quarta-feira, 12 de junho de 2013

Alarme de incêndio: o fascismo espreita a crise


 POR MILTON PINHEIRO   no CORREIO DA CIDADANIA



No último dia 5 de junho, o jovem estudante Clément Méric, 18 anos, foi espancado até a morte por hordas fascistas na cidade de Paris, França. O triste fato, mais que um acontecimento político, desperta o alarme de incêndio na sociedade em tempos de crise. A sociedade tardo-burguesa, na aurora do século XXI, tem se mostrado incapaz de produzir uma solução estratégica que possibilite a saída da crise e a continuidade da lógica capitalista; no entanto, continua em vigor a manutenção do seu projeto societário através de agressivos ajustes ideológicos. Essa crise cresceu, expandiu-se sobre a sociedade e consolidou-se numa crise sistêmica que está colocando em xeque as instituições da ordem burguesa e o sistema capitalista, expondo a crescente erosão institucional desse sistema predatório.

A particularidade mais visível da crise sistêmica global, que é a crise financeira mundial, já se estende por um período de seis anos e continuará por um tempo ainda mais longo. Não existe uma causalidade única para a crise, mas, examinando esse processo, a partir das descobertas científicas de Marx n´O Capital, pode-se concluir que essa crise tem na superprodução seu elemento determinante. Apesar de o Estado burguês ter injetado uma quantidade substancial de recursos para evitar o aprofundamento da crise, o equilíbrio do sistema está cada vez mais distante. O que se apresenta na cena do capitalismo é a anarquia social da produção. O descompasso entre oferta e demanda tem aprofundado a erosão do sistema, gerando pobreza para o conjunto dos trabalhadores e luxo exorbitante para a burguesia. Apesar do aporte de cifras substanciais por parte do fundo público – algo em torno de alguns trilhões de dólares para evitar o colapso do sistema bancário –, a fome ataca centenas de milhões de pobres em todo o mundo e aprofunda o pauperismo dos trabalhadores.

Esse ciclo de erosão societária remete a um processo de restauração tardo-burguesa. A degeneração ideológica do pensamento burguês falsifica e naturaliza a crise através da violência do Estado, quando ataca os direitos sociais dos trabalhadores, quando avança sobre o fundo público, quando modifica a legislação colocando em seu lugar regulações reacionárias e que vão, via o aparato jurídico-político, esgarçando o tecido social.

Estamos começando um período histórico em que a crise levará à abertura da cena política, quando o imponderável poderá se tornar realidade numa velocidade extraordinária. Os efeitos desse projeto de barbárie já se manifestam para além do aumento da recessão, do desemprego, do eclipse financeiro. Esses fatores se consolidam na crise de subjetividade dos trabalhadores, na xenofobia crescente que se alastra pela Europa e, até mesmo, na periferia de São Paulo (vide o tratamento dispensado aos bolivianos), no racismo que infesta os estádios na Europa, no rigor com que a “classe média” exige novas leis para punir os pobres (vide a campanha pela mudança na maioridade penal no Brasil), nas legislações fascistas que visam impedir que os comunistas disputem as eleições (Hungria), na ascensão do populismo neofranquista na Espanha, no crescimento dos partidos fascistas na Grécia, Holanda, Itália e Áustria.

Acendeu o alarme de incêndio, precisamos do freio de emergência para conter a barbárie. A crise sistêmica está erodindo as estruturas da institucionalidade burguesa e essa classe começou a construir brechas para a ação do fascismo. A morte do jovem lutador Clément Méric deve iluminar a compreensão sobre os caminhos a trilhar e as lutas a desenvolver, agora, no fogo da conjuntura.

O fascismo, em síntese, é uma possibilidade política de caráter social conservador que se apresenta durante o período do imperialismo capitalista para tentar se consolidar no desenvolvimento do capitalismo monopolista, apresentando-se como um instrumento de modernização social de corte irracionalista, alimentado por uma cultura de consumo dirigida a partir da vigência do capital financeiro. Essa sociedade da lógica tardo-burguesa tem estimulado a guerra imperialista, desenvolvido o misticismo da aparência para fugir da ciência e da filosofia, se aquartelando nos “nacionalismos chauvinistas”, no anticomunismo e nas saídas da contrarrevolução permanente (governos da ordem neoliberais).

Diante desse processo de emergência se faz necessário a “unidade da teoria e da prática”, como pensado por Marx. É importante acabar com o espaço político para a manobra fascista que se utiliza do pragmatismo radical, e suas técnicas de propaganda, para fazer a disputa ideológica, agindo em campo aberto de forma “antiliberal, antidemocrático, antissocialista, antioperário”, aplicando, em muitos momentos, a violência física, estabelecendo o medo e o terror.

Contudo, a abertura da cena política, com sua imprevisibilidade, está forjando um mundo em convulsão que tem movimentado milhões de trabalhadores. Partem da indignação, se comportam de forma espontaneísta, balançam estruturas com greves e manifestações. A história do tempo presente está lançando uma palavra de ordem: urge a auto-organização dos trabalhadores. É tarefa da emergência histórica organizar a vanguarda para, quando os trabalhadores se movimentarem, ter condições políticas de dirigir as batalhas que a luta de classes acena. Numa só palavra, precisamos da construção do operador político enquanto sujeito coletivo que tenha capacidade de formular e agir a partir de um projeto orgânico dos trabalhadores. Esse operador político se constitui de forma diversa para, a partir da unidade do bloco revolucionário do proletariado, fazer o enfrentamento à ordem do capital, impedindo assim que o fascismo em seu novo ciclo vença. Ao mesmo tempo, esse instrumento de vanguarda, orgânico aos trabalhadores, deve construir a possibilidade da revolução.

Milton Pinheiro é professor de Ciência Política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), autor/organizador, entre outros, do livro Teoria e prática dos conselhos operários, juntamente com Luciano Cavini Martorano, no prelo (Expressão Popular, São Paulo, 2013).

Lições de Castells sobre indignação


 Juremir Machado no Correio do Povo
Indignação e (des)esperança
Muita gente boa não está entendendo coisa alguma do que anda acontecendo no mundo. Alguns continuam achando que ainda estamos no tempo de Margaret Thatcher e de Ronald Reagan. O problema é que, como dizia uma música, o tempo não para. E as modas passam. O sociólogo espanhol Manuel Castells veio a Porto Alegre falar no ciclo de palestras “Fronteiras do Pensamento”. Já num opúsculo intitulado “Redes de indignação e esperança – movimentos sociais na era da internet”, ele detonou as convicções dos que persistem em criminalizar os movimentos sociais.
Castells sustentou o óbvio que mesmo parte da mídia não quer admitir: a internet está liquidando o monopólio da opinião e da informação. As primaveras árabes não ficarão restritas aos seus pontos de origem. Os indignados espanhóis e os ocupantes de espaços públicos norte-americanos aparecem por toda parte e por diferentes motivos. No Brasil, embora Castells não tenha dito isso, eles vêm se organizando contra o aumento abusivo de passagens de ônibus. Em Porto Alegre, atuaram também contra o corte das árvores da avenida Edvaldo Pereira Paiva. Chamá-los marginais não resolve mais. Só revela a um sintoma de um profunda mal-estar da sociedade. Segundo Castells, “torturar corpos é menos eficaz que moldar mentalidades”. Essa era a tarefa da mídia com seus discursos sobre a responsabilidade e a sensatez. Acabou. Ou disso só restam fantasmas turbulentos.
As redes sociais servem de contrapoder. Castells destaca a “autocomunicação de massa”, o uso horizontal da rede para “a construção da autonomia do ator social”. E explica: “É por isso que os governos têm medo da internet, e é por isso que as grandes empresas têm com ela uma relação de amor e ódio, e tentam obter lucros com ela, ao mesmo tempo que limitam seu potencial de liberdade”. A rede é emancipadora. Ela permitiu, por exemplos, aos indignados e aos desesperados, “os 99% sacrificados em benefício do 1% que controla 23% da riqueza” dos Estados Unidos, passarem a sua mensagem.
Castells torpedeia: “De onde vêm os movimentos sociais?” As respostas podem sair da boca de uma criança, mas dificilmente dos lábios de um colunista da Veja ou do Estado de S. Paulo, salvo se for um prêmio Nobel como Paul Krugman: “Da exploração econômica, pobreza desesperançada, desigualdade injusta, comunidade política antidemocrática, Estados repressivos, judiciário injusto, racismo, xenofobia, negação cultural, censura, brutalidade policial, incitação à guerra, fanatismo religioso (frequentemente contra crenças religiosas alheias), descuido com o planeta azul (nosso único lar), desrespeito à liberdade pessoal, violação da privacidade, gerontocracia, intolerância, sexismo, homofobia e outras atrocidades da extensa galeria de quadros que retratam os monstros que somos nós”. Parte da mídia zomba disso tudo.
Os fatos acontecem, a mídia os aborda e parte dela não os compreende. Noticia-se o futuro de olho no passado. Nichos conservadores regalam-se com a defesa dos seus privilégios e preconceitos. Enquanto isso na internet os jovens indignados ocupam a primeira página e exigem mudanças.

domingo, 9 de junho de 2013

Israelenses falsificam documentos para confiscar terras palestinas

Israelenses falsificam documentos para confiscar terras palestinas

documentos-falsosRamallah – Autoridades palestinas detectaram dezenas de falsificações de documentos por companhias israelenses para expropriar terras e construir assentamentos paramilitares, afirmou um porta-voz oficial hoje.
Os títulos falsificados incluem 25 na aldeia de Marda, no nordeste da Cisjordânia, precisou Mohammad Elias, encarregado do governo palestino de rastrear casos relacionados com o chamado muro da ignominia e os assentamentos.
Documentos similares foram encontrados na aldeia de Qarawat Bani Hassan depois que na quinta-feira passada as autoridades da ocupação anunciaram a construção de uma estrada entre o assentamento de Maale Adumin e Jerusalém, levado à aprovação do comitê de planejamento do governo israelense, segundo o jornal Haaretz.
Estamos procurando todas as ferramentas legais para resistir as tentativas das companhias construtoras israelenses encarregadas de controlar e confiscar terras, disse Elias.
A construção de assentamentos paramilitares para emigrantes ultra-sionistas é um dos principais obstáculos para a retomada das conversas de paz, estancadas desde 2010.
Fonte: Prensa Latina

sábado, 8 de junho de 2013

As prostitutas na história – de Deusas a Escória da Humanidade


POR PATRÍCIA PEREIRA em UOL-Leituras da História
Que a prostituição é popularmente conhecida como a profissão “mais antiga do mundo”, todos sabem. E, desde que o mundo é dito civilizado, sempre houve prostitutas pobres e prostitutas de elite. O lado desconhecido dessa história é que a imagem a respeito delas nem sempre foi a que temos atualmente. As meretrizes já foram admiradas pela inteligência e cultura, e também já foram associadas a deusas – manter relações sexuais com elas era necessário para conseguir poder e respeito. As “mulheres da vida” sempre tiveram um lugar na História, mas, ao longo dos anos, seu status passou de respeitável à condenável.
Maria Regina Cândido, professora de graduação e de pós-graduação em História, e coordenadora do Núcleo de Estudos da Antiguidade (NEA), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica que a conotação de ser ou não bem-vista pela sociedade é um olhar de nosso tempo sobre as prostitutas. “Na antiguidade, elas tinham seu lugar social bem definido. Era uma sociedade que determinava a posição de cada um, que precisava cumprir bem o seu papel em seu espaço e não migrar de função”, diz Maria Regina.
Lá atrás, no período da pré-história, a mulher era associada à Grande Deusa, criadora da força da vida, e estava no centro das atividades sociais, explica Nickie Roberts, no livro As Prostitutas na História. Com tal poder, ela controlava sua sexualidade. Nessas sociedades pré-históricas, cultura, religião e sexualidade estavam interligadas, tendo como fonte a Grande Deusa, conhecida inicialmente como Inanna e mais tarde como Ishtar. Os homens, ignorantes de seu papel na procriação, não eram obsessivos pela paternidade. Foi essa preocupação com a prole que, mais tarde, levou ao surgimento das sociedades patriarcais, com a submissão da mulher.

Por volta de 3.000 a.C., tribos nômades passaram a criar gado e tornaram-se conscientes do papel masculino na reprodução. As sociedades matriarcais da deusa começaram a ser subjugadas. As primeiras civilizações da era histórica desenvolveram-se na Mesopotâmia e no Egito, e nasceram desse levante. Novas formas de casamento foram introduzidas, especificamente destinadas a controlar a sexualidade das mulheres, afirma a escritora. “Foi nesse momento da história humana, em torno do segundo milênio a.C.,
que a instituição da prostituição sagrada tornou-se visível e foi registrada pela primeira vez na escrita”, explica Nickie.

AS PRIMEIRAS PROSTITUTAS DA HISTÓRIA
As grandes cidades da Mesopotâmia e do Egito continuaram centralizadas nos templos da Grande Deusa. As sacerdotisas dos templos, que participavam de rituais sexuais religiosos, ao mesmo tempo mulheres sagradas e meretrizes, foram as primeiras prostitutas da História, conta Nickie Roberts. O status dessas mulheres era elevado. Os reis precisavam buscar a benção da deusa, por meio do sexo ritual com as sacerdotisas, para legitimar seu poder. “Nessa época, as prostitutas do mais alto escalão do templo eram, por direito nato, agentes poderosas e prestigiadas; não eram as meras vítimas oprimidas dos homens, tão protegidas pelas feministas modernas”, escreve Nickie Roberts.

A Suméria criou a segregação feminina ao colocar em lados opostos a esposa obediente e a prostituta má.
Julio Gralha, professor do NEA/UERJ, lembra que a visão sobre as prostitutas da época é pouco documentada de forma escrita, mas pode ser inferida pelas imagens das iconografias. “Pela análise da iconografia, a prostituta existia no Egito e atuava de forma remunerada.
Há contos iconográficos, cômicos, em que a prostituta é vista como poderosa, o homem não agüenta. Como aparecem o colar e outros símbolos ligados à deusa, elas são vistas como protegidas. A prostituição não era algo repulsivo ou condenado pela religião”, diz Gralha.

UM NEGÓCIO ORGANIZADO NA GRÉCIA
Com o passar do tempo, a independência sexual e econômica da prostituta tornou-se uma ameaça à autoridade patriarcal. Por isso, a religião da deusa foi combatida pelos sacerdotes hebreus e, aos poucos, suprimida. Os rituais sexuais viraram pecados graves e as sacerdotisas, pecadoras.

“As principais religiões patriarcais que se seguiram – o cristianismo e o islamismo – reconheceram o impacto devastador do estigma da prostituta na divisão e regulamentação das mulheres”, explica Nickie Roberts.
A Grécia antiga foi uma típica sociedade patriarcal. As mulheres não podiam participar da vida política e social. No entanto, como aconteceu a todas as sociedades antigas, os primeiros habitantes da Grécia foram povos adoradores da deusa, afirma Nickie. Os deuses masculinos só vieram mais tarde, por volta de 2.000 a.C., com os invasores indo-europeus. As duas culturas fundiram-se e produziram o híbrido que chegou até nós. Basta lembrar que Zeus, divindade suprema indo-européia, casou-se com Hera, poderosa deusa sobrevivente do culto anterior.

A negação total do poder da mulher na sociedade grega é decorrente do governo de uma série de ditadores homens. Sólon, que governou Atenas na virada do século VI a. C., foi o principal deles, tendo institucionalizado os papéis das mulheres na sociedade grega. Passaram a existir as “boas mulheres”, submissas – e as outras. Foi também Sólon quem, percebendo os lucros obtidos pelas prostitutas – tanto as comerciais quanto as sagradas -, organizou o negócio, criando bordéis oficiais, administrados pelo Estado. Neles, havia grande exploração das mulheres, que eram praticamente escravas. Junto com os bordéis oficiais, muitas meretrizes independentes exerciam o seu comércio, apesar da legislação de Sólon. “Pela primeira vez na História, as mulheres estavam sendo cafetinadas – oficialmente. (…) Assim, de mãos dadas, nasceram a cafetinagem estatal e privada”, afirma Nickie.
Maria Regina Cândido, historiadora da UERJ, lembra que foi a pressão sobre a terra, com o grande aumento da população grega, que levou Sólon a criar os primeiros bordéis. Isso porque ele trouxe para a região estrangeiros ceramistas, com o intuito de ensinar à população excedente uma nova atividade, já que a agricultura não absorvia mais a todos.
“Para que os estrangeiros não molestassem as esposas e filhas de cidadãos gregos, ele criou um espaço de prostituição oficial na periferia da cidade, os bordéis”, explica a coordenadora do NEA.


Segundo Maria Regina, as prostitutas ficavam em frente ao cemitério, na região do cerâmico, onde estavam instaladas as oficinas dos ceramistas, e também na região do Porto do Pireu, onde eram chamadas de pornes, daí vem a palavra pornografia.

As prostitutas dos bordéis eram estrangeiras, trazidas para a Grécia exclusivamente para cumprir esse papel. Mas muitas mulheres gregas, depois de casamentos desfeitos por suspeita de traição ou outros desvios de comportamento, não viam outro caminho a não ser prostituir-se. Essas, estigmatizadas, juntavam-se às estrangeiras nos bordéis oficiais.
SÍMBOLO ÀS AVESSAS
Maria Madalena, famosa prostituta arrependida da Galiléia, representa que, para ser salva, a mulher precisa abandonar a profissão. Conhecida como a ex-prostituta da Galiléia, Maria Madalena foi uma das mais fiéis seguidoras de Jesus Cristo. De acordo com a Bíblia, ela estava presente em sua crucificação e em seu funeral. Foi ela quem encontrou vazio o túmulo de Jesus, ouviu de um anjo que ele havia ressuscitado e foi dar a notícia aos apóstolos.
Prostituta com papel de destaque na história de Cristo – foi, inclusive, canonizada pela igreja católica -, Maria Madalena poderia ter se tornado um símbolo na luta pela aceitação da atividade. Mas o que ocorreu foi o contrário: como personificou o estereótipo de “prostituta arrependida”, acabou por disseminar uma imagem negativa sobre a prostituição, ao reforçar a idéia de que é preciso abandonar a atividade para redimir-se dos pecados e ser perdoada por Deus.

Durante a Idade Média, as prostitutas atuantes eram excomungadas da igreja católica. Mas as que se arrependiam eram perdoadas e aceitas pela sociedade. Houve até um movimento de conversão, em que a igreja estimulou fiéis a “recuperar” prostitutas e casar-se com elas. Também surgiram comunidades monásticas de ex-prostitutas convertidas, que receberam o nome de “Lares de Madalena”. Elas proliferaram pela Europa, tendo sido financiadas, em sua maioria, pelo clero. Além de Maria Madalena, a igreja enalteceu diversas outras prostitutas que salvaram suas almas pelo arrependimento, como Santa Pelágia, Santa Maria Egipcíaca, Santa Afra e outras.
O curioso é que nenhuma passagem na Bíblia afirma que Maria Madalena foi prostituta. Os textos sagrados a mencionam como pecadora, de quem Jesus expulsou sete demônios, mas não especificam qual seria seu passado. Provavelmente, o que a levou a ser vista como prostituta foi a identificação com um relato de Lucas (7:36-50) sobre uma pecadora anônima, descrita de forma a sugerir ser uma prostituta, que em certa passagem unge os pés de Cristo. O relato de Lucas, a respeito de tal mulher arrependida, antecede a citação nominal de Maria Madalena. No Ocidente cristão, a versão de que Maria Madalena seria essa mulher foi a mais difundida. No Oriente, a mulher anônima e Maria Madalena são vistas como pessoas diferentes.
As prostitutas do templo de Afrodite deixaram de ser vistas como sacerdotisas e viraram escravas. Muitas prostitutas eram cultas e instruídas, e cumpriam o papel de entreter os líderes daquela sociedade. Cobravam alto preço por sua companhia e podiam ou não ceder aos desejos sexuais do cliente. São as hetairae, amantes e musas dos maiores poetas, artistas e estadistas gregos, explica Maria Regina. “As hetairae conduziam seus negócios abertamente em Atenas, trabalhando independentemente tanto dos bordéis do Estado quanto dos templos”, diz Nickie.
A prostituição sagrada também sobreviveu, embora timidamente, durante o período da Grécia clássica. Havia templos em toda a Grécia, especialmente em Corinto – dedicado à deusa Afrodite. As prostitutas do templo não mais eram vistas como sacerdotisas, eram tecnicamente escravas. Mas, por serem consideradas criadas da deusa, mantinham a aura de sacralidade e eram homenageadas pelos clientes. “Demóstenes pagava caro por essas prostitutas. Ele ia de Atenas até Corinto só para ter relações sexuais com elas”, diz
Maria Regina.

LIVRES NO IMPÉRIO ROMANO
Roma foi diferente da Grécia. Até o início da República, a prostituição não era tão disseminada no território romano. “Roma ainda era muito provinciana, fechada”, explica Ronald Wilson Marques Rosa, historiador e pesquisador do NEA/UERJ. A prostituição apenas se difundiu com a expansão militar do império romano e a conquista de escravos.
Antes desta expansão, há indícios de que entre os primeiros romanos, que eram povos agrícolas, existia a antiga religião da deusa, diz Nickie Roberts. Ela também afirma que, em tempos posteriores, a prostituição religiosa estava ligada à adoração da deusa Vênus, que era considerada protetora das prostitutas.

Após a expansão militar e territorial, “os escravos eram os prostitutos, tanto homens quanto mulheres. E não havia estigmatização, não era algo mal-visto. Era normal o uso comercial do escravo para a prostituição. E, muitas vezes, eles usavam esse dinheiro para conseguir a liberdade”, diz Ronald Rosa.
De acordo com Nickie, Roma foi uma sociedade sexualmente muito permissiva. ”Eles escarneciam de qualquer noção de convenção moral ou sexual e desviavam-se de toda norma que houvesse sido inventada até então”, afirma. A grande expansão urbana favoreceu o crescimento da prostituição. A vida era barata, e o sexo, mais barato ainda, diz a autora. Prostituição, adultério e incesto permearam a vida de muitos imperadores romanos. “Falando de modo geral, a prostituição na antiga Roma era uma profissão natural, aceita, sem nenhuma vergonha associada a essas mulheres trabalhadoras”, comenta Nickie.
A vida permissiva levava mulheres a rejeitar o casamento, a ponto de o imperador Augusto estabelecer multas para as moças solteiras da aristocracia em idade casadoira. Muitas se registraram como prostitutas para escapar da obrigação. O sucessor de Augusto, Tibério, proibiu as mulheres da classe dominante de trabalhar como prostitutas.

Diferente da Grécia, os romanos não possuíam e nem operavam bordéis estatais, mas foram os primeiros a criar um sistema de registro estatal das prostitutas de classe baixa. Isso resultou na divisão das prostitutas em duas classes, explica Nickie: as meretrices, registradas, e as prostibulae (fonte da palavra prostituta), não registradas.
A maior parte não se registrava, preferia correr o risco de ser pega pela fiscalização, que era escassa.

CONDENADAS NA IDADE MÉDIA
Com o declínio do Império Romano, começou a Idade Média. Os invasores, guerreiros bárbaros, organizam a vida não mais em grandes cidades e sim em aldeias agrícolas, que não favoreciam a prostituição como a vida urbana. “As artes civilizadas do amor, do prazer e do conhecimento – o erótico e os demais – desapareceram durante a Idade das Trevas. (…) a antiga tradição de uma sensualidade feminina orgulhosa e exaltadora desapareceu para sempre”, afirma Nickie Roberts. A igreja cristã perpetua-se e reprime a sexualidade feminina, ao censurar a prostituição.


Apesar de condenada, a prostituição foi tolerada pela igreja, que a considerou “uma espécie de dreno, existindo para eliminar o efluente sexual que impedia os homens de elevar-se ao patamar do seu Deus”, explica Nickie. A igreja condenava todo relacionamento sexual, mas aceitava a existência da prostituição como um mal necessário. De acordo com Jacques Rossiaud, autor de A Prostituição na Idade Média, “pode-se afirmar, sem receio de erro, que não existia cidade de certa importância sem bordel”.

Havia bordéis públicos, pequenos bordéis privados e também casas de tolerância - os banhos públicos. Além disso, continuavam a existir as prostitutas que trabalhavam nas ruas. Em tese, o acesso aos prostíbulos públicos era proibido para homens casados e padres, mas eles encontravam meios de burlar a legislação. Rossiaud escreve que as prostitutas não eram marginais na cidade, mas desempenhavam uma função.
Nem eram objeto de repulsão social, podendo, inclusive, ser aceitas na sociedade e casar-se depois que deixassem a vida de prostituta.

A liberdade sexual só era tolerada para os homens. As mulheres casadas e suas filhas, de boa família, deviam temer a desonra. Mas, de acordo com Rossiaud, essa liberdade masculina não sobreviveu à “crise do Renascimento”. Houve uma progressiva rejeição da prostituição, que revelava nas comunidades urbanas a precariedade da condição feminina. “Lentamente, a mulher conquistou uma parte do espaço cívico, adquiriu uma identidade própria, tornou-se menos vulnerável”, explica Rossiaud. E houve uma revalorização do casal.
Prostituição e violência aparecem pela primeira vez associadas, devido a brigas, disputas e assassinatos nos locais públicos. Autoridades municipais, apoiadas pela Igreja, passaram a coibir a prostituição que, a partir de então, “aparecia como um flagelo social gerador de problemas e de punições divinas”, afirma Rossiaud. Um após outro, os bordéis públicos foram desaparecendo. “A prostituição não desapareceu com eles, mas tornou-se mais cara, mais perigosa, urdida de relações vergonhosas”, diz Rossiaud. Para o autor, foi o “duplo espelho deformante do absolutismo monárquico e da Contra-Reforma” que fizeram parecer “decadência escandalosa o que era apenas uma dimensão fundamental da sociedade medieval.”

UMA PATOLOGIA PARA A MODERNIDADE
Na modernidade, segundo Margareth Rago, professora titular do departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora de “Os Prazeres da Noite”, a prostituição ganhou feições diferenciadas. Isso porque as mulheres conquistam maior visibilidade e atuação na sociedade. Surgiram novas formas de sociabilidade e de relações de gênero, com a criação de fábricas, escolas e locais de lazer e consumo. “Foram outros modos de vida, nos quais a mulher vai ter maior participação”, diz Margareth. Apesar da modernização dos costumes, a sociedade ainda é conservadora em relação às prostitutas.

Nesse contexto, nasceu o feminismo e a mulher reivindicou o direito de trabalhar e de estudar. O discurso sobre a prostituição ficou forte nesse período e virou debate médico e jurista. “Há um uso, não consciente, da prostituição para dizer que mulher direita não fuma, não sai de casa sozinha, não assobia na rua, não goza. O médico vai dizer que a mulher não tem muito prazer sexual, ela tem desejo de ser mãe. Já o homem tem e, por isso, precisa da prostituta” , afirma Margareth. De acordo com Margareth, é nessa época que as prostitutas passam a ser condenadas como anormais, patológicas, sem-vergonhas; uma sub-raça incapaz de cidadania. E a justificativa vai vir de teorias médico-científicas. “O que acontece é que a medicina do século XVIII usa os argumentos misógenos de Santo Agostinho e de São Paulo, e fundamenta cientificamente o preconceito contra a prostituta”, explica Margareth. “Diz que a prostituta é um esgoto seminal, uma mulher que não evoluiu suficientemente. São pessoas que têm o cérebro um pouco diferente, o quadril mais largo, os dedos mais curtos. Criam toda uma tipologia” , diz Margareth.
Para a autora de “Os Prazeres da Noite”, podemos diferenciar a imagem que se construiu da prostituta na modernidade para a visão que temos dela hoje em dia: ”Nos últimos 40 anos, mudou muito. O sexo está deixando de ser patológico, de estigmatizar o que pode e o que não pode. Não sei se acontecem mais coisas na cama de casados ou de uma prostituta. ”
“A revolução sexual transformou os costumes. Mas a sociedade ainda é conservadora e há forte preconceito contra essas mulheres”, diz Margareth.

REFERÊNCIAS
ROSSIAUD, Jacques. A Prostituição na Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. 224 pág.
RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). São Paulo: Paz e Terra, 2008. 360 pág.

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Revolucionar é preciso: a crise portuguesa (e nós?)


 MARCELO BADARÓ MATTOS   no CORREIO DA CIDADANIA


Entre o Brasil e Portugal há laços históricos e, em muitas de nossas famílias, sanguíneos, que nos fazem ter uma sensação muito própria de proximidade. No entanto, não temos visto muito espaço na imprensa empresarial brasileira para notícias e análises da crise por que passa a sociedade portuguesa no momento atual. Nem mesmo a esquerda brasileira parece muito interessada em prestar atenção ao que acontece daquele lado do Atlântico.

A direita, porém, está sempre atenta ao que lhe parece ameaçador. Faz alguns dias, Reinaldo Azevedo, colunista da revista Veja, publicou em seu blog uma nota sobre um debate ocorrido dias antes na TV portuguesa, tendo por tema “Mudamos de país ou mudamos o país?”, no qual, em determinado momento, uma das entrevistadas se envolveu em uma polêmica com um jovem da platéia*. Na versão de Azevedo, a debatedora é “a Marilena Chauí” de Portugal e o jovem um herói do “empreendedorismo”, que aos 15 anos criou uma marca de roupas e está tendo sucesso em tempos difíceis, demonstrando que a iniciativa individual é a saída para a crise. Como o jovem respondeu à debatedora, que o questionava sobre o valor dos salários dos trabalhadores da indústria têxtil, dizendo que era melhor ganhar o salário mínimo do que ficar no desemprego, sendo aplaudido por parte dos presentes, esse take do programa foi reproduzido pelo colunista, com os comentários de praxe. Exaltou-se a perspicácia do garoto moderno e apontou-se o atraso da pesquisadora acadêmica.

Não perderei tempo analisando Reinaldo Azevedo, a Veja, ou mesmo comentando a tal ideia do tipo é melhor comer só farinha que passar fome, exposta pelo raciocínio do rapaz, ao defender implicitamente o programa de redução salarial em curso em Portugal. Não merecem. Apenas preciso que a “Marilena Chauí” portuguesa é Raquel Varela, historiadora reconhecida internacionalmente por seus estudos sobre a Revolução dos Cravos e sobre os trabalhadores do setor da construção naval e militante política cada vez mais conhecida dos portugueses por suas intervenções em dezenas de debates públicos, em centros sociais, rádios e TVs. Neles tem demonstrado (ancorada em estudos sérios e pormenorizados) as falácias da argumentação dominante sobre os altos custos do Estado Social, empregadas para justificar os cortes em salários, aposentadorias e outros direitos dos trabalhadores. Já o jovem “empreendedor” é Martim Neves, cuja fala, devidamente editada, foi reproduzida imediatamente após o programa em páginas eletrônicas como a do “microcrédito” do banco Millenium BCP e as de editores de grandes jornais diários. Como se apurou pouco depois, o seu “empreendimento” resume-se a estampar a sua logomarca (cujo registro só foi requerido no dia seguinte ao programa) em camisetas e moletons simples. Mas é claro que a propaganda feita durante e após o debate o levou a um novo “patamar de vendas”, conforme se depreende pelos pedidos não atendidos registrados no facebook do “empreendimento”.

O que estava em debate, entretanto, é algo mais importante. Para além do trecho recortado por Azevedo e pela direita portuguesa de forma geral, há uma resposta de Raquel Varela omitida na edição que circula na rede. Nela, a historiadora classifica o salário mínimo português (de 432 euros) como “uma vergonha”, e demonstra como esse valor é insuficiente para sustentar dignamente os trabalhadores e trabalhadoras portugueses, assim como do resto do mundo, e lembra que tanto a redução da massa salarial interna quanto a imigração de portugueses que se quer hoje forçar visam simplesmente instalar uma arena de competitividade por baixos salários na Europa, de forma a ampliar a margem de lucro dos capitalistas que, desde 2008, têm se fartado de demitir, achatar salários e ainda assim serem prodigamente subsidiados pelo Estado. Defendendo a estatização dos bancos, a ruptura com a “troika” (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia), o não pagamento da dívida e a ruptura com o euro, além de relembrar o 25 de abril para propor a atualidade da saída revolucionária, Raquel Varela realmente tem incomodado à classe dominante portuguesa.

A referência que faço ao debate na TV e à replicação por aqui da grita da direita portuguesa contra a representante de uma proposta política radicalmente alternativa tem também um outro objetivo: chamar a atenção para o fato de que a sociedade portuguesa vive um momento de crise econômica, social e política. A taxa de desemprego atingiu 17,8% em abril, sendo da ordem de 42,5% o desemprego entre os jovens (segundo os dados da agência europeia Eurostat). Dados locais indicam 1 milhão e 400 mil desempregados em uma população economicamente ativa de 5,4 milhões de pessoas (no total de 10 milhões e meio de portugueses e portuguesas). Ao mesmo tempo, aposentadorias e salários do setor público foram cortados e 80% dos empregados ganham menos de 900 euros por mês. A precarização das relações de trabalho atinge boa parte desses que ainda não vivem o desemprego completo, numa força de trabalho que é relativamente jovem e altamente qualificada. São 1,3 milhão de graduados com nível superior e mais de 30 mil doutores formados pelas Universidades portuguesas.

Momentos como esses abrem espaço para o acirramento dos conflitos sociais e é a isso que estamos assistindo em Portugal. Foram já cinco greves gerais nos últimos cinco anos. A próxima já está convocada para 27 deste mês de junho. Há manifestações todos os dias (não é exagero retórico) nas ruas portuguesas. E são, algumas delas, as maiores manifestações da história do país, como a de 2 de março último, que levou às ruas de dezenas de cidades portuguesas mais de 1 milhão e 500 mil pessoas. A luta, é certo, não é apenas portuguesa. No último dia 1 de junho, um chamado à mobilização continental reuniu manifestantes em centenas de cidades europeias, do sul “periférico” (Portugal, Espanha, Grécia) ao centro financeiro do euro, em Frankfurt.

Mesmo com esse elevado nível de mobilização social, até aqui, o regime tem resistido. Nem mesmo o gabinete ministerial português caiu, apesar de todos os cartões vermelhos que a população acuada pelo desemprego e o avanço da miséria lhes apresenta. Tanto a direita declarada (PSD e CDS) no governo quanto os “socialistas” (PS) compartilham da mesma submissão aos desígnios da troika e o PS não parece querer se arriscar a ganhar eleições para se desgastar fazendo mais do mesmo. Já a oposição parlamentar de esquerda (especialmente o PCP e o Bloco de Esquerda), embora tenha sido progressivamente empurrada pelo povo nas ruas a uma posição de defesa da “demissão” do gabinete, não apresentou até aqui um projeto radicalmente distinto, propondo “renegociações”, políticas compensatórias e medidas “soberanas”, mas temendo sempre o “imponderável” da moratória ou da saída do euro. Nos sindicatos, a grande central – a CGTP –, dirigida principalmente pelos militantes do PCP, tende a limitar as mobilizações ao domínio econômico-corporativo da defesa dos salários e direitos do grupo cada vez mais reduzido de trabalhadores protegidos por contratos estáveis.

O resultado dessa combinação entre mobilizações multitudinárias de descontentamento e ausência de alternativas programáticas das direções mais representativas tem sido, até aqui, a sobrevivência de um regime democrático em que o teatro das eleições referenda governos títeres do poder de fato, emanado dos organismos supranacionais do capital, a ditarem as regras do jogo contra os interesses das maiorias trabalhadoras.

Pode uma situação dessa natureza se sustentar por muito tempo? Não há previsões infalíveis para o desenrolar da história. Podemos assistir na sequência à desmoralização completa das manifestações de massa. Afinal, como sustentar que milhões possam ir às ruas a cada mês, que diversas greves gerais se sucedam em poucos anos e que ainda assim nem um reles ministro caia de sua cadeira? Ou, de outro lado, é possível que se abra um período de inversão da correlação de forças a favor dos “de baixo”?

A segunda hipótese não pode ser dada como certa, mas está no horizonte de possibilidades, especialmente porque falamos de um país que, há quase quarenta anos, viveu a última revolução social do Ocidente. Nele convivem uma geração de portugueses que protagonizou a Revolução dos Cravos e as gerações seguintes, que se beneficiaram das conquistas revolucionárias, mas são agora mais fortemente impactadas pelo retrocesso social pós-2008. Mesmo derrotada a revolução, seu legado de conquistas garantiu um Estado Social (como o chamam por lá), que permitiu aos que foram às ruas em 1974 ver seus filhos e netos completarem os estudos universitários num sistema público de educação, usufruírem de um sistema de saúde pública exemplar, se informarem através de um sistema de rádio e televisão públicos em que as telenovelas importadas do Brasil têm que competir em audiência com programas de debate político, como o citado no início deste texto, entre outras conquistas, sintetizadas pela transferência de renda de cerca de 15% do capital para o trabalho no período de 1974-1975.

Essa geração está hoje, em grande medida, aposentada (reformada, como dizem por lá) e, apesar dos cortes em seus rendimentos, vem equilibrando orçamentos familiares em meio a filhos e netos precarizados e desempregados. A construção de uma unidade nas lutas entre os “reformados”, com o aprendizado organizativo das jornadas de 1974-1975, os precarizados/desempregados – que começam a ir para as ruas na conjuntura atual desprovidos do aparato sindical dos trabalhadores formais – e os setores mais combativos da classe trabalhadora sindicalmente organizada, pode fazer a diferença e significar o ponto de inflexão na correlação de forças. Resta saber se os que propõem tal estratégia conseguirão representatividade em meio às organizações que surgiram do 25 de abril e às novas formas organizativas que emergem das lutas de hoje, e ainda se encontrarão eco social para suas propostas.

De qualquer forma, olhando aqui do Brasil, não consigo deixar de pensar em algumas questões. Sou historiador e estou acostumado a ouvir falar sobre presumidas “heranças” portuguesas na ex-colônia das Américas, como a ideia de um “patrimonialismo ibérico”, uma suposta confusão entre “público” e “privado”, que de fato só existe na cabeça daqueles que se recusam a aceitar o fato de que o Estado (o “público”) existe historicamente para sustentar os interesses – econômicos inclusive – das classes dominantes (o “privado”). Mais recentemente virou moda dizer que fomos aqui uma extensão territorial nos trópicos do “Antigo Regime” português, em chave explicativa que menospreza tanto o caráter escravista da sociedade que se desenvolveu nestas terras quanto o sentido de exploração que motivou a empreitada colonizadora. Queria eu, porém, ouvir falar de outras heranças e homologias entre Brasil e Portugal, num período mais recente. Preferiria, com certeza, ter assistido a algum tipo de influência mais direta da saída revolucionária de um regime ditatorial, como a de 1974 em Portugal, na chamada “transição democrática” brasileira. Assim como espero que o exemplo das mobilizações atuais daquele lado do Atlântico faça algum eco deste lado de cá.

* O programa chama-se “Prós e Contras”, é transmitido pela RTP1 e, embora seja transmitido após as 22h, possui enorme audiência para os padrões portugueses. A edição comentada foi ao ar em 20 de maio último pode ser assistida em http://www.rtp.pt/programa/tv/p29826/e15

Marcelo Badaró Mattos é professor da Universidade Federal Fluminense

terça-feira, 4 de junho de 2013

Avalanche ‘neoconservadora’ une grande mídia e governo


ESCRITO POR VALÉRIA NADER, DA REDAÇÃO  do CORREIO DA CIDADANIA





Medidas governamentais e noticiários dos últimos dias têm deixado de olhos arregalados uma boa porção daqueles que acompanham e creem no ‘neodesenvolvimentismo’ do governo atual, assim como no progressismo da mídia e na sua defesa diuturna da pluralidade e da liberdade de expressão. Neste sentido, dentre tantos acontecimentos e respectivas versões que têm dominado a pauta de governo e imprensa, dois deles podem ser tomados como ilustrativos: o último aumento da taxa de juros pelo Banco Central e mais um assassinato dentre os povos indígenas.

Voltando o olhar primeiramente para o contexto da nossa imprensa – afinal, quase onipresente na contemporaneidade em ditar as regras de corpos e mentes –, tais acontecimentos foram objeto de extensas reportagens pelos maiores veículos de comunicação nos dias que passaram. O tom maior foi de indisfarçado triunfalismo, no que diz respeito à decisão do Banco Central em elevar os juros para combater a inflação, afinal, uma prova de um governo que estaria tomando ‘juízo’. E quanto aos índios, escancarou-se, em linhas e entrelinhas, a visão dos povos originários como bárbaros invasores.

Grande mídia, Folha de S. Paulo e os juros

Entre estes veículos, os enunciados e análises da Folha de S. Paulo podem ser tomados como termômetro das falas e visões da quase maioria dos grandes órgãos de comunicação, para evitar delongas e a fim de não se cometer alguma injustiça. Afinal, ao contrário dessa maioria de veículos, que escancara seu conservadorismo, trata-se a Folha do órgão de mídia que, não raras vezes, se compraz em sua auto-identificação como progressista. Um coro que tem como portavozes, inclusive, colaboradores e colunistas já escalados para, vez ou outra, verbalizar e lembrar aos leitores das ações do diário em prol da democratização da informação.

No que diz respeito à nova taxa de juros, nas suas edições a partir de quarta-feira, 29 de maio, o diário trouxe extensa lista de matérias, editoriais e reportagens. Mesmo para quem já há bom tempo não mais se ilude com o tal ‘progressismo’ da Folha, chega a surpreender o tom monocórdio de tantas reportagens. Um legítimo ‘samba de uma nota só’, verdadeiro tratado em defesa da agenda conservadora, aquela que dita as regras do mercado financeiro, que tem por trás os grandes grupos econômicos, que obviamente lucram com a subida da taxa de juros em função de suas bilionárias aplicações nos títulos da dívida pública.

Luiz Carlos Mendonça de Barros, economista famoso e colunista do jornal, foi dos únicos estudiosos com espaço profuso a emitir sua opinião. No texto chamado ‘Um dia de cão na economia’, de sexta-feira, 31 de maio, aliviou-se com a ideia de que “um novo Banco Central emergiu das cinzas da instituição que comandou com mão de ferro o sistema de metas de inflação nos oito anos do governo Lula”. E comemorou sem volteios o fato de que “os mercados financeiros vão reagir com força à decisão tomada pelo Copom sobre os juros”. Para Mendonça, a presidente Dilma, quiçá, e finalmente, teria entendido que o aumento de juros é a melhor forma de controlar a inflação e promover o crescimento.

Segundo, ainda, o Editorial de sábado, 1 de junho, ‘Alta de credibilidade’, “a decisão do BC, apesar de amarga, vem em boa hora. Talvez consiga devolver alguma firmeza à gestão da economia, perdida em devaneios intervencionistas”. Pregando ainda uma ‘política fiscal mais responsável’ no lugar da ‘frouxidão orçamentária’, conclui que a nova decisão, à medida que incidir na queda da inflação, deve ajudar a presidente na corrida eleitoral do próximo ano. Ideias reforçadas no Editorial de domingo, 2 de junho, o qual, sob o título ‘Um Plano para Dilma’, faz uma série de sugestões, sempre de cunho liberal e privatizante, para o restante de seu mandato.

Engrossando, finalmente, este coro esteve ninguém menos que o ex-presidente do Banco Central sob Lula, o também colunista da Folha Henrique Meirelles. Citando o polêmico e emblemático caso chinês, Meirelles tem uma pista para a solução dos graves problemas do país: “medidas têm sido tomadas para transferir poder de decisão à iniciativa privada, eliminando controles e burocracia para facilitar o desenvolvimento dos negócios. Se exitosas, transformarão a China em competidor ainda mais forte e inovador, com maior equilíbrio no investimento e no consumo”.

E onde estão as vozes dissonantes de reconhecidos estudiosos, não necessariamente identificados à direita ou à esquerda do espectro político, e que têm visão diametralmente oposta, ou ao menos conflitante, com a ideia convencional de que a subida da taxa de juros é a solução para a inflação que se diz estar a galope no país? Aqueles que, por exemplo, ressaltam a influência da especulação nas bolsas de mercadorias de commodities agrícolas na atual oferta e preços de produtos comercializados internamente? E outros mais que destacam que, mediante a queda das exportações de commodities agrícolas e, por conseguinte, o menor resultado no saldo da balança comercial, o aumento da taxa de juros seria a forma de atrair capitais financeiros e especulativos, com o intuito de fechar o balanço de pagamentos? Provavelmente, estão em algum lugar bem distante da rua Barão de Limeira.

A Folha de S. Paulo e os índios

Não fosse pouco um culto escancarado da ortodoxia por aqueles que se dizem arautos da liberdade de expressão, mais atenção chama ainda um enviesamento jornalístico a cada dia mais próximo do obscurantismo na área de direitos humanos.

Após mais um confronto entre policiais e indígenas, envolvendo índios terenas no Mato Grosso do Sul, outro índio foi morto pela polícia. Na sexta-feira, 31 de maio, a chamada para matéria,‘Índio morre em confronto com a polícia’, é no mínimo muito ambígua, uma vez que pode sugerir uma ação mais deliberada dos indígenas – geralmente armados de arcos, flechas, lanças e facas – em seu confronto com a polícia – munida de armas de fogo de algo calibre. No sábado, 1 de junho, nova chamada induz o leitor a enxergar índios como bárbaros e baderneiros, ao dizer que ‘Índios invadem novamente fazenda em MS’. Afinal, estão entrando, e não invadindo, em áreas que lhes pertencem, de direito ancestral, e que somente não ocupam até hoje em função de uma homologação de terras indígenas que nunca se completa.

E aqui nem é preciso ir tão longe na denúncia da estreiteza de visão, desrespeito e afronta aos direitos dos povos originários, reconhecidos pela Constituição, mas secularmente negados pelos governantes de turno. É um dos próprios colunistas do jornal, daqueles poucos que têm independência opinativa em nossa grande mídia, que denuncia, em sua coluna de domingo, 2 de junho, a desconsideração para com estes povos. “A facilidade com que ainda se massacram os direitos e as vidas dos índios é uma homenagem que o Brasil presta ao seu passado genocida (...) As liminares e outros volteios judiciais que facilitam a usurpação de terras reconhecidamente indígenas, como se dá agora com a área Buriti, em Mato Grosso do Sul, são uma via direta para a miséria e a morte das populações indígenas”, declara Jânio de Freitas.

E o governo, por onde anda?

É de se pensar, nesta altura dos acontecimentos, onde está o governo em meio a tal conjuntura.

O lugar em que se coloca não é nada mais admirável que aquele ocupado pela mídia, pelo menos para quem se propõe a enxergar a realidade menos desavisadamente, ou com possibilidades de despir-se de noções falseadoras.

No que se refere à temática econômica, o governo Dilma e, anteriormente, o próprio governo Lula, tem sido acusado recorrentemente, pela imprensa e analistas conservadores, de intervencionista, dirigista e outros termos correlatos. Isso de forma a associá-lo a um ente distante dos ideais hipoteticamente criativos e libertadores decorrentes de um funcionamento mais livre das forças de mercado.

A ideia do intervencionismo é, por um lado, evitada pelos próprios governistas, de modo a não se indispor com sua base de apoio mais conservadora; mas, por outro lado, acalentada em meio à noção de neodesenvolvimentismo, sob a qual se tenta erigir a imagem de um governo progressista, que tem papel ativo em incluir os pobres ao mesmo tempo em que promove o desenvolvimento. Qual é, portanto, o teor de verdade dessa ideia de intervencionismo do governo Dilma?

Aqui são novamente os fatos que podem sugerir a melhor resposta. É inegável a maior atenção ao social, ainda que em sua maior parte focada em uma vertente assistencialista, assim como algum grau de ‘provocação’ (e não enfrentamento) ao capital financeiro, promovidos pelos presidentes petistas. Estão aí o Bolsa Família, os reajustes do salário mínimo, taxações impostas sobre a entrada do capital externo especulativo, dentre outros, para comprovar. No entanto, também estão presentes, de modo cabal, e desde o mandato lulista, a privatização das infraestruturas econômicas do país – mais sorrateira e disfarçadamente sob Lula e, agora, de forma mais escancarada. Portos, ferrovias, aeroportos, petróleo, energia e também o que restou das telecomunicações estão, a cada dia, mais distantes não somente das mãos do governo, mas também do controle público, em uma nação em que as agências reguladoras são, comprovadamente, bem mais articuladoras dos interesses econômicos do que dos direitos dos cidadãos. Os maiores beneficiários, ao final, e como a história do país tem confirmado, são os grandes grupos econômicos e privados externos, a partir da posição subalterna e associada do Estado nacional e da burguesia interna.

E a lista de submissão aos poderosos lobbies econômicos não para por aí. A desoneração da folha de pagamento de vários setores da economia interna, assim como uma série de medidas que vêm sendo levadas a cabo sob o rolo compressor da bancada ruralista, implicam no baixo grau de independência e autonomia na tomada de decisões internas de política econômica.

O intervencionismo, ou dirigismo, tão aventados por aí, não passam, assim, de mero jogo de palavras. Palavras, no entanto, com forte poder de persuasão sobre um governo que se perde em meio a uma extensa base de apoio e a poderosos lobbies econômicos. A atual subida da taxa de juros é acontecimento bastante sintomático desse quadro, vez que era a própria presidente Dilma que, até pouquíssimo tempo atrás, negava capitular frente às pressões para a sua elevação.

O chamado ‘neodesenvolvimentismo’ pode, portanto, ser tomado como uma ficção. Face a uma conjuntura internacional fortemente financeirizada e oligopolizada, com a crescente independentização do movimento internacional de capitais, resta exígua margem de manobra para a condução autônoma de políticas econômicas internas. Conjuntura que, obviamente, é agudizada pela dependência e subserviência de governos amparados em extensas e heterogêneas alianças políticas, reféns dessas alianças e, portanto, pouco propensos a promoverem confrontos mais pesados.

E resta uma palavra sobre a questão indígena, no caso, o assassinato de mais um índio no Mato Grosso do Sul, acima referido. Aqui, onde está o governo Dilma?

Certamente, este é tema para bem mais do que mil palavras, cabíveis em novo e profundo artigo. No entanto, forçoso é dizer que o atual mandato petista tem se mostrado, no mínimo, bem menos aberto ao diálogo com os movimentos e demandas sociais em geral do que o anterior. E, no caso em questão, são novamente os fatos que podem falar por si mesmos.

Morta a liderança indígena, a primeira providência do Planalto foi a convocação de uma reunião. Os convidados iniciais foram os interlocutores da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), ligados ao Ministério da Agricultura, sabidamente influenciado por representantes da bancada ruralista. A Funai, que tem visto seu papel na demarcação de terras indígenas cada vez mais reprimido, não foi convocada.

Em tempo

Talvez fosse interessante ao governo começar a avaliar uma troca de termos para se autodefinir. O neoconsevadorismo há tempos poderia lhe cair melhor que neodesenvolvimentismo.

Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania.