quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Uma resistência de século



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carlosbarrientos

Guatemala - Brasil de fato - [Pedro Carrano] Monocultivos, megaprojetos e ataques à vida camponesa ainda assolam o país centro-americano

Ainda hoje, os movimentos sociais se posicionam contra os projetos voltados para o monocultivo e o extrativismo voltado à exportação. O recente governo de Otto Perez Molina, na avaliação de Carlos Barrientos, configura-se como de direita, no momento em que as oligarquias não aceitaram sequer as medidas assistenciais do governo anterior, de Álvaro Colom.
Carlos Barrientos tenta traduzir, em entrevista ao jornal Brasil de Fato, o atual cenário político do país, que não pode ser desvinculado da opressão e da formação socioeconômica, marcada pela resistência contra o processo de colonização. Ele integra o Comitê de Unidade Campesina (CUC), da Guatemala.
A repressão e a militarização se acentuam no país. A dependência econômica em relação aos Estados Unidos e a criminalização dos movimentos sociais seguem do mesmo modo na vida desse povo.


Brasil de Fato – Na condição de país atrelado ao Acordo de Livre Comércio da América Central com os EUA, qual tem sido o impacto da crise mundial do capitalismo na Guatemala?

Carlos Barrientos – A crise se sente, mas não em termos tão fortes. Por um lado, os EUA são o principal mercado da produção guatemalteca, que é sobretudo agrícola. Basicamente, o que se produz na Guatemala é café, em quantidade importante, cana, banana, borracha. Então houve sim uma baixa no montante que vem do setor empresarial, o que afetou os setores mais despossuídos, porque há um aumento da inflação. Todavia, não foi tão dramático como se esperava, porque, no caso do café, temos tido anos em que se recuperou o preço, comparado com o ano de 2000, quando houve uma crise dos preços do café.
Por outro lado, a produção de cana-de-açúcar se expandiu não só para o açúcar, mas para etanol. O mundo incrementou o consumo de etanol e agrocombustíveis, então isso permitiu que o impacto não fosse maior.
Creio que o impacto [da crise] veio de um fenômeno que se dá não só na Guatemala, como em muitos países da América Latina, da população que migra aos EUA e envia remessas. Em 2010, houve uma recuperação das remessas familiares.

Qual o papel dos agrocombustíveis na expansão do capital na Guatemala?

O outro fator que reduziu o impacto é que há uma posição dos setores empresariais e governamentais de abrir o país ao investimento estrangeiro que se deu no ramo de agrocombustíveis, monocultivo, e também na mineração. Curiosamente, nesses tempos de crise certos produtos estão tendo bom preço no mercado internacional, o que ajudou que o impacto fosse menor. Isso digo em termos econômicos, agora em termos da vida do povo, e da situação do país, estes processos de abertura comercial, ampliação da produção de cana e da palma africana tiveram um golpe muito forte.
Em alguma medida, nós fazemos a comparação entre o que está acontecendo agora com o que aconteceu quando entrou o cultivo do café, ao final do século dezenove, porque há certos padrões que se repetem. Um deles é que há novamente a expulsão dos indígenas e camponeses. O outro é a reconcentração de terras por diversas modalidades. Quando se introduziu o cultivo de café se modificou a área que se usava para certos cultivos. Só que agora é a cana, a palma africana, ou a mineradora e a construção de grandes hidrelétricas, com a ideia de vincular-se ao que era o antigo Plano Puebla Panama [agora Plano Mesoamericana], com o fim de exportar energia elétrica ao norte, uma vez que os EUA consomem a quarta parte da energia do mundo.

Na política, há um processo de perseguição do atual governo contra lideranças sociais?

Colom defendeu os interesses empresariais. Mas as pequenas medidas sociais foram mal vistas pela oligarquia guatemalteca. Preocupada, a oligarquia apoiou a extrema-direita, gerou um clima de muito terror, uma vez que a Guatemala é rota do narcotráfico.
O atual presidente, Otto Perez Molina, aproveitou isso muito bem. Ele é ex-militar, contrainsurgente, esteve em lugares como Nebaj (oeste da Guatemala), onde foi oficial no destacamento, um dos lugares onde houve uma quantidade muito grande de massacres. Mas ele foi oficial de Inteligência Militar e tem uma trajetória terrível. Conhece muito bem como criar um clima de guerra psicológica que lhe seja favorável, sobretudo nos centros urbanos.

Como tem sido a sua relação com os movimentos sociais e com o povo guatemalteco?

O governo de Colom encerra seu período, uns oito ou nove meses antes que terminasse, com um despejo massivo de treze comunidades que haviam ocupado terra em um lugar ao norte onde se está expandindo a cana-de-açúcar. Há camponeses assassinados, vários capturados e se despejou 800 famílias dessas distintas comunidades.
Há medidas cautelares da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para que se proporcionasse segurança a estas famílias. Afinal, os guardas armados do engenho eram a lei e ordem na região, por isso havia que garantir segurança às famílias, mas o governo não faz nada, e se põe ao lado das famílias mais ricas da Guatemala.
Quando começa o novo governo de Perez Molina, há muito temor sobre sua postura. Todavia, as comunidades desalojadas, organizadas na Via Campesina, decidiram em março deste ano realizar uma marcha de 200 km, no sentido da capital, à qual se juntaram uma série de organizações, para demandar basicamente quatro grandes blocos: o problema da terra; que finalizasse a criminalização, processo que vem desde os governos anteriores; fim das explorações mineiras, monocultivos e megaprojetos; leis de desenvolvimento para comunidades camponesas.

Desde o Brasil, a impressão que temos é que a esquerda na Guatemala não tem uma expressão forte no campo eleitoral. Como você pode explicar isso?

Houve organizações guerrilheiras que por muito tempo lograram a implantação de um projeto militar, como o que se projetava no caso da Guatemala. Chegou- se a um momento de impasse, que nem Exército e nem a guerrilha poderiam vencer. Havia quatro organizações guerrilheiras, que se articularam em uma organização mais ampla que se chamou Unidade Revolucionária Nacional de Guatemala. Porém, quando a guerrilha se constitui em partido político, se dá um processo de entrar em cheio na dinâmica eleitoral, o que levou a guerrilha a se distanciar de sua base social tradicional, camponesa e indígena, e então começa a converter-se em partido com a mesma lógica dos demais. Isso gerou resultados eleitorais pobres e resultou em fracionamentos. Entre a esquerda inserida nos movimentos sociais, há também uma divisão entre luta política e luta social, o que não ajudou em nada. Então, a presença da esquerda (no parlamento) é muito pequena. Temos apenas dois deputados em um congresso de 158 pessoas. E sete prefeituras dentre 333, uma presença muito pequena. Esse é o grande desafio da esquerda: como articular o social com o político e como recuperar o que anteriormente foram suas bases de sustentação.

Você vê uma possibilidade de síntese entre a teoria marxista e a visão indígena?

Um primeiro aspecto é de caráter histórico. Os povos originários em Guatemala tem 500 anos de luta e resistência. Em uma sistematização se pode dizer que, durante quinhentos anos, não houve uma geração no território maia que não tenha experimentado uma rebelião, um levante; algum fato em que teve que enfrentar as autoridades constituídas, coloniais, republicanas, capitalistas, burguesas e assim por diante. Então, há uma trajetória de luta e resistência muito forte, algo que a oligarquia tratou de esconder e sequestrar, senão daria um mau exemplo se dissesse nas escolas que o povo maia nunca se rendeu e sempre lutou. É difícil encontrar informações sobre isso. Mas, sim, há evidências históricas desse processo de luta e resistência.
Há outro elemento capaz de falar de uma confluência. Na Guatemala, a riqueza se levantou sobre a base da expropriação do fruto do trabalho da população camponesa, e do despojo das comunidades originárias. Então, são duas contradições principais, uma é a contradição classista Capital e Trabalho, explorados e exploradores, a outra contradição é entre os Estados nacionais e os povos originários, porque nesse processo histórico os povos originários mantiveram sua cosmovisão e suas práticas de distinto tipo.

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segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

De punho em riste: quem é a garota que desafiou a ocupação israelense?

 


Ahed Tamimi, de apenas 13 anos, enfrenta os soldados israelenses e diz que a dor já faz parte de sua vida



Oren Ziv/ ActiveStills no OPERA MUNDI



No meio de uma estrada deserta, cercada de paisagem árida, uma pequena menina com a insígnia da paz estampada no peito enfrenta dezenas de soldados, protegidos com capacetes e metralhadoras. O contraste da imagem choca, mas nem as armas em punho foram capazes de amedrontar a garotinha, que continuou a gritar e empurrar os oficiais em busca de respostas (veja o vídeo abaixo).
Os risos jocosos dos militares, que se entreolhavam em desprezo, apenas alimentaram o desespero e raiva da jovem. No fim, a única resposta recebida foi o disparo de balas de borracha. As imagens da bravura da menina, na reedição de uma espécia de batalha entre Davi e Golias, correram o mundo. Ahed Tamimi, de apenas 13 anos, queria apenas saber para onde o irmão, Waed, de 15 anos, havia sido levado durante os protestos do dia 2 de novembro em Nabi Saleh, pequeno vilarejo na Cisjordânia onde vivem.
Sentada na cama do hospital em Ramallah com a mão envolta em curativos, a palestina não reclama do ferimento de balas de borracha e conta que a dor já se tornou parte de sua vida. Filha do líder comunitário Bassem Tamimi, considerado pela União Europeia um “defensor dos direitos humanos” e pela Anistia Internacional “um prisioneiro de consciência”, Ahed já teve de lidar com o encarceramento de seus pais, a morte de dois tios e a violência cotidiana de soldados israelenses contra sua família e amigos.
“Eu lembro que o pior período da nossa vida foi quando prenderam o meu pai pela primeira vez e as autoridades israelenses não nos deram autorização para visitá-lo”, afirmou ela a Opera Mundi. Detido por oficiais israelenses por seu papel de liderança nos protestos pacíficos, Bassem teve de enfrentar a corte militar de Israel por 13 vezes e chegou a passar mais de três anos no cárcere sem nenhum julgamento.
Há mais de três anos, os residentes de Nabi Saleh se concentram toda sexta-feira às 13:30 no centro da vila e tentam caminhar com bandeiras da Palestina nas mãos até a Alqaws, fonte de água da cidade confiscada pelos oficiais israelenses em 2009 e agora, de uso exclusivo e livre acesso para os colonos. O recurso era necessário para as plantações na aldeia de predominância agrícola e também utilizado como local de lazer, mas Israel restringiu a visita a indivíduos e proibiu a construção de qualquer tipo de infraestrutura no local pelos palestinos.
ActiveStills (24/08/12)

Ahed e sua prima tentam impedir a prisão de sua mãe Nariman em um protesto contra os assentamentos em Nabi Saleh
“Toda sexta-feira, choques começam quando tentamos começar nosso protesto pacífico contra o assentamento que nos cerca”, conta a garota. Idosos, como sua avó de 90 anos, crianças, mulheres e homens são atingidos indiscriminadamente por munições e projéteis.
Com balas de borracha, bombas de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e o líquido “skunk”, os soldados impedem que a passeata chegue ao seu local de destino, mas, pela primeira vez em junho deste ano, o grupo conseguiu entrar na fonte.
Depois dos primeiros protestos, as Forças de Defesa de Israel começaram a fechar todas as entradas e saídas da vila, impedindo a chegada de ativistas internacionais e de outras cidades palestinas e restringindo a manifestação às ruas da vila.
“O uso de todos os meios para finalizar o protesto pelas forças de segurança é excessivo e ocorre mesmo quando os manifestantes não são violentos e não representam ameaça. As forças disparam enormes quantidades de gás lacrimogêneo dentro da área urbana da vila, que é o lar de centenas de pessoas”, diz relatório da organização israelense B’TSelem. “Em um protesto, pelo menos 150 latas de gás lacrimogêneo foram disparadas”.
Mortes
Foi em uma dessas vezes que Ahed perdeu um de seus primos. Há exatamente um ano, Mustafa morreu quando foi baleado na cabeça com uma bomba de gás lacrimogêneo durante os protestos. De acordo com testemunhas, ele jogava pedras contra um tanque israelense e um soldado não identificado mirou a arma em sua cabeça.
ActiveStills

Ahed Tamimi (no fundo à direita), sua mãe, Nariman, abraçada a seu irmão, Waed, no funeral de Rushdi Tamimi
Mas, segundo organizações de direitos humanos e residentes de Nabi Saleh, os oficiais não usam inadequadamente apenas munições menos letais, mas também armas de fogo. No dia 19 de novembro, o tio de Ahed, Rushdi, policial palestino de 31 anos, faleceu de complicações médicas depois de ferimentos com balas de fogo no intestino.
Apesar da crescente repressão, Ahed e sua família continuam a participar dos protestos semanais na aldeia de 500 habitantes contra os assentamentos israelenses e o muro que separam os territórios.  Sob o argumento de que a manifestação é uma “reunião ilegal”, os oficiais prendem civis e tentam dispersar o grupo logo nos primeiros minutos.
Prisões
“Minha mãe disse a eles para saírem das nossas terras e o soldado, com raiva, respondeu que estávamos em uma zona militar. Minha mãe, então, disse a ele para retirar os colonos também e ele ordenou sua prisão”, lembra Ahed da manifestação do dia 24 de agosto (vídeo). Junto de suas primas, a garota protestou contra a detenção e acabou apanhando dos militares. Nariman foi libertada e logo, voltou a participar das manifestações com sua câmera e kit de primeiros socorros.
ActiveStills (24/08/12)

Nariman, coberta com o lenço palestino, é levada pelos oficiais israelenses; Ahed tenta impedir que eles levem sua mãe
Seu pai foi preso, novamente, no dia 24 de outubro deste ano em uma manifestação a favor do boicote contra o supermercado israelense Rami Levy e condenado a 4 meses de prisão e a uma multa de NIS 5 mil poucos meses depois de ter sido solto. Após uma semana, seu filho mais velho foi levado pelos soldados, mas permaneceu detido poucos dias na delegacia do assentamento Sha’as Benyamin.
“A prisão de Waed Tamimi enquanto ele estava andando pacificamente em sua vila aponta para o contínuo abuso do ativista Bassem Tamimi, de sua família e da comunidade de Nabi Saleh pelas forças militares israelenses”, afirmou Ann Harrison da Anistia Internacional. “Este abuso e assédio deve parar”, acrescentou ela.
Ocupação e os jovens: peça-chave para a repressão
A presença militar de israelenses não é restrita, no entanto, às sextas-feiras na vila palestina. A emissora israelense canal 10 junto com a B’TSelem denunciou que os oficiais fazem rondas noturnas em Nabi Saleh, nas quais invadem as residências dos palestinos e tiram fotos das crianças.
As Forças de Defesa usam as fotografias para identificar os menores que jogam pedras contra os oficiais nos protestos e depois, voltam às suas casas durante a noite para prendê-los. Segundo a organização palestina Addammeer, que luta pelo direito dos presos políticos, o depoimento desses jovens é fundamental para Israel construir denúncias contra os líderes do movimento. O interrogatório de uma criança de 10 anos que levou à prisão de Bassem.
Ahed conta que os oficiais estão por perto “toda vez que quero brincar com meus amigos, quando vou à escola e quando estou em casa”.
Oren Ziv/ActiveStills

Bassem e Nariman Tamimi se reencontram depois de periodo de encarceramento
Mesmo quando os soldados não estão por perto, os palestinos lembram diariamente de que sua terra está sendo ocupada e confiscada. Nabi Saleh, assim como toda a Cisjordânia, é cercada por um muro de 10 metros de altura e por todos os lados da aldeia, os apartamentos modernos dos colonos construídos ilegalmente em seu território podem ser vistos. A falta de parentes e amigos que estão presos ou foram mortos impedem que essas pessoas se esqueçam da sua realidade.
Sonhos de uma criança
“Eu gostaria que toda a minha família fosse libertada assim todos os outros prisioneiros palestinos logo e quero ver o meu grande sonho de um dia viver em uma Palestina livre”, afirma, com emoção, Ahed.
Reproduçao Facebook
O sentimento de tristeza e desespero estranho demais para a vida de uma criança também preocupa os pais de Ahed. “Durante as minhas visitas ao meu marido, Bassem me pediu que os corações dos nossos filhos fossem purificado de todo e qualquer ódio por conta das sementes de amor que plantamos neles”, reconhece Nariman. “Agora, nós estamos esperando por redenção, felicidade, justiça e liberdade”.
(Waed Tamimi vestido com lenço palestino durante protesto do dia 7 de dezembro para se proteger das bombas de gas lacrimogeneo)
A libertação nacional parece estar longe da vida de Ahed e dos Tamimi. Enquanto a família ainda enfrenta uma ordem de demolição de sua casa em Nabi Saleh, as autoridades israelenses já anunciaram que vão continuar com a expansão dos assentamentos nos territórios palestinos.
No entanto, o espírito de resistência dessa família não parece diminuir, apesar das seguidas provações pelas quais passaram. Metaforicamente, os Tamimi são a Palestina.

"O que Israel está fazendo com os palestinos é muito pior do que o apartheid sul-africano”.

          

Para Ronnie Kasrils, Israel só vai parar com o expansionismo e com a opressão de fora para dentro. “Um movimento de solidariedade internacional aos palestinos tem um papel muito importante. Foi assim que nós derrubamos o apartheid. Nós tínhamos razão. Levou tempo, mas Leclerc teve de libertar Mandela e dizer ‘vamos conversar’, que era o que nós dizíamos que tinha de ser feito. "Eu acredito que este é o aspecto mais importante da luta em solidariedade ao povo palestino. É preciso denunciar os assentamentos, mas é preciso boicotar, também. É preciso constrange-los materialmente, economicamente”, defendeu.


        
 


Ele tem 73 anos e nasceu numa comunidade judaica de Joanesburgo, formada por fugitivos do extermínio em Vilna e em Riga, na Lituânia, no início do século XX. Aos 9 anos, numa sessão de cine-notícias entre filmes, viu as imagens que começavam a circular, no mundo, dos campos de concentração nazistas. Voltou para casa e perguntou a sua mãe, a quem diz dever a sua consciência frente à opressão e à intolerância, se o que acontecia na sua vizinhança e no seu país, com a população negra, era a mesma coisa. Se a pobreza, a humilhação e a segregação a que estavam condenados pelos brancos era a mesma coisa que, no cine-notícia que acabara de ver, chamaram de antissemitismo. “A minha mãe, que não era uma intelectual, cuja família tinha uma delicatessen, mas que frequentou a escola até os 16 anos, disse que não, que não era a mesma coisa. Mas que aquilo que eu tinha visto e que tinha acabado de acontecer com o nosso povo na Europa tinha começado dessa mesma maneira que eu descrevera, ali (na África do Sul)”. Esse é o tipo de coisa que Ronnie Kasrils começa a contar, assim que senta na mesa e pede que nos apresentemos, para uma conversa com alguns dos mais proeminentes participantes do Fórum Social Mundial Palestina Livre, que começa nesta quinta (29) e vai até domingo, em Porto Alegre.

Ronnie, ou “Ronaldo”, como ele gosta de se chamar, aqui, é um homem extraordinário e um sujeito adorável. Parece muito mais jovem, talvez pela exuberância, talvez pela natureza de seu compromisso moral com o mundo. É muito raro, quando se trata da questão palestina, que algum militante abra sorrisos tão largos e demonstre tamanho otimismo, como o faz Kasrils, um escritor, ativista, ex-ministro de estado da África do Sul pós-apartheid e membro do Tribunal Russell para a Palestina. Ele começou a falar de sua vida, de suas trajetórias e de suas escolhas. É difícil de acreditar, mas Kasrils, aos dez anos, fez parte do Betar, o movimento da juventude sionista criado por Ze'ev Jabotinsky, o pai do revisionismo sionista, um movimento de extrema direita, que defende o que chamam de Israel bíblica, algo que hoje implicaria a incorporação da Síria, do Líbano, da Jordânia e do norte do Egito. Ronnie contou esse fato pitoresco rindo, para em seguida deixar claro: “Éramos muito influenciados por um professor, que estimulava um sentimento de violência e de conflito, inclusive entre nós, e mesmo físico, como se isso nos fortalecesse, como um projeto pedagógico. Éramos meninos, tínhamos pouco mais de dez anos, mas entendemos que ele era doente. Era um louco”. O seu engajamento no Betar se desfez com essa descoberta e também com a entrada no ensino médio, num colégio da elite branca, onde conheceu um professor história, Teddy Gordon, também judeu, que lhe ensinou sobre a Revolução Francesa.

