comunicação gostam de misturar mídia impressa com eletrônica. A lei argentina é sobre a mídia eletrônica. A lei de mídia que se começa a discutir no Brasil também é sobre a mídia eletrônica. Porque a nossa lei é de 1962. O que esses grupos brasileiros fazem, para atacarem a Ley de Medios argentina, na verdade revela seu temor de que o exemplo argentino sirva de inspiração para os movimentos populares do Brasil e leve, finalmente, o governo a apresentar projeto de lei semelhante. O governo Lula, no final de seu segundo governo, através de seu ministro Franklin Martins, chegou a deixar pronto o projeto de lei, repassado ao governo Dilma para ser levado ao Congresso, guardando semelhanças com a Ley de Medios argentina.

Portanto, a carga que a mídia brasileira traz sobre o projeto argentino é uma forma de tentar evitar uma “contaminação” no cenário brasileiro pelo avanço ocorrido na Argentina.

Correio da Cidadania: E trazendo o assunto para o Brasil, como acredita que deveríamos olhar para a lei argentina e que tipo de debate podemos levar adiante?

Laurindo Lalo Leal Filho: Já cansamos de falar, mas o Brasil está atrasado em mais de 50 anos. A lei brasileira das comunicações é de 1962, assinada por João Goulart, e mesmo assim houve uma série de vetos deste governo, que foram derrubados por um Congresso onde os rádiodifusores tinham domínio total - como continuam tendo, configurando o poder que sempre se contrapôs ao avanço de uma legislação da área no Brasil.

Temos muita dificuldade em avançar porque essa é uma questão que ainda não está enraizada no Brasil. Não temos massa crítica para um debate público e popular, como o que existe na Argentina. Mas estamos avançando. Se formos pensar em quinze anos atrás, não tínhamos o debate que hoje já temos. O principal exemplo foi a realização da Conferência Nacional das Comunicações, no final de 2009, que mobilizou entidades da sociedade em número já razoável, indo além dos debatedores tradicionais, que eram as universidades, os sindicatos... Hoje não, temos associações de classe, mulheres, movimento negro, movimentos sociais, entidades regionais, que já começam a discutir pelo país a criação de uma Lei de Mídia.

O caminho para acompanharmos esse processo natural é mais ou menos o modelo argentino. É preciso enraizar socialmente o debate, mas é preciso também contar com o governo. Apesar de toda essa participação popular, o impulso final foi dado pelo governo de Cristina Kirchner, que sem dúvida alguma sancionou a lei usando, principalmente, os canais públicos de rádio e TV para conseguir levar o debate à sociedade. Enquanto isso não acontecer, fica muito difícil para o cidadão comum entender o que significa uma lei dessas.

Correio da Cidadania: Como analisa o governo brasileiro em sua atuação no campo das comunicações e sua relação com os grupos midiáticos?

Laurindo Lalo Leal Filho: Acredito que não só este governo, mas todos têm um receio muito grande de enfrentar esses poderosos grupos de comunicação. Escrevi um artigo chamado “A síndrome Jango, aos 50”, no qual coloco que o fato de os grupos de comunicação terem praticamente empurrado pra rua o governo Jango, colaborando muito para o golpe de 64, que depois sustentaram, fez com que todos os governos de lá pra cá tenham muitos cuidados, estejam sempre cheios de dedos para dialogar com a mídia. Acho que o fantasma do golpe de 64 perdura até hoje. Não só esse, mas todos os governos sempre tiveram um receio muito grande de ir à frente com um debate pra colocar a mídia e, principalmente, os meios eletrônicos em um enquadramento democrático.

Podemos perceber algumas pesquisas que mostram que, desde 1988, da Constituinte pra cá, já foram elaborados 20 projetos de lei pelos governos, mas que nunca foram colocados em debate na sociedade, muito menos levados ao Congresso Nacional. Pois, em determinado momento da discussão, vinha a ameaça de que o governo poderia ser alvo de uma campanha difamatória muito grande, que poderia até levá-los à desestabilização.

Portanto, é uma disputa muito delicada, sendo necessária uma vontade política muito grande. Mas essa vontade é necessária. E para ser vitoriosa, não basta que seja vontade política dos governos. É preciso que seja combinada com os movimentos sociais. É uma disputa bastante difícil, mas que aqui no Brasil já está passando da hora.

Correio da Cidadania: Acredita que o governo Dilma possa se espelhar no exemplo argentino e buscar caminhos para uma maior democratização do espectro midiático, tão dependente de poucos grupos empresariais?

Laurindo Lalo Leal Filho: Tenho visto a presidente Dilma tomar medidas que antes a gente achava impossíveis de serem tomadas. São os casos da redução da taxa de juros e agora da redução da tarifa da energia elétrica – mais a disputa que trava agora com as três empresas elétricas controladas pelo PSDB. Ela mostra muita coragem nesses enfrentamentos. Não posso descartar essa possibilidade, ainda mais agora que percebemos que ela tem uma estreita relação com a Cristina Kirchner. Assim, parece-me que a Dilma acompanha bem de perto o que acontece lá com a Ley de Medios. Acredito que o exemplo ela tem, o modelo está traçado. O modelo argentino cabe perfeitamente no Brasil, com pequenas adaptações.

É difícil dizer se fará ou não. É difícil acreditar totalmente porque o Brasil tem uma dificuldade a mais: a presença no Congresso Nacional de muitos parlamentares radiodifusores, ou seus representantes, e que fazem parte da base de apoio ao governo, principalmente dentro do PMDB. Esta é uma dificuldade real, coisa que na Argentina acabou sendo enfrentada, e a lei passou.

Não sei até que ponto o governo teria possibilidade de ir à frente numa lei de mídia contando com tal base de sustentação política no Congresso. É luta política, de conquista de apoio, indo à frente e enfrentando essa dificuldade. É muito difícil saber se será possível travá-la no primeiro mandato de Dilma, embora o movimento social e a luta pela democratização da comunicação já tenham claro que estamos muito atrasados, e ficaremos cada vez mais em relação a outros países latino-americanos.

Correio da Cidadania: Em sua opinião, quais seriam os pontos mais importantes de uma imaginária “Ley de Medios à brasileira”?

Laurindo Lalo Leal Filho: Sem dúvidas, tal como lá, um ponto é a divisão do espectro para ampliar a participação de outras vozes no debate político e cultural brasileiro. Em outras palavras, enfrentar o monopólio. Estabelecer limites máximos pra que grupos econômicos tenham determinado número de concessões de rádio e TV, permitindo que outros grupos da sociedade civil possam participar das disputas. Creio ser esta a questão central, tanto na Argentina como no Brasil.

E temos de ir além, porque o Brasil, com as dimensões continentais que tem, necessita de uma lei que dê conta de uma difusão maior nas concessões, estimulando a produção regional. Isso porque tivemos não só a concentração dos meios nas mãos de poucas empresas, mas também uma concentração regional dos meios, determinando que todas as pautas e valores que circulam pelo país continuem sendo produzidos no eixo Rio-São Paulo, passando um pouco por Brasília. A regionalização é fundamental e a lei precisa dar conta disso.

Além do mais, há outras coisas importantes, que nada mais são que a necessidade de regulamentar a Constituição Federal brasileira. A lei tem de vir pra regulamentar artigos da Constituição que garantem uma maior democratização da comunicação e que até hoje não foram colocados em prática. Tem a ver com a regionalização, tem a ver com cotas pra produção nacional, cotas pra produção independente... A lei deve dar conta de tudo isso, para que a comunicação seja algo de todos para todos, e não como é hoje, (feita) de poucos para muitos.

Valéria Nader, economista e jornalista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista do Correio da Cidadania.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Uma resistência de século



1More Sharing Servic
carlosbarrientos

Guatemala - Brasil de fato - [Pedro Carrano] Monocultivos, megaprojetos e ataques à vida camponesa ainda assolam o país centro-americano

Ainda hoje, os movimentos sociais se posicionam contra os projetos voltados para o monocultivo e o extrativismo voltado à exportação. O recente governo de Otto Perez Molina, na avaliação de Carlos Barrientos, configura-se como de direita, no momento em que as oligarquias não aceitaram sequer as medidas assistenciais do governo anterior, de Álvaro Colom.
Carlos Barrientos tenta traduzir, em entrevista ao jornal Brasil de Fato, o atual cenário político do país, que não pode ser desvinculado da opressão e da formação socioeconômica, marcada pela resistência contra o processo de colonização. Ele integra o Comitê de Unidade Campesina (CUC), da Guatemala.
A repressão e a militarização se acentuam no país. A dependência econômica em relação aos Estados Unidos e a criminalização dos movimentos sociais seguem do mesmo modo na vida desse povo.


Brasil de Fato – Na condição de país atrelado ao Acordo de Livre Comércio da América Central com os EUA, qual tem sido o impacto da crise mundial do capitalismo na Guatemala?

Carlos Barrientos – A crise se sente, mas não em termos tão fortes. Por um lado, os EUA são o principal mercado da produção guatemalteca, que é sobretudo agrícola. Basicamente, o que se produz na Guatemala é café, em quantidade importante, cana, banana, borracha. Então houve sim uma baixa no montante que vem do setor empresarial, o que afetou os setores mais despossuídos, porque há um aumento da inflação. Todavia, não foi tão dramático como se esperava, porque, no caso do café, temos tido anos em que se recuperou o preço, comparado com o ano de 2000, quando houve uma crise dos preços do café.
Por outro lado, a produção de cana-de-açúcar se expandiu não só para o açúcar, mas para etanol. O mundo incrementou o consumo de etanol e agrocombustíveis, então isso permitiu que o impacto não fosse maior.
Creio que o impacto [da crise] veio de um fenômeno que se dá não só na Guatemala, como em muitos países da América Latina, da população que migra aos EUA e envia remessas. Em 2010, houve uma recuperação das remessas familiares.

Qual o papel dos agrocombustíveis na expansão do capital na Guatemala?

O outro fator que reduziu o impacto é que há uma posição dos setores empresariais e governamentais de abrir o país ao investimento estrangeiro que se deu no ramo de agrocombustíveis, monocultivo, e também na mineração. Curiosamente, nesses tempos de crise certos produtos estão tendo bom preço no mercado internacional, o que ajudou que o impacto fosse menor. Isso digo em termos econômicos, agora em termos da vida do povo, e da situação do país, estes processos de abertura comercial, ampliação da produção de cana e da palma africana tiveram um golpe muito forte.
Em alguma medida, nós fazemos a comparação entre o que está acontecendo agora com o que aconteceu quando entrou o cultivo do café, ao final do século dezenove, porque há certos padrões que se repetem. Um deles é que há novamente a expulsão dos indígenas e camponeses. O outro é a reconcentração de terras por diversas modalidades. Quando se introduziu o cultivo de café se modificou a área que se usava para certos cultivos. Só que agora é a cana, a palma africana, ou a mineradora e a construção de grandes hidrelétricas, com a ideia de vincular-se ao que era o antigo Plano Puebla Panama [agora Plano Mesoamericana], com o fim de exportar energia elétrica ao norte, uma vez que os EUA consomem a quarta parte da energia do mundo.

Na política, há um processo de perseguição do atual governo contra lideranças sociais?

Colom defendeu os interesses empresariais. Mas as pequenas medidas sociais foram mal vistas pela oligarquia guatemalteca. Preocupada, a oligarquia apoiou a extrema-direita, gerou um clima de muito terror, uma vez que a Guatemala é rota do narcotráfico.
O atual presidente, Otto Perez Molina, aproveitou isso muito bem. Ele é ex-militar, contrainsurgente, esteve em lugares como Nebaj (oeste da Guatemala), onde foi oficial no destacamento, um dos lugares onde houve uma quantidade muito grande de massacres. Mas ele foi oficial de Inteligência Militar e tem uma trajetória terrível. Conhece muito bem como criar um clima de guerra psicológica que lhe seja favorável, sobretudo nos centros urbanos.

Como tem sido a sua relação com os movimentos sociais e com o povo guatemalteco?

O governo de Colom encerra seu período, uns oito ou nove meses antes que terminasse, com um despejo massivo de treze comunidades que haviam ocupado terra em um lugar ao norte onde se está expandindo a cana-de-açúcar. Há camponeses assassinados, vários capturados e se despejou 800 famílias dessas distintas comunidades.
Há medidas cautelares da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para que se proporcionasse segurança a estas famílias. Afinal, os guardas armados do engenho eram a lei e ordem na região, por isso havia que garantir segurança às famílias, mas o governo não faz nada, e se põe ao lado das famílias mais ricas da Guatemala.
Quando começa o novo governo de Perez Molina, há muito temor sobre sua postura. Todavia, as comunidades desalojadas, organizadas na Via Campesina, decidiram em março deste ano realizar uma marcha de 200 km, no sentido da capital, à qual se juntaram uma série de organizações, para demandar basicamente quatro grandes blocos: o problema da terra; que finalizasse a criminalização, processo que vem desde os governos anteriores; fim das explorações mineiras, monocultivos e megaprojetos; leis de desenvolvimento para comunidades camponesas.

Desde o Brasil, a impressão que temos é que a esquerda na Guatemala não tem uma expressão forte no campo eleitoral. Como você pode explicar isso?

Houve organizações guerrilheiras que por muito tempo lograram a implantação de um projeto militar, como o que se projetava no caso da Guatemala. Chegou- se a um momento de impasse, que nem Exército e nem a guerrilha poderiam vencer. Havia quatro organizações guerrilheiras, que se articularam em uma organização mais ampla que se chamou Unidade Revolucionária Nacional de Guatemala. Porém, quando a guerrilha se constitui em partido político, se dá um processo de entrar em cheio na dinâmica eleitoral, o que levou a guerrilha a se distanciar de sua base social tradicional, camponesa e indígena, e então começa a converter-se em partido com a mesma lógica dos demais. Isso gerou resultados eleitorais pobres e resultou em fracionamentos. Entre a esquerda inserida nos movimentos sociais, há também uma divisão entre luta política e luta social, o que não ajudou em nada. Então, a presença da esquerda (no parlamento) é muito pequena. Temos apenas dois deputados em um congresso de 158 pessoas. E sete prefeituras dentre 333, uma presença muito pequena. Esse é o grande desafio da esquerda: como articular o social com o político e como recuperar o que anteriormente foram suas bases de sustentação.

Você vê uma possibilidade de síntese entre a teoria marxista e a visão indígena?

Um primeiro aspecto é de caráter histórico. Os povos originários em Guatemala tem 500 anos de luta e resistência. Em uma sistematização se pode dizer que, durante quinhentos anos, não houve uma geração no território maia que não tenha experimentado uma rebelião, um levante; algum fato em que teve que enfrentar as autoridades constituídas, coloniais, republicanas, capitalistas, burguesas e assim por diante. Então, há uma trajetória de luta e resistência muito forte, algo que a oligarquia tratou de esconder e sequestrar, senão daria um mau exemplo se dissesse nas escolas que o povo maia nunca se rendeu e sempre lutou. É difícil encontrar informações sobre isso. Mas, sim, há evidências históricas desse processo de luta e resistência.
Há outro elemento capaz de falar de uma confluência. Na Guatemala, a riqueza se levantou sobre a base da expropriação do fruto do trabalho da população camponesa, e do despojo das comunidades originárias. Então, são duas contradições principais, uma é a contradição classista Capital e Trabalho, explorados e exploradores, a outra contradição é entre os Estados nacionais e os povos originários, porque nesse processo histórico os povos originários mantiveram sua cosmovisão e suas práticas de distinto tipo.

Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

De punho em riste: quem é a garota que desafiou a ocupação israelense?

 


Ahed Tamimi, de apenas 13 anos, enfrenta os soldados israelenses e diz que a dor já faz parte de sua vida



Oren Ziv/ ActiveStills no OPERA MUNDI



No meio de uma estrada deserta, cercada de paisagem árida, uma pequena menina com a insígnia da paz estampada no peito enfrenta dezenas de soldados, protegidos com capacetes e metralhadoras. O contraste da imagem choca, mas nem as armas em punho foram capazes de amedrontar a garotinha, que continuou a gritar e empurrar os oficiais em busca de respostas (veja o vídeo abaixo).
Os risos jocosos dos militares, que se entreolhavam em desprezo, apenas alimentaram o desespero e raiva da jovem. No fim, a única resposta recebida foi o disparo de balas de borracha. As imagens da bravura da menina, na reedição de uma espécia de batalha entre Davi e Golias, correram o mundo. Ahed Tamimi, de apenas 13 anos, queria apenas saber para onde o irmão, Waed, de 15 anos, havia sido levado durante os protestos do dia 2 de novembro em Nabi Saleh, pequeno vilarejo na Cisjordânia onde vivem.
Sentada na cama do hospital em Ramallah com a mão envolta em curativos, a palestina não reclama do ferimento de balas de borracha e conta que a dor já se tornou parte de sua vida. Filha do líder comunitário Bassem Tamimi, considerado pela União Europeia um “defensor dos direitos humanos” e pela Anistia Internacional “um prisioneiro de consciência”, Ahed já teve de lidar com o encarceramento de seus pais, a morte de dois tios e a violência cotidiana de soldados israelenses contra sua família e amigos.
“Eu lembro que o pior período da nossa vida foi quando prenderam o meu pai pela primeira vez e as autoridades israelenses não nos deram autorização para visitá-lo”, afirmou ela a Opera Mundi. Detido por oficiais israelenses por seu papel de liderança nos protestos pacíficos, Bassem teve de enfrentar a corte militar de Israel por 13 vezes e chegou a passar mais de três anos no cárcere sem nenhum julgamento.
Há mais de três anos, os residentes de Nabi Saleh se concentram toda sexta-feira às 13:30 no centro da vila e tentam caminhar com bandeiras da Palestina nas mãos até a Alqaws, fonte de água da cidade confiscada pelos oficiais israelenses em 2009 e agora, de uso exclusivo e livre acesso para os colonos. O recurso era necessário para as plantações na aldeia de predominância agrícola e também utilizado como local de lazer, mas Israel restringiu a visita a indivíduos e proibiu a construção de qualquer tipo de infraestrutura no local pelos palestinos.
ActiveStills (24/08/12)

Ahed e sua prima tentam impedir a prisão de sua mãe Nariman em um protesto contra os assentamentos em Nabi Saleh
“Toda sexta-feira, choques começam quando tentamos começar nosso protesto pacífico contra o assentamento que nos cerca”, conta a garota. Idosos, como sua avó de 90 anos, crianças, mulheres e homens são atingidos indiscriminadamente por munições e projéteis.
Com balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e o líquido “skunk”, os soldados impedem que a passeata chegue ao seu local de destino, mas, pela primeira vez em junho deste ano, o grupo conseguiu entrar na fonte.
Depois dos primeiros protestos, as Forças de Defesa de Israel começaram a fechar todas as entradas e saídas da vila, impedindo a chegada de ativistas internacionais e de outras cidades palestinas e restringindo a manifestação às ruas da vila.
“O uso de todos os meios para finalizar o protesto pelas forças de segurança é excessivo e ocorre mesmo quando os manifestantes não são violentos e não representam ameaça. As forças disparam enormes quantidades de gás lacrimogêneo dentro da área urbana da vila, que é o lar de centenas de pessoas”, diz relatório da organização israelense B’TSelem. “Em um protesto, pelo menos 150 latas de gás lacrimogêneo foram disparadas”.
Mortes
Foi em uma dessas vezes que Ahed perdeu um de seus primos. Há exatamente um ano, Mustafa morreu quando foi baleado na cabeça com uma bomba de gás lacrimogêneo durante os protestos. De acordo com testemunhas, ele jogava pedras contra um tanque israelense e um soldado não identificado mirou a arma em sua cabeça.
ActiveStills

Ahed Tamimi (no fundo à direita), sua mãe, Nariman, abraçada a seu irmão, Waed, no funeral de Rushdi Tamimi
Mas, segundo organizações de direitos humanos e residentes de Nabi Saleh, os oficiais não usam inadequadamente apenas munições menos letais, mas também armas de fogo. No dia 19 de novembro, o tio de Ahed, Rushdi, policial palestino de 31 anos, faleceu de complicações médicas depois de ferimentos com balas de fogo no intestino.
Apesar da crescente repressão, Ahed e sua família continuam a participar dos protestos semanais na aldeia de 500 habitantes contra os assentamentos israelenses e o muro que separam os territórios.  Sob o argumento de que a manifestação é uma “reunião ilegal”, os oficiais prendem civis e tentam dispersar o grupo logo nos primeiros minutos.
Prisões
“Minha mãe disse a eles para saírem das nossas terras e o soldado, com raiva, respondeu que estávamos em uma zona militar. Minha mãe, então, disse a ele para retirar os colonos também e ele ordenou sua prisão”, lembra Ahed da manifestação do dia 24 de agosto (vídeo). Junto de suas primas, a garota protestou contra a detenção e acabou apanhando dos militares. Nariman foi libertada e logo, voltou a participar das manifestações com sua câmera e kit de primeiros socorros.
ActiveStills (24/08/12)

Nariman, coberta com o lenço palestino, é levada pelos oficiais israelenses; Ahed tenta impedir que eles levem sua mãe
Seu pai foi preso, novamente, no dia 24 de outubro deste ano em uma manifestação a favor do boicote contra o supermercado israelense Rami Levy e condenado a 4 meses de prisão e a uma multa de NIS 5 mil poucos meses depois de ter sido solto. Após uma semana, seu filho mais velho foi levado pelos soldados, mas permaneceu detido poucos dias na delegacia do assentamento Sha’as Benyamin.
“A prisão de Waed Tamimi enquanto ele estava andando pacificamente em sua vila aponta para o contínuo abuso do ativista Bassem Tamimi, de sua família e da comunidade de Nabi Saleh pelas forças militares israelenses”, afirmou Ann Harrison da Anistia Internacional. “Este abuso e assédio deve parar”, acrescentou ela.
Ocupação e os jovens: peça-chave para a repressão
A presença militar de israelenses não é restrita, no entanto, às sextas-feiras na vila palestina. A emissora israelense canal 10 junto com a B’TSelem denunciou que os oficiais fazem rondas noturnas em Nabi Saleh, nas quais invadem as residências dos palestinos e tiram fotos das crianças.
As Forças de Defesa usam as fotografias para identificar os menores que jogam pedras contra os oficiais nos protestos e depois, voltam às suas casas durante a noite para prendê-los. Segundo a organização palestina Addammeer, que luta pelo direito dos presos políticos, o depoimento desses jovens é fundamental para Israel construir denúncias contra os líderes do movimento. O interrogatório de uma criança de 10 anos que levou à prisão de Bassem.
Ahed conta que os oficiais estão por perto “toda vez que quero brincar com meus amigos, quando vou à escola e quando estou em casa”.
Oren Ziv/ActiveStills

Bassem e Nariman Tamimi se reencontram depois de periodo de encarceramento
Mesmo quando os soldados não estão por perto, os palestinos lembram diariamente de que sua terra está sendo ocupada e confiscada. Nabi Saleh, assim como toda a Cisjordânia, é cercada por um muro de 10 metros de altura e por todos os lados da aldeia, os apartamentos modernos dos colonos construídos ilegalmente em seu território podem ser vistos. A falta de parentes e amigos que estão presos ou foram mortos impedem que essas pessoas se esqueçam da sua realidade.
Sonhos de uma criança
“Eu gostaria que toda a minha família fosse libertada assim todos os outros prisioneiros palestinos logo e quero ver o meu grande sonho de um dia viver em uma Palestina livre”, afirma, com emoção, Ahed.
Reproduçao Facebook
O sentimento de tristeza e desespero estranho demais para a vida de uma criança também preocupa os pais de Ahed. “Durante as minhas visitas ao meu marido, Bassem me pediu que os corações dos nossos filhos fossem purificado de todo e qualquer ódio por conta das sementes de amor que plantamos neles”, reconhece Nariman. “Agora, nós estamos esperando por redenção, felicidade, justiça e liberdade”.
(Waed Tamimi vestido com lenço palestino durante protesto do dia 7 de dezembro para se proteger das bombas de gas lacrimogeneo)
A libertação nacional parece estar longe da vida de Ahed e dos Tamimi. Enquanto a família ainda enfrenta uma ordem de demolição de sua casa em Nabi Saleh, as autoridades israelenses já anunciaram que vão continuar com a expansão dos assentamentos nos territórios palestinos.
No entanto, o espírito de resistência dessa família não parece diminuir, apesar das seguidas provações pelas quais passaram. Metaforicamente, os Tamimi são a Palestina.

"O que Israel está fazendo com os palestinos é muito pior do que o apartheid sul-africano”.

          

Para Ronnie Kasrils, Israel só vai parar com o expansionismo e com a opressão de fora para dentro. “Um movimento de solidariedade internacional aos palestinos tem um papel muito importante. Foi assim que nós derrubamos o apartheid. Nós tínhamos razão. Levou tempo, mas Leclerc teve de libertar Mandela e dizer ‘vamos conversar’, que era o que nós dizíamos que tinha de ser feito. "Eu acredito que este é o aspecto mais importante da luta em solidariedade ao povo palestino. É preciso denunciar os assentamentos, mas é preciso boicotar, também. É preciso constrange-los materialmente, economicamente”, defendeu.


        
 


Ele tem 73 anos e nasceu numa comunidade judaica de Joanesburgo, formada por fugitivos do extermínio em Vilna e em Riga, na Lituânia, no início do século XX. Aos 9 anos, numa sessão de cine-notícias entre filmes, viu as imagens que começavam a circular, no mundo, dos campos de concentração nazistas. Voltou para casa e perguntou a sua mãe, a quem diz dever a sua consciência frente à opressão e à intolerância, se o que acontecia na sua vizinhança e no seu país, com a população negra, era a mesma coisa. Se a pobreza, a humilhação e a segregação a que estavam condenados pelos brancos era a mesma coisa que, no cine-notícia que acabara de ver, chamaram de antissemitismo. “A minha mãe, que não era uma intelectual, cuja família tinha uma delicatessen, mas que frequentou a escola até os 16 anos, disse que não, que não era a mesma coisa. Mas que aquilo que eu tinha visto e que tinha acabado de acontecer com o nosso povo na Europa tinha começado dessa mesma maneira que eu descrevera, ali (na África do Sul)”. Esse é o tipo de coisa que Ronnie Kasrils começa a contar, assim que senta na mesa e pede que nos apresentemos, para uma conversa com alguns dos mais proeminentes participantes do Fórum Social Mundial Palestina Livre, que começa nesta quinta (29) e vai até domingo, em Porto Alegre.

Ronnie, ou “Ronaldo”, como ele gosta de se chamar, aqui, é um homem extraordinário e um sujeito adorável. Parece muito mais jovem, talvez pela exuberância, talvez pela natureza de seu compromisso moral com o mundo. É muito raro, quando se trata da questão palestina, que algum militante abra sorrisos tão largos e demonstre tamanho otimismo, como o faz Kasrils, um escritor, ativista, ex-ministro de estado da África do Sul pós-apartheid e membro do Tribunal Russell para a Palestina. Ele começou a falar de sua vida, de suas trajetórias e de suas escolhas. É difícil de acreditar, mas Kasrils, aos dez anos, fez parte do Betar, o movimento da juventude sionista criado por Ze'ev Jabotinsky, o pai do revisionismo sionista, um movimento de extrema direita, que defende o que chamam de Israel bíblica, algo que hoje implicaria a incorporação da Síria, do Líbano, da Jordânia e do norte do Egito. Ronnie contou esse fato pitoresco rindo, para em seguida deixar claro: “Éramos muito influenciados por um professor, que estimulava um sentimento de violência e de conflito, inclusive entre nós, e mesmo físico, como se isso nos fortalecesse, como um projeto pedagógico. Éramos meninos, tínhamos pouco mais de dez anos, mas entendemos que ele era doente. Era um louco”. O seu engajamento no Betar se desfez com essa descoberta e também com a entrada no ensino médio, num colégio da elite branca, onde conheceu um professor história, Teddy Gordon, também judeu, que lhe ensinou sobre a Revolução Francesa.

É difícil descrever à altura o brilho nos olhos do sul-africano, quando falou de seu professor, a quem atribui a mudança mais definitiva na sua vida. Ronnie Kasrils é um homem poderoso e mundialmente conhecido, pegou em armas com Mandela, foi ministro de estado, mas quem mudou a sua vida, em termos políticos, foi o professor de história que lhe deu aula sobre um acontecimento chamado Revolução Francesa. “Eu era, até então, um péssimo aluno, eu era um atleta, não era da ala dos intelectuais, como Richard Goldstone, que era meu colega. Mas quando esse professor começou a dar aula eu me tornei o melhor aluno, e saí do colégio de maneira promissora”, disse, sorrindo, convincente. Kasrils tem aquela capacidade rara de nos ensinar a mirar a história com ganas de atribuir-lhe sentido e com a confiança em tal coisa. A escolha por nos contar essa história, essa pequena parte dela, era uma operação deliberada e ao mesmo tempo refinada. Era como se ele estivesse nos dizendo: olha aqui, gurizada, eu passei a levar a sério um ponto de vista universalista e é deste ponto de vista que eu estou aqui.

A ligação com a esquerda judaica e a luta contra o apartheid sul-africano

“Mas eu também saí do Betar por uma outra razão”, conta, rindo. “As meninas do Habonim Dror eram muito mais bonitas” e, na época, Kasrils não era exatamente um militante da esquerda judaica socialista, que buscava criar um lar nacional judaico a partir da cultura e da educação e da vida kibutziana.

“O que me tornou de esquerda foi o massacre de Shaperville, de março de 1961, em que 69 militantes pacifistas negros foram mortos e centenas ficaram feridos. Ali eu tomei a decisão de que iria fazer alguma coisa. A minha família nunca foi militante, de esquerda, mas eu tinha um tio na Cidade do Cabo que era advogado e comunista. Eu peguei um ônibus e fui para a casa dele. Cheguei lá e disse: eu quero me juntar a vocês”. Ele nos olha bem sério, encosta-se na cadeira, abre um sorriso e completa: “Então foi assim que eu comecei. Eu tinha de pôr em contato os núcleos da resistência ao apartheid, os membros dos partidos comunistas, da esquerda. E o meu tio estava isolado, noutra cidade. Eu disse que iria fazer isso. E fiz”.

Quando Mandela convocou à luta armada, após os acontecimentos de Shaperville, Kasrils se juntou a ele. Treinou na União Soviética, recebeu formação militar e esteve em vários países africanos, quando se tornou chefe de inteligência militar do movimento Lança de Uma Nação, o braço armado do Congresso Nacional Africano, liderado por Nelson Mandela. Passou cinco anos na cadeia, perdeu o emprego como executivo de uma empresa de telefonia, foi perseguido e banido da comunidade branca sul-africana. E se tornou ministro de estado da África do Sul pós-apartheid. Foi então que se voltou para a questão palestina.

A luta contra o apartheid israelense

Com o fim do apartheid e a primeira eleição democrática da África do Sul, Kasrils se tornou ministro de estado. E, depois do ministério da defesa, foi nomeado ministro para assuntos de água e florestas, de 1999-2004. Nesse período, ocorreu a segunda intifada e o muro de anexação de territórios palestinos, pelo então governo de Ariel Sharon, começou a ser erguido, anexando territórios palestinos para construir assentamentos, esmagando casas e vilas palestinas, segregando bairros, vilas e famílias, dividindo a região e instaurando um sistema identificado pelo sul-africano como muito mais hostil que o apartheid sul-africano. Em 2001 ele redigiu a “Declaração de Consciência de Sul-Africanos Judeus”, contra as políticas israelenses nos territórios palestinos ocupados. Passou a ser acusado de antissemita, pela direita judaica local, e viajou para a Cisjordânia, como ministro para assuntos de água e florestas. Lá conheceu Jamal Juma, que dava início ao movimento de resistência não violenta Stop the Wall.

O que você defende como solução, os dois estados, as fronteiras da linha verde, um só estado para dois povos? Eu perguntei e isso parece não ter ecoado como uma questão a ser respondida. Kasrils olha para mim e diz que Israel só vai mudar, só vai parar com o expansionismo e com a opressão de fora para dentro. “Um movimento de solidariedade internacional aos palestinos tem um papel muito importante. Foi assim que nós derrubamos o apartheid. Nós tínhamos razão. Levou tempo, mas Leclerc teve de libertar Mandela e dizer ‘vamos conversar’, que era o que nós dizíamos que tinha de ser feito. Mas é preciso constranger economicamente, não apenas politicamente. O programa de Desinvestimento e de Boicote significou o começo do fim do apartheid e nós terminamos vencendo. Eu acredito que este é o aspecto mais importante da luta em solidariedade ao povo palestino. É preciso denunciar os assentamentos, mas é preciso boicotar, também. É preciso constrange-los materialmente, economicamente”, defendeu. Para Kasrils, o fato de que em Israel os cidadãos palestinos são cidadãos de segunda classe, com direitos limitados e sem o grau de liberdade civil dos israelenses configura apartheid. “No regime do apartheid, diante de um mestiço que não se sabia ao certo se era negro ou não, passavam um pente para ver se iria ou não deslizar sobre o cabelo. Caso o pente parasse, a pessoa iria para os setores dos negros”.

Em Israel não é assim, mas não precisa ser, lembrou. Há um muro que consegue separar as sociedades, anexando territórios dos palestinos, mas que afasta completamente os dois povos, promovendo limpeza étnica e criando “coisas como rodovias em que só judeus podem trafegar. Isso é uma violência que nem o apartheid sul-africano cometeu. O que o estado de Israel está fazendo com os palestinos é muito pior do que aquilo que acontecia no apartheid sul-africano”, concluiu.


A seguir, a chegada de Jamal Juma, o seu diagnóstico sobre a iminência da eclosão da Terceira Intifada e o pessimismo contrastante com o otimismo de Kasrils.


Fotos: Carlos Carvalho

domingo, 9 de dezembro de 2012

Bram Stoker vive!

Nikelen Witter
Especial para o Sul21

Não, ele não morreu. Acima, Christopher Lee como Drácula.

O título dramático pode parecer exagerado. Afinal, Bram Stoker jamais foi conhecido como um autor genial. Nem em sua época, nem passados 100 anos de sua morte. Sua criação, porém, assentou seu pé na imortalidade. Drácula, a obra-prima de Stoker, ganhou vida própria (com o perdão da ironia) e superou em muito seu criador. Se levarmos em conta, especialmente, a primeira metade do século XX, perceberemos, inclusive, que o autor praticamente sumiu das referências feitas a seu personagem mais famoso. Resgatado no título de uma adaptação de sua obra num filme dos anos 90, assinado pelo oscarizado Francis Ford Coppola, Stoker assumiu notoriedade como um dos principais autores no estilo do romance gótico vitoriano.

Lugosi em momento de concentração

Drácula é um excelente livro. Bem construído, elaborado com esmero ao longo de sete anos de pesquisas e trabalho. Foi considerado “a sensação da temporada” em 1897. Ainda assim, é da personagem, mais que a obra, de quem todos se lembram. É Drácula, o conde — seja ele assimilado ao empalador romeno, ou aos rostos (e vozes) carismáticos de Bela Lugosi e Christopher Lee — que assume a frente de tudo quando nos referimos à Stoker, a tal ponto de muitos tentarem, ainda hoje, ler na obra a vida do escritor. Isso porque, ao contrário de outros autores góticos, o irlandês teve uma vida ordinária, sem grandes feitos ou conexões, tendo escrito 12 romances e alguns volumes de contos. Era crítico teatral e pessoa de gostos convencionais. Foi batizado por seus pais e alimentava-se normalmente.

Bram Stoker: até virar título do filme de Coppola, o autor fora engolido por seu personagem

Bram Stoker

Nascido em 8 de novembro de 1847, em Clontarf, subúrbio ao norte de Dublin, Stoker foi o terceiro de sete filhos do casal Abraham Stoker — um funcionário público de pouca expressão — e Charlotte Mathilda Blake Thornley, uma escritora com tendências feministas. A infância foi marcada pela doença, estando ele, muitas vezes, à beira da morte e praticamente sem poder ficar em pé até quase os sete anos. Recuperado, o jovem Bram cursou uma escola privada e, mais tarde, graduou-se com honras no conceituado Trinity College, onde, inclusive, foi atleta em nível de competição universitária. Interessado em teatro, Stoker trabalhou para formar-se como crítico desta atividade e foi por meio dela que conheceu a pessoa que os biógrafos apontam como a mais importante de sua vida: o ator inglês Henry Irving.
Recém-casado com Florence Balcombe — disputada beldade local que fora cortejada inclusive por Oscar Wilde — Stoker aceitou o convite de Irving e mudou-se para Londres, onde passou a trabalhar no teatro que pertencia ao ator, o Lyceum Theatre. Ocupou diversos cargos, como diretor do teatro e agente de Irving, permanecendo nestas funções por 27 anos. Paralelamente, mantinha viva uma já iniciada carreira como poeta, contista e romancista. Em fins de 1879, nasceu o primeiro e único filho do casal Stoker, batizado como Irving Noel Thornley Stoker.

Henry Irving: ator do qual Stoker era agente

Graças aos contatos de Irving, Stoker pode circular na alta sociedade da época, chegando a travar conhecimento com homens como o pintor James Abbott McNeill Whistler e os escritores Sir Arthur Conan Doyle e Walt Whitman (a quem ele muito admirava e de quem se tornou um amigo próximo). O trabalho com Irving (o ator mais famoso de seu tempo) e a gestão de um dos teatros mais bem sucedidos de Londres, deixavam Stoker constantemente ocupado, isso quando ele não estava em viagem ao continente para acompanhar seu empregador. O pouco tempo dedicado à Florence e ao pequeno Irving, bem como a idolatria dirigida ao ator em suas memórias, faz com que, até hoje, muitos biógrafos e historiadores questionem a natureza profunda da amizade desenvolvida entre ambos. Muitos acreditam até mesmo que Irving exercia um tipo de magnetismo ou domínio sobre Stoker que se assemelhava ao de Drácula sobre suas vítimas. As descrições do conde e de Irving se assemelham, ao mesmo tempo que o próprio Stoker dizia assemelhar-se a Ramfield — personagem bizarro que devora insetos enquanto aguarda, enlouquecido, a vida eterna prometida pelo vampiro, a quem ele nomeia Mestre — em sua devoção pelo patrão. Quando Drácula foi publicado, a dedicatória dirigiu-se a Henry Irving.

Gary Oldman, o Drácula de Coppola, em momento de descontração

Drácula
Stoker jamais viajou para a Europa Oriental, cenário inicial do romance, mas era fascinado pelas histórias obscuras da região, com as quais tomou contato, provavelmente, através de um conhecido seu, o viajante e escritor húngaro Armin Vambery. A publicação de Drácula data de 1897. Mas ele manteve sua produção nos anos que se seguiram com relativo sucesso, muito embora seu livro mais bem sucedido tenha sido a publicação das memórias de sua vida com Irving, que ele escreveu após a morte do ator.
Após vários derrames cerebrais, Bram Stoker faleceu em abril de 1912, em Londres. Alguns biógrafos acreditam que uma sífilis terciária pode ter sido a causa de sua morte. Ele foi cremado e suas cinzas estão depositadas no Crematório Golders Green, em Londres.

Vlad Dracul: muitas mortes e respeitável bigode

Para escrever Drácula, Stoker passou anos pesquisando o folclore europeu e histórias mitológicas dos vampiros. Muitos historiadores discordam da ideia de que ele tenha se inspirado diretamente no nobre romeno Vlad Dracul ou Drácula, também conhecido como Vlad Tepes ou Empalador. Afirmam que as informações que Stoker poderia acessar, em sua época, a sobre a figura real (e, de fato, assustadora) de Vlad eram pífias e que não seriam suficientes para a construção da personagem. O próprio nome Drácula teria sido tirado de um livro pouco confiável, que traduzia a palavra por diabo e não por dragão. De outra forma, mesmo tendo uma história medonha de assassínios e torturas, Vlad era, e é (em certa medida), um herói nacional romeno – além de ter o título, outorgado pelo Papa, de defensor da fé cristã –, o que impediria que, à época, suas características verdadeiras estivessem todas apresentadas em um livro.
Stoker, afora esta pesquisa, aventurou-se pouco na estrutura da escrita. Utilizou-se do formato epistolar, muito em voga no período, para dar o grau certo de veracidade e realismo, bem como de identificação com as personagens. O livro é uma coleção de diários, cartas, telegramas, registros de bordo, recortes de jornais, organizados em torno de uma história em que o vampiro aparece como uma sombra. Um mal à espreita, um terror que cega a capacidade dos homens de vê-lo e obstruiu sua luta contra ele, ao mesmo tempo em que seduz, mortalmente, às mulheres.

Nosferatu, uma Sinfonia de Horror (1922), de Murnau

Atento aos modelos do romance gótico, Stoker construiu seu Drácula a partir justamente do embate entre o mundo moderno e as lendas obscuras do passado humano. Assim, ele não deixa de colocar todo o aparato da racionalidade e ciência modernas à serviço da luta contra o mal. Van Helsing, que o cinema imortalizou como um caçador de vampiros, é, de fato, um cientista, um professor, um conhecedor de mitologia, história natural, medicina, leis, etc. Assim, numa boa leitura, pode-se encontrar referências à Darwin e à evolução, bem como às heroicas transfusões de sangue (uma quase ficção científica numa época em que se desconhecia os tipos sanguíneos e o fator RH). Stoker é um entusiasta do racionalismo e da ciência. Para ele, estas são as principais armas contra o conde. A religião — crucifixos, água benta e hóstias — é uma arma parcial, ligada à própria natureza sobrenatural e antiga (ou antiquada) do vampiro, daí ela estar equiparada em poder às superstições como o alho. O uso destas só tem valor quando empunhados pelo ocidente, depositário da razão moderna e pouco têm efeito nas mãos dos “ignorantes e supersticiosos” camponeses da Transilvânia.

As mulheres: portas escancaradas para o mal

Contudo, é no papel que Stoker dedica às mulheres em sua ficção que boa parte dos estudiosos se concentra. Muitas vezes classificado como misógino, o autor desenha suas personagens femininas como a parte fraca — no sentido de uma porta aberta para o mal — da civilização. Muitos estudiosos concebem Drácula como o verdadeiro pesadelo vitoriano, não pelo conde, mas pelo efeito deste sobre as mulheres. Das três vampiras, sedentas por sangue e sexo, que aprisionam Jonathan Harker no castelo do conde na Romênia, até às virtuosas Lucy e Mina, Stoker está constantemente, colocando seus heróis na defensiva. Os homens parecem não ter forças para resistir a essas criaturas cujos desejos afloram e parecem incontroláveis. Lucy e Mina parecem tê-los em menor escala até ficarem sob o fascínio do conde. Lucy torna-se uma vampira — é a noiva morta, ainda desejável e sensual, mas que suga o sangue de criancinhas. É o horror da anti-mãe. Mina, a jovem liberada que anseia por trabalhar e cuja inteligência se compara à masculina, é ainda mais temível. Ela, o conde parece querer para si. Lucy recebe como punição um coração trespassado e arrancado, a cabeça cortada e a boca preenchida por alho. Uma analogia do casamento vitoriano para alguns historiadores. Mina é salva pela morte do vampiro, mas sua redenção completa vem com o fim de seus desejos de trabalho e a concretização da vida de esposa e mãe.

Winona Ryder: a Mina do filme de Coppola



A chamada “nova mulher” (indico o capítulo de mesmo nome de E. Hobsbawm, em A Era dos Impérios), figura constante na imprensa e literatura da época, parece ter constituído para Bram Stoker, e provavelmente para muitos de seus leitores, um terror verdadeiro. Ao fim, mais que o vampiro, é o que ele desperta em nós e nos que estão a nossa volta que pode, realmente, nos dar medo. Nesse sentido, o questionamento da obra e do escritor ainda está presente e válido. Afinal, que preço se pagaria pela imortalidade?
.oOo.
A Discovery Civilization tem um bom documentário a respeito do livro de Bram Stoker:
Nikelen Witter é escritora e historiadora

sábado, 8 de dezembro de 2012

O comunismo ético de Oscar Niemeyer

Por Leonardo Boff, no sítio da Adital:
Não tive muitos encontros com Oscar Niemeyer. Mas os que tive foram longos e densos. Que falaria um arquiteto com um teólogo senão sobre Deus, sobre religião, sobre a injustiça dos pobres e sobre o sentido da vida?

Nas nossas conversas, sentia alguém com uma profunda saudade de Deus. Invejava-me que, me tendo por inteligente (na opinião dele) ainda assim acreditava em Deus, coisa que ele não conseguia. Mas eu o tranquilizava ao dizer: o importante não é crer ou não crer em Deus. Mas viver com ética, amor, solidariedade e compaixão pelos que mais sofrem. Pois, na tarde da vida, o que conta mesmo são tais coisas. E nesse ponto ele estava muito bem colocado. Seu olhar se perdia ao longe, com leve brilho.

Impressionou-se sobremaneira, certa feita, quando lhe disse a frase de um teólogo medieval: "Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe”. E ele retrucou: "mas que significa isso?” Eu respondi: "Deus não é um objeto que pode ser encontrado por ai; se assim fosse, ele seria uma parte do mundo e não Deus”. Mas então, perguntou ele: "que raio é esse Deus?” E eu, quase sussurrando, disse-lhe: "É uma espécie de Energia poderosa e amorosa que cria as condições para que as coisas possam existir; é mais ou menos como o olho: ele vê tudo mas não pode ver a si mesmo; ou como o pensamento: a força pela qual o pensamento pensa, não pode ser pensada”. E ele ficou pensativo. Mas continuou: "a teologia cristã diz isso?” Eu respondi: "diz mas tem vergonha de dizê-lo, porque então deveria antes calar que falar; e vive falando, especialmente os Papas”. Mas consolei-o com uma frase atribuída a Jorge Luis Borges, o grande argentino:”A teologia é uma ciência curiosa: nela tudo é verdadeiro, porque tudo é inventado”. Achou muita graça. Mais graça achou com uma bela trouvaille de um gari do Rio, o famoso "Gari Sorriso: "Deus é o vento e a lua; é a dinâmica do crescer; é aplaudir quem sobe e aparar quem desce”. Desconfio que Oscar não teria dificuldade de aceitar esse Deus tão humano e tão próximo a nós.

Mas sorriu com suavidade. E eu aproveitei para dizer: "Não é a mesma coisa com sua arquitetura? Nela tudo é bonito e simples, não porque é racional mas porque tudo é inventado e fruto da imaginação”. Nisso ele concordou adiantando que na arquitetura se inspira mais lendo poesia, romance e ficção do que se entregando a elucubrações intelectuais. E eu ponderei: "na religião é mais ou menos a mesma coisa: a grandeza da religião é a fantasia, a capacidade utópica de projetar reinos de justiça e céus de felicidade. E grande pensadores modernos da religião como Bloch, Goldman, Durkheim, Rubem Alves e outros não dizem outra coisa: o nosso equívoco foi colocar a religião na razão quando o seu nicho natural se encontra no imaginário e no princípio esperança. Ai ela mostra a sua verdade. E nos pode inspirar um sentido de vida.”

Para mim a grandeza de Oscar Niemeyer não reside apenas na sua genialidade, reconhecida e louvada no mundo inteiro. Mas na sua concepção da vida e da profundidade de seu comunismo. Para ele "a vida é um sopro”, leve e passageiro. Mas um sopro vivido com plena inteireza. Antes de mais nada, a vida para ele não era puro desfrute, mas criatividade e trabalho. Trabalhou até o fim, como Picazzo, produzindo mais de 600 obras. Mas como era inteiro, cultivava as artes, a literatura e as ciências. Ultimamente se pôs a estudar cosmologia e física quântica. Enchia-se de admiração e de espanto diante da grandeur do universo.

Mas mais que tudo cultivou a amizade, a solidariedade e a benquerença para com todos. "O importante não é a arquitetura” repetia muitas vezes, "o importante é a vida”. Mas não qualquer vida; a vida vivida na busca da transformação necessária que supere as injustiças contra os pobres, que melhore esse mundo perverso, vida que se traduza em solidariedade e amizade. No JB de 21/04/2007 confessou: ”O fundamental é reconhecer que a vida é injusta e só de mãos dadas, como irmãos e irmãs, podemos vive-la melhor”.

Seu comunismo está muito próximo daquele dos primeiros cristãos, referido nos Atos dos Apóstolos nos capítulos 2 e 4. Ai se diz que "os cristãos colocavam tudo em comum e que não havia pobres entre eles”. Portanto, não era um comunismo ideológico, mas ético e humanitário: compartilhar, viver com sobriedade, como sempre viveu, despojar-se do dinheiro e ajudar a quem precisasse. Tudo deveria ser comum. Perguntado por um jornalista se aceitaria a pílula da eterna juventude, respondeu coerentemente: "aceitaria se fosse para todo mundo; não quero a imortalidade só para mim”.

Um fato ficou-me inesquecível. Ocorreu nos inícios dos anos 80 do século passado. Estando Oscar em Petrópolis, me convidou para almoçar com ele. Eu havia chegado naquele dia de Cuba, onde, com Frei Betto, durante anos dialogávamos com os vários escalões do governo (sempre vigiados pelo SNI), a pedido de Fidel Castro, para ver se os tirávamos da concepção dogmática e rígida do marxismo soviético. Eram tempos tranquilos em Cuba que, com o apoio da União Soviética, podia levar avante seus esplêndidos projetos de saúde, de educação e de cultura. Contei que, por todos os lados que tinha ido em Cuba, nunca encontrei favelas mas uma pobreza digna e operosa. Contei mil coisas de Cuba que, segundo frei Betto, na época era "uma Bahia que deu certo”. Seus olhos brilhavam. Quase não comia. Enchia-se de entusiasmo ao ver que, em algum lugar do mundo, seu sonho de comunismo poderia, pelo menos em parte, ganhar corpo e ser bom para as maiorias.

Qual não foi o meu espanto quando, dois dias após, apareceu na Folha de São Paulo, um artigo dele com um belo desenho de três montanhas, com uma cruz em cima. Em certa altura dizia: "Descendo a serra de Petrópolis ao Rio, eu que sou ateu, rezava para o Deus de Frei Boff para que aquela situação do povo cubano pudesse um dia se realizar no Brasil”. Essa era a generosidade cálida, suave e radicalmente humana de Oscar Niemeyer.

Guardo uma memória perene dele. Adquiri de Darcy Ribeiro, de quem Oscar era amigo-irmão, uma pequeno apartamento no bairro do Alto da Boa-Vista, no Vale Encantando. De lá se avista toda a Barra da Tijuca até o fim do Recreio dos Bandeirantes. Oscar reformou aquele apartamento para o seu amigo, de tal forma que de qualquer lugar que estivesse, Darcy (que era pequeno de estatura), pudesse ver sempre o mar. Fez um estrado de uns 50 centímetros de altura E como não podia deixar de ser, com uma bela curva de canto, qual onda do mar ou corpo da mulher amada. Aí me recolho quando quero escrever e meditar um pouco, pois um teólogo deve cuidar também de salvar a sua alma.

Por duas vezes se ofereceu para fazer uma maquete de igrejinha para o sítio onde moro em Araras em Petrópolis. Relutei, pois considerava injusto valorizar minha propriedade com uma peça de um gênio como Oscar. Finalmente, Deus não está nem no céu nem na terra, está lá onde as portas da casa estão abertas.

A vida não está destinada a desaparecer na morte, mas a se transfigurar alquimicamente através da morte. Oscar Niemeyer apenas passou para o outro lado da vida, para o lado invisível. Mas o invisível faz parte do visível. Por isso ele não está ausente, mas está presente, apenas invisível. Mas sempre com a mesma doçura, suavidade, amizade, solidariedade e amorosidade que permanentemente o caracterizou. E de lá onde estiver, estará fantasiando, projetando e criando mundos belos, curvos e cheios de leveza.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Para conhecer Outro Israel – o que luta pela paz


ESCRITO POR SERGIO STORCH   


O Brasil teve o privilégio de abrigar, na semana passada, o Fórum Social Mundial pela Palestina Livre (FSMPL), na cidade-berço dessa invenção que está na raiz do pensamento de uma nova cultura política. Lá se vão quase 13 anos desde que criamos este campo de novas possibilidades: “um outro mundo é possível”, conforme o dístico criado em sua fundação. Para alcançar o sentido da importância deste Fórum pela Palestina é importante lembrar a origem do FSM, nascido em 2001 por iniciativa de um grupo de brasileiros, bem conhecidos na nossa sociedade civil, desde a resistência à ditadura militar.

A este Fórum pela Palestina reagiram, apreensivos com possíveis impactos de protestos e manifestações, setores hegemônicos da comunidade judaica brasileira, manifestando pela mídia críticas aos governos federal, estadual e municipal de Porto Alegre, por apoiarem esse evento que, numa visão cartesiana, aparenta desafinação em relação ao discurso de equidistância dos polos do conflito: Israel e Palestina.

É, pois, oportuno registrar a existência de uma outra visão judaica. É bem antiga, remontando aos valores já expressos no Pentateuco, que trouxe em sua legislação o reconhecimento do outro, dos seus direitos e da responsabilidade de cada indivíduo com todos os demais, de seu povo ou estrangeiros. “V’ahavta l’reacha kamocha” (amai ao próximo como a ti mesmo) está nos ensinamentos da Torá, conforme o Rabi Akiva, ícone da ética judaica. Não há nada a temer. Rancor contra Israel haverá, podendo por vezes resvalar para chamamentos à destruição do país e para o antissemitismo rasteiro, como derivação de ignorância que existe de forma recíproca também da parte dos que apoiam incondicionalmente Israel. Todos conhecemos muito pouco de nossas matrizes e histórias, tanto das nossas quanto as dos outros povos. Aos que criticam o FSMPL e os governos que o acolhem, é bom estudarem um pouco.

E aqui vão algumas informações úteis para os que a ele se opõem precipitadamente ao FSMPL. As comunidades judaicas em todo o mundo enfrentam fissuras na pretensa unidade que lideranças institucionais procuram aparentar, tentando cobrir o sol com a peneira. Em Israel, o debate livre pela imprensa é a maior evidência.

Há um abismo, separando ao menos metade da sociedade israelense (que, segundo as pesquisas, apoiam a solução de Dois Estados) dos seguidores da coalizão de direita que está no governo há três anos. É bom lembrar que, em mandato anterior (1996-1999), o primeiro-ministro Benyamin Netanyahu já havia atentado contra os acordos celebrados em Oslo (1993), com o palestino Yasser Arafat, por seus adversários israelenses, Itzhak Rabin e Shimon Peres (atual presidente do país, de oposição). As seguidas procrastinações de Netanyahu, e as provocações feitas por ele, ao ampliarem os assentamentos de colonos judeus em territórios palestinos ocupados, fizeram vencer, à época, o prazo de cinco anos fixado em Oslo para um acordo de paz permanente.

Surgiu, em consequência, uma insatisfação crescente entre as massas palestinas, que explodiu, já de forma incontrolável, na segunda Intifada, no ano 2000. O primeiro-ministro é um personagem de convicções inabaláveis e perseverantes, que não hesita em abusar da memória de tragédias históricas sofridas pelos judeus para justificar uma estratégia míope, baseada tão somente na força militar.

A extensão do abismo que existe em Israel, e não é novo, pode ser apreciada por este trecho de uma carta de Leah Rabin (viúva de Itzhak Rabin, assassinado por um extremista judeu em 1995), na época do primeiro mandato do atual chefe de governo: “Netanyahu é um mentiroso corrupto que está destruindo tudo que nossa sociedade tem de bom”. (...) Netanyahu e seu governo não representam uma unidade dos judeus israelenses, nem tampouco dos judeus na maior comunidade da Diáspora, a estadunidense”.

Há um olhar judaico em Israel que busca – e encontra – o parceiro palestino. Ao contrário da propaganda desse governo manipulador do medo e da insegurança, que martela a ideia de que não existem parceiros para a paz, há inúmeros exemplos de parcerias. O escritor e jornalista israelense Amos Oz colabora com o filósofo palestino Sari Nusseibeh, reitor da universidade Al-Quds. O músico Daniel Barenboim teve como parceiro o maior intelectual palestino, Edward Said, para a formação da sua orquestra de jovens israelenses e árabes, hoje mantida pelo governo da Andaluzia, na Espanha. A cantora israelense Noa canta com sua amiga palestina Mira Awad. Há ex-soldados israelenses e ex-militantes palestinos da luta armada que se encontram no Combatants for Peace. O líder de direitos humanos Edward Kaufman (que levamos no dia 20/11 ao Itamaraty) leciona com um parceiro palestino sobre direitos humanos e resolução de conflitos (seu amigo Manuel Hassassian é embaixador da Autoridade Palestina na Inglaterra).

Nada mais falso do que a mistificação de que não há parceiros para a paz. Há 130 ONGs em que atuam ombro a ombro israelenses e palestinos na defesa dos direitos violentados pelas políticas dos governos israelenses, desde a detenção de prisioneiros sem culpa formada por tempo indeterminado, até a desobediência civil de mulheres israelenses que regularmente contrabandeiam mulheres palestinas para tomarem banho de mar em Tel Aviv ou Haifa.

Falemos da maior comunidade da Diáspora judaica, a estadunidense, cuja população (5 milhões) não é muito menor que a judaica israelense (6 milhões). A tradição liberal dessa comunidade, que teve líderes marchando ao lado de Martin Luther King nos anos 1960 e combatendo à guerra do Vietnã nos anos 70, se expressa hoje em organizações como o Jewish Voice for Peace(do qual rabinos participaram das flotilhas que chamaram a atenção do mundo para o bloqueio israelense a Gaza), o Tikkun (liderado pelo rabino Michael Lerner, que é ativista pela paz desde a resistência à guerra do Vietnã), e o JStreet, um lobby judaico no Congresso que se opõe ao mal-denominado “lobby sionista”, a AIPAC (The American Israel Public Affairs Committee).

Vale destacar que este último, embora financeiramente forte, é tão pouco representativo da maioria da comunidade judaica que sua campanha ostensiva por Mitt Romney nas últimas eleições (doação US$ 100 milhões só da parte do seu presidente, Sheldon Adelson, magnata dos cassinos de Las Vegas) foi respondida pela maioria, de 70%, do voto judaico em favor de Barack Obama. Esse lobby vem corroendo por dentro a democracia israelense, com o investimento em mídia impressa que hoje domina 90% dos leitores do país. E é abertamente aliado a outra força das mais retrógradas da sociedade estadunidense, o chamado “sionismo cristão”, dos fundamentalistas evangélicos, no qual atuam figuras do Tea Party que, como o ex-candidato Glenn Beck, vão a Israel para incitar à distância os seus seguidores nos Estados Unidos (vercomentário na imprensa israelense. A nata da extrema direita norte-americana tem a AIPAC como instrumento. Não pode ser denominada “lobby sionista” ou “lobby judaico”, pois nessa complexa sociedade há revistas progressistas de um século ou mais – The NationForward etc. –, povoadas por judeus destacados).

O anti-lobby JStreet (abreviação de Jewish Street, ou seja, a “rua judaica”) está no seu quarto ano de existência, e tem realizações constantes ao trazer para contato com congressistas e secretários de Obama pessoas eminentes de Israel, que incluem até mesmo generais e oficiais de alto escalão dos serviços de inteligência. Comparecem para demonstrar à opinião pública e aos políticos dos EUA a importância de pressionar o governo israelense no sentido de mudar de direção.

A arrogância dos próceres da diplomacia israelense, hoje chefiada por um ministro que lidera a extrema-direita no país, e visto por muitos embaixadores como destruidor de competências que Israel chegou a ter com figuras lendárias como Abba Eban, vai a ponto de pressionarem governos do Ocidente a não reconhecerem aos palestinos sequer o direito de fazerem parte de instituições como a Unesco. Atribuem ao terrorismo palestino uma natureza cultural dos muçulmanos, enquanto fecham aos palestinos os caminhos do combate não violento pelos seus direitos.

Vale ressaltar a linguagem eivada de ironia e intervencionismo, como a expressa nesta frase de um adido israelense ao Uruguai, por ocasião da celebração de acordo do Mercosul com a Autoridade Palestina: “o acordo do bloco do Cone Sul com a Palestina não é a melhor forma de estimular o processo de paz no Oriente Médio”. Qual seria a alternativa? Aprofundar oapartheid na zona C da Cisjordânia, com a construção de mais colônias de ocupação, enquanto não se dão licenças de construção para os moradores palestinos?

A realização bem-sucedida do Fórum Social Mundial pela Palestina Livre abre, no Brasil, uma oportunidade rara. Permite que brasileiros — de origem judaica, árabe ou qualquer outra — proponham um novo olhar: uma mirada de ação afirmativa que, em vez de recusar os direitos de um ou de outro lado, afirme e defenda esses direitos.

A primeira ação, que pode ter efeitos contínuos e duradouros, pode ser a proposta de um tratamento Fair Trade (Comércio Justo) para o azeite de oliva palestino. Chegaria às mesas de brasileiros dispostos a lutar pela paz. Permitiria, além de consumir um produto de qualidade e repleto de simbologia, estimular contatos com os que o produzem — desde o cultivo das oliveiras à industrialização artesanal. Lembraria que a oliveira, símbolo da paz, é plantada por gente comum que zela pela subsistência de suas famílias, e arrancada às vezes por vândalos, ou destruída por bulldozers que fazem a preparação do terreno para construção do muro de separação.

Importar e distribuir o azeite palestino será trazer ao conhecimento do consumidor-cidadão a existência de filmes como Budrus, que mostram a realidade na escala do humano de palestinos que resistem de forma não violenta, apoiados por israelenses com esse outro olhar.

Há inúmeras formas de intervirmos – nós, brasileiros – com uma pauta de ações afirmativas, no programa “Lado a lado: a construção da paz no Oriente Médio – um papel para as Diásporas”, lançado pelo Itamaraty e que certamente contará, mais cedo ou mais tarde, com apoio das lideranças judaicas mais esclarecidas.

Temos uma grande vantagem: é muito mais fácil arregimentarmos num movimento nesse sentido setores crescentes de uma comunidade pequena – e em certos aspectos provinciana, de 100 mil pessoas – do que seria possível na maior comunidade judaica, 50 vezes maior.

A oportunidade está à nossa frente. Em termos judaicos, poder-se-ia dizer que o Fórum Social Mundial está às vésperas de celebrar o seu Bar Mitzvá, o ritual que marca a passagem dos jovens para a responsabilidade moral pelos seus atos, aos 13 anos. Que possamos amadurecer ações afirmativas para celebrá-las no 13º FSM, na Tunísia, em abril de 2013.

Sérgio Storch é consultor em Planejamento, ativista de diversas causas ligadas à transformação social. Escreve em Outras Palavras a coluna Outro Israel