terça-feira, 14 de maio de 2013

A REVOLUÇÃO FRANCESA DE MAIO DE 1968





Alan Woods
Alan Woods estava na França em maio de 68 buscando contatar trabalhadores e jovens. Neste relato-análise, publicado pela primeira vez em maio de 2008, ele fala do que viu nesta que foi a maior greve geral da história e que colocou o poder praticamente nas mãos da classe trabalhadora.
Previsão e assombro
O Maio de 1968 foi a maior greve geral da história. Este poderoso movimento aconteceu no ponto culminante do auge econômico capitalista do pós-guerra. Naquele momento, como agora, a burguesia e seus apologistas se vangloriavam, já que, para eles, as revoluções e a luta de classes eram coisas do passado. Então, quando chegam os acontecimentos franceses de maio de 1968, parecem, para eles, relâmpagos em um límpido céu azul. Também a esquerda foi pega de surpresa, já que a maior parte dela havia descartado a classe trabalhadora européia como força revolucionária.
Em maio de 1968, The Economist publicou um suplemento especial sobre a França para comemorar os dez anos do governo gaullista. Neste suplemento, Norman Macrae elogiava os êxitos do capitalismo francês, destacava que os franceses tinham níveis de vida mais altos que os britânicos, comiam mais carne, possuíam mais automóveis e outras coisas mais. Citava a “grande vantagem nacional” da França sobre seu vizinho do outro lado do canal: seus sindicatos eram “pateticamente fracos”. Mal havia secado a tinta do artigo de Macrae e a classe trabalhadora francesa assombrou o mundo com uma insurreição social sem precedentes nos tempos modernos.
Os acontecimentos de maio não foram previstos pelos estrategistas do capital, nem na França nem em nenhum outro lugar. Não foram previstos pelos dirigentes estalinistas nem pelos reformistas. As damas e cavalheiros intelectuais, que se consideravam marxistas (a maioria deles passou décadas falando de “luta armada”, de insurreição, etc.), não só deixaram de prever o movimento dos trabalhadores franceses, eles simplesmente negavam qualquer possibilidade de movimento dos trabalhadores.
Tomemos um dos “teóricos” marxistas acadêmicos, André Gorz. Este indivíduo escreveu em um artigo o seguinte: “no futuro previsível não haverá nenhuma crise do capitalismo europeu radical o suficiente para levar as massas de trabalhadores a greves gerais revolucionárias ou insurreições armadas em apoio a seus interesses vitais” (A. Gorz, Reform and Revolution, Publicado em The Socialist Register 1968, ênfase minha). Estas linhas foram publicadas em meio à maior greve geral revolucionária da história.
Gorz não era o único que descartava a luta revolucionária da classe trabalhadora. O “grande marxista” chamado Ernest Mandel, apenas um mês antes destes grandes acontecimentos, falou em uma reunião em Londres. Durante sua intervenção, falou sobre tudo o que há abaixo do sol, mas não dedicou uma só palavra à situação da classe trabalhadora francesa. Quando na sala uma ou duas pessoas lhe perguntaram sobre esta contradição, sua resposta foi: “os trabalhadores estão aburguesados e ‘americanizados’”; os trabalhadores franceses não protagonizariam nenhum acontecimento deste tipo durante os próximos vinte anos. 
O contexto
O que nenhum destes cavalheiros compreendia era que o longo período de auge capitalista que começou em 1945 transformou a correlação de forças de classe e fortaleceu enormemente a classe trabalhadora européia. Depois da experiência da Comuna de Paris a burguesia francesa passou a ter um medo mortal do crescimento do proletariado e tratou de evitá-lo desenvolvendo uma economia rentista, parasitária muito baseada no capital financeiro, nos bancos e nas colônias. Contudo, depois da Segunda Guerra Mundial a indústria francesa se desenvolveu profundamente e provocou um rápido fortalecimento do proletariado e um declive geral do campesinato.
O desenvolvimento da indústria tornou o proletariado muito mais forte do que nos anos trinta e ainda mais forte do que na época da Comuna de Paris, quando praticamente todos os trabalhadores se encontravam em pequenas empresas. Inclusive, em 1931, quase dois terços de todas as empresas industriais da França não empregavam trabalhadores assalariados e o terço restante empregava menos de dez. Somente 0,5% das empresas industriais empregavam mais de cem trabalhadores.
Na crise revolucionária de 1936 a metade da população francesa obtinha seu sustento da agricultura, hoje a população rural é inferior a 6% da população. Em 1968 a classe assalariada havia crescido não só em número, mas também em termos de seu potencial de luta. Em 1968 essa mudança fundamental pôde ser vista no papel chave desempenhado pelas gigantescas fábricas como a Renault de Flins, com uma planta de 10.500 trabalhadores, dos quais 10.000 participaram dos piquetes e com um mínimo de 5.000 trabalhadores assistindo regularmente às assembléias de greve.
Em 1936, quando a correlação de forças de classe era infinitamente menos favorável, numa situação onde nem um décimo havia avançado, Trotski disse que o PCF e o PSF poderiam ter tomado o poder:
“Se o partido de León Blum realmente fosse socialista, poderia, baseando-se na greve geral, ter derrotado a burguesia, em junho, quase sem guerra civil, com mínimos transtornos e sacrifícios. Porém, o partido de Blum é um partido burguês, o irmão mais novo do podre Radicalismo”. (Leon Trotski. On France, p. 178, ênfase minha).
A correlação de forças em 1968 era imensamente mais favorável. Era possível a transformação pacífica se os dirigentes do PCF tivessem agido como marxistas. É importante insistir neste ponto. Somente a traição dos dirigentes reformistas, que se negaram a tomar o poder quando existiam as circunstâncias mais favoráveis, impediu que os trabalhadores franceses tomassem o poder.
O papel dos estudantes
Os estudantes sempre são um barômetro sensível às tensões que estão se acumulando nas profundezas da sociedade. A onda de manifestações e ocupações estudantis que precederam os acontecimentos de maio foi como um relâmpago que anuncia a tormenta. Nos meses anteriores a maio já havia uma efervescência entre os estudantes que havia se expressado em uma série de manifestações e ocupações.
Frente à onda ascendente de protestos estudantis o reitor da prestigiosa universidade Sorbone decidiu fechá-la, era a segunda vez em seus setecentos anos de história. A primeira vez aconteceu em 1940 quando os nazistas ocuparam Paris. A tentativa da polícia de liberar o pátio da Sorbone em 03 de maio foi a centelha que acendeu o fogo.
A violência irrompeu no Bairro Latino, com o resultado de mais de cem feridos e 596 presos. No dia seguinte os cursos foram suspensos na Sorbone. As principais organizações estudantis, a UNEF e a Snesup, convocaram greves indefinidas. Em 06 de maio houve novos enfrentamentos no Bairro Latino: 422 presos, 345 policiais e uns 600 estudantes ficaram feridos. A repressão provocou uma indignação generalizada.
Os estudantes enfurecidos arrancaram paralelepípedos para arremessar contra os policiais e levantaram barricadas seguindo a boa e velha tradição francesa. Os estudantes das universidades de toda a França saíram em seu apoio.
Na noite de 10 de maio houve uma ampla revolta no Bairro Latino. Os manifestantes levantaram barricadas e a polícia os atacou com grande violência. Os bandidos armados da CRS (polícia anti-distúrbios) tomaram de assalto apartamentos privados e golpearam selvagemente gente simples e corrente, até mesmo uma mulher grávida. Mas, se depararam com uma resistência que não esperavam. Os parisienses de suas janelas bombardearam a polícia com vasos de plantas e outros objetos pesados. Dos 367 hospitalizados, 251 eram policiais. Outras 720 pessoas ficaram feridas e 468 foram presas. Carros foram destruídos ou queimados. O Ministro da Educação insultou os manifestantes: “Ni doctrine, ni foi, ni loi” (Nem doutrina, nem fé, nem lei).
Durante a primeira semana, os dirigentes do PCF haviam menosprezado os estudantes e os dirigentes sindicais e tentaram ignorá-los. L’Humanité publicou um artigo daquele que seria o futuro líder do PCF, George Marchais, com o título: Os falsos revolucionários têm de ser desmascarados. Mas, ante a indignação geral da população e a pressão da base, a burocracia sindical teve que entrar em ação. No dia 11 de maio os principais sindicatos, CGT, CFDT e FEN, convocaram uma greve geral para 13 de maio. Umas 200.000 pessoas manifestaram-se gritando palavras de ordem tais como: “De Gaulle assassino!”.
George Pompidou, então primeiro ministro, regressou rapidamente a Paris e anunciou a reabertura da Sorbone nesse mesmo dia. Pretendia com este gesto abrir as portas para um compromisso visando evitar uma explosão social. Mas, era demasiado pouco e demasiado tarde. As massas entenderam isso como um sinal de debilidade e seguiram adiante.
A greve geral
A efervescência entre os estudantes era apenas a manifestação mais evidente do descontentamento da sociedade francesa. Apesar do auge econômico, os empresários franceses haviam aplicado uma pressão violenta sobre os trabalhadores. Abaixo da superfície de aparente calma existia um enorme acúmulo de descontentamento, rancor e frustração. Já em janeiro houve violentos conflitos durante uma manifestação de grevistas em Caen.
A greve geral de 13 de maio marcou um ponto de inflexão qualitativo. Centenas de milhares de estudantes e trabalhadores se lançaram às ruas de Paris. Uma idéia da situação é a descrição que se segue da poderosa manifestação de um milhão de pessoas que tomaram as ruas de Paris no dia 13 de maio:
“Fileiras passavam incessantemente. Havia seções inteiras de trabalhadores de hospitais com seus jalecos brancos, alguns carregavam cartazes onde se podia ler: ‘Où sont les disparus des hôpitaux?' (Onde estão os feridos desaparecidos?). Cada fábrica, cada centro de trabalho importante parecia estar representado. Havia numerosos grupos de ferroviários, carteiros, gráficos, metroviários, aeroportuários, comerciários, eletricistas, advogados, garis, bancários, trabalhadores da construção civil, vidreiros, químicos, faxineiros, empregados municipais, pintores e decoradores, trabalhadores do gás, balconistas, escriturários, trabalhadores do cinema, motoristas de ônibus, professores, trabalhadores das novas indústrias de plástico, todos eles em fila, o sangue da sociedade capitalista moderna, uma massa interminável, uma força que podia arrastar tudo que estivesse em seu caminho, se assim o desejasse”. (Citado em Revolutionary Rehearsals, p.12).
Os dirigentes dos sindicatos esperavam que esta manifestação fosse suficiente para deter o movimento, não tinham intenção de continuar e estender a greve geral. Para eles a manifestação era apenas uma maneira de liberar vapor. Porém, uma vez iniciado o movimento imediatamente ganhou vida própria. A convocatória de greve geral foi como uma grande rocha lançada sobre um lago tranqüilo. As ondas se estenderam a cada canto da França. Ainda que houvesse apenas aproximadamente três milhões de trabalhadores organizados em sindicatos, participaram da greve cerca de 10 milhões e começou uma série de ocupações de fábricas em toda França.
No dia 14 de maio, um dia depois da manifestação de massas em Paris, os trabalhadores ocuparam a Sud-Aviation em Nantes e a fábrica da Renault em Cléon, seguidos pelos trabalhadores da Renault em Flins, Le Mans e Boulogne-Billancourt. Greves foram iniciadas em outras fábricas por toda a França, como em RATP e SNCF. Os jornais não saíram. No dia 18 de maio, os mineiros do carvão pararam de trabalhar e o transporte público ficou paralisado em Paris e em outras cidades importantes. Os trens foram os próximos, depois o transporte aéreo, os estaleiros, os trabalhadores do gás e da eletricidade (que decidiram manter o abastecimento doméstico), os correios e as barcas que atravessam o Canal da Mancha.
Os trabalhadores tomaram o controle dos recursos petroleiros em Nantes, negaram a entrada a todos os caminhões tanques que não tivessem a autorização do comitê de greve. Foi formado um piquete no único fornecedor de gasolina que funcionava na cidade, assim garantiu-se que o único combustível liberado era para os médicos. Foram estabelecidos contatos com as organizações camponesas nas zonas periféricas, organizou-se o abastecimento de comida, os preços foram fixados pelos trabalhadores e camponeses. Para evitar a especulação, as lojas tinham que deixar à vista um adesivo com as palavras: “Esta loja está autorizada a abrir. Os preços estão sob supervisão permanente dos sindicatos”. O adesivo ia assinado pela CGT, CFDT e FO. Um litro de leite era vendido por 50 centavos, seu preço normal era de 80 centavos. O quilo da batata baixou de 70 para 12 centavos. O quilo da cenoura passou de 80 a 50 centavos e assim sucessivamente.
Os estudantes, os professores, os profissionais, camponeses, cientistas, jogadores de futebol, até mesmo as bailarinas do Follies Bergères foram à luta. Em Paris os estudantes ocuparam a Sorbone. O teatro l’Odeon foi ocupado por 2.500 estudantes e os estudantes do ensino médio ocuparam suas escolas:
“A febre de ocupação afetou a intelligentsia. Os médicos radicais ocuparam as sedes da Associação Médica, os arquitetos radicais proclamaram a dissolução de sua associação, os atores fecharam todos os teatros da capital, os escritores encabeçados por Michel Butor ocuparam a Societe de Gens de Lettres no Hotel de Massa. Inclusive os executivos das empresas participaram ocupando durante um tempo o edifício do Conseil National du Patronat Français, depois se deslocaram para a Confederation Generale des Cadres”. (David Caute. Sixty Eight, the Year of the Barricades, p.203).
Como as escolas estavam fechadas, os professores e os estudantes organizaram vigílias, brincadeiras, comidas gratuitas e atividades para os filhos dos grevistas. Foram criados comitês de mulheres de grevistas que tiveram um papel importante na organização do abastecimento de alimentos. Não só os estudantes, como também os advogados profissionais estavam infectados pelo vírus da revolução. Os astrônomos ocuparam um observatório. Houve uma greve no centro de pesquisa nuclear de Saclay, onde a maioria dos 10.000 empregados eram pesquisadores, técnicos, engenheiros e cientistas. Até a igreja foi afetada. No Bairro Latino, jovens católicos ocuparam a igreja e exigiam debates no lugar das missas.
O poder nas ruas
Os distúrbios continuavam em Paris, os trabalhadores e estudantes desafiavam o gás lacrimogêneo e as baterias de policiais. Em uma só noite houve 795 presos e 456 feridos. Os manifestantes tentaram incendiar a Bolsa de Paris considerada um símbolo odiado do capitalismo. Um comissário de polícia foi morto em Lyon por um caminhão.
Uma vez na luta, os trabalhadores começaram a ter iniciativas que iam mais além dos limites de uma greve normal. Um elemento fundamental na equação foram os meios de comunicação de massas. Formalmente, são armas poderosas nas mãos do Estado, mas também dependem dos trabalhadores, que fazem funcionar as emissoras de rádio e televisão. No dia 25 de maio, a rádio televisão estatal, a ORTF, entrou em greve. Suprimiram as notícias das oito da noite. Os gráficos e jornalistas impuseram uma espécie de controle operário sobre a imprensa. Os jornais burgueses tinham que submeter seus editoriais ao escrutínio e deviam publicar as declarações dos comitês de trabalhadores.
A Assembléia Nacional discutiu a crise universitária e as batalhas do Bairro Latino. Porém, os debates nos salões da assembléia já eram irrelevantes. O poder havia escapado das mãos dos legisladores e agora estava nas ruas. No dia 24 de maio, o presidente De Gaulle anunciou o referendo no rádio e na televisão. O plano de De Gaulle de celebrar um referendo foi frustrado pela ação dos trabalhadores. O general foi incapaz até mesmo de imprimir as cédulas do referendo devido à greve dos trabalhadores das gráficas franceses e a negativa de seus colegas belgas de atuar como fura greves. Este não foi o único exemplo de solidariedade internacional. Os condutores de trens alemães e belgas detinham seus trens na fronteira francesa para não romper a greve.
As forças da reação, até esse momento em estado de choque e obrigadas a estar na defensiva, começaram a se organizar. Foram criados Comitês de Defesa da República, CDR, como tentativa de mobilizar a classe média contra os trabalhadores e estudantes. A correlação de forças de classe não é uma questão puramente numérica do tamanho da classe trabalhadora em relação ao campesinato e da classe média em geral. Uma vez que o proletariado entre na luta decisiva e demonstra ser uma força poderosa na sociedade, atrai rapidamente a massa explorada de camponeses e de pequenos comerciantes que são vítimas dos bancos e dos monopólios. Este fato era evidente em 1968, quando os camponeses levantaram bloqueios nas estradas ao redor de Nantes e distribuíram comida grátis aos grevistas.
O mito do “Estado forte”
O movimento pegou a classe dominante e o governo totalmente desprevenidos. Estavam aterrorizados ante o movimento dos estudantes, Pompidou admitia em suas memórias: 
“Alguns... pensaram que, ao reabrir a Sorbone e ao libertar os estudantes, eu havia demonstrado fraqueza e que havia posto a agitação em marcha novamente. Eu responderia simplesmente o seguinte: suponhamos que na segunda-feira 13 de maio a Sorbone permanecesse fechada sob proteção policial. Quem poderia imaginar que a multidão, avançando até Denfert-Rocearau não conseguiria entrar levando tudo a sua frente como um rio em uma inundação? Preferi dar a Sorbone aos estudantes que vê-la tomada pela força”. (G. Pompidou. Por Rétablir une Verité, pp. 184-185). 
Em outra parte acrescenta:
“A crise era infinitamente mais séria e mais profunda; o regime se manteria ou seria derrotado, mas não poderia ser salvo com uma simples remodelação ministerial. Não era minha posição que estava em dúvida. Era o general De Gaulle, a Quinta República e, até certo ponto, o próprio poder republicano”. (Ibíd., p. 197, ênfase minha).
A que se referia Pompidou quando falava que “o próprio poder republicano” estava em perigo? O que queria dizer é que o Estado burguês estava em perigo de ser derrotado. E, nessa idéia, tinha bastante razão. Mais a frente Pompidou tentou acabar com a crise reabrindo a Sorbone, mas o movimento simplesmente foi além, com uma manifestação de 250.000 pessoas. Aterrorizado com a possibilidade dos estudantes se unirem aos trabalhadores e tomar o Elysée, o palácio presidencial foi evacuado.
De Gaulle, inicialmente, depositou sua confiança nos dirigentes estalinistas para salvar a situação. Disse a seu ajudante de Campo Naval, François Flohic: “Não se preocupe, Flohic, os comunistas os manterão sob controle”. (Phillippe Alexandre. L’Elysée em péril, p.299).
O que essas palavras demonstram? Nem mais nem menos que o sistema capitalista não poderia existir sem o apoio dos dirigentes operários reformistas (e estalinistas). Este apoio lhes é muito mais valioso do que qualquer quantidade de tanques e policiais. De Gaulle, como burguês inteligente, entendia isso perfeitamente. Em uma tentativa de demonstrar sua suprema indiferença em relação aos acontecimentos na França, o presidente De Gaulle fez uma visita de estado à Romênia, onde foi recebido com os braços abertos pelo “comunista” Ceausescu. Contudo, a confiança do general não duraria muito.
A essência de uma revolução, o que a caracteriza, é o fato das massas começarem a participar ativamente dos acontecimentos, começarem a tomar os problemas em suas próprias mãos. Quando voltou à França, os dirigentes “comunistas” estavam perdendo o controle. A bandeira vermelha tremulava nas fábricas, escolas e universidades, nas agências de emprego e até mesmo em observatórios espaciais. O governo era impotente, estava suspenso no ar devido à insurreição. O “Estado forte” gaullista estava paralisado. O poder estava de fato nas mãos da classe trabalhadora.
Os informes da rápida deterioração da situação em Paris chocaram De Gaulle. Frente à maré crescente de rebelião o presidente teve que abandonar sua pose de indiferença, interromper sua viagem a Romênia e regressar rapidamente a França. No palácio de Elysée, o presidente De Gaulle proferiu as palavras imortais: “La réforme, oui; la chienlit, non” (Reforma, sim, crianças pirracentas, não!). A palavra chienlit é difícil de ser traduzida, se refere a uma criança que ainda não aprendeu a utilizar o mictório.
Ao utilizar esta linguagem, De Gaulle expressou seu desprezo pelos “garotos” nas ruas. Porém, o movimento já havia ido mais além da etapa das manifestações estudantis. Era como uma enorme bola de neve descendo uma íngreme montanha, ganhando força e impulso a cada momento. As mais inesperadas camadas sociais se viram arrastadas pelo rodamoinho da luta revolucionária. Os profissionais do cinema ocuparam o festival de cinema de Cannes. Importantes diretores do cinema francês retiraram seus filmes da competição e o corpo de jurados renunciou, obrigando o cancelamento do festival.
Calcula-se que no dia 20 de maio 10 milhões de pessoas estavam em greve, o país estava praticamente paralisado. No dia 22 de maio uma moção de censura apresentada pelos partidos da oposição não foi aprovada, faltaram-lhes 11 votos para obter a maioria na Assembléia Nacional. O governo estava em uma situação instável e De Gaulle recolhido ao desespero. Foi precisamente neste momento que os dirigentes das confederações sindicais lançaram um bote salva-vidas para De Gaulle, fazendo uma declaração, na qual demonstravam sua disposição a negociar com a associação de empresários e com o governo.
A Assembléia Nacional aprovou uma anistia para os manifestantes. Naturalmente! Não conseguiram esmagar o movimento através da repressão, então as autoridades recorreram às concessões para tentar esfriar a situação e ganhar tempo. Desta maneira, tanto o governo como os dirigentes sindicais colaboraram para desviar o movimento revolucionário e conduzi-los a canais seguros. Enquanto ofereciam concessões aos dirigentes estudantis e sindicais, o Estado continuava com a repressão seletiva dirigida contra aqueles que eram considerados elementos subversivos. Como no caso de Daniel Cohn-Bendit, retiraram deste estudante anarquista o visto de permanência no País. Foi um movimento estúpido já que a influência real de Cohn-Bendit no movimento era mínima. Mas a ação do governo conseguiu provocar uma manifestação de massas em Paris para protestar contra esta medida. 
De Gaulle desmoralizado
O biógrafo de De Gaulle, Charles Williams, descreve de maneira gráfica seu estado de ânimo às vésperas de seu discurso a nação no dia 24 de maio:
“Não há dúvidas que depois da excitação na Romênia, o general estava profundamente abalado com o que encontrou em seu regresso a França. Durante os seguintes três dias, a alguém que o visitasse depois de algum tempo o general pareceria velho e indeciso, seu andar encurvado estava cada vez mais acentuado. Parecia que tudo isso estava sendo demais para ele.
“O discurso de 24 de maio, quando se deu, foi um fracasso total. O general parecia e soava pouco sincero, assustado. É certo, anunciou um referendo sobre ‘participação’, mas não estava claro qual seria o conteúdo concreto da pergunta e pareceu um truque para aqueles que lhe escutaram. Disse que era o dever do Estado assegurar a ordem pública, mas faltava a sua voz a velha ressonância e suas frases, ainda que usasse a velha linguagem solene, de alguma maneira já não possuía a mesma convicção. Apresentou-se como um homem velho, cansado e ferido. Sabia que tinha perdido. ‘Não alcancei o objetivo’, disse nesta noite. O melhor que Pompidou lhe disse foi: ‘Poderia ter sido pior’.
“Mas o estado de ânimo de De Gaulle na manhã do dia 25 de maio havia piorado. Estava, nas palavras de um de seus ministros, ‘prostrado, encurvado, envelhecido’. Repetia uma e outra vez, ‘isto é uma confusão’. Outro ministro se deparou com um homem velho que não ‘tinha planos para o futuro’. O general mandou buscar seu filho Phillippe, que encontrou seu pai ‘cansado’ e se deu conta de que quase não havia dormido. Phillippe sugeriu que o pai poderia partir para o porto atlântico de Brest – sombras de 1940 – mas disse a ele que não se renderia.
“Do dia 25 ao dia 28 de maio, De Gaulle permaneceu em um estado de profundo pessimismo. As negociações de Pompidou com os sindicatos foi uma farsa. Simplesmente havia dado a eles tudo o que pediam: grandes aumentos salariais, benefícios sociais e um aumento de 35% para o salário mínimo. O único obstáculo era que, inclusive depois de ter assinado, a CGT insistiu que tinham que ser ratificados por seus militantes. George Séguy, o dirigente da CGT, foi rapidamente ao bairro parisiense de Billancourt, onde 12.000 trabalhadores da Renault estavam em greve. Quando apresentou o acordo aos trabalhadores, estes o humilharam rechaçando-o de imediato. Os ditos acordos de Grenelle foram abortados.
“O conselho de ministros se reuniu às três da tarde do dia 27 de maio, pouco depois dos trabalhadores rechaçarem os acordos de Grenelle. O general presidia o conselho, mas notou-se que seu coração e sua mente estavam longe. Olhava seus ministros sem vê-los, seus braços jogados sobre a mesa a sua frente, ombros caídos, aparentemente ‘totalmente indiferente’ ao que se passava a seu redor. Houve uma discussão sobre o referendo, o general aparentemente só ouviu pedaços da discussão” (C. Williams, The Last Great Frenchman, A life of General De Gaulle, pp. 463-4-5, ênfase minha).
Estes fragmentos da biografia favorável a De Gaulle reproduzem uma imagem intensa de total desorientação, pânico e desmoralização em que estava imerso. Segundo o embaixador norte-americano, De Gaulle lhe havia dito: “o jogo acabou. Em poucos dias os comunistas estarão no poder”.
Intervenção militar?
A situação alcançou um ponto onde já não podia mais ser resolvida por métodos parlamentares normais. O que poderia ser feito? A intervenção militar foi uma das opções cogitadas por De Gaulle desde o começo da greve geral. Nas primeiras etapas da greve, planos foram elaborados para deter e aprisionar mais de 20.000 ativistas de esquerda no estádio de inverno, onde seriam vítimas de um destino similar ao de seus homólogos chilenos cinco anos mais tarde.
Porém, a operação nunca foi posta em prática. Estes planos do governo francês são idênticos aos planos de todas as classes dominantes na história quando se deparam com a revolução. O governo do Czar Nicolau (“o sangrento” como era chamado) era repleto de tais planos militares de contingência antes de fevereiro de 1917. Mas, outra coisa bem diferente era executar esses planos, como descobriu Nicolau a duras penas. O decisivo de uma revolução não são os planos dos regimes, e sim a correlação real de forças na sociedade. De Gaulle era um burguês muito astuto, plenamente consciente da situação real (a princípio, como veremos, subestimou o movimento, o resultado foi um erro muito sério. Como os demais, não esperava que os trabalhadores franceses entrassem em movimento).
De Gaulle estava à beira do abismo. Aterrorizado pelo imenso alcance do movimento, o general estava completamente pessimista. Estava convencido de que os dirigentes comunistas chegariam ao poder. Inúmeras testemunhas confirmam que De Gaulle estava totalmente atônito e desmoralizado, e que pelo menos duas vezes contemplou a idéia de fugir do país. Seu próprio filho havia pedido que ele escapasse por Brest, outras fontes dizem que considerou a possibilidade de permanecer na Alemanha Ocidental, onde visitaria o general Massu. De Gaulle era um político inteligente e calculista que nunca agia por impulsos e raramente perdia os nervos. Disse ao embaixador norte-americano: “o jogo acabou. Em poucos dias os comunistas estarão no poder”. Acreditava nisso. E não era só ele, a maioria da classe dominante também acreditava.
No papel, De Gaulle tinha a disposição uma formidável máquina de repressão. Havia cerca de 144.000 policiais (armados) de diferentes categorias, dos quais 13.500 eram da tristemente famosa polícia anti-distúrbios (CRS), e cerca de 261.000 soldados a postos na França ou na Alemanha Ocidental. Se a questão é abordada de um ponto puramente quantitativo, então deveria ser descartada não só a possibilidade de uma transformação pacífica, como também da revolução em geral, e não somente na França de 1968. Deste ponto de vista, nenhuma revolução jamais poderia triunfar em toda a história. Mas a questão não pode ser colocada desta maneira.
Em toda revolução levantam-se vozes que tentam assustar a classe oprimida com o espectro da violência, o derramamento de sangue e a “inevitabilidade da guerra civil”. Kamenev e Zinoviev falavam exatamente da mesma forma em vésperas da insurreição de Outubro. Hoje, Heinz Dieterich e os reformistas na Venezuela utilizam a mesma linha de argumentação para tentar colocar freios à revolução venezuelana.
“Os adversários da insurreição, até mesmo nas fileiras do Partido Bolchevique, encontravam muitos motivos para suas deduções pessimistas. Zinoviev e Kamenev advertiam que não se podiam subestimar as forças do adversário. ‘Petrogrado decide, mas em Petrogrado os inimigos dispõem de forças importantes: cinco mil junkers perfeitamente armados e que sabem lutar; um Estado Maior; batalhões de choque; cossacos; e uma parte importante da guarnição, mais uma considerável artilharia disposta em leque ao redor de Petrogrado. Além disso, quase seguramente os adversários tentarão trazer tropas do front com a ajuda do Comitê Executivo Central... ”
Trotsky respondeu às objeções de Kamenev e Zinoviev da seguinte forma:
“A lista soa imponente, mas é apenas uma lista. Se um exército, em seu conjunto, é um reflexo da sociedade, então quando a sociedade se divide abertamente, ambos os exércitos são cópias dos bandos em combate. O exército dos possuidores levava dentro de si o verme do isolamento e da desagregação” (Leon Trotski, Historia de la Revolución Rusa, p. 1042).
Vítima do pânico De Gaulle desapareceu de repente, viajou para a Alemanha onde teve uma reunião secreta com o general Massu, o homem responsável pelas tropas francesas a postos em Baden-Wurttemberg. O conteúdo preciso destas conversas nunca foi conhecido, mas não é necessária muita imaginação para se ter uma idéia do que foi perguntado: “Podemos contar com o exército?” A resposta não está registrada em nenhuma fonte escrita por razões óbvias. Contudo, The Times enviou seu correspondente à Alemanha para entrevistar os soldados franceses, a grande maioria era de filhos da classe trabalhadora que cumpriam o serviço militar obrigatório. Um dos entrevistados respondeu à pergunta de se ele abriria fogo contra os trabalhadores: “Nunca! Acho que seus métodos (dos trabalhadores) podem ser um tanto duros, mas sou filho de um trabalhador”.
Em seu editorial The Times fazia a seguinte pergunta: “De Gaulle pode utilizar o exército?” e respondia sua própria pergunta dizendo que talvez pudesse utilizá-lo uma vez. Em outras palavras, bastaria apenas um enfrentamento sangrento para romper em pedaços o exército. Esta era a avaliação dos estrategistas mais duros do capital internacional daquela época. Não há nenhuma razão para duvidar de sua palavra nesta ocasião.
Crise do Estado
No dia 13 de maio uma organização sindical da polícia que representava 80% do corpo policial publicou uma declaração em que “... considera a declaração do primeiro-ministro um reconhecimento de que os estudantes tinham razão, e uma renúncia total às ações da força policial que o próprio governo ordenou. Nessas circunstâncias é surpreendente que não se buscasse um diálogo efetivo com os estudantes antes que se produzissem estes lamentáveis acontecimentos”. (Le Monde, 15/5/1968).
Se esta era a postura da polícia, o efeito da revolução sobre a base do exército seria ainda maior. E assim era, apesar da falta de informação, existiam relatos de efervescência entre as forças armadas e inclusive um motim na marinha. O porta-aviões Clemenceau, deveria ir ao Pacífico para um teste nuclear, de repente deu meia volta e regressou a Toulon sem explicações. Chegaram notícias de um motim a bordo que dizia que haviam sido “perdidos no mar” vários marinheiros (Le Canard Enchiné. 19/6/68; foi publicado um relato completo em Action dia 14 de junho, mas foi confiscado pelas autoridades).
Segundo um famoso aforismo de Mao: “o poder emana da ponta do fuzil”. Porém, os fuzis são empunhados por soldados que não vivem no espaço sideral, estes também são influenciados pelo estado de ânimo das massas. Em qualquer sociedade, a polícia é mais atrasada que o exército. Contudo, na França, a polícia, citando um editorial de The Times (31/5/1968), “ferve de descontentamento”.
“Ferve de descontentamento com o tratamento que o governo lhes dá” dizia o artigo, “e o departamento encarregado da informação sobre a atividade estudantil esteve deliberadamente privando o governo de informação sobre os dirigentes estudantis, em apoio a suas reivindicações salariais.
“... Tampouco a polícia esteve muito impressionada com o comportamento do governo desde que começaram os distúrbios. ‘Estão aterrorizados em perder nosso apoio’ disse um homem.
“Tal descontentamento é uma das razões da aparente inatividade da polícia de Paris nestes últimos dias. Na semana passada, homens de diferentes departamentos locais negaram-se a sair dos cruzamentos e praças da capital” (The Times; 31/5/1968; ênfase minha).
Um panfleto publicado por membros do RIMECA (regimento de infantaria mecanizada) localizado em Mutzig, perto de Estrasburgo, indicava que seções do exército já estavam sendo afetadas pelo ânimo das massas. Incluía os seguintes fragmentos: 
"Como todos os soldados da leva, estamos confinados aos quartéis. Estão nos preparando para intervir como forças repressivas. Os trabalhadores e os jovens precisam saber que os soldados do contingente NUNCA DISPARARÃO CONTRA OS TRABALHADORES. Nós dos Comitês de Ação nos opomos a todo custo que os soldados cerquem as fábricas.
“Amanhã ou depois de amanhã esperam que cerquemos uma fábrica de armamentos, cujos trezentos trabalhadores querem-na ocupar. CONFRATERNIZAREMOS.
“Soldados do contingente, formem vossos comitês! (Citado em Revolutionary Reherasals; p. 26).
A publicação deste panfleto foi claramente um exemplo excepcional dos elementos mais revolucionários entre os conscritos. Mas, em meio a uma revolução de proporções tão massivas, é possível duvidar que a base do exército rapidamente se contagiasse com o vírus da rebelião? Os estrategistas do capital internacional não duvidavam disso, muito menos seus homólogos franceses.
Quem salvou De Gaulle?
Não foi absolutamente o exército nem a polícia (estes estavam tão desmoralizados que inclusive a reacionária inteligência, como vimos, se negou a colaborar com o governo contra os estudantes) que salvaram o capitalismo francês, e sim a atuação dos dirigentes sindicais e estalinistas. Esta conclusão não é apenas nossa, também encontra apoio na Enciclopédia Britânica:
“De Gaulle parecia incapaz de controlar a crise ou de compreender sua natureza. Contudo, os dirigentes comunistas e sindicais proporcionaram-lhe um respiro, opuseram-se a qualquer levantamento mais ousado, evidentemente temiam a perda de seus seguidores frente a seus rivais mais extremistas e anarquistas”.
Acuado, Georges Pompidou aceitou negociar com todos. Quando a classe dominante está ameaçada de perder tudo não se importa em alterar seus planos originais e torna-se disposta a fazer grandes concessões. Para tirar os trabalhadores das fábricas ocupadas e dissolver seu poder não hesitaram em oferecer aos dirigentes sindicais coisas além do que estes últimos pediam originalmente, aumento do salário mínimo, redução da jornada de trabalho e da idade de aposentadoria, restauração do direito de organização, etc.; em uma tentativa de deter os estudantes, Pompidou aceitou a demissão do Ministro da Educação.
Tanto o governo como os dirigentes sindicais estavam alarmados com o alcance do movimento e estavam decididos a detê-lo. No dia 27 de maio chegou-se a um acordo entre os sindicatos, as associações de empresários e o governo. Mas os dirigentes sindicais tinham a árdua tarefa de apresentar o acordo aos trabalhadores. Apesar das grandes concessões, os trabalhadores da Renault e de outras grandes empresas negaram-se a voltar ao trabalho. Lembro-me que estava em Paris em um bar com outras pessoas assistindo as assembléias de massas pela televisão dentro da gigantesca fábrica da Renault, onde se congregava um grande número de trabalhadores, alguns deles sentados nas gruas e nos cavaletes para escutar George Ségui, o secretário geral da CGT, que leu uma lista com aquilo que os empresários ofereciam: grandes aumentos salariais, pensões, redução da jornada e assim sucessivamente. Mas no meio de seu discurso foi interrompido pelos trabalhadores que cantavam: "Gouvernement populaire! Gouvernement populaire!". Lembro-me que ele não pôde terminar sua intervenção.
Nesse momento os trabalhadores já tinham consciência de sua própria força, tinham o poder a seu alcance e não estavam dispostos a abrir mão dele. Às 17 horas, 30.000 estudantes e trabalhadores marcharam desde Boelins ao estádio Cherléty, onde celebraram uma reunião com a presença de Pierre Mendés-France. Nesse mesmo dia a CGT convocou, previamente a este acordo, uma manifestação que conseguiu meio milhão de trabalhadores e estudantes nas ruas de Paris. Uma vez mais, o objetivo dos dirigentes sindicais e do Partido Comunista era proporcionar uma válvula de escape ao movimento, controlar o que deslizava de suas mãos.
A iniciativa passa a reação
No dia 30 de maio no rádio, o presidente De Gaulle anunciou a dissolução da Assembléia Nacional e disse que as eleições seriam realizadas dentro do calendário habitual. George Pompidou continuaria sendo o primeiro-ministro. Insinuou também que usaria a força para manter a ordem, se necessário. Era uma mensagem dirigida aos dirigentes sindicais e ao Partido Comunista. Estava oferecendo a eles a tentadora perspectiva das eleições e uma futura secretaria ministerial sob o regime burguês, e ao mesmo tempo era uma advertência de que a burguesia não entregaria o poder sem lutar.
O gabinete foi remodelado e as eleições convocadas para os dias 23 e 30 de junho. Ao mesmo tempo, De Gaulle tentou mobilizar suas forças fora do parlamento. Algumas dezenas de milhares de apoiadores do governo se manifestaram desde a Concordia até o Étoile. Foram realizadas manifestações similares de apoio ao governo em toda a França. Mas uma olhada mais atenta nas fotografias revelava imediatamente a verdadeira natureza dessas manifestações: prefeitos aposentados enrolados em faixas tricolores, cidadãos de classe média barrigudos, pensionistas e outras figuras parecidas indignadas e insatisfeitas com a sociedade.
Basta comparar estas fotografias com as manifestações massivas do proletariado alguns dias antes para descobrir a verdadeira correlação de forças. Tudo de vivo, forte e vibrante da sociedade francesa se reuniu sob a bandeira da revolução, enquanto que tudo de opaco, velho e decadente estava do outro lado das barricadas. Um bom empurrão bastava para derrubar tudo. O que faltava era um golpe de misericórdia, mas este nunca foi dado.
A classe trabalhadora não pode permanecer em uma situação de agitação constante. Não pode ser ligada ou desligada como uma lâmpada. Quando a classe se mobiliza para mudar a sociedade deve ir até o final ou fracassa. Ocorre o mesmo em uma greve. No início os trabalhadores estão entusiasmados e dispostos a participar nas assembléias de massas. Estão dispostos a lutar e fazer sacrifícios. Mas se a greve não tem um final à vista, o ambiente muda. Começando pelos elementos mais débeis, o cansaço finalmente chega. O comparecimento às assembléias de massas cai e os trabalhadores voltam ao trabalho.
Os dirigentes sindicais fizeram bom uso das concessões cedidas apressadamente pelos capitalistas, como um homem desesperado que lança um salva-vidas de um barco que afunda. O salário mínimo subiu para três francos à hora, os salários aumentaram e foram concedidas outras melhorias. Na ausência de outra perspectiva, muitos trabalhadores aceitaram o acordo que os dirigentes sindicais apresentaram como uma vitória. Na terça-feira, depois de um fim de semana com feriado no início de junho, a maioria dos grevistas pouco a pouco abandonou a luta, e os trabalhadores regressaram a seus trabalhos. 
1968 foi uma revolução
O que é uma revolução? Trotski explica que uma revolução é uma situação tal onde a massa de homens e mulheres normalmente apática começa a participar de maneira ativa na vida da sociedade, quando adquire consciência de sua força e se move para tomar seu destino em suas mãos. Isso é uma revolução. E foi o que aconteceu em uma escala colossal na França em maio de 1968.
Os trabalhadores franceses estenderam os músculos, tiveram consciência do enorme poder que tinham em suas mãos. Vimos aqui o imenso poder da classe trabalhadora na sociedade moderna: não se acende nem uma lâmpada, nenhuma roda se move e nenhum telefone toca sem a permissão dos trabalhadores. O maio de 1968 foi a resposta final a todos os covardes e céticos que duvidam da capacidade do proletariado para mudar a sociedade.
A correlação de forças da classe se expressou, não como um mero potencial ou uma estatística abstrata, e sim como um poder real nas ruas e nas fábricas. Na realidade, o poder estava nas mãos dos trabalhadores, mas eles não sabiam. Como qualquer outro exército, a classe trabalhadora necessita de uma direção. E isso era o que estava ausente em maio de 1968. Aqueles que deveriam ter proporcionado a direção, os dirigentes das organizações de massas da classe, os sindicatos e o Partido Comunista, não tinham a perspectiva da tomada do poder. Sua única preocupação era terminar a greve o mais rápido possível, devolver o poder a burguesia e retornar à “normalidade”.
Uma greve geral é diferente de uma greve normal porque coloca a questão do poder. O que está em jogo não é esse ou aquele aumento salarial, e sim quem é que manda na casa? No transcurso da luta a consciência dos trabalhadores aumentou a uma velocidade vertiginosa. Começaram a compreender que não se tratava de uma greve normal por reivindicações econômicas, mas algo maior. Tiveram consciência do poder em suas mãos e enxergavam a debilidade daqueles que se supunha representar todo o poder do Estado. A única coisa que faltou foi a eleição de delegados em cada centro de trabalho e a vinculação de comitês de greve em cada cidade e região, culminando na formação de um comitê nacional, que poderia ter tomado o poder em suas mãos, arremessando o velho poder estatal na lata de lixo da história.
Porém, nada disso foi feito e o enorme potencial revolucionário do movimento evaporou-se, como o vapor que se dissipa inofensivamente no ar se não há uma câmara de pistões que o concentre. Por fim, os trabalhadores regressaram ao trabalho e a classe dominante concentrou novamente o poder em suas mãos. Quando o movimento começou a minguar, o Estado iniciou sua vingança. Houve incidentes violentos, sobretudo no dia 11 de junho com 400 feridos, 1.500 detidos e um manifestante morto com um tiro em Montbéliard. No dia seguinte, foram proibidas as manifestações na França, pouco depois, os estudantes foram expulsos do Odéon e, dois dias mais tarde, da Sorbone.
Começou então a criminalização. Na cadeia estatal de rádio e televisão, ORTF, foram demitidos 102 jornalistas por suas atividades durante os acontecimentos. Enviaram a polícia às universidades de Nanterre e Sorbone para controlar os documentos de identidade dos estudantes e não saíram de lá antes de 19 de dezembro. Foi aprovado um pacote de medidas de austeridade no dia 28 de novembro na Assembléia Nacional. O Estado que não hesitou em esmagar os crânios dos estudantes e grevistas nas manifestações agora demonstrava clemência para com os fascistas, os terroristas de extrema direita da OAS. Enquanto Cohen-Bendit era expulso da França, Georges Bidault poderia regressar e Raoul Salan era libertado da prisão.
Os dirigentes reformistas e estalinistas foram castigados por sua covardia e a classe dominante negou-lhes os postos que almejavam intensamente. A campanha eleitoral começou em 10 de junho. No primeiro turno das eleições, a federação dos partidos de esquerda e os comunistas perderam terreno. No segundo turno, uma semana mais tarde, os partidos de direita conseguiram uma esmagadora maioria. A esquerda perdeu 61 cadeiras e os comunistas 39. Pierre Mendés-France (uma figura histórica da esquerda francesa) não foi reeleito em Grenoble. O Partido Comunista, que em 1968 era o principal partido da classe trabalhadora francesa, entrou em declínio e foi superado mais tarde pelo Partido Socialista, que em 1968 conseguira apenas quatro por cento dos votos e, portanto, parecia morto. O sindicato comunista, CGT, perdeu apoio frente à CFDT que em 1968 manteve uma posição mais combativa.
O maravilhoso movimento dos trabalhadores terminou em derrota. Porém, as tradições de Maio de 1968 permanecem na consciência dos trabalhadores da França e do mundo. Hoje, depois de um longo período de boom, o sistema capitalista está entrando novamente em crise e sairão à superfície todas as contradições que se acumularam durante os últimos vinte anos. Em toda a Europa estarão na ordem do dia grandes enfrentamentos de classe.
Não temos tempo para aqueles ex-revolucionários pequeno-burgueses que falam de 1968 em termos sentimentais e nostálgicos, como se fosse história antiga sem relevância prática alguma para o mundo em que vivemos. Mais cedo ou mais tarde os acontecimentos de 1968 reaparecerão, mas em um nível inclusive superior. Qual é o candidato mais provável para este cenário? Poderia perfeitamente ser a França, mas também a Itália, Grécia, Portugal ou Espanha ou qualquer outro país, e não só na Europa. Esperamos com impaciência o futuro. Desejamo-lo e nos preparamos para ele. Estamos tentando preparar a vanguarda, assim da próxima vez triunfaremos. E diante deste glorioso aniversário dizemos: A revolução não morreu. Viva a revolução! 

segunda-feira, 13 de maio de 2013

A armadilha fenícia




Heródoto, ao relembrar suas conversas com os anciões de Tiro, uma das capitais da antiga fenícia, assegurou a seu público que os comerciantes que ocupavam a atual costa libanesa haviam chegado naquela parte do mundo 28 séculos antes de Cristo. Teriam migrado das praias do mar vermelho, na península arábica, em direção ao Mediterrâneo, assim como fizeram diversas tribos árabes. Conhecido pelos livros escolares como o Pai da Historia, o autor grego é visto no Líbano de forma um pouco mais peculiar. Aqui ele é tido por muitos como um desonesto disseminador de boatos, inimigo do estado e da sociedade. Não são poucos os libaneses que odeiam serem associados aos árabes que os cercam.
Apesar do desgosto, mais uma vez o destino do Líbano parece estar sendo decidido na cidade orgulhosamente árabe de Damasco. Os recentes bombardeios de Israel à capital síria reforçam tal fato. Tentando desassociar seu país da guerra civil ao norte, Tel Aviv foi categórico no comentário: Nosso ataque não tem nada a ver com as tentativas de derrubar o ditador Bashar Al-Assad, estávamos apenas atacando armas iranianas de última geração que se dirigiam ao Líbano.
A ofensiva aérea israelense, que pode muito bem jogar Líbano, Síria e Israel em mais uma guerra, parece possuir uma complexidade maior do que apenas um bombardeio a mercadorias importadas do Hezbollah, grupo amado Libanês que a décadas disputa a hegemonia do sul de seu país com o estado sionista. Israel anuncia a tempos que pretende impedir qualquer forma os envios de armas da Síria ao grupo fundamentalista xiita, porem a dinâmica dos ataques não se encaixam muito bem nesta narrativa. Se os alvos eram misseis do Hezbollah, porque foram atacadas também bases da Guarda Republicana Síria? Alem do mais, é crível que o governo do Baath, em meio a uma guerra de vida ou morte contra seus oponentes armados, enviaria o supra sumo de seu arsenal para o vizinho?
Enquanto tais perguntas seguem sem respostas, os milicianos do Hezbollah parecem estar se engajando cada vez mais na defesa incondicional do governo de Bashar. Adepto de um dos expoentes da religião xiita (o Alawismo) e aliado prioritário do Irã, que por acaso também é patrono do grupo libanês, a possível queda do regime da família Assad tem sido tratado pelo Hezbollah como uma derrota inaceitável. Já são centenas os mártires do grupo nas batalhas das cidades Sírias próximas ao Líbano, onde o governo de Damasco parece ter terceirizado a seus aliados libaneses a luta contra os insurgentes. A guerra prioritária do Hezbollah parece ser a guerra pela sobrevivência de Assad, o que, pela lógica, faria a guerra central de Israel ser a guerra pela derrubada do regime sírio.
Tal raciocínio teria todo sentido se Israel não estivesse mobilizando seus diplomatas pelo mundo em uma campanha contra o armamento dos rebeldes na Síria. Segundo a perspectiva israelense, apesar dos amigos inconvenientes no Líbano, o regime Assad é um companheiro de respeito quando o tema é garantir paz e tranquilidade nas colinas de Golan, território sírio ocupado por Israel a mais de quatro décadas. Dizem as mas línguas que os revolucionários da Síria, baderneiros pela própria natureza, não dariam tranquilidade ao estado sionista uma vez que houvessem derrubado o governo de Damasco.
Zona livre
Segundo o Major-General Yair Golan, chefe do Comando Norte de Israel, a resposta para tal ameaça é simples, cabe a Tel Aviv “criar uma zona militar no lado de lá da fronteira”; invadir o sul da Síria para impedir qualquer rebelde intruso de chegar perto aos territórios que o General chefia. Para o mesmo, o modelo seria a zona tampão criada por Israel entre 1985 e 2000 no sul do Líbano. Curiosamente, foi a partir da luta contra aquela mesma zona que o Hezbollah tornou-se uma potencia regional.
Os bombardeios de Israel a Damasco podem ter tido como objetivo abrir o terreno para uma futura ocupação militar voltada a conter a insurreição. Mais o oposto também pode ser verdadeiro, sendo o ataque uma ajuda a luta dos rebeldes contra o regime de Bashar, ou ainda, apenas um bombardeio ao Hezbollah, sem relação alguma com o levante sírio. Talvez o mais correto seja uma equação que envolva as três hipóteses ao mesmo tempo. A única certeza é que um envolvimento maior de Israel na guerra, segundo o próprio Hezbollah, levaria a milícia libanesa a assumir uma política ainda mais intervencionista no país vizinho.
Pelo menos foi assim que anunciou Hassan Nassarallah, dirigente máximo do grupo libanês, no seu canal de televisão. Segundo Nasserallah, talvez o único dirigente da região conhecido por cumprir suas ameaças publicas, o Hezbollah é um “amigo de verdade” do povo sírio, e por os ter como tanta estima, não os deixarão sair de seu rumo atual.
Persona non grata
As declarações de carinho do Hezbollah aos sírios, porem, parecem ter pouco eco nas cidades e bairros dirigidos pelo grupo no Líbano. São cada vez mais frequentes os ataques a refugiados do país vizinho nos territórios controlados pela milícia. Entre os ativistas exilados que continuam tentando apoiar a revolução que ocorre em seu país natal, as áreas do Hezbollah tornaram-se praticamente zonas proibidas.
A maioria destes jovens, por motivos de segurança, tem buscado refúgio nos bairros cristãos controlados pelas milícias da Falange, um dos principais grupos fascistas que controlam pedaços de Beirute. Inspirada na juventude nazista após a viagem de seu fundador às Olimpíadas de 1936 em Munich, a Falange é mundialmente conhecida por ter executado, em conjunto com Israel, os massacres aos refugiados palestinos dos campos de Shabra e Chatila. Arautos do caráter fenício de seu povo e adversários históricos do governo “árabe” da Síria, os falangistas têm sediado (mesmo que com pouco entusiasmo) os ativistas sírios em suas zonas. Apesar dos esforços, até os mais isolacionistas dos libaneses não conseguem se desmembrar dos acontecimentos no país vizinho.
Já nos bairros controlados pelo Partido Nacionalista Socialista Sírio, cuja bandeira carrega uma versão estilizada da suástica em seu centro, os sírios que não gostam de Bashar são classificados como persona non grata. Defensores de teses heterodoxas, entre as quais a ilha de Chipre integraria uma suposta “Grande Síria” histórica que eles próprios sonham em dirigir, os Nacionalistas Socialistas conseguem ser mais barulhentos que o Hezbollah na defesa do governo de Damasco. No mosaico político de Beirute, onde diferentes milícias disputam milímetro por milímetro as ruas da capital, a sensação de uma guerra iminente a tempos não latejava com tanta força.
Mais uma vez, os refugiados
Talvez o que mais reforça esta ideia é a onda de refugiados sírios que tem-se abrigado no país durante os últimos dois anos. Segundo dados oficiais do Alto Comissariado da ONU, são mais de 450 mil refugiados cadastrados. Os números extra-oficiais falam em mais de um milhão.
Não são poucos os libaneses que tem alertado aos paralelos entre a onda de refugiados palestinos ao país, que supostamente empurrou-o a guerra civil entre 1975 a 1990, e a atual maré Síria. Em um país fraturado de apenas 4 milhões de habitantes, o influxo massivo dos sírios está desequilibrando a correlação de forças interna entre as facções do país. A solução apresentada a tal problema pelo governo libanês foi bastante simples. Está proibido no Líbano a construção de campos para os que fogem às barbáries da guerra. A ideia é deixar claro aos refugiados que eles não são bem-vindos.
A forma encontrada pelo governo para expressar tal sentimento, porém, tem somente empurrado os sírios para debaixo do tapete. A falta de tendas da ONU apenas os espreme nas cidades, onde grupos de famílias inteiras alugam poucos metros quadrados dos cômodos disponíveis. Há casos de famílias de refugiados que foram morar em prisões abandonadas, estábulos ou qualquer coisa que os possa proteger do frio e da chuva.
Para além do descaso governamental, estes refugiados lidam não só com o ambiente hostil da sociedade libanesa, pouco simpática a seus vizinhos, como também aos ataques físicos dos agrupamentos políticos que precisam assassinar sírios para se reafirmarem socialmente.
Um país inviável
Ataques a civis da Síria no Líbano, verdade seja dita, esta longe de ser uma nova realidade. No período anterior à revolução, o espancamento ou assassinato de grupos de trabalhadores migrantes, até então restritos as zonas cristãs, eram notícia comum. A novidade agora é sua democratização entre as diferentes seitas do país.
Devido a falta de mão de obra barata, o Líbano é historicamente um polo de atração de trabalhadores sírios. Não que os libaneses estejam vivendo o sonho do pleno emprego, a ausência de mão de obra se da menos pela grandeza da demanda que o fato de boa parte da juventude libanesa, em busca de trabalho descentes, foge assim que puder de seu próprio país.
Durante o século 19, quando o capitalismo foi introduzido na região que viria ser o Líbano, a economia passou a se basear essencialmente na exportação de seda à Europa e a importação de todo e qualquer outro bem. Os entornos do porto de Beirute tornaram-se o centro de onde esta capital se acumulou, deixando o resto da região na miséria.
A cidade portuária ganhou estados de porta de entrada e saída para o interior da Síria, e a partir dali, o resto do Oriente. Após a quebra da indústria da seda no início do século 20 e a danosa separação econômica entre Líbano e Síria, a economia do país reduziu-se ao setor de serviços, principalmente financeiros, importando praticamente tudo que podia. Em um país pequeno em que nada se produz, o desemprego tornou-se uma doença crônica, sendo o único verdadeiro patrimônio nacional as redes familiares pre-estabelecidas pelo mundo, que facilitam a imigração.
Numa tentativa de justificar a desastrosa estrutura socioeconómico do país, que na prática, expulsa seus jovens, desenvolveu-se a ideia de um gene especificamente atribuído ao povo fenício, que os transforma em grandes exploradores do mundo, e não imigrantes empobrecidos. Esqueceram-se também que o Monte Líbano, região onde o gene fenício é supostamente mais latente, nunca foi colonizado por tal povo, que se restringia a costa do mediterrâneo. Em meio a uma sociedade voltada quase inteiramente a negação de seu entorno, é compreensível a má fama de Heródoto.
(Uma versão resumida deste artigo foi publicada em O Estado de S. Paulo, 13 mai. 2013.)

quinta-feira, 9 de maio de 2013

Por que os médicos cubanos assustam

Fonte: Blog do Porfírio
Só em 2011, médicos cubanos recuperaram a visão  gratuitamente de2 milhões de pessoas em  35 países
Elite corporativista teme que mudança do foco no atendimento abale o nosso sistema mercantil de saúde

A virulenta reação do Conselho Federal de Medicina contra a vinda de 6 mil médicos cubanos para trabalhar em áreas absolutamente carentes do país é muito mais do que uma atitude corporativista: expõe o pavor que uma certa elite da classe médica tem diante dos êxitos inevitáveis do modelo adotado na ilha, que prioriza a prevenção e a educação para a saúde, reduzindo não apenas os índices de enfermidades, mas sobretudo a necessidade de atendimento e os custos com a saúde.
Essa não é a primeira investida radical do CFM e da Associação Médica Brasileira contra a prática vitoriosa dos médicos cubanos entre nós. Em 2005, quando o governador de Tocantins não conseguia médicos para a maioria dos seus pequenos e afastados municípios, recorreu a um convênio com Cuba e viu o quadro de saúde mudar rapidamente com a presença de apenas uma centena de profissionais daquele país.
A reação das entidades médicas de Tocantins, comprometidas com a baixa qualidade da medicina pública que favorece o atendimento privado, foi quase de desespero. Elas só descansaram quando obtiveram uma liminar de um juiz de primeira instância determinando em 2007 a imediata “expulsão” dos médicos cubanos.
No Brasil, o apego às grandes cidades
Dos  371.788 médicos brasileiros, 260.251 estão nas regiões Sul e Sudeste
Neste momento, o governo da presidenta Dilma Rousseff só está cogitando de trazer os médicos cubanos, responsáveis pelos melhores índices de saúde do Continente, diante da impossibilidade de assegurar a presença de profissionais brasileiros em mais de um milhar de municípios, mesmo com a oferta de vencimentos bem superiores aos pagos nos grandes centros urbanos.
E isso não acontece por acaso. O próprio modelo de formação de profissionais de saúde, com quase 58% de escolas privadas, é voltado para um tipo de atendimento vinculado à indústria de equipamentos de alta tecnologia, aos laboratórios e às vantagens do regime híbrido, em que é possível conciliar plantões de 24 horas no sistema público com seus consultórios e clínicas particulares, alimentados pelos planos de saúde.
Mesmo com consultas e procedimentos pagos segundo a tabela da AMB, o volume de clientes é programado para que possam atender no mínimo dez por turnos de cinco horas. O sistema é tão direcionado que na maioria das especialidades o segurado pode ter de esperar mais de dois meses por uma consulta.
Além disso, dependendo da especialidade e do caráter de cada médico, é possível auferir faturamentos paralelos em comissões pelo direcionamento dos exames pedidos como rotinas em cada consulta.
Sem compromisso em retribuir os cursos públicos
Há no Brasil uma grande “injustiça orçamentária”: a formação de médicos nas faculdades públicas, que custa muito dinheiro a todos os brasileiros, não presume nenhuma retribuição social, pelo menos enquanto não se aprova o projeto do senador Cristóvam Buarque, que obriga os médicos recém-formados que tiveram seus cursos custeados com recursos públicos a exercerem a profissão, por dois anos, em municípios com menos de 30 mil habitantes ou em comunidades carentes de regiões metropolitanas.
Cruzando informações, podemos chegar a um custo de R$ 792.000,00 reais para o curso de um aluno de faculdades públicas de Medicina, sem incluir a residência. E se considerarmos o perfil de quem consegue passar em vestibulares que chegam a ter 185 candidatos por vaga (UNESP), vamos nos deparar com estudantes de classe média alta, isso onde não há cotas sociais.
Um levantamento do Ministério da Educação detectou que na medicina os estudantes que vieram de escolas particulares respondem por 88% das matrículas nas universidades bancadas pelo Estado. Na odontologia, eles são 80%.
Em faculdades públicas ou privadas, os quase 13 mil médicos formados anualmente no Brasil não estão nem preparados, nem motivados para atender às populações dos grotões. E não estão por que não se habituaram à rotina da medicina preventiva e não aprenderam como atender sem as parafernálias tecnológicas de que se tornaram dependentes.
Concentrados no Sudeste, Sul e grandes cidades
Números oficiais do próprio CFM indicam que 70% dos médicos brasileiros concentram-se nas regiões Sudeste e Sul do país. E em geral trabalham nas grandes cidades. Boa parte da clientela dos hospitais municipais do Rio de Janeiro, por exemplo, é formada por pacientes de municípios do interior.
Segundo pesquisa encomendada pelo Conselho, se a média nacional é de 1,95 médicos para cada mil habitantes, no Distrito Federal esse número chega a 4,02 médicos por mil habitantes, seguido pelos estados do Rio de Janeiro (3,57), São Paulo (2,58) e Rio Grande do Sul (2,31). No extremo oposto, porém, estados como Amapá, Pará e Maranhão registram menos de um médico para mil habitantes.
A pesquisa “Demografia Médica no Brasil” revela que há uma forte tendência de o médico fixar moradia na cidade onde fez graduação ou residência. As que abrigam escolas médicas também concentram maior número de serviços de saúde, públicos ou privados, o que significa mais oportunidade de trabalho. Isso explica, em parte, a concentração de médicos em capitais com mais faculdades de medicina. A cidade de São Paulo, por exemplo, contava, em 2011, com oito escolas médicas, 876 vagas – uma vaga para cada 12.836 habitantes – e uma taxa de 4,33 médicos por mil habitantes na capital.
Mesmo nas áreas de concentração de profissionais, no setor público, o paciente dispõe de quatro vezes menos médicos que no privado. Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar, o número de usuários de planos de saúde hoje no Brasil é de 46.634.678 e o de postos de trabalho em estabelecimentos privados e consultórios particulares, 354.536. Já o número de habitantes que dependem exclusivamente do Sistema Único de Saúde (SUS) é de 144.098.016 pessoas, e o de postos ocupados por médicos nos estabelecimentos públicos, 281.481.
A falta de atendimento de saúde nos grotões é uma dos fatores de migração. Muitos camponeses preferem ir morar em condições mais precárias nas cidades, pois sabem que, bem ou mal, poderão recorrer a um atendimento em casos de emergência.
A solução dos médicos cubanos é mais transcendental pelas características do seu atendimento, que mudam o seu foco no sentido de evitar o aparecimento da doença. Na Venezuela, os Centros de Diagnósticos Integrais espalhados nas periferias e grotões, que contam com 20 mil médicos cubanos, são responsáveis por uma melhoria radical nos seus índices de saúde.
Cuba é reconhecida por seus êxitos na medicina e na biotecnologia
Em sua nota ameaçadora, o CFM afirma claramente que confiar populações periféricas aos cuidados de médicos cubanos é submetê-las a profissionais não qualificados. E esbanja hipocrisia na defesa dos direitos daquelas pessoas.
Não é isso que consta dos números da Organização Mundial de Saúde. Cuba, país submetido a um asfixiante bloqueio econômico, mostra que nesse quesito é um exemplo para o mundo e tem resultados melhores do que os do Brasil.
Graças à sua medicina preventiva, a ilha do Caribe tem a taxa de mortalidade infantil mais baixa da América e do Terceiro Mundo – 4,9 por mil (contra 60 por mil em 1959, quando do triunfo da revolução) – inferior à do Canadá e dos Estados Unidos. Da mesma forma, a expectativa de vida dos cubanos – 78,8 anos (contra 60 anos em 1959) – é comparável a das nações mais desenvolvidas.
Com um médico para cada 148 habitantes (78.622 no total) distribuído por todos os seus rincões que registram 100% de cobertura, Cuba é, segundo a Organização Mundial de Saúde, a nação melhor dotada do mundo neste setor.
Segundo a New England Journal of Medicine, “o sistema de saúde cubano parece irreal. Há muitos médicos. Todo mundo tem um médico de família. Tudo é gratuito, totalmente gratuito. Apesar do fato de que Cuba dispõe de recursos limitados, seu sistema de saúde resolveu problemas que o nosso [dos EUA] não conseguiu resolver ainda. Cuba dispõe agora do dobro de médicos por habitante do que os EUA”.
O Brasil forma 13 mil médicos por ano em 200 faculdades: 116 privadas, 48 federais, 29 estaduais e 7 municipais. De 2000 a 2013, foram criadas 94 escolas médicas: 26 públicas e 68 particulares.
Formando médicos de 69 países
Estudantes estrangeiros na Escola Latino-Americana de Medicina
Estudantes estrangeiros na ELAM
Em 2012, Cuba, com cerca de 13 milhões de habitantes, formou em suas 25 faculdades, inclusive uma voltada para estrangeiros, mais de 11 mil novos médicos: 5.315 cubanos e 5.694 de 69 países da América Latina, África, Ásia e inclusive dos Estados Unidos.
Atualmente, 24 mil estudantes de 116 países da América Latina, África, Ásia, Oceania e Estados Unidos (500 por turma) cursam uma faculdade de medicina gratuita em Cuba.
Entre a primeira turma de 2005 e 2010, 8.594 jovens doutores saíram da Escola Latino-Americana de Medicina. As formaturas de 2011 e 2012 foram excepcionais com cerca de oito mil graduados. No total, cerca de 15 mil médicos se formaram na Elam em 25 especialidades distintas.
Isso se reflete nos avanços em vários tipos de tratamento, inclusive em altos desafios, como vacinas para câncer do pulmão, hepatite B, cura do mal de Parkinson e da dengue. Hoje, a indústria biotecnológica cubana tem registradas 1.200 patentes e comercializa produtos farmacêuticos e vacinas em mais de 50 países.
Presença de médicos cubanos no exterior
Desde 1963, com o envio da primeira missão médica humanitária à Argélia, Cuba trabalha no atendimento de populações pobres no planeta. Nenhuma outra nação do mundo, nem mesmo as mais desenvolvidas, teceu semelhante rede de cooperação humanitária internacional. Desde o seu lançamento, cerca de 132 mil médicos e outros profissionais da saúde trabalharam voluntariamente em 102 países.
No total, os médicos cubanos trataram de 85 milhões de pessoas e salvaram 615 mil vidas. Atualmente, 31 mil colaboradores médicos oferecem seus serviços em 69 nações do Terceiro Mundo.
No âmbito da Alba (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América), Cuba e Venezuela decidiram lançar em julho de 2004 uma ampla campanha humanitária continental com o nome de Operação Milagre, que consiste em operar gratuitamente latino-americanos pobres, vítimas de cataratas e outras doenças oftalmológicas, que não tenham possibilidade de pagar por uma operação que custa entre cinco e dez mil dólares. Esta missão humanitária se disseminou por outras regiões (África e Ásia). A Operação Milagre dispõe de 49 centros oftalmológicos em 15 países da América Central e do Caribe. Em 2011, mais de dois milhões de pessoas de 35 países recuperaram a plena visão.
Quando se insurge contra a vinda de médicos cubanos, com argumentos pueris, o CFM adota também uma atitude política suspeita: não quer que se desmascare a propaganda contra o regime de Havana, segundo a qual o sonho de todo cubano é fugir para o exterior. Os mais de 30 mil médicos espalhados pelo mundo permanecem fiéis aos compromissos sociais de quem teve todo o ensino pago pelo Estado, desde a pré-escola e de que, mais do que enriquecer, cumpre ao médico salvar vidas e prestar serviços humanitários.
Fonte: Blog do Porfírio

segunda-feira, 6 de maio de 2013

A educação latino-americana em evidência: Cuba x Brasil







Cuba aparece nos dados comparativos da ordem mundial burguesa, como o primeiro país em controle do analfabetismo. Modelo educacional brasileiro é o oposto e está relacionado à vitória do capital transnacional










Por Roberta Traspadini na Rádioagência NP





Depois da queda do muro de Berlim e da ofensiva neoliberal na América Latina, propagandeia-se o fim do socialismo cubano e a vitória hegemônica do capitalismo monopólico transnacional.

Se é verdade que o fim Guerra Fria trouxe uma fragilização do socialismo real no âmbito mundial, também o é que o exemplo educacional cubano segue forte, na condução de um modelo educacional público, universalizado, gratuito e de qualidade.

O exemplo cubano

A UNESCO, em seu relatório mundial sobre educação em 2011, fez uma radiografia do sistema cubano e explicitou porque este país é um exemplo concreto para o mundo de uma educação exitosa.

O artigo 205 da constituição cubana garante a educação pública, gratuita e de qualidade para todos os seus cidadãos, independente da posição socioeconômica na qual se encontram.

Mas é o artigo 39 o que chama mais atenção, quando afirma três princípios básicos revolucionários de uma educação de qualidade: a. Garantia de avanço na ciência e na tecnologia; b. Referencial marxista e martiano de ser social que se pretende formar; c. Demarcação da tradição pedagógica progressista cubana e universal.

Juntos, os dois artigos explicitam o teor do público-gratuito-de qualidade. A sustentação em conteúdo de um posicionamento político que garante o direito à reflexão crítica e à formação continuada, com centralidade dos gastos do governo em educação.

Os aspectos qualitativos dos dados cubanos

Com uma população de 11.247.925, Cuba conta com 2.193.312 matriculados nas respectivas faixas etárias educativas.

São 9.673 escolas públicas, 298.508 professores, 170 mil bolsistas, e 908 mil estudantes em escolas semi-internas.

Segundo os dados oficiais referentes a 2010 e 2011, formaram-se 85.757 cubanos, 23,4% em cursos técnicos, 31,4% em ciências médicas, 14,9% em pedagogia, 9.9% em economia e 20,4% em outras áreas.

A participação em cursos de pós-graduação em 2010 merece destaque. Havia mais de 500 mil cubanos matriculados em cursos continuados após a graduação. 307.932 em cursos gerais; 144.640 em mestrados e especializações; 41.048 em diplomados; 27.047 em profissionalizantes, 5.776 em doutorados.

Para isto, são gastos 30% do PIB cubano, que é de U$60 bilhões, com educação, saúde e garantias sociais.

Vale destaque a ação internacionalista de Cuba, que recebe na escola latino-americana vários filhos da classe trabalhadora, tanto para cursos da área de ciências e humanidades, quanto de ciências médicas.

Com uma política concreta de educação pública de qualidade, Cuba aparece, nos dados comparativos da ordem mundial burguesa, como o primeiro país em controle do analfabetismo e exportador do modelo de alfabetização "sí yo puedo", em que, com recursos didáticos magistrais, ensina como ler nas letras o que já se lê no cotidiano.

Será o exemplo cubano um mero acaso? Um caso especifico? Ou será a confirmação da incompatibilidade entre desenvolvimento do capitalismo e pensamento crítico, com educação pública universalizada e princípios políticos claros sobre o ser social que se deseja (trans)formar?

E o caso brasileiro? O que temos a dizer?

O modelo educacional brasileiro é oposto de Cuba. O cotidiano manifesta, por si só, o fracasso da universalidade, gratuidade e supremacia do público no sistema educativo brasileiro, sendo oposto ao modelo cubano.

A atual falência do modelo brasileiro de educação está diretamente relacionada à vitória do capital transnacional na conduta política da ordem e do progresso brasileiro, a partir dos anos 90.

As reformas educacionais foram revendo os princípios constitucionais de garantia pública, gratuita e de qualidade, e direcionando seu sentido para a privatização da educação, cujo rumo é dirigido pelos princípios ético-morais do capital contando com o financiamento público, para a realização de sua orgia.

O vergonhoso piso mínimo salarial dos professores da educação básica e média, a política de contratação de temporários como regra e as inúmeras parcerias público-privadas são a gênese da atual educação "pública" brasileira.

Basta olharmos o cotidiano nacional de greves para constatarmos o absurdo. Nessa luta se insere a defesa dos 10% do PIB para a educação PÚBLICA.

O Brasil figura entre as sete maiores economias do mundo. O orçamento público de 2011 foi de aproximadamente R$1,5 trilhões. Deste total, 45% foram gastos com o pagamento de dívidas e amortizações e 3% foram gastos com educação, seja ela pública ou em parceria privada, segundo a auditoria cidadã da dívida.

O artigo 214 da constituição não prevê ser obrigação total do Estado a universalização da educação. Tem como objetivos a erradicação do analfabetismo; universalização do atendimento escolar; melhoria da qualidade do ensino; formação para o trabalho; promoção humanística, científica e tecnológica do País; e estabelecimento de meta de aplicação de recursos públicos em educação como proporção do produto interno bruto.

Chama a atenção, na página do MEC, o financiamento da educação, FIES, como outro aspecto claro de mercantilização deste direito social.

Exemplos concretos de mercantilização da educação

Para fortalecer a campanha pela melhoria da educação em que o poder público não assume seu protagonismo, a organização Todos pela educação, apresenta-se como uma entidade-apoio ao desenvolvimento brasileiro. Entre seus mantenedores-parceiros estão: Instituto Camargo Corrêa, Santander, Fundação Bradesco, Rede Globo, Suzano Papel Celulose, Gerdau, Itaú BBA, Instituto Ayrton Sena, Faber Castell, BID, HSBC, etc.

O canal Agência do Estado noticiou, esta semana, a fusão entre dois grandes capitais da educação brasileira: Kroton e Anhanguera. Juntas, faturam anualmente R$ 4,3 bilhões, através das 800 unidades de ensino superior e as 810 escolas associadas distribuídas pelo País.

No site da Anhanguera lemos sua missão: "ser uma das maiores instituições de ensino superior do mundo e oferecer aos seus alunos a melhor relação custo versus qualidade". Para isto, conta com financiamento, crédito educativo, e amplas formas de transações, enquanto uma empresa de capital aberto, para facilitar a permanência-conclusão dos estudantes no ensino.

No site da Krotan, além do mapa do Brasil ocupado pela empresa, reitera, via fundação Pitágoras, sua ação na "responsabilidade social", tendo como parcerias para a auto-sustentação financeira: Embraer, Grupo Gerdau, Instituto Camargo Correia, Grupo Votorantim, Fundação Arcelor Mittal e Instituto Unibanco".

Cuba x Brasil: dois modelos opostos de educação

A educação pública virou um grande negócio. Cantinas terceirizadas, venda de uniformes e de materiais escolares, sucateamento da merenda escolar. Isto, somado à falta de recursos para a qualificação profissional e às péssimas condições da superexploração da força de trabalho, mostra a real face mercantil da educação pública brasileira.

Esse Brasil da ordem e do progresso do capital transnacional evidencia o atual estágio de desenvolvimento do capitalismo brasileiro, em que a regra é a financeirização da riqueza e a internacionalização da produção-circulação das mercadorias, às custas de uma maior opressão das condições de vida da classe trabalhadora brasileira.

Entre o exemplo cubano e a realidade brasileira, façam suas escolhas. Nesse quesito, não tenho dúvida: sou cubana, bolivariana, latino-americana, na educação, na saúde, no modelo de desenvolvimento, antes que a morte anunciada pelo capital nos mate.

Roberta Traspadini é professora da ENFF e da UFVJM, integrante da Consulta Popular no Brasil.

sexta-feira, 3 de maio de 2013

É preciso contar a verdadeira história da Palestina


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Palestina - Brasil de Fato- Deir Yassin, como acontecimento e como representação política, permanece como componente decisivo da luta palestina por liberdade, mas a história da qual o massacre faz parte continua a sujeitar-se ao preconceito – ou, mais especificamente, ao racismo – da academia e da mídia.

No início de abril os palestinos do mundo inteiro relembraram o massacre de Deir Yassin, ocorrido em 9 de abril de 1948. Na consciência palestina, o massacre, que tirou a vida de mais de 100 pessoas inocentes, representou a face cruel do sionismo – a base ideológica sobre a qual o Estado de Israel foi fundado. Ao longo dos anos, as lembranças aterradoras associadas a Deir Yassin transformaram-se em algo mais do que sua representação imediata como ato criminoso deliberado, com objetivos políticos, e sobreviveram como uma cicatriz permanente no centro de uma memória coletiva carregada de muitos massacres como o de Deir Yassin.
Deir Yassin, como acontecimento e como representação política, permanece como componente decisivo da luta palestina por liberdade, mas a história da qual o massacre faz parte continua a sujeitar-se ao preconceito – ou, mais especificamente, ao racismo – da academia e da mídia.
O massacre de Deir Yassin é amplamente aceito no pensamento israelense e ocidental porque os líderes sionistas da época desejavam destacá-lo como uma tática terrorista bem-sucedida para tirar centenas de milhares de palestinos das terras que lhes pertenciam. Entretanto, outros massacres cometidos pelas forças sionistas durante a Nakba (catástrofe) palestina passam ao largo do conhecimento israelense e ocidental sobre a Palestina e sua história encharcada de sangue, e isso porque esses massacres foram contados, em sua maioria, apenas pelos palestinos.
Trata-se de uma tragédia na qual nem a vítima obtém justiça nem sua vitimização é admitida por aquilo que foi e é. Muitos massacres cometidos contra palestinos estão ocultos porque, a menos que sejam reconhecidos por historiadores israelenses, para as audiências ocidentais é como se eles nunca tivessem acontecido.
Somente quando o jornalista israelense Amir Gilat decidiu publicar um artigo, alguns anos atrás, no jornal israelense Ma'ariv, citando a pesquisa de Theodore Katz, estudante de pós-graduação de Israel, foi que a mídia ocidental reconheceu, ou ao menos concordou em debater, o massacre de Tantura. Pouco lhes importou que descendentes e familiares das 240 vítimas dessa vila destroçada, assassinadas a sangue-frio pelas tropas da Brigada Alexandroni, nunca cessassem de relembrar seus entes queridos.
Ao longo dos 65 anos da conquista sionista da Palestina e do início do "problema dos refugiados palestinos" – que também pode ser lido como "genocídio" por quem ousa enfrentar as sensibilidades israelenses-ocidentais –, a história da Palestina vem sendo filtrada pelos mesmos mecanismos de décadas atrás. No entanto, é hora de o direito à narrativa verossímil, até agora reservado aos historiadores israelenses, ser assumidamente desafiado.
Quem cavar fundo o texto histórico palestino ficará admirado com a história verdadeira de seu povo, suas muitas tragédias e suas volumosas, fascinantes narrativas de uma civilização profundamente arraigada, insuperável em suas singularidade e continuidade históricas. A representação – ou falsificação – da narrativa palestina, porém, existe na academia, na mídia e até mesmo na imaginação popular ocidentais, tecida por um "conhecimento" cuidadosamente fabricado com o qual os narradores israelenses gentilmente decidiram revesti-la. Remova-se o vínculo israelense com a compreensão ocidental sobre tudo o que diz respeito à Palestina e ter-se-á um espaço vazio de textos desconexos que têm muito pouco de um discurso alternativo.
O caso de Deir Yassim foi largamente aceito como massacre porque historiadores israelenses como Benny Morris – um pesquisador razoavelmente honesto que permaneceu comprometido com o sionismo, a despeito da história macabra que ele mesmo descobriu – admitiram sua existência como fato histórico. "Famílias inteiras foram perfuradas por balas [...] homens, mulheres e crianças foram chacinados à medida que saíam de suas casas; indivíduos eram postos de lado e assassinados. A inteligência da Haganah relatou: 'Havia pilhas de mortos. Alguns dos detidos, levados a locais de encarceramento, incluindo mulheres e crianças, eram cruelmente assassinados por seus captores [...]".
Foram as milícias sionistas do Irgun, de Menachem Begin, e da Stern Gang, lideradas por Yitzhak Shamir, que receberam o crédito pela infâmia cometida naquele dia – e ambos os líderes foram generosamente recompensados pela atrocidade de seus atos. Anos depois, esses homens passaram da condição de criminosos procurados para a de primeiros-ministros.
O massacre de Tantura tem uma boa chance de deixar de ser mera ficção palestina e tornar-se história verdadeira porque um estudante israelense resolveu desafiar o discurso oficial de seu país, que insiste em retratar Israel como um oásis de democracia e de pureza histórica.
Numerosas vilas palestinas e seus habitantes, submetidos ao genocídio de 1948 (conhecido, nos círculos polidos, como "limpeza étnica"), não conseguiram fazer o corte histórico, como se continuassem a esperar que um historiador israelense validasse a afirmação de que esse genocídio realmente ocorreu.
Numa comunicação recente, o dr. Salman Abu Sitta, um dos principais historiadores palestinos da Nakba, disse: "A ironia é que aquilo que o suspeito Benny Morris e o respeitado Ilan Pappé escreveram é o que os palestinos vêm dizendo há mais de seis décadas. A mídia dominada pelo sionismo é surda e muda. Trata-se do orientalismo em sua pior forma". Sem dúvida.
Massacre de Tantura
O assunto, entretanto, é tão relevante hoje como era há 65 anos. Os descendentes dos que sobreviveram à Nakba e às subsequentes guerras e massacres são, em sua maioria, refugiados na própria Palestina ou em outros países do Oriente Médio e do mundo. Nem seus ancestrais receberam justiça, nem a geração atual obteve a restituição do que pertencia a seus ascendentes. De Deir Yassim a Tantura, de Ain Al Hilweh a Yarmouk e Jabalya, a escala de sofrimento é a mesma, e permanente.
Mas isso precisa mudar. Sem uma narrativa palestina autêntica, isenta de adulterações, nenhum entendimento verdadeiro da Palestina e de seu povo – até mesmo por aqueles considerados simpáticos à causa palestina – pode ser alcançado. Uma narrativa centrada em relatos que reflitam a história, a realidade e as aspirações da gente comum permitirá uma compreensão genuína da verdadeira dinâmica que move o conflito. Essa narrativa, que faz justiça a toda uma geração de palestinos, é poderosa o bastante para desafiar a parcialidade e a polarização atuais.
Deir Yassin deve ser tão relevante para o presente como essencial para revelar o passado. Não apenas existiram muitos massacres como Deir Yassin, de variadas formas, como Deir Yassim é o microcosmo de um drama muito maior, que continua acontecendo na Palestina. Se o Deir Yassin original, e outros massacres, forem desprezados, considerados anomalias históricas irrelevantes, então o presente permanecerá contaminado e incompreendido.
É tempo de os historiadores palestinos darem um passo adiante e reivindicarem o que é, essencialmente, a sua narrativa, desafiando os preconceitos da mídia e avançando, com coragem, além dos limites permitidos por Israel, desafiando também, portanto, o controle intelectual sobre o discurso palestino.
*Ramzy Baroud, palestino da diáspora, é colunista internacional e editor do site Palestine Chronicle (http://palestinechronicle.com). Seu mais recente livro é My Father Was a Freedom Fighter: Gaza's Untold History [Meu pai era um revolucionário: a história não contada de Gaza], publicado pela Pluto Press.