É difícil descrever à altura o brilho nos olhos do sul-africano, quando falou de seu professor, a quem atribui a mudança mais definitiva na sua vida. Ronnie Kasrils é um homem poderoso e mundialmente conhecido, pegou em armas com Mandela, foi ministro de estado, mas quem mudou a sua vida, em termos políticos, foi o professor de história que lhe deu aula sobre um acontecimento chamado Revolução Francesa. “Eu era, até então, um péssimo aluno, eu era um atleta, não era da ala dos intelectuais, como Richard Goldstone, que era meu colega. Mas quando esse professor começou a dar aula eu me tornei o melhor aluno, e saí do colégio de maneira promissora”, disse, sorrindo, convincente. Kasrils tem aquela capacidade rara de nos ensinar a mirar a história com ganas de atribuir-lhe sentido e com a confiança em tal coisa. A escolha por nos contar essa história, essa pequena parte dela, era uma operação deliberada e ao mesmo tempo refinada. Era como se ele estivesse nos dizendo: olha aqui, gurizada, eu passei a levar a sério um ponto de vista universalista e é deste ponto de vista que eu estou aqui.

A ligação com a esquerda judaica e a luta contra o apartheid sul-africano

“Mas eu também saí do Betar por uma outra razão”, conta, rindo. “As meninas do Habonim Dror eram muito mais bonitas” e, na época, Kasrils não era exatamente um militante da esquerda judaica socialista, que buscava criar um lar nacional judaico a partir da cultura e da educação e da vida kibutziana.

“O que me tornou de esquerda foi o massacre de Shaperville, de março de 1961, em que 69 militantes pacifistas negros foram mortos e centenas ficaram feridos. Ali eu tomei a decisão de que iria fazer alguma coisa. A minha família nunca foi militante, de esquerda, mas eu tinha um tio na Cidade do Cabo que era advogado e comunista. Eu peguei um ônibus e fui para a casa dele. Cheguei lá e disse: eu quero me juntar a vocês”. Ele nos olha bem sério, encosta-se na cadeira, abre um sorriso e completa: “Então foi assim que eu comecei. Eu tinha de pôr em contato os núcleos da resistência ao apartheid, os membros dos partidos comunistas, da esquerda. E o meu tio estava isolado, noutra cidade. Eu disse que iria fazer isso. E fiz”.

Quando Mandela convocou à luta armada, após os acontecimentos de Shaperville, Kasrils se juntou a ele. Treinou na União Soviética, recebeu formação militar e esteve em vários países africanos, quando se tornou chefe de inteligência militar do movimento Lança de Uma Nação, o braço armado do Congresso Nacional Africano, liderado por Nelson Mandela. Passou cinco anos na cadeia, perdeu o emprego como executivo de uma empresa de telefonia, foi perseguido e banido da comunidade branca sul-africana. E se tornou ministro de estado da África do Sul pós-apartheid. Foi então que se voltou para a questão palestina.

A luta contra o apartheid israelense

Com o fim do apartheid e a primeira eleição democrática da África do Sul, Kasrils se tornou ministro de estado. E, depois do ministério da defesa, foi nomeado ministro para assuntos de água e florestas, de 1999-2004. Nesse período, ocorreu a segunda intifada e o muro de anexação de territórios palestinos, pelo então governo de Ariel Sharon, começou a ser erguido, anexando territórios palestinos para construir assentamentos, esmagando casas e vilas palestinas, segregando bairros, vilas e famílias, dividindo a região e instaurando um sistema identificado pelo sul-africano como muito mais hostil que o apartheid sul-africano. Em 2001 ele redigiu a “Declaração de Consciência de Sul-Africanos Judeus”, contra as políticas israelenses nos territórios palestinos ocupados. Passou a ser acusado de antissemita, pela direita judaica local, e viajou para a Cisjordânia, como ministro para assuntos de água e florestas. Lá conheceu Jamal Juma, que dava início ao movimento de resistência não violenta Stop the Wall.

O que você defende como solução, os dois estados, as fronteiras da linha verde, um só estado para dois povos? Eu perguntei e isso parece não ter ecoado como uma questão a ser respondida. Kasrils olha para mim e diz que Israel só vai mudar, só vai parar com o expansionismo e com a opressão de fora para dentro. “Um movimento de solidariedade internacional aos palestinos tem um papel muito importante. Foi assim que nós derrubamos o apartheid. Nós tínhamos razão. Levou tempo, mas Leclerc teve de libertar Mandela e dizer ‘vamos conversar’, que era o que nós dizíamos que tinha de ser feito. Mas é preciso constranger economicamente, não apenas politicamente. O programa de Desinvestimento e de Boicote significou o começo do fim do apartheid e nós terminamos vencendo. Eu acredito que este é o aspecto mais importante da luta em solidariedade ao povo palestino. É preciso denunciar os assentamentos, mas é preciso boicotar, também. É preciso constrange-los materialmente, economicamente”, defendeu. Para Kasrils, o fato de que em Israel os cidadãos palestinos são cidadãos de segunda classe, com direitos limitados e sem o grau de liberdade civil dos israelenses configura apartheid. “No regime do apartheid, diante de um mestiço que não se sabia ao certo se era negro ou não, passavam um pente para ver se iria ou não deslizar sobre o cabelo. Caso o pente parasse, a pessoa iria para os setores dos negros”.

Em Israel não é assim, mas não precisa ser, lembrou. Há um muro que consegue separar as sociedades, anexando territórios dos palestinos, mas que afasta completamente os dois povos, promovendo limpeza étnica e criando “coisas como rodovias em que só judeus podem trafegar. Isso é uma violência que nem o apartheid sul-africano cometeu. O que o estado de Israel está fazendo com os palestinos é muito pior do que aquilo que acontecia no apartheid sul-africano”, concluiu.


A seguir, a chegada de Jamal Juma, o seu diagnóstico sobre a iminência da eclosão da Terceira Intifada e o pessimismo contrastante com o otimismo de Kasrils.


Fotos: Carlos Carvalho

domingo, 9 de dezembro de 2012

Bram Stoker vive!

Nikelen Witter
Especial para o Sul21

Não, ele não morreu. Acima, Christopher Lee como Drácula.

O título dramático pode parecer exagerado. Afinal, Bram Stoker jamais foi conhecido como um autor genial. Nem em sua época, nem passados 100 anos de sua morte. Sua criação, porém, assentou seu pé na imortalidade. Drácula, a obra-prima de Stoker, ganhou vida própria (com o perdão da ironia) e superou em muito seu criador. Se levarmos em conta, especialmente, a primeira metade do século XX, perceberemos, inclusive, que o autor praticamente sumiu das referências feitas a seu personagem mais famoso. Resgatado no título de uma adaptação de sua obra num filme dos anos 90, assinado pelo oscarizado Francis Ford Coppola, Stoker assumiu notoriedade como um dos principais autores no estilo do romance gótico vitoriano.

Lugosi em momento de concentração

Drácula é um excelente livro. Bem construído, elaborado com esmero ao longo de sete anos de pesquisas e trabalho. Foi considerado “a sensação da temporada” em 1897. Ainda assim, é da personagem, mais que a obra, de quem todos se lembram. É Drácula, o conde — seja ele assimilado ao empalador romeno, ou aos rostos (e vozes) carismáticos de Bela Lugosi e Christopher Lee — que assume a frente de tudo quando nos referimos à Stoker, a tal ponto de muitos tentarem, ainda hoje, ler na obra a vida do escritor. Isso porque, ao contrário de outros autores góticos, o irlandês teve uma vida ordinária, sem grandes feitos ou conexões, tendo escrito 12 romances e alguns volumes de contos. Era crítico teatral e pessoa de gostos convencionais. Foi batizado por seus pais e alimentava-se normalmente.

Bram Stoker: até virar título do filme de Coppola, o autor fora engolido por seu personagem

Bram Stoker

Nascido em 8 de novembro de 1847, em Clontarf, subúrbio ao norte de Dublin, Stoker foi o terceiro de sete filhos do casal Abraham Stoker — um funcionário público de pouca expressão — e Charlotte Mathilda Blake Thornley, uma escritora com tendências feministas. A infância foi marcada pela doença, estando ele, muitas vezes, à beira da morte e praticamente sem poder ficar em pé até quase os sete anos. Recuperado, o jovem Bram cursou uma escola privada e, mais tarde, graduou-se com honras no conceituado Trinity College, onde, inclusive, foi atleta em nível de competição universitária. Interessado em teatro, Stoker trabalhou para formar-se como crítico desta atividade e foi por meio dela que conheceu a pessoa que os biógrafos apontam como a mais importante de sua vida: o ator inglês Henry Irving.
Recém-casado com Florence Balcombe — disputada beldade local que fora cortejada inclusive por Oscar Wilde — Stoker aceitou o convite de Irving e mudou-se para Londres, onde passou a trabalhar no teatro que pertencia ao ator, o Lyceum Theatre. Ocupou diversos cargos, como diretor do teatro e agente de Irving, permanecendo nestas funções por 27 anos. Paralelamente, mantinha viva uma já iniciada carreira como poeta, contista e romancista. Em fins de 1879, nasceu o primeiro e único filho do casal Stoker, batizado como Irving Noel Thornley Stoker.

Henry Irving: ator do qual Stoker era agente

Graças aos contatos de Irving, Stoker pode circular na alta sociedade da época, chegando a travar conhecimento com homens como o pintor James Abbott McNeill Whistler e os escritores Sir Arthur Conan Doyle e Walt Whitman (a quem ele muito admirava e de quem se tornou um amigo próximo). O trabalho com Irving (o ator mais famoso de seu tempo) e a gestão de um dos teatros mais bem sucedidos de Londres, deixavam Stoker constantemente ocupado, isso quando ele não estava em viagem ao continente para acompanhar seu empregador. O pouco tempo dedicado à Florence e ao pequeno Irving, bem como a idolatria dirigida ao ator em suas memórias, faz com que, até hoje, muitos biógrafos e historiadores questionem a natureza profunda da amizade desenvolvida entre ambos. Muitos acreditam até mesmo que Irving exercia um tipo de magnetismo ou domínio sobre Stoker que se assemelhava ao de Drácula sobre suas vítimas. As descrições do conde e de Irving se assemelham, ao mesmo tempo que o próprio Stoker dizia assemelhar-se a Ramfield — personagem bizarro que devora insetos enquanto aguarda, enlouquecido, a vida eterna prometida pelo vampiro, a quem ele nomeia Mestre — em sua devoção pelo patrão. Quando Drácula foi publicado, a dedicatória dirigiu-se a Henry Irving.

Gary Oldman, o Drácula de Coppola, em momento de descontração

Drácula
Stoker jamais viajou para a Europa Oriental, cenário inicial do romance, mas era fascinado pelas histórias obscuras da região, com as quais tomou contato, provavelmente, através de um conhecido seu, o viajante e escritor húngaro Armin Vambery. A publicação de Drácula data de 1897. Mas ele manteve sua produção nos anos que se seguiram com relativo sucesso, muito embora seu livro mais bem sucedido tenha sido a publicação das memórias de sua vida com Irving, que ele escreveu após a morte do ator.
Após vários derrames cerebrais, Bram Stoker faleceu em abril de 1912, em Londres. Alguns biógrafos acreditam que uma sífilis terciária pode ter sido a causa de sua morte. Ele foi cremado e suas cinzas estão depositadas no Crematório Golders Green, em Londres.

Vlad Dracul: muitas mortes e respeitável bigode

Para escrever Drácula, Stoker passou anos pesquisando o folclore europeu e histórias mitológicas dos vampiros. Muitos historiadores discordam da ideia de que ele tenha se inspirado diretamente no nobre romeno Vlad Dracul ou Drácula, também conhecido como Vlad Tepes ou Empalador. Afirmam que as informações que Stoker poderia acessar, em sua época, a sobre a figura real (e, de fato, assustadora) de Vlad eram pífias e que não seriam suficientes para a construção da personagem. O próprio nome Drácula teria sido tirado de um livro pouco confiável, que traduzia a palavra por diabo e não por dragão. De outra forma, mesmo tendo uma história medonha de assassínios e torturas, Vlad era, e é (em certa medida), um herói nacional romeno – além de ter o título, outorgado pelo Papa, de defensor da fé cristã –, o que impediria que, à época, suas características verdadeiras estivessem todas apresentadas em um livro.
Stoker, afora esta pesquisa, aventurou-se pouco na estrutura da escrita. Utilizou-se do formato epistolar, muito em voga no período, para dar o grau certo de veracidade e realismo, bem como de identificação com as personagens. O livro é uma coleção de diários, cartas, telegramas, registros de bordo, recortes de jornais, organizados em torno de uma história em que o vampiro aparece como uma sombra. Um mal à espreita, um terror que cega a capacidade dos homens de vê-lo e obstruiu sua luta contra ele, ao mesmo tempo em que seduz, mortalmente, às mulheres.

Nosferatu, uma Sinfonia de Horror (1922), de Murnau

Atento aos modelos do romance gótico, Stoker construiu seu Drácula a partir justamente do embate entre o mundo moderno e as lendas obscuras do passado humano. Assim, ele não deixa de colocar todo o aparato da racionalidade e ciência modernas à serviço da luta contra o mal. Van Helsing, que o cinema imortalizou como um caçador de vampiros, é, de fato, um cientista, um professor, um conhecedor de mitologia, história natural, medicina, leis, etc. Assim, numa boa leitura, pode-se encontrar referências à Darwin e à evolução, bem como às heroicas transfusões de sangue (uma quase ficção científica numa época em que se desconhecia os tipos sanguíneos e o fator RH). Stoker é um entusiasta do racionalismo e da ciência. Para ele, estas são as principais armas contra o conde. A religião — crucifixos, água benta e hóstias — é uma arma parcial, ligada à própria natureza sobrenatural e antiga (ou antiquada) do vampiro, daí ela estar equiparada em poder às superstições como o alho. O uso destas só tem valor quando empunhados pelo ocidente, depositário da razão moderna e pouco têm efeito nas mãos dos “ignorantes e supersticiosos” camponeses da Transilvânia.

As mulheres: portas escancaradas para o mal

Contudo, é no papel que Stoker dedica às mulheres em sua ficção que boa parte dos estudiosos se concentra. Muitas vezes classificado como misógino, o autor desenha suas personagens femininas como a parte fraca — no sentido de uma porta aberta para o mal — da civilização. Muitos estudiosos concebem Drácula como o verdadeiro pesadelo vitoriano, não pelo conde, mas pelo efeito deste sobre as mulheres. Das três vampiras, sedentas por sangue e sexo, que aprisionam Jonathan Harker no castelo do conde na Romênia, até às virtuosas Lucy e Mina, Stoker está constantemente, colocando seus heróis na defensiva. Os homens parecem não ter forças para resistir a essas criaturas cujos desejos afloram e parecem incontroláveis. Lucy e Mina parecem tê-los em menor escala até ficarem sob o fascínio do conde. Lucy torna-se uma vampira — é a noiva morta, ainda desejável e sensual, mas que suga o sangue de criancinhas. É o horror da anti-mãe. Mina, a jovem liberada que anseia por trabalhar e cuja inteligência se compara à masculina, é ainda mais temível. Ela, o conde parece querer para si. Lucy recebe como punição um coração trespassado e arrancado, a cabeça cortada e a boca preenchida por alho. Uma analogia do casamento vitoriano para alguns historiadores. Mina é salva pela morte do vampiro, mas sua redenção completa vem com o fim de seus desejos de trabalho e a concretização da vida de esposa e mãe.

Winona Ryder: a Mina do filme de Coppola



A chamada “nova mulher” (indico o capítulo de mesmo nome de E. Hobsbawm, em A Era dos Impérios), figura constante na imprensa e literatura da época, parece ter constituído para Bram Stoker, e provavelmente para muitos de seus leitores, um terror verdadeiro. Ao fim, mais que o vampiro, é o que ele desperta em nós e nos que estão a nossa volta que pode, realmente, nos dar medo. Nesse sentido, o questionamento da obra e do escritor ainda está presente e válido. Afinal, que preço se pagaria pela imortalidade?
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A Discovery Civilization tem um bom documentário a respeito do livro de Bram Stoker:
Nikelen Witter é escritora e historiadora

sábado, 8 de dezembro de 2012

O comunismo ético de Oscar Niemeyer

Por Leonardo Boff, no sítio da Adital:
Não tive muitos encontros com Oscar Niemeyer. Mas os que tive foram longos e densos. Que falaria um arquiteto com um teólogo senão sobre Deus, sobre religião, sobre a injustiça dos pobres e sobre o sentido da vida?

Nas nossas conversas, sentia alguém com uma profunda saudade de Deus. Invejava-me que, me tendo por inteligente (na opinião dele) ainda assim acreditava em Deus, coisa que ele não conseguia. Mas eu o tranquilizava ao dizer: o importante não é crer ou não crer em Deus. Mas viver com ética, amor, solidariedade e compaixão pelos que mais sofrem. Pois, na tarde da vida, o que conta mesmo são tais coisas. E nesse ponto ele estava muito bem colocado. Seu olhar se perdia ao longe, com leve brilho.

Impressionou-se sobremaneira, certa feita, quando lhe disse a frase de um teólogo medieval: "Se Deus existe como as coisas existem, então Deus não existe”. E ele retrucou: "mas que significa isso?” Eu respondi: "Deus não é um objeto que pode ser encontrado por ai; se assim fosse, ele seria uma parte do mundo e não Deus”. Mas então, perguntou ele: "que raio é esse Deus?” E eu, quase sussurrando, disse-lhe: "É uma espécie de Energia poderosa e amorosa que cria as condições para que as coisas possam existir; é mais ou menos como o olho: ele vê tudo mas não pode ver a si mesmo; ou como o pensamento: a força pela qual o pensamento pensa, não pode ser pensada”. E ele ficou pensativo. Mas continuou: "a teologia cristã diz isso?” Eu respondi: "diz mas tem vergonha de dizê-lo, porque então deveria antes calar que falar; e vive falando, especialmente os Papas”. Mas consolei-o com uma frase atribuída a Jorge Luis Borges, o grande argentino:”A teologia é uma ciência curiosa: nela tudo é verdadeiro, porque tudo é inventado”. Achou muita graça. Mais graça achou com uma bela trouvaille de um gari do Rio, o famoso "Gari Sorriso: "Deus é o vento e a lua; é a dinâmica do crescer; é aplaudir quem sobe e aparar quem desce”. Desconfio que Oscar não teria dificuldade de aceitar esse Deus tão humano e tão próximo a nós.

Mas sorriu com suavidade. E eu aproveitei para dizer: "Não é a mesma coisa com sua arquitetura? Nela tudo é bonito e simples, não porque é racional mas porque tudo é inventado e fruto da imaginação”. Nisso ele concordou adiantando que na arquitetura se inspira mais lendo poesia, romance e ficção do que se entregando a elucubrações intelectuais. E eu ponderei: "na religião é mais ou menos a mesma coisa: a grandeza da religião é a fantasia, a capacidade utópica de projetar reinos de justiça e céus de felicidade. E grande pensadores modernos da religião como Bloch, Goldman, Durkheim, Rubem Alves e outros não dizem outra coisa: o nosso equívoco foi colocar a religião na razão quando o seu nicho natural se encontra no imaginário e no princípio esperança. Ai ela mostra a sua verdade. E nos pode inspirar um sentido de vida.”

Para mim a grandeza de Oscar Niemeyer não reside apenas na sua genialidade, reconhecida e louvada no mundo inteiro. Mas na sua concepção da vida e da profundidade de seu comunismo. Para ele "a vida é um sopro”, leve e passageiro. Mas um sopro vivido com plena inteireza. Antes de mais nada, a vida para ele não era puro desfrute, mas criatividade e trabalho. Trabalhou até o fim, como Picazzo, produzindo mais de 600 obras. Mas como era inteiro, cultivava as artes, a literatura e as ciências. Ultimamente se pôs a estudar cosmologia e física quântica. Enchia-se de admiração e de espanto diante da grandeur do universo.

Mas mais que tudo cultivou a amizade, a solidariedade e a benquerença para com todos. "O importante não é a arquitetura” repetia muitas vezes, "o importante é a vida”. Mas não qualquer vida; a vida vivida na busca da transformação necessária que supere as injustiças contra os pobres, que melhore esse mundo perverso, vida que se traduza em solidariedade e amizade. No JB de 21/04/2007 confessou: ”O fundamental é reconhecer que a vida é injusta e só de mãos dadas, como irmãos e irmãs, podemos vive-la melhor”.

Seu comunismo está muito próximo daquele dos primeiros cristãos, referido nos Atos dos Apóstolos nos capítulos 2 e 4. Ai se diz que "os cristãos colocavam tudo em comum e que não havia pobres entre eles”. Portanto, não era um comunismo ideológico, mas ético e humanitário: compartilhar, viver com sobriedade, como sempre viveu, despojar-se do dinheiro e ajudar a quem precisasse. Tudo deveria ser comum. Perguntado por um jornalista se aceitaria a pílula da eterna juventude, respondeu coerentemente: "aceitaria se fosse para todo mundo; não quero a imortalidade só para mim”.

Um fato ficou-me inesquecível. Ocorreu nos inícios dos anos 80 do século passado. Estando Oscar em Petrópolis, me convidou para almoçar com ele. Eu havia chegado naquele dia de Cuba, onde, com Frei Betto, durante anos dialogávamos com os vários escalões do governo (sempre vigiados pelo SNI), a pedido de Fidel Castro, para ver se os tirávamos da concepção dogmática e rígida do marxismo soviético. Eram tempos tranquilos em Cuba que, com o apoio da União Soviética, podia levar avante seus esplêndidos projetos de saúde, de educação e de cultura. Contei que, por todos os lados que tinha ido em Cuba, nunca encontrei favelas mas uma pobreza digna e operosa. Contei mil coisas de Cuba que, segundo frei Betto, na época era "uma Bahia que deu certo”. Seus olhos brilhavam. Quase não comia. Enchia-se de entusiasmo ao ver que, em algum lugar do mundo, seu sonho de comunismo poderia, pelo menos em parte, ganhar corpo e ser bom para as maiorias.

Qual não foi o meu espanto quando, dois dias após, apareceu na Folha de São Paulo, um artigo dele com um belo desenho de três montanhas, com uma cruz em cima. Em certa altura dizia: "Descendo a serra de Petrópolis ao Rio, eu que sou ateu, rezava para o Deus de Frei Boff para que aquela situação do povo cubano pudesse um dia se realizar no Brasil”. Essa era a generosidade cálida, suave e radicalmente humana de Oscar Niemeyer.

Guardo uma memória perene dele. Adquiri de Darcy Ribeiro, de quem Oscar era amigo-irmão, uma pequeno apartamento no bairro do Alto da Boa-Vista, no Vale Encantando. De lá se avista toda a Barra da Tijuca até o fim do Recreio dos Bandeirantes. Oscar reformou aquele apartamento para o seu amigo, de tal forma que de qualquer lugar que estivesse, Darcy (que era pequeno de estatura), pudesse ver sempre o mar. Fez um estrado de uns 50 centímetros de altura E como não podia deixar de ser, com uma bela curva de canto, qual onda do mar ou corpo da mulher amada. Aí me recolho quando quero escrever e meditar um pouco, pois um teólogo deve cuidar também de salvar a sua alma.

Por duas vezes se ofereceu para fazer uma maquete de igrejinha para o sítio onde moro em Araras em Petrópolis. Relutei, pois considerava injusto valorizar minha propriedade com uma peça de um gênio como Oscar. Finalmente, Deus não está nem no céu nem na terra, está lá onde as portas da casa estão abertas.

A vida não está destinada a desaparecer na morte, mas a se transfigurar alquimicamente através da morte. Oscar Niemeyer apenas passou para o outro lado da vida, para o lado invisível. Mas o invisível faz parte do visível. Por isso ele não está ausente, mas está presente, apenas invisível. Mas sempre com a mesma doçura, suavidade, amizade, solidariedade e amorosidade que permanentemente o caracterizou. E de lá onde estiver, estará fantasiando, projetando e criando mundos belos, curvos e cheios de leveza.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Para conhecer Outro Israel – o que luta pela paz


ESCRITO POR SERGIO STORCH   


O Brasil teve o privilégio de abrigar, na semana passada, o Fórum Social Mundial pela Palestina Livre (FSMPL), na cidade-berço dessa invenção que está na raiz do pensamento de uma nova cultura política. Lá se vão quase 13 anos desde que criamos este campo de novas possibilidades: “um outro mundo é possível”, conforme o dístico criado em sua fundação. Para alcançar o sentido da importância deste Fórum pela Palestina é importante lembrar a origem do FSM, nascido em 2001 por iniciativa de um grupo de brasileiros, bem conhecidos na nossa sociedade civil, desde a resistência à ditadura militar.

A este Fórum pela Palestina reagiram, apreensivos com possíveis impactos de protestos e manifestações, setores hegemônicos da comunidade judaica brasileira, manifestando pela mídia críticas aos governos federal, estadual e municipal de Porto Alegre, por apoiarem esse evento que, numa visão cartesiana, aparenta desafinação em relação ao discurso de equidistância dos polos do conflito: Israel e Palestina.

É, pois, oportuno registrar a existência de uma outra visão judaica. É bem antiga, remontando aos valores já expressos no Pentateuco, que trouxe em sua legislação o reconhecimento do outro, dos seus direitos e da responsabilidade de cada indivíduo com todos os demais, de seu povo ou estrangeiros. “V’ahavta l’reacha kamocha” (amai ao próximo como a ti mesmo) está nos ensinamentos da Torá, conforme o Rabi Akiva, ícone da ética judaica. Não há nada a temer. Rancor contra Israel haverá, podendo por vezes resvalar para chamamentos à destruição do país e para o antissemitismo rasteiro, como derivação de ignorância que existe de forma recíproca também da parte dos que apoiam incondicionalmente Israel. Todos conhecemos muito pouco de nossas matrizes e histórias, tanto das nossas quanto as dos outros povos. Aos que criticam o FSMPL e os governos que o acolhem, é bom estudarem um pouco.

E aqui vão algumas informações úteis para os que a ele se opõem precipitadamente ao FSMPL. As comunidades judaicas em todo o mundo enfrentam fissuras na pretensa unidade que lideranças institucionais procuram aparentar, tentando cobrir o sol com a peneira. Em Israel, o debate livre pela imprensa é a maior evidência.

Há um abismo, separando ao menos metade da sociedade israelense (que, segundo as pesquisas, apoiam a solução de Dois Estados) dos seguidores da coalizão de direita que está no governo há três anos. É bom lembrar que, em mandato anterior (1996-1999), o primeiro-ministro Benyamin Netanyahu já havia atentado contra os acordos celebrados em Oslo (1993), com o palestino Yasser Arafat, por seus adversários israelenses, Itzhak Rabin e Shimon Peres (atual presidente do país, de oposição). As seguidas procrastinações de Netanyahu, e as provocações feitas por ele, ao ampliarem os assentamentos de colonos judeus em territórios palestinos ocupados, fizeram vencer, à época, o prazo de cinco anos fixado em Oslo para um acordo de paz permanente.

Surgiu, em consequência, uma insatisfação crescente entre as massas palestinas, que explodiu, já de forma incontrolável, na segunda Intifada, no ano 2000. O primeiro-ministro é um personagem de convicções inabaláveis e perseverantes, que não hesita em abusar da memória de tragédias históricas sofridas pelos judeus para justificar uma estratégia míope, baseada tão somente na força militar.

A extensão do abismo que existe em Israel, e não é novo, pode ser apreciada por este trecho de uma carta de Leah Rabin (viúva de Itzhak Rabin, assassinado por um extremista judeu em 1995), na época do primeiro mandato do atual chefe de governo: “Netanyahu é um mentiroso corrupto que está destruindo tudo que nossa sociedade tem de bom”. (...) Netanyahu e seu governo não representam uma unidade dos judeus israelenses, nem tampouco dos judeus na maior comunidade da Diáspora, a estadunidense”.

Há um olhar judaico em Israel que busca – e encontra – o parceiro palestino. Ao contrário da propaganda desse governo manipulador do medo e da insegurança, que martela a ideia de que não existem parceiros para a paz, há inúmeros exemplos de parcerias. O escritor e jornalista israelense Amos Oz colabora com o filósofo palestino Sari Nusseibeh, reitor da universidade Al-Quds. O músico Daniel Barenboim teve como parceiro o maior intelectual palestino, Edward Said, para a formação da sua orquestra de jovens israelenses e árabes, hoje mantida pelo governo da Andaluzia, na Espanha. A cantora israelense Noa canta com sua amiga palestina Mira Awad. Há ex-soldados israelenses e ex-militantes palestinos da luta armada que se encontram no Combatants for Peace. O líder de direitos humanos Edward Kaufman (que levamos no dia 20/11 ao Itamaraty) leciona com um parceiro palestino sobre direitos humanos e resolução de conflitos (seu amigo Manuel Hassassian é embaixador da Autoridade Palestina na Inglaterra).

Nada mais falso do que a mistificação de que não há parceiros para a paz. Há 130 ONGs em que atuam ombro a ombro israelenses e palestinos na defesa dos direitos violentados pelas políticas dos governos israelenses, desde a detenção de prisioneiros sem culpa formada por tempo indeterminado, até a desobediência civil de mulheres israelenses que regularmente contrabandeiam mulheres palestinas para tomarem banho de mar em Tel Aviv ou Haifa.

Falemos da maior comunidade da Diáspora judaica, a estadunidense, cuja população (5 milhões) não é muito menor que a judaica israelense (6 milhões). A tradição liberal dessa comunidade, que teve líderes marchando ao lado de Martin Luther King nos anos 1960 e combatendo à guerra do Vietnã nos anos 70, se expressa hoje em organizações como o Jewish Voice for Peace(do qual rabinos participaram das flotilhas que chamaram a atenção do mundo para o bloqueio israelense a Gaza), o Tikkun (liderado pelo rabino Michael Lerner, que é ativista pela paz desde a resistência à guerra do Vietnã), e o JStreet, um lobby judaico no Congresso que se opõe ao mal-denominado “lobby sionista”, a AIPAC (The American Israel Public Affairs Committee).

Vale destacar que este último, embora financeiramente forte, é tão pouco representativo da maioria da comunidade judaica que sua campanha ostensiva por Mitt Romney nas últimas eleições (doação US$ 100 milhões só da parte do seu presidente, Sheldon Adelson, magnata dos cassinos de Las Vegas) foi respondida pela maioria, de 70%, do voto judaico em favor de Barack Obama. Esse lobby vem corroendo por dentro a democracia israelense, com o investimento em mídia impressa que hoje domina 90% dos leitores do país. E é abertamente aliado a outra força das mais retrógradas da sociedade estadunidense, o chamado “sionismo cristão”, dos fundamentalistas evangélicos, no qual atuam figuras do Tea Party que, como o ex-candidato Glenn Beck, vão a Israel para incitar à distância os seus seguidores nos Estados Unidos (vercomentário na imprensa israelense. A nata da extrema direita norte-americana tem a AIPAC como instrumento. Não pode ser denominada “lobby sionista” ou “lobby judaico”, pois nessa complexa sociedade há revistas progressistas de um século ou mais – The NationForward etc. –, povoadas por judeus destacados).

O anti-lobby JStreet (abreviação de Jewish Street, ou seja, a “rua judaica”) está no seu quarto ano de existência, e tem realizações constantes ao trazer para contato com congressistas e secretários de Obama pessoas eminentes de Israel, que incluem até mesmo generais e oficiais de alto escalão dos serviços de inteligência. Comparecem para demonstrar à opinião pública e aos políticos dos EUA a importância de pressionar o governo israelense no sentido de mudar de direção.

A arrogância dos próceres da diplomacia israelense, hoje chefiada por um ministro que lidera a extrema-direita no país, e visto por muitos embaixadores como destruidor de competências que Israel chegou a ter com figuras lendárias como Abba Eban, vai a ponto de pressionarem governos do Ocidente a não reconhecerem aos palestinos sequer o direito de fazerem parte de instituições como a Unesco. Atribuem ao terrorismo palestino uma natureza cultural dos muçulmanos, enquanto fecham aos palestinos os caminhos do combate não violento pelos seus direitos.

Vale ressaltar a linguagem eivada de ironia e intervencionismo, como a expressa nesta frase de um adido israelense ao Uruguai, por ocasião da celebração de acordo do Mercosul com a Autoridade Palestina: “o acordo do bloco do Cone Sul com a Palestina não é a melhor forma de estimular o processo de paz no Oriente Médio”. Qual seria a alternativa? Aprofundar oapartheid na zona C da Cisjordânia, com a construção de mais colônias de ocupação, enquanto não se dão licenças de construção para os moradores palestinos?

A realização bem-sucedida do Fórum Social Mundial pela Palestina Livre abre, no Brasil, uma oportunidade rara. Permite que brasileiros — de origem judaica, árabe ou qualquer outra — proponham um novo olhar: uma mirada de ação afirmativa que, em vez de recusar os direitos de um ou de outro lado, afirme e defenda esses direitos.

A primeira ação, que pode ter efeitos contínuos e duradouros, pode ser a proposta de um tratamento Fair Trade (Comércio Justo) para o azeite de oliva palestino. Chegaria às mesas de brasileiros dispostos a lutar pela paz. Permitiria, além de consumir um produto de qualidade e repleto de simbologia, estimular contatos com os que o produzem — desde o cultivo das oliveiras à industrialização artesanal. Lembraria que a oliveira, símbolo da paz, é plantada por gente comum que zela pela subsistência de suas famílias, e arrancada às vezes por vândalos, ou destruída por bulldozers que fazem a preparação do terreno para construção do muro de separação.

Importar e distribuir o azeite palestino será trazer ao conhecimento do consumidor-cidadão a existência de filmes como Budrus, que mostram a realidade na escala do humano de palestinos que resistem de forma não violenta, apoiados por israelenses com esse outro olhar.

Há inúmeras formas de intervirmos – nós, brasileiros – com uma pauta de ações afirmativas, no programa “Lado a lado: a construção da paz no Oriente Médio – um papel para as Diásporas”, lançado pelo Itamaraty e que certamente contará, mais cedo ou mais tarde, com apoio das lideranças judaicas mais esclarecidas.

Temos uma grande vantagem: é muito mais fácil arregimentarmos num movimento nesse sentido setores crescentes de uma comunidade pequena – e em certos aspectos provinciana, de 100 mil pessoas – do que seria possível na maior comunidade judaica, 50 vezes maior.

A oportunidade está à nossa frente. Em termos judaicos, poder-se-ia dizer que o Fórum Social Mundial está às vésperas de celebrar o seu Bar Mitzvá, o ritual que marca a passagem dos jovens para a responsabilidade moral pelos seus atos, aos 13 anos. Que possamos amadurecer ações afirmativas para celebrá-las no 13º FSM, na Tunísia, em abril de 2013.

Sérgio Storch é consultor em Planejamento, ativista de diversas causas ligadas à transformação social. Escreve em Outras Palavras a coluna Outro Israel

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

2007-2012: 6 anos que abalaram os bancos


O cenário repetiu-se pelo menos trinta vezes na Europa e nos Estados Unidos desde 2008: os poderes públicos estiveram sempre (e sistematicamente) ao serviço dos bancos privados, financiando o seu resgate através do endividamento público. Primeira parte do artigo "Bancos contra povos: os bastidores de um jogo manipulado!", de Eric Toussaint.
Foto URBAN ARTefakte/Flickr

Desde 2007-2008, os grandes bancos centrais (BCE, Banco da Inglaterra, a Fed nos EUA, o Banco da Suíça) têm como prioridade absoluta tentar evitar o colapso do sistema bancário privado. Contrariamente ao discurso dominante, a principal ameaça para os bancos não é a suspensão do pagamento da dívida soberana pelo Estado |1| soberano. Desde 2007, nenhuma das falências bancárias foi causada por essa falta de pagamento. Nenhum dos resgates bancários levados a cabo pelos Estados teve como causa a suspensão de pagamentos por parte de Estados sobreendividados. Desde 2007 o que ameaça os bancos são as dívidas privadas que os bancos foram gradualmente fomentando devido à grande desregulação iniciada em finais dos anos setenta e concluída nos anos noventa. Os balanços dos bancos privados estão sempre contaminados por ativos |2| duvidosos: desde ativos tóxicos que são bombas ao retardador até ativos ilíquidos (que não podem ser vendidos, nem passados, nos mercados financeiros), passando por ativos cujo valor é bastante superestimado nos balanços bancários. A venda e a depreciação de ativos que os bancos têm inserido nas suas contas, com o objectivo de reduzirem o peso desses ativos explosivos, não são suficientes. Uma parte significativa desses ativos depende de um financiamento a curto prazo (concedido ou garantido pelos poderes públicos, com base no dinheiro dos contribuintes) para se manter à tona |3| e para fazer face às dívidas de curto prazo. Foi o que aconteceu com o banco franco-belga Dexia, um verdadeiro hedge fund de grande dimensão, que, em quatro anos, esteve três vezes à beira da falência: em outubro de 2008, em outubro de 2011 |4| e em outubro de 2012 |5|. Durante o episódio mais recente, que teve início em novembro de 2012, os estados francês e belga concederam uma ajuda de 5,5 mil milhões (53% do valor foi garantido pela Bélgica) para recapitalizar o Dexia SA, sociedade financeira moribunda, que viu desaparecer os seus próprios fundos. De acordo com Le Soir: «os capitais próprios do Dexia-casa-mãe passaram de 19,2 mil milhões para 2,7 mil milhões de euros entre o final de 2010 e o final de 2011. E a nível de grupo, o total dos fundos próprios foi negativo (-2,3 mil milhões em 30 de junho de 2012)» |6|. No final de 2011, as dívidas a exigir de imediato ao Dexia SA ascendiam a 413 mil milhões de euros e os montantes devidos em termos de contratos de derivados eram superiores a 461 mil milhões de euros. A soma desses dois valores era superior a mais de duas vezes e meia o PIB da Bélgica! No entanto, os dirigentes do Dexia, o belga vice-primeiro-ministro Didier Reynders e os principais meios de comunicação social ainda alegam que o problema do Dexia SA é em grande parte causado pela crise da dívida soberana no sul da zona do euro. A verdade é que os créditos do Dexia SA em relação à Grécia não excediam 2 mil milhões de euros em Outubro de 2011, ou seja, duzentas vezes menos do que a dívida a pagar de imediato. Em outubro de 2012, as ações do Dexia valiam cerca de 0,18 euros ou 100 vezes menos do que em setembro de 2008. Apesar de tudo, os estados francês e belga decidiram, mais uma vez, salvar esse « mau banco», aumentando de repente a dívida pública dos seus países. Em Espanha, a quase falência do Bankia foi também causada por acordos financeiros duvidosos e não por qualquer tipo de incumprimento por parte do Estado. O cenário repetiu-se pelo menos trinta vezes na Europa e nos Estados Unidos desde 2008: os poderes públicos estiveram sempre (e sistematicamente) ao serviço dos bancos privados, financiando o seu resgate através do endividamento público.
De volta ao início da crise em 2007
A construção gigantesca de dívidas privadas começou a ruir com a explosão da bolha especulativa no mercado imobiliário dos Estados Unidos (seguido pelo mercado imobiliário da Irlanda, do Reino Unido e de Espanha,...). A bolha imobiliária explodiu nos Estados Unidos quando o preço das habitações construídas em grandes quantidades começou a cair, porque cada vez mais as casas não tinham compradores.
As explicações truncadas e enganadoras sobre a crise que eclodiu nos Estados Unidos em 2007, que teve um enorme efeito de contágio principalmente na Europa Ocidental, prevaleceram nas explicações dadas pelos principais meios de comunicação social. Com regularidade, em 2007 e durante boa parte de 2008, explicou-se à opinião pública que a crise tinha começado nos Estados Unidos, porque os pobres estavam muito endividados por terem comprado casas que não eram capazes de pagar. O comportamento irracional dos pobres foi apontado como tendo sido o causador da crise. A partir de finais de setembro de 2008, após a falência do Lehman Brothers, o discurso dominante mudou e começou-se a apontar o dedo às ovelhas negras que no mundo das finanças tinham pervertido o funcionamento virtuoso do capitalismo. Mas mantêm-se as mentiras ou as explicações truncadas, que continuaram a circular. Passou-se dos pobres responsáveis pela crise para as maçãs podres da classe capitalista: Bernard Madoff, que montou um golpe 50 mil milhões de dólares, ou Richard Fuld, o patrão do Lehman Brothers.
As premissas da crise remontam a 2006, quando se inicia nos Estados Unidos a queda dos preços do imobiliário, causada pela superprodução que foi provocada pela bolha especulativa, que, inflacionando os preços do imobiliário, levou o sector da construção a aumentar exageradamente a sua actividade em relação à procura existente. Foi a queda dos preços do imobiliário que levou a um aumento do número de famílias incapazes de pagarem as mensalidades das suas hipotecas subprimes. De facto, nos Estados Unidos, as famílias têm a oportunidade e o costume, quando os preços dos imóveis sobem, de refinanciar as suas hipotecas, após dois ou três anos, a fim de obterem condições mais favoráveis (em particular no sector subprime, a taxa inicial a dois ou três anos é baixa e fixa e ronda os 3%, mas depois dispara e torna-se variável no terceiro ou quarto ano). Dado que os preços do imobiliário começaram a cair em 2006, as famílias que utilizaram empréstimos subprime deixaram de ser capazes de refinanciar a sua hipoteca favoravelmente. Os incumprimentos começaram a aumentar de forma acentuada a partir do início de 2007, o que provocou a falência de 84 empresas de hipotecas nos Estados Unidos, entre janeiro e agosto de 2007.
Apesar de a crise ser explicada com frequência de forma simplista pela explosão de uma bolha especulativa, na realidade, a causa deve ser procurada tanto no sector produtivo como ao nível da especulação financeira. É certo que o facto de a bolha ter sido criada, e de acabar por rebentar, apenas multiplica os efeitos da crise que começou no sector produtivo. Todos os empréstimos subprime e produtos estruturados, criados desde meados dos anos noventa, entraram em colapso, o que teve efeitos terríveis sobre a produção em vários sectores da economia real. As políticas de austeridade ampliaram ainda mais o fenómeno que gera depois o período depressivo e de recessão, que se arrasta e mantém como refém a economia dos países industrializados.
A crise do imobiliário nos Estados Unidos e a crise bancária que se lhe seguiu provocaram um enorme efeito de contágio a nível internacional, levando muitos bancos europeus a investirem de forma massiva em produtos estruturados e derivados norte-americanos. Desde os anos noventa, o crescimento dos Estados Unidos e de várias economias europeias foi apoiado por uma hipertrofia do sector financeiro privado e um aumento muito grande das dívidas privadas: endividamento das famílias |7|, dívida das empresas financeiras e não-financeiras. Ao contrário, as dívidas públicas tenderam a diminuir entre a segunda metade dos anos noventa e os anos de 2007-2008.
Hipertrofia do sector financeiro privado, portanto. O volume de ativos dos bancos privados europeus, em relação ao produto interno bruto, cresceu de maneira exponencial a partir da década de noventa, atingindo, na União Europeia, três vezes e meia o PIB dos 27 países membros da UE em 2011 |8|. Na Irlanda, em 2011, os ativos dos bancos representavam oito vezes o produto interno bruto do país.
As dívidas dos bancos privados |9| da zona euro representam também três vezes e meia o PIB da zona. As dívidas do sector financeiro britânico atingem máximos em relação ao PIB: chegam a ser onze vezes superiores, representando a dívida pública cerca de 80% do PIB.
A dívida bruta dos Estados da zona do euro representava 86% do PIB dos 17 países em 2011 |10|. A dívida pública grega representava 162% do PIB grego em 2011. Por seu turno, as dívidas do sector financeiro representam 311% do PIB, ou seja, o dobro. A dívida pública espanhola atingiu 62% do PIB em 2011. No entanto, as dívidas do sector financeiro atingiram 203%, ou seja, o triplo da dívida pública.
Um pouco de história: a criação de uma regulação financeira rigorosa, na sequência da crise de 1930
O colapso de Wall Street em outubro de 1929, a enorme crise bancária de 1933 e o prolongado período de crise económica nos Estados Unidos e na Europa, na década de trinta, levaram o presidente Franklin Roosevelt, e de seguida a Europa, a regular fortemente o sector financeiro para evitarem a repetição de graves crises bolsistas e bancárias. Consequência: durante os 30 anos que seguiram a Segunda Guerra Mundial, o número de crises bancárias foi mínimo. É o que mostram dois economistas neoliberais norte-americanos, Carmen M. Reinhart e Kenneth S. Rogoff, num livro publicado em 2009, intitulado Desta Vez É Diferente. Oito Séculos de Loucura Financeira. Kenneth Rogoff foi economista-chefe do FMI e Reinhart Carmen, professor universitário, é conselheiro do FMI e do Banco Mundial. De acordo com esses dois economistas, que são tudo menos favoráveis a questionar o capitalismo, a quantidade muito reduzida de crises bancárias explica-se principalmente «pela repressão dos mercados financeiros nacionais (em diferentes níveis), e por um recurso massivo ao controlo de capitais, durante os anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial» |11|.
Uma das medidas fortes tomadas por Roosevelt e pelos governos da Europa (nomeadamente sob a pressão de mobilizações populares na Europa, que surgiram após a libertação) consistiu em limitar e regular, de forma estrita, o uso que os bancos podiam fazer do dinheiro das pessoas. Esse princípio de protecção dos depósitos levou à distinção entre bancos comerciais e bancos de investimento, criados pela lei norte-americana Glass-Steagall Act, que foi a mais conhecida, tendo sido aplicada, com algumas variações, nos países europeus.
Devido a essa separação, só os bancos comerciais podiam receber depósitos do público, que beneficiavam de uma garantia do Estado. Paralelamente, o seu campo de atividade tinha ficado limitado à concessão de empréstimos a particulares e a empresas e excluía a emissão de títulos, de ações e de outros instrumentos financeiros. Os bancos de investimento deviam, por sua vez, ir buscar os seus recursos aos mercados financeiros, para poderem emitir títulos, ações e outros instrumentos financeiros.
A desregulação financeira e a viragem neoliberal
A viragem neoliberal de finais da década de setenta pôs em causa essas regulações. Após cerca de vinte anos, a desregulação bancária e financeira ficou concluída. Como revelam Kenneth Rogoff e Reinhart Carmen, as crises bancárias e bolsistas multiplicaram-se a partir dos anos oitenta e atingiram níveis cada vez mais preocupantes.
Segundo o modelo tradicional, herdado do período em que existia regulação, os bancos avaliam e assumem o risco, ou seja, analisam os pedidos de crédito, decidem ou não satisfazê-los e, uma vez os empréstimos concedidos, registam-nos nos seus balanços até ao final do prazo do empréstimo (estamos a falar do modelo originate and hold – «originar e manter»).
Aproveitando a tendência de profunda desregulação, os bancos abandonaram o modelo «originar para manter» com o objectivo de aumentarem o rendimento dos fundos próprios. Nesse sentido, os bancos inventaram novos procedimentos, em especial, a titularização, que significa transformar os créditos bancários em títulos financeiros. A finalidade era simples: consistia em não registar nas contas dos bancos os créditos e os respectivos riscos. Os bancos transformaram esses créditos em títulos, os denominados produtos financeiros estruturados, que vendiam a outros bancos e a outras instituições financeiras privadas. Estamos falar de um novo modelo bancário designado originate to distribute, «originar para distribuir», também chamado originate repackage and sell, que consiste em conceder o crédito, titularizá-lo e vendê-lo. Para o banco, a vantagem é dupla: reduz o risco porque os créditos concedidos baseiam-se em ativos e, por outro lado, dispõe de meios suplementares para poder especular.
A desregulação permitiu ao sector financeiro privado, nomeadamente aos bancos, acionar com frequência o chamado efeito de alavancagem. Xavier Dupret descreve, com clareza, o fenómeno: «O mundo bancário envididou-se muito, nos últimos anos, devido ao chamado efeito de alavancagem. A alavancagem significa recorrer ao endividamento para aumentar a rentabilidade sobre o capital próprio. E para funcionar, é necessário que a taxa de rentabilidade do projeto selecionado seja superior às taxas de juro a pagar sobre o montante que se pediu emprestado. Os efeitos de alavancagem tornaram-se cada vez mais importantes ao longo do tempo. É evidente que isso gerou problemas. Na primavera de 2008, os bancos de investimento de Wall Street desencaderam efeitos de alavancagem que oscilavam entre 25 e 45 (para um dólar de fundos próprios, pediam emprestado entre 25 e 45 dólares). O Merrill Lynch, por exemplo, tinha um efeito de alavancagem de 40. Essa situação tornou-se obviamente explosiva, porque uma instituição que tem uma alavancagem de 40 para 1 vê os seus fundos próprios caírem 2,5% (1/40) do valor dos ativos adquiridos.» |12|
Devido à desregulação, os bancos puderam desenvolver atividades que envolviam grandes volumes de financiamento (e, portanto, de dívida), sem registarem isso nos seus balanços. As operações fora do balanço atingiram tal dimensão que, em 2011, o volume da atividade em causa excedia os 67 biliões de dólares (o que equivale aproximadamente à soma do PIB de todos os países do mundo): é o que se chama sistema de bancos-sombra, o shadow banking |13|. Quando as operações fora do balanço provocam perdas avultadas, isso afeta, mais cedo ou mais tarde, a saúde dos bancos que levaram a cabo essas operações. São, sobretudo, os grandes bancos que dominam essa atividade sombra. A ameaça de falência leva os Estados a irem em seu socorro, procedendo a recapitalizações. Apesar de os balanços oficiais dos bancos registarem uma diminuição de volume, desde o início da crise em 2007-2008, o volume das operações fora de balanço, o shadow banking, não seguiu a mesma tendência. Depois de ter caído entre 2008 e 2010, voltou em 2011 e 2012 ao nível de 2006-2007, o que é um sintoma claro da perigosidade da situação das finanças privadas mundiais. De repente, o raio de ação nacional e internacional das instituições públicas, que têm a obrigação, para usar o vocabulário deles, de levar a finança a assumir um comportamento mais responsável, é muito limitado. Os reguladores não disponibilizam os meios necessários para que se conheça a actividade real dos bancos que eles têm o dever de controlar.
O Conselho de Estabilidade Financeira (CEF), o órgão instituído pelo G20 e encarregue de supervisionar a estabilidade financeira mundial, divulgou os números de 2011. «A dimensão do shadow banking, escapando a todo tipo de regulação, é de 67 biliões de dólares, de acordo com o relatório que estuda 25 países (90% dos ativos financeiros mundiais). São mais 5-6 biliões do que em 2010. Esse sector “paralelo” equivale, por si só, a metade do volume dos ativos totais dos bancos. Tomando por referência o Produto Interno Bruto dos países, a banca sombra prospera em Hong Kong (520%), Holanda (490%), Reino Unido (370%), Singapura (260%) e Suíça (210%). Mas, em termos absolutos, os Estados Unidos continuam em primeiro lugar com um sector paralelo de 23 biliões de ativos em 2011, seguido da zona euro (22 biliões) e do Reino Unido (9 biliões).» |14|
Uma grande parte das transações financeiras escapa totalmente ao controlo oficial. Como foi referido anteriormente, a dimensão da actividade dos bancos sombra representa metade do volume dos ativos totais dos bancos! É preciso também avaliar o mercado fora de bolsa (OTC*) – isto é, o mercado que não é controlado pelas autoridades reguladoras dos mercados – os produtos financeiros derivados. O volume de produtos derivados cresceu de forma exponencial entre os anos noventa e os anos 2007-2008. Tendo diminuído ligeiramente no início da crise, o valor nocional dos contratos de derivativos no mercado fora de bolsa atingiu, em 2011, a soma astronómica de 650 biliões de dólares (650 000 000 000 000 $), cerca de 10 vezes o PIB mundial. O volume do segundo semestre de 2007 foi ultrapassado e o do primeiro semestre de 2008 está em vias... os swaps de taxas de juros representam 74% do total, os derivados sobre os mercados de divisas representam 8%, os Credit default swaps (CDS) 5%, os derivados sobre os mercados de ações de 1%, o resto reparte-se por múltiplos produtos.
Após 2008 os resgates bancários não geraram comportamentos mais responsáveis
A crise financeira de 2007 viu os bancos, ainda que culpados por má conduta e por assumirem posições arriscadas e imprudentes, receberem injeções maciças de fundos por intermédio de vários e caros planos de resgate. Num estudo bem documentado |15|, dois investigadores tentaram verificar «se as operações públicas de resgate foram seguidas de uma maior redução do risco na concessão de novos empréstimos pelos bancos resgatados, comparativamente aos bancos que não foram resgatados». Com esse objectivo, os autores analisaram os balanços e os empréstimos sindicalizados (trata-se de créditos concedidos a uma empresa por vários bancos) relativos a 87 grandes bancos comerciais internacionais. Os autores verificaram que «os bancos ajudados continuaram a conceder empréstimos sindicalizados mantendo o risco», adiantando que «os empréstimos sindicalizados dos bancos que receberam ajuda eram, depois do resgate, mais arriscados do que antes da crise, comparando com as instituições que não receberam ajuda». Em vez de serem um remédio e uma proteção eficaz contra os caprichos dos bancos, os planos de resgate dos Estados tornaram-se, pelo contrário, muitos deles, um forte incentivo à continuação e intensificação das práticas pecaminosas. Na verdade, «a perspectiva de um apoio por parte do Estado pode constituir um álibi moral e pode levar os bancos a aumentarem o risco». |16|
Em suma, a grave crise das dívidas privadas, provocada pelo comportamento irresponsável dos grandes bancos, levou os dirigentes norte-americanos e europeus a irem em seu socorro, utilizando fundos públicos. A sirene lancinante da crise das dívidas soberanas pôde, então, ser acionada para impor sacrifícios brutais aos povos. A desregulação financeira dos anos noventa foi terreno fértil para esta crise com consequências sociais dramáticas. Enquanto não regularem a finança internacional, os povos continuarão subjugados. A luta deve ser intensificada o mais depressa possível.

Tradução Maria da Liberdade. Publicado na página do CADTM
O autor agradece a Patrick Saurin, Daniel Munevar, Damien Millet e Virginie de Romanet pela ajuda que deram na elaboração do artigo.
Notas
|1| A dívida soberana é a dívida de um Estado e dos organismos públicos que lhe estão associados.
|2| Em geral o termo «ativo» significa um bem que possui um valor realizável ou que pode gerar rendimentos. Por outro lado, entende-se por «passivo» a parte do balanço que é composta pelos recursos que uma empresa possui (capitais próprios gerados pelos associados, provisões para riscos e encargos, dívidas).Ver:http://www.banque-info.com/lexique-....
|3| Muitos bancos dependem de financiamento a curto prazo, porque têm grande dificuldade em emprestar ao sector privado a custos sustentáveis (ou seja, o mais baixo possível), em especial sob a forma de emissão de títulos de dívida. Como veremos a seguir, a decisão do BCE de emprestar um pouco mais de um bilião de euros a uma taxa de 1%, por um prazo de três anos, a mais de 800 bancos europeus funcionou como tábua de salvação para muitos deles. Na sequência, devido a esses empréstimos do BCE, os bancos mais sólidos tiveram de novo a oportunidade de emitir títulos de dívida para se financiarem. Isto não teria sido possível, caso o BCE não tivesse assumido o papel de credor de último recurso durante um período de três anos.
|4| Sobre o episódio de outubro de 2011, ver Eric Toussaint, «Krach de Dexia : un effet domino en route dans l’UE ?», 4 de outubro de 2011
|5| Sobre o episódio de outubro de 2012, que levou a um novo resgate sob a forma de recapitalização, ver Eric Toussaint, «Fallait-il à nouveau injecter de l’argent dans Dexia ?», Le Soir, 2 de novembro de 2012; ver também: CADTM, «Pour sortir du piège des recapitalisations à répétition, le CADTM demande l’annulation des garanties de l’Etat belge aux créanciers du groupe Dexia», 31 de outubro de 2012; CADTM, «Pourquoi le CADTM introduit avec ATTAC un recours en annulation de l’arrêté royal octroyant une garantie de 54 milliards d’euros (avec en sus les intérêts et accessoires) à Dexia SA et Dexia Crédit Local SA», 22 de dezembro de 2011
|6| Pierre-HenriThomas, Bernard Demonty, Le Soir, edição de 31 de outubro de 2012, p. 19, http://archives.lesoir.be/dexia-ser...
|7| As dívidas das famílias incluem as dívidas que os estudantes americanos contraíram para pagar os seus estudos. As dívidas dos estudantes nos Estados Unidos atingiram o montante colossal de um bilião de dólares, isto é, mais do que o total das dívidas externas públicas da América Latina (460 mil milhões de dólares), de África (263 mil milhões) e do Sul da Ásia (205 mil milhões). Para ver o montante de dívida desses «continentes»: Les Chiffres de la dette 2012, tabela 7, p. 9. Download
|8| Ver: Damien Millet, Daniel Munevar, Eric Toussaint, Les Chiffres de la dette 2012, tabela 30, p. 23. A tabela baseia-se em dados fornecidos pela Federação europeia do sector bancário, http://www.ebf-fbe.eu/index.php?pag.... Ver também Martin Wolf, «Liikanen is at least a step forward for EU banks», Financial Times, edição de 5 de Outubro de 2012, p. 9.
|9| As dívidas dos bancos não devem ser confundidas com os seus ativos. Elas fazem parte do seu «passivo». Ver mais a cima a nota de rodapé sobre «ativo» e «passivo» dos bancos.
|10| Ver Damien Millet, Daniel Munevar, Eric Toussaint, Les Chiffres de la dette 2012, tabela 24, p. 18. Na tabela utiliza-se a base de dados de Morgan Stanley, assim como: http://www.ecb.int/stats/money/aggr... e http://www.bankofgreece.gr/Pages/en...
|11| Carmen M. Reinhart, Kenneth S. Rogoff, Cette fois, c’est différent. Huit siècles de folie financière, Pearson, Paris, 2010. A edição original foi publicada em 2009 pela Princeton University Press.
|12| Xavier Dupret, «Et si nous laissions les banques faire faillite ?», 22 de agosto de 2012, http://www.gresea.be/spip.php?artic...
|13| Ver: Daniel Munevar, «Les risques du système bancaire de l’ombre», 21 avril 2012, Ver também: Tracy Alloway, «Traditional lenders shiver as shadow banking grows», Financial Times, 28 de dezembro de 2011.
|14| Ver : Richard Hiault, « Le monde bancaire « parallèle » pèse 67.000 milliards de dollars », Les Echos, edição de 18 de novembre de 2012, http://www.lesechos.fr/entreprises-... *Nota de tradução: OTC ou Over the Counter em inglês.
|15| Michel Brei e Blaise Gadanecz, “Have bailouts made banks’loan book safer ?”, Bis Quaterly Review, setembro de 2012, pp. 61-72. As citações deste parágrafo são tiradas deste artigo.
|16| Ibid.
Eric Toussaint, professor na Universidade de Liège, é presidente do CADTM Bélgica (Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo) e membro do conselho científico da ATTAC França. Escreveu com Damien Millet, AAA. Audit Annulation Autre politique, Seuil, Paris, 2012.

Sobre o/a autor/a

Eric Toussaint
Politólogo. Presidente do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo