segunda-feira, 24 de junho de 2013

À Veja, Bernardo critica o PT, sepulta democratização das comunicações e diz que militância ‘fala besteira’



Reproduzido do Boca Maldita

Jogando em “campo inimigo”, o ministro Paulo Bernardo, das Comunicações, concedeu uma entrevista às páginas amarelas de Veja que tem potencial para acelerar seu divórcio com diversas forças do partido; chamado de “bom petista”, ele defendeu a condenação dos réus na Ação Penal 470, criticou a Lei de Meios, como tentativa de censura à imprensa e ainda garantiu que Lula não voltará em 2014; “A militância extrapola, e eu posso dizer que está errada, que está falando besteira”, disse Bernardo
do 247 – De covardia e medo do confronto, Paulo Bernardo, ministro das Comunicações, não poderá ser acusado. Neste fim de semana, ele é o entrevistado das páginas amarelas de Veja e sua fala tem tudo para aprofundar um cisma no partido em relação à sua posição no governo federal.
Classificado por Veja como um “daqueles raros e bons petistas que abandonaram o radicalismo no discurso e na prática”, Bernardo assume frontalmente sua oposição à uma Lei de Meios, que é uma das bandeiras do PT para democratizar a comunicação. “A militância extrapola, e eu posso dizer que está errada, que está falando besteira. Se ela não gosta da capa da revista, da manchete de jornal, quer que eu faça a regulação. Não vai ter regulação para isso”, avisa.
Sobre as eleições de 2014
Eduardo Campos é um aliado nosso que visivelmente quer ser candidato. A democracia pressupõe disputa. Não podemos achar que a Dilma deve ser a única candidata. Embora as pesquisas mostrem que ela tem todas as condições de ganhar, não vai ser uma eleição fácil (…) Se entrar mesmo na disputa, Eduardo Campos vai ser um candidato qualificado. O Aécio vai ser um candidato qualificado, com uma estrutura partidária maior. E tem a Marina, que é uma incógnita porque ainda não se sabe se conseguirá se viabilizar com tempo de televisão.
Volta de Lula
Ele está em ponto de bala. Se fosse candidato, seria um candidato fantástico, mas eu sei que ele não quer ser. Acho até que não teria justificativa. Nós temos uma presidente da República e vamos substituí-la a troco de quê? (…) Lula vai ser fundamental na campanha da Dilma.
A vaia no Mané Garrincha
Vaia em jogo de futebol não conta. Nós não temos de nos impressionar com isso. Houve uma diminuição na aprovação da presidenta e na aprovação do governo, mas eu não me preocupo.
Sobre os protestos
Nós temos de observar e entender esses protestos. Não dá para procurar chifre em cabeça de cavalo. No começo, eram manifestações contra o transporte público, que, convenhamos, é ruim mesmo.
Sobre a Ação Penal 470
Isso já foi julgado, já aconteceu e nós estamos tocando a vida. O governo tem trabalhado normalmente. Não temos dependência dessa situação. É preciso respeitar o resultado do julgamento. É democrático que haja debate se o veredicto foi rigoroso ou não, mas o debate tem de ser respeitado.
Sobre a Lei de Meios
A militância extrapola, e eu posso dizer que está errada, que está falando besteira. Se ela não gosta da capa da revista, da manchete de jornal, quer que eu faça a regulação. Não vai ter regulação para isso

Uma mulher, em Cuzco...

Elaine Tavares



Hoje celebra-se o Inti Raymi, milenar festa dos aymaras, quechuas, collas e outras etnias dos andes. Dia de dar pago a Pachamama, celebrar as colheitas e encaramujar-se na introspecção do inverno que começa. Por conta disso, lembrei de uma pessoa muito especial que conheci, em 2003, no Peru. Maria, mulher de ascendência inca, que vive na cidade de Cuzco.


Maria é uma dessas mulheres, herdeira dos povos originários, prisioneira de um atávico silêncio. Eu a vi vendendo pulseiras na praça de armas, mas não consegui estabelecer contato na primeira vez que a encontrei. Resmungou alguma coisa que ficou difícil de compreender em função de estarem suas bochechas cheias de folha de coca, as quais mascava lentamente. Foi só no dia seguinte que finalmente nos conhecemos. Ela veio a mim. O corpinho fraco, de costas curvadas, se achegou sem que eu percebesse. Naquela manhã de fevereiro eu chorava desconsolada, sem procurar abafar os soluços. Eu vivera uma odisseia pelas estradas de “nuestra América” para chegar até ali e, na porta de entrada do maior monumento da comunidade inca, não conseguiria chegar. O valor da passagem do trem até Machu Pichu era um absurdo, praticamente o mesmo tanto que eu pagara para chegar no Peru, percorrendo Paraguai, Argentina e Bolívia.

Mostrando que apesar do passar do tempo, tudo seguia muito igual, uma empresa espanhola é quem tem o domínio do caminho e, para chegar até a cidade perdida, havia que se aceitar as regras e o preço. Podia-se ir caminhando, mas, para isso, era preciso ter um guia e toda uma equipagem que, igualmente, encarecia a viagem. Sozinha, sem maiores informações, resolvi chorar. Sonhara com esse encontro por anos a fio e agora morreria na praia. Pensando assim eu me acabava em lágrimas bem em frente a enorme catedral – também espanhola -  aproveitando para atirar sobre ela milhares de maldições.


Foi aí que a mulher inca se acercou. Munida de sua sabedoria ancestral ela percebeu que ali estava uma companheira, talvez pelo ódio que fuzilavam meus olhos em direção às construções espanholas que margeiam a praça. Ainda mascava as folhas de coca, mas eu a compreendi muito bem. “Que pasa, nena?”


E eu desandei a falar do tanto que havia esperado para conhecer Machu Pichu e que agora não poderia, por não ter dinheiro suficiente. Ele me olhava com os olhos mansos. Então, solene, perguntou. “Veniste para sacar fotos o para saludar a los dioses?” Então foi a minha vez de ficar em silêncio. Aquelas gentes já deveriam andar fartas de ver milhares de turistas, com suas máquinas potentes, a caminhar pelas pedras sagradas desfilando suas posses e tirando fotos para os álbuns familiares, pouco se importando com a histórica dominação, até hoje visível. “Saludar los dioses”, respondi, sem titubear.


Então ela me convidou para segui-la. E lá fui eu, esquecida das lágrimas, pelas ruelinhas cuzqueñas, cheias de caminhos internos lotados de barracas de artesanato. Numa delas, Maria entrou. Lá dentro, uma profusão de ervas, ossos e outros instrumentos mágicos davam conta que aquele era o reduto de uma mulher especial. Ela procurou entre as coisas um saquinho cheio de pó e o passou para mim. Disse que se eu queria render homenagens aos deuses não precisava ir a Machu Pichu. Bastava subir, a pé, pelo lado norte, até Sacsayhuaman e lá fazer uma singela celebração. Ensinou algumas palavras do seu idioma e pediu que eu cantasse para os deuses, podia ser na minha língua mesmo. Aquilo seria o suficiente para eu mostrar meu respeito e faria com que a viagem não tivesse sido em vão. “Ellos saberán”, sentenciou. Então, segurou as minhas mãos num gesto de despedida e seus olhos indicaram: vai!


Eu fui e encontrei os deuses. Foi o suficiente. Aquela jornada já valera. Eu estava feliz. E foi lá que encontrei também um pessoal que deu a dica de outro caminho para Machu Pichu, bem mais barato, no trem usados pelas gentes locais. Já nem importava mais. O encontro essencial se fizera. Ainda assim eu subi até a cidade sagrada. Não tirei fotos. Não precisava. Tudo estava cravado em mim.


A lição maior me deu Maria, a inca. Mulher e feiticeira, sacerdotisa de Inti. Com toda a carga da opressão de 500 anos nas costas e na vida, foi capaz de sentir a desolação de uma viajante branca e, solidariamente, ensinar o caminho dos deuses, os seus. Forjada no aço da dor - da invasão, do genocídio, da submissão - ela encontrou espaço para a ternura e abriu fendas no seu silencio milenar. Fez encontro, partilha, comunhão. É essa mulher que quero sempre ser. Dura na luta, mas pronta para gesto mágico do encontro amoroso. Fibra e amor, juntos - tal qual já ensinara el Che – no caminho da libertação que há de chegar. E é essa imagem que compartilho hoje com todas as companheiras e com os varões, também capazes de compreender...

segunda-feira, 17 de junho de 2013

Brasil financia política de Apartheid israelense, diz integrante do Stop The Wall


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Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Maren Mantovani está no Brasil desde agosto do ano passado | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Samir Oliveira e Débora Fogliatto no SUL21

A italiana Maren Mantovani está no Brasil desde agosto de 2012 para articular apoios à causa Palestina. Coordenadora de Relações Internacionais do movimento Stop The Wall, ela, que viveu durante dez anos em Ramallah, se dedica agora, à estruturação do grupo na América do Sul.
Maren explica que o foco no Brasil é importante, pois, de acordo com o Stop The Wall, o país financia as políticas repressivas de Israel em relação aos palestinos. A principal forma de apoio se dá através de acordos militares para compra de armas de empresas como a Elbit, que está diretamente envolvida na construção do muro que divide os territórios palestinos.
Nesta entrevista ao Sul21, Maren fala sobre as relações econômicas e militares entre Brasil e Israel e comenta, também, o acordo que o governo gaúcho firmou com a Elbit em abril deste ano. “O que aconteceu no governo do Rio Grande do Sul é o que também acontece a nível federal. Há uma linha política e se esquece completamente, ou se ignora, que a economia é política também. Eles dizem: ‘Fizemos um contrato. Onde está o problema político de se fechar um negócio?’. Mas acordos econômicos – se também são internacionais – sempre afetam seres humanos e podem, também, afetar seus direitos”, critica.
“O muro separa os palestinos de seus campos, de suas escolas, de seus hospitais”

Sul21 – Como tu começaste a te envolver com o movimento Stop The Wall?
 
Maren – Iniciei o trabalho com o Stop the Wall praticamente quando as relações internacionais do movimento começaram a se desenvolver. Nossa campanha começou em 2002, alguns meses depois de a construção do muro ter início. Naquela época, ninguém sabia o que estava acontecendo. Foi diretamente depois da re-insavasão da Cisjordânia e do massacre de Jinin. As escavadeiras simplesmente chegaram e destruíram os campos palestinos. Sabíamos que era um projeto grande, porque muita terra foi destruída, mas Israel não explicou nada. O primeiro mapa (da construção do muro) só foi divulgado mais de um ano depois do início da obra.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Movimento Stop the Wall tenta esclarecer o mundo sobre muro erguido por Israel para isolar palestinos | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Como foi o trabalho de vocês neste primeiro momento?
 
Maren – Uma das primeiras coisas que fizemos foi investigar o que estava acontecendo, buscar informações sobre que projeto estava sendo posto em prática. A nível nacional, o trabalho que fazemos é de organização de comitês populares e de apoio às lutas nas aldeias. A nível internacional, a primeira tarefa foi explicar ao mundo o que estava acontecendo. As pessoas não acreditavam que isso estivesse ocorrendo: a construção de um muro de oito metros de altura e quase 800 quilômetros de comprimento. Quando ouviam isso pela primeira vez, diziam que não era possível.

Sul21 – O que representa, para os palestinos, a construção desse muro?
 
Maren – Não é uma barreira de segurança. Não divide Israel da Cisjordânia. O muro separa os palestinos de seus campos, de suas escolas, de seus hospitais. O segundo passo do movimento Stop The Wall foi pensar em como podemos nos organizar para trabalhar juntos, em solidariedade, de uma forma que seja eficaz para derrubar o muro. Em 2004, tivemos a decisão da Corte Internacional de Haia, que disse que Israel precisa parar de construir o muro, que é algo ilegal. A segunda parte da decisão diz respeito à responsabilidade de outros países: outros estados não podem ajudar na construção do muro. Isso significa que não podem fazer contratos com empresas que estão envolvidas na construção do muro, dos assentamentos e de outras violações graves que Israel comete diante da lei internacional. A decisão de Haia prevê que devem ser impostas sanções para que Israel encerre essa política. Então surge, em 2004, o primeiro chamado à campanha por Boicote, Desinvestimento e Sanções (BDS) em Israel. Em 2005, toda a sociedade civil e partidos políticos palestinos se unem a esse chamado.

Sul21 – Vocês acreditam que esta campanha possa ter o sucesso que teve a campanha por BDS em relação à África do Sul, na época do Apartheid?
 
Maren – A campanha por BDS em Israel tem um apelo muito mais forte e em muito menos tempo do que foi o caso da África do Sul. As pessoas sempre recordam da campanha de boicote contra a África do Sul no final dos anos 1980. Mas essa campanha começou no início dos anos 1960. Conversando com os ativistas que a organizaram, eles disseram que nunca conseguiram, em 20 anos, o que nós já estamos conseguindo em apenas oito anos. Isso se deve a vários fatores. De um lado, hoje podemos nos comunicar melhor. E a causa palestina já possui décadas de apoio sobre o qual se construiu a campanha de BDS. Isso é uma vantagem e um desafio. A África do Sul tinha, basicamente, como parceiros econômicos, somente a Inglaterra, a Europa e os Estados Unidos. Hoje, esta campanha pelo BDS é global. E está forte na Europa e fazendo progressos muito importantes nos Estados Unidos – na sociedade civil e nas universidades. Mas, se quisermos ter força, precisamos do apoio do Sul do mundo, da América do Sul e da Índia. É aí que Israel está encontrando seus mercados mais importantes, sobretudo porque Europa e Estados Unidos estão em crise.
”O Brasil se tornou uma das linhas de sustentação econômica que possibilitam a política de Israel”

Sul21 – Que países apoiam, hoje, direta ou indiretamente, a construção do muro?
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
” A cada compra dessas armas, o Brasil dá sustentabilidade às guerras e ocupações de Israel”, diz Maren Mantovani | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Maren – O mundo inteiro. Neste momento, são muito poucos os países que têm uma postura condizente com a legislação internacional. O Brasil fornece muita ajuda e assistência a essa e a outras violações cometidas por Israel. Dessa forma, acaba dando reconhecimento aos assentamentos israelenses e ao muro. Isso é uma completa contradição com a política do Itamaraty, que reconhece o Estado da Palestina nas fronteiras de 1967. O Brasil apoia o respeito à lei internacional e às resoluções da ONU. Por outro lado, por parte das relações econômicas, ocorre exatamente o contrário. O Brasil se tornou uma das linhas de sustentação econômica que possibilitam a política de Israel.

Sul21 – Vocês estudam as relações militares entre Brasil e Israel. De que forma elas ajudam os atos de Israel?
 
Maren – Israel é um país permanentemente em guerra, portanto a indústria militar tem uma importância fundamental – seja para que continuem suas guerras ou para a economia em geral. Toda produção militar de tecnologia e segurança nacional é muito importante para a economia israelense. Até 80% dessa produção é exportada. É claro que não existe mercado suficiente para isso em Israel, que possui seis milhões de habitantes. Então Israel exporta sua produção militar para o Sul do mundo. A índia é o maior importador de armas israelenses e o Brasil é o quarto. Em todas as Américas, somente a Colômbia compra mais armas de Israel. A cada compra dessas armas, o Brasil dá sustentabilidade às guerras e ocupações de Israel. Essas empresas militares israelenses, como a Elbit – que está localizada também em Porto Alegre -, não constroem somente os Drones (aviões não tripulados) que matam os palestinos. Constroem o muro e fazem parte de um sistema de ocupação.

Sul21 – Como está a reação – econômica e política – a essas empresas hoje no mundo?
 
Maren – Existe uma campanha global de boicote contra elas, especialmente contra a Elbit. Na Noruega, em 2009, o Ministério das Finanças decidiu pedir ao Fundo Nacional Pensionístico para desinvestir nessa empresa, em particular porque ela está construindo o muro e é parceira de um crime de guerra. Após essa decisão, outras instituições financeiras decidiram desinvestir na Elbit, incluindo 12 bancos nacionais europeus. Em 2012, o relator especial das Nações Unidas para os direitos humanos nos territórios ocupados na Palestina, Richard Falk, lançou um informe sobre as responsabilidades das empresas nos crimes de guerra de Israel. Novamente a Elbit foi nomeada como uma das empresas que precisamos boicotar. Isso foi dito na Assembleia Geral da ONU.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
“Claramente, Israel já possui poder de veto sobre a política externa do Brasil” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Como tem sido a relação do movimento Stop the Wall com o governo brasileiro? Há uma crítica ao ministro Celso Amorim, que, quando estava no Itamaraty, adotava uma posição pró-Palestina e, agora, no Ministério da Defesa, continua comprando armas de Israel.
 
Maren - Celso Amorim se encontra em uma situação bastante difícil. Quando estava no Itamaraty, ele criou uma política de fortalecimento e integração da América do Sul e de relacionamento com o mundo árabe. Agora está em um ministério que tem toda essa relação militar com Israel. O Brasil não pode nem vender armas brasileiras para Venezuela e Bolívia – com as quais havia feito um pacto de defesa – porque existe esse acordo com Israel, então Israel veta (as vendas). O Brasil quer desenvolver sua indústria militar para fortalecer sua soberania nacional, mas com esses acordos com Israel, está derrubando completamente esses objetivos. O Itamaraty trabalha com alianças Sul-Sul e com o mundo árabe. O Brasil quer ter relações estratégicas com países que são considerados inimigos por Israel. Mas, com essas parcerias com Israel, sempre se encontrará em uma situação em que Israel impedirá suas políticas. Claramente, Israel já possui poder de veto sobre a política externa do Brasil.
“Os trabalhadores da Taurus estão sendo obrigados a produzir um rifle desenvolvido no sangue dos palestinos”

Sul21 – Houve tentativa de diálogo com Amorim quando ele asusmiu o Ministério da Defesa?
 
Maren – Partidos políticos e movimentos sociais da Palestina escreveram a ele, dizendo que sabiam que suas políticas eram diferentes do que vinha sendo adotado nos últimos oito anos pelo ministério. Eles pediram: “Por favor, leve em consideração não só as estratégias, mas também a responsabilidade com a lei internacional e os direitos dos palestinos. Acabe com essas relações militares entre Brasil e Israel”. E isso não está acontecendo. A sociedade civil brasileira tem um papel muito importante para pressionar o governo neste sentido. Atualmente, por exemplo, Israel está produzindo o rifle Tavor. Esse rifle começou a ser produzido no início da segunda Intifada e aprimorado no massacre de Gaza, em 2008 e 2009. O Exército brasileiro quer novos rifles. Então a Taurus estava desenvolvendo um novo protótipo para oferecer, mas o Exército disse que queria o rifle Tavor. O resultado, então, é que o Brasil tem um rifle que, em termos de produção de tecnologia, não é seu. Não sei como é exatamente o contrato entre a Taurus e a IMI, empresa israelense que fabrica este rifle, mas certamente eles recebem uma parte do valor dos rifles vendidos aqui. E os trabalhadores da Taurus estão sendo obrigados a produzir um rifle desenvolvido no sangue dos palestinos. Em seus sites, as empresas militares de Israel demonstram o quanto seus produtos são field-tested, testados em campo, no sangue dos palestinos. Eles dizem claramente que a guerra é uma grande oportunidade para a propaganda desses produtos.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
De acordo com Maren, “a cada jogo da Copa, a Palestina perderá sem nem entrar em campo” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Com todos os investimentos feitos em segurança em função da Copa do Mundo de 2014, você acredita que as relações militares entre Brasil e Israel tendem a se intensificar nesse período?
 
Maren – Claro, isso já está acontecendo. Já sabemos que os VANT (Veículos Aéreos Não Tripulados) israelenses foram utilizados nos jogos Pan-americanos, no Rio de Janeiro. Foi apenas um teste para a Copa do Mundo. Na Inglaterra e na África do Sul, durante os megaeventos, as empresas israelenses fizeram a segurança e tiveram um lucro muito grande. É importante que se fale disso, que se faça pressão sobre isso. Porque senão, na Copa do Mundo, cada jogo vai se tornar um jogo em que a Palestina perde sem nem entrar em campo.

Sul21 – Como você avalia o acordo feito no dia 29 de abril entre o governo gaúcho e a Elbit para investimentos no polo aeroespacial do Rio Grande do Sul? Foi firmado um empreendimento que deverá construir no Estado a segunda base nacional para lançamento de satélites.
 
Maren – Primeiramente, quero destacar que quando Tarso Genro foi à Palestina, todo mundo, desde o primeiro-ministro Salam Fayyad, até toda a sociedade civil, mandou uma mensagem clara e unificada: “Esse contrato financia quem constrói o muro na Palestina e viola nossos direitos”. Como é possível que alguém que se colocou como nosso amigo, que comprou a briga para realizar o Fórum Palestina Livre – e todo mundo sabe que não foi fácil politicamente – tenha feito isso? Para nós, foi muito importante ele ter ido à Palestina. Todos, das autoridades ao povo, queriam hospedá-lo da melhor forma possível, para agradecer tudo o que ele tinha feito. Quando chegou a notícia desse contrato com a Elbit, nos sentimos apunhalados. O que aconteceu no governo do Rio Grande do Sul é o que também acontece a nível federal. Há uma linha política e se esquece completamente, ou se ignora, que a economia é política também. Eles dizem: “Fizemos um contrato. Onde está o problema político de se fechar um negócio?”. Mas acordos econômicos – se também são internacionais – sempre afetam seres humanos e podem, também, afetar seus direitos.
“Quem gasta dinheiro são os governos do Rio Grande do Sul e federal para financiar uma empresa israelense que constrói o muro e viola os direitos dos palestinos”
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
Governo gaúcho está gastando dinheiro para financiar uma empresa que constrói o muro contra Palestina, diz integrante do Stop the Wall | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Além de vocês criticarem politicamente o acordo, acreditam que trata-se de um investimento de risco?
 
Maren – Se tentou acusar os que se opunham ao contrato – tanto palestinos quanto movimentos sociais brasileiros – se não darem conta do desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Mas pedíamos apenas que tomassem em consideração mais critérios no debate e respeito aos direitos humanos, à lei internacional e às prioridades do Itamaraty. Hoje, as agências, bancos e institutos financeiros da Europa se opõem aos investimentos e envolvimentos nas ocupações israelenses. Não se importam com a Palestina, mas consideram esses investimentos um fator de risco. Existem fatores políticos de risco econômico. E também poderia ter-se vantagens realizando uma política econômica alinhada com os princípios estratégicos do Itamaraty. Apenas responder que “o Itamaraty não disse que não” não é o suficiente para se obter as vantagens que uma ação alinhada com as prioridades do Ministério das Relações Exteriores poderia gerar. Ao mesmo tempo, não isenta (o governo gaúcho) de responsabilidade. Afirmar que outros também realizam contratos com a Elbit apenas ressalta que outros também desrespeitam a lei internacional. Muitos pensam que é um investimento (da Elbit) no Estado, ou uma transferência de tecnologia ao Estado. Mas, pelo que sabemos, é um projeto de pesquisa e desenvolvimento. Então quem gasta dinheiro são os governos do Rio Grande do Sul e federal para financiar uma empresa israelense que constrói o muro e viola os direitos dos palestinos – e para criar, junto com as universidades gaúchas, tecnologia que Elbit ainda não possui, mas que, uma vez desenvolvida, provavelmente ficará sob seu controle, no que diz respeito ao uso e provável exportação dessa tecnologia.

Sul21 – Existem outras empresas com a mesma capacidade militar e tecnológica com as quais Brasil e Rio Grande do Sul poderiam construir parcerias?
 
Maren – O interessante é que Rio Grande do Sul, que não sabe construir satélites, fez uma parceria com a Elbit, que também não sabe construir satélite, para realizar um projeto aeroespacial. Então, de uma maneira ou outra, isso responde a pergunta. Claro que existem outras opções. A África do Sul está esperando por parcerias neste sentido com o Brasil. Já existem contratos importante com a Ucrânia, que, sim, sabe como funcionam os satélites. Mais do que discutir as características dos produtos de diferentes empresas, temos que discutir o que significa um desenvolvimento e pesquisas em parceria com Israel. É evidente que Israel nunca vai permitir que o Brasil detenha as propriedades de sua alta tecnologia. Isso porque o Brasil ainda possui – e espero que continue assim – relações com Venezuela, Bolívia, o mundo árabe e outros países considerados inimigos por Israel. Enquanto for assim, relações militares entre Brasil e Israel sempre vão constituir um problema de independência e de soberania nacional ao Brasil.

Sul21 – Se existem outras opções, porque o Brasil firma tantas parcerias neste sentido com Israel?
 
Maren – Altamiro Borges, em uma fala, disse: “No Brasil, a esquerda vence as eleições, mas quem tem o poder é a direita”. Creio que isso não é totalmente verdade. Existem mudanças e coisas que foram feitas nos últimos dez anos. Mas também é verdade que em todos os governos de coalizão há contradições nos ministérios. Se olharmos para o Ministério da Defesa, veremos que ainda existem generais da época da ditadura, porque não foi feita uma limpeza neste sentido. O PT entrou neste ministério somente com Celso Amorin. Em todos os governos, como no Rio Grande do Sul, existem contradições internas e diferentes visões.
“Os palestinos são muito mal representados na grande mídia – ou nem são representados. É a mesma lógica com a qual os movimentos sociais brasileiros são tratados”

Sul21 – Como tu avalias a realização do Fórum Social Mundial Palestina Livre em Porto Alegre, no ano passado?
 
Maren – Este fórum social foi muito importante para o movimento de solidariedade à Palestina. No Rio Grande do Sul e no Brasil em geral existe muita consciência e interesse de se fazer as coisas. A partir do Fórum Social Mundial Palestina Livre, se começou a criar uma coordenação de movimentos de solidariedade na América do Sul. Uma série de iniciativas e campanhas estão sendo geradas a partir do fórum. Ainda que não tenha sido o maior fórum social já realizado, em termos numéricos, o nível de qualidade dos participantes foi muito bom. As pessoas mais envolvidas neste tema, no mundo inteiro, de forma prática e estratégica, estiveram aqui. Mas, ao mesmo tempo, penso também que o fórum foi um momento de agregação. Agora, precisamos de um momento de dispersão: sair pelo mundo com essas ideias e planos, articulá-las e implementá-las em diversos países, cidades, regiões e universidades, empresas. Provavelmente, em um certo período de tempo, teremos de novo um momento em que essa centralização será necessária.
Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21
” Com o reconhecimento do Estado da Palestina, a única coisa que Israel fez foi acelerar a construção dos assentamentos” | Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Sul21 – Como a mídia tradicional trata o tema da Palestina?
 
Maren – Evidentemente, a grande mídia não diz o que queremos que diga. Mas as pessoas, às vezes, vêm com teorias da conspiração, afirmando que os judeus detêm o controle de toda a mídia. Isso não tem nada a ver com a religião, mas, sim, com a estrutura econômica. É evidente que a grande mídia não dará o ponto de vista de quem está sendo oprimido. A grande mídia é um instrumento do sistema capitalista e dá a visão do que interessa ao capitalismo e à manutenção do status quo. Os palestinos são muito mal representados na grande mídia – ou nem são representados. É a mesma lógica com a qual os movimentos sociais brasileiros são tratados. Nem é preciso fazer uma grande análise. Sofremos todos do mesmo problema. Esses veículos não falam de quem luta e de quem está oprimido. Falam de quem os paga.

Sul21 – Como o movimento Stop The Wall começou a voltar seus olhos para o Brasil e para a importância que as relações militares e econômicas do país com Israel possui para a causa palestina?
 
Maren – O movimento, desde muito tempo, tem esta visão de que é importante trabalhar com o tema da solidariedade Sul-Sul. Nos demos conta de que esta não é uma visão ideológica. Trata-se de uma urgência política, porque, analisando um pouco os fluxos econômicos e militares, se vê quanto os BRICs são importantes para Israel. Nem sequer precisamos fazer muitas pesquisas. Há documentos e claras manifestações dos ministros israelenses, que dizem que o interesse é nestes países. Particularmente, desde o início da crise econômica, em 2007 e 2008.

Sul21 – O reconhecimento pela ONU da Palestina como Estado observador não-membro das Nações Unidas foi bastante aclamado. Mas também é dito que o que é necessário é que Israel reconheça a Palestina.
 
Maren – Com o reconhecimento do Estado da Palestina, a única coisa que Israel fez foi acelerar a construção dos assentamentos. Creio que esse reconhecimento foi importante, pois comprometeu uma série de países com o apoio ao Estado Palestino. Com isso, eles têm a responsabilidade de não firmar contratos com empresas que estão destruindo esse Estado. Ao mesmo tempo, esse reconhecimento leva em consideração apenas uma parte dos problemas palestinos. Não leva em conta o problema dos refugiados palestinos e o fato de que existem palestinos que são cidadãos de Israel e vivem em uma situação de verdadeiro Apartheid. Israel não é uma democracia: ou se é judeu, ou não se tem os mesmos direitos. Existe um sistema institucionalizado do Apartheid. Cerca de 20% dos cidadãos de Israel são palestinos que vivem sob esse regime. Reconhecer o Estado da Palestina é apenas um passo, mas é evidente que não mudará nada para Israel. Israel não fará negociações sobre este tema se não houver pressões. Qualquer sindicalista entende que não se pode pensar que o empregador deixará de lucrar com o trabalho dos empregados somente com um pedido de aumento salarial. É preciso entrar em greve, o empregador precisa perder os lucros, e então se abre a negociação. É isso que queremos: que eles percam seus lucros, para que podemos ter alguma conquista.

quinta-feira, 13 de junho de 2013

Síria: guerra civil ou como destruir a primeira democracia do Oriente Médio


 POR RAMEZ PHILIPPE MAALOUF   no CORREIO DA CIDADANIA



Nasce, sob um regime democrático, o Reino Árabe-Sírio

A República Árabe da Síria é apenas uma lasca do território da Síria histórica, cujo território corresponde, nos dias de hoje, ao Líbano, Jordânia, Palestina/Israel e porções do Iraque e da Turquia (o sanjack de Alexandreta, convertida pelos turcos em província de Hatay, cedido pelos franceses aos turcos, em 1939). O líder político sírio-libanês Antoun Saadeh, em seu projeto geopolítico da Grande Síria, chegou a reivindicar os antigos limites do Império Assírio, englobando ainda o Chipre, o Kwait e a Península do Sinai.

A Síria Histórica, denominada pelos árabes de Bilad al-Sham (Terra do Sol), foi habitada na Antiguidade pelos amoritas, fenícios-cananeus, arameus, hititas, entre outros, e foi dominada pelos assírios, babilônicos, egípcios, hititas, grego-macedônios e romanos. Em seu território, a religião Cristã foi fundada e disseminada para o mundo, a partir de Antioquia (hoje ocupada pela Turquia). Foi uma província do Império Romano e caiu sem resistência significativa ante a expansão árabe-muçulmana iniciada, a partir da Península Arábica, no século VII. Mesmo sendo habitada majoritariamente por cristãos, converteu-se na sede do primeiro Império Árabe-Muçulmano, o Omíada, que se estendia do Oceano Atlântico à Ásia Central (da Península Ibérica à Índia). No século XVI, passou a ser parte do Império Otomano (baseado na Anatólia).

Durante o expansionismo britânico, sob a égide do Capitalismo, no século XIX, os territórios do Império Otomano serviram como passagem obrigatória entre a Europa e a Índia, que se converteram numa zona tampão nas disputas imperialistas entre britânicos, russos, franceses e, marginalmente, italianos, alemães e norte-americanas.

Logo após a Primeira Guerra Mundial (1914-18) e a derrota final dos otomanos (naquele momento turquicizados), em 1920, foi estabelecido pelo Tratado de São Remo o sistema de mandatos, no qual se firmou o domínio francês sobre a Síria (que incluía o Líbano e a província de Alexandreta, cedida aos turcos em 1939); e o domínio britânico sobre a Mesopotâmia (atual Iraque), Transjordânia e Palestina (hoje ocupada por Israel). O Tratado não respeitava a proclamação do Reino Árabe da Síria pelo Congresso Nacional Árabe-Sírio de 1920, sob a monarquia constitucional e parlamentar do rei Faysal al-Hachemi. Neste Congresso, também foi estabelecida a fundação de uma universidade e eleições livres e regulares. Isto é, o Reino Árabe-Sírio nasceu sob um regime democrático e laico. Não se estranha, portanto, que, nos dias atuais, mesmo sob um governo autoritário – o de Bassar al-Assad e do Partido Ba’ath –, a Síria segue tendo um parlamento funcionando com oito partidos legalizados (incluindo nacionalistas, socialistas e comunistas).

A divisão do território sírio, no combate à democracia e ao nacionalismo

Para combater a democracia síria e o nacionalismo árabe, a França dividiu o território sírio entre as comunidades confessionais para implodir qualquer identidade nacional e até mesmo de classe, acirrando o sectarismo religioso. Assim, surgiu o Líbano, extirpado para ser o “paraíso dos maronitas”, em 1920, o Estado Alauíta, o Estado do Monte Druzo, o Estado de Alepo (“sunita”) e o Estado de Damasco (“sunita”). Esta partilha resultou em sangrentas revoltas ferozmente reprimidas pelos franceses. Em 1924, a Síria voltaria a ser unificada, mas sem o Líbano, que permaneceria independente, fruto de um acordo entre a burguesia sunita local e as classes médias cristãs maronitas.

Portanto, a atual Síria é uma mutilação do histórico território da Síria, provocada por uma conjunção (cruel) de intervenções estrangeiras, sobretudo europeias, com interesses político-econômicos locais, não levando em conta a convivência milenar entrelaçada entre si de inúmeras etnias e comunidades religiosas. Esta conjunção levaria ao Acordo de Sykes-Picot-Sazonov, firmado entre Reino Unido, França e a Rússia czarista em 1916, dividindo a região em “zonas de influência” para cada potência. Os ingleses sabiam que não poderiam arcar sozinhos com o domínio sobre os territórios do Império Otomano desintegrado, por isso, resolveu partilhar a região com seus sócios/rivais para entretê-los enquanto seus interesses na Índia e no Extremo-Oriente eram preservados.

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45), a república democrática e constitucional da França se tornou aliada do regime nazista alemão e, portanto, inimiga da Inglaterra e dos EUA. Os ingleses atacaram o Líbano sob mandato, em 1941, levando à independência de facto do país, em 1943. Mas a independência da Síria de facto só ocorreria em 1946, após um bombardeio aéreo francês sobre Damasco, assassinando centenas de civis. A Síria nasceria como uma República constitucional, parlamentar, democrática e laica, recusando e refutando o sectarismo étnico e confessional instilado pelas potências europeias imperialistas, Inglaterra e França.

A Síria atual

A atual Síria está estrategicamente localizada no entroncamento entre a Ásia, África e Europa, fazendo fronteira a leste, com o Iraque, ao sul, com a Jordânia, a oeste, com o Líbano, ao norte, com a Turquia e, à sudoeste, com a Palestina ocupada por Israel. O país não tem limites com o Irã. Tem uma população atual de 22 milhões de pessoas, uma superfície de 186 mil km2. Embora seja banhado pelos rios Tigre e Eufrates, grande parte do território é ocupado pelo deserto da Síria. Sua economia, sob intervenção estatal, é ainda predominantemente agrícola, ainda que o turismo seja uma importante fonte de divisas.

Assim como o Brasil, a França, o Reino Unido, a Itália, os EUA, a Espanha, a Rússia e a China, a Síria também é uma sociedade multiétnica (com a presença de curdos, armênios, arameus, turcos e árabes, entre outros) e multiconfessional (ateus, judeus, católicos romanos, protestantes, assírios, caldeus, siríacos, jacobitas, greco-melquitas, greco-ortodoxos, armênios gregorianos, armênios ortodoxos, maronitas, xiitas, sunitas, druzos, ismaelitas, alauítas, entre outros). Esta pluralidade étnico-confessional está igualmente presente no Líbano, no Iraque, na Jordânia, no Egito e na Palestina (sob a ocupação de Israel). Uma pluralidade que polariza com o exclusivismo comunitário do “Estado judeu”. Não podemos nos surpreender, portanto, com a ferocidade com que os sírios combateram a fundação de Israel, não sendo derrotados no campo de batalha, entre 1948 e 1949.

Como vimos, antes, a Síria foi a primeira democracia do Oriente Médio, nascida da vontade dos árabes de se libertarem dos jugos otomano e europeu imperialista. Mesmo sob o domínio francês, sob a capa do mandato, “colonialismo que não ousa dizer seu nome”, segundo o historiador palestino Elias Sanbar, o Estado sírio manteve um parlamento funcionando com pluralismo partidário e eleições regulares. Esta breve experiência democrática foi bruscamente interrompida quando a guerra entre árabes e o recém fundado Estado de Israel eclodiram, em 1948, e mais de 780 mil palestinos foram expulsos pelas tropas israelenses, após sofrerem massacres. O parlamento sírio, enfurecido pelo apoio norte-americano aos israelenses, vetou a construção do oleoduto (Tapline) pela ARAMCO (Arabian-American Oil Company) ligando o Bahrein à cidade de Sidon, sul do Líbano, passando pelas Colinas de Golã, na Síria. O parlamento do Líbano já havia aprovado projeto do oleoduto e estava em compasso de espera, quando os EUA intervieram sob uma “ação encoberta” da CIA, chefiada pelo espião, músico e adido da embaixada norte-americana Miles Copeland (pai do baterista da banda de rock The Police), para derrubar o governo. Iniciou-se, desta forma, a tradição intervencionista ianque, que se tornaria tristemente célebre em golpes de Estado no Irã, em 1953, e na Guatemala, em 1954, para não falarmos do Brasil, em 1964.

Estado de Israel, o ciclo de ditaduras militares na Síria e sua relação com o Iraque

O presidente sírio Chuckri al-Kwatli foi deposto por um golpe militar liderado pelo Coronel Hosni Zaim, cujo objetivo era tornar a Síria “o primeiro país árabe a reconhecer oficialmente o Estado de Israel”. Não poupou esforços para tal. O coronel-ditador expulsou para o Líbano o líder libanês nacionalista Antoun Saadeh, chefe do Partido Sírio Nacional-Socialista, uma das primeiras milícias a combater Israel. Visando ter apoio árabe em seu intento de alcançar a paz com os israelenses, aproximou-se dos reis hachemitas (aliados dos sionistas desde 1919) que governavam o Iraque e a Jordânia. Esta aproximação se revelaria fatal, pois a Arábia Saudita era inimiga das duas monarquias árabes. Em menos de seis meses no poder, o coronel Hosni Zaim foi deposto por outro golpe militar, dando continuidade ao ciclo sírio de golpes e de ditaduras militares. Por isso, Síria seria apelidada de “A Bolívia do Oriente Médio”.

A rivalidade entre as monarquias pró-Ocidentais (hachemitas no Iraque e na Jordânia e o reino saudita) revelava tanto a disputa entre as companhias de petróleo inglesas e norte-americanas, quanto também a geopolítica regional. Dois eixos geopolíticos se tornariam uma constante prevalecendo sobre o Crescente Fértil (arco que compreende Síria, Iraque, Líbano, Palestina/Israel, Kwait e Jordânia) até a invasão anglo-americano-australiana do Iraque, em 2003: o pró-hachemita (ou pró-Inglaterra), formado pelo Iraque e Jordânia; e o pró-saudita (ou pró-EUA), formado pela Síria, Arábia Saudita e Egito. Sempre quando a Síria tentou se aproximar do Iraque (integrando o “Crescente Fértil”) e enfrentou a Arábia Saudita, sofreu desestabilização - isto ocorreu duas vezes em 1949, em 1963, em 2003 e agora em 2011.

A integração (para não falarmos de uma união) entre Síria e Iraque é uma ameaça geopolítica à Arábia Saudita, à Jordânia, ao Egito, ao Líbano, a Israel, à Turquia e ao Irã. A partir de 1963, ambos países árabes passaram a ser governados pelo partido Ba’ath (“Ressurreição), formando o núcleo duro do nacionalismo árabe, reformando as sociedades ainda de base rural, adotando um modelo nacional-desenvolvimentista para a economia, com forte intervenção estatal. Desta forma, foi possível criar uma burguesia sob tutela do Estado. Assim, o “socialismo” como bandeira do Ba’ath era uma forma de capitalismo estatal, sob forte influência do modelo turco-kemalista. As sociedades síria e iraquiana se modernizaram, permitindo a formação de uma classe média urbana. Este processo de modernização, que se intensificou ao longo dos anos 1960, anulou o que restava de divisões sectárias. A forte presença de líderes de confissão sunita no Iraque (cuja presença demográfica dos muçulmanos xiita fosse expressiva) e de alauítas na Síria (de maioria sunita) significava apenas que iraquianos e sírios não viam as chamadas “minorias” no poder como ameaças, mas, sim, como o bem-sucedido processo de integração social-cultural-econômica de todas etnias e comunidades religiosas que a modernização havia promovido nestas duas nações chaves do nacionalismo árabe. Neste período áureo do nacionalismo árabe, o confessionalismo não encontrava eco nestes dois países, especialmente no Iraque, onde a modernização foi mais profunda, ocasionando a formação de um dos mais influentes partidos comunistas do Oriente Médio.

Esta integração interna resistiu às pressões externas, mas não permitiu que uma aproximação entre Síria e Iraque se concretizasse. Síria se unificaria com o Egito por um breve período, sob o regime militar e nacionalista árabe do coronel Nasser, entre 1958 e 1961, e o Iraque sofreria uma revolução que substituiu uma monarquia cliente da Inglaterra por um regime militar nacionalista e modernizador, em 1958, causando uma nova aliança tática entre EUA e líder egípcio contra os iraquianos.

Em 1967, Israel atacaria Síria, Egito e Jordânia, a Guerra dos Seis Dias, vencendo-os de forma arrasadora, desmoralizando a liderança de Nasser e o nacionalismo árabe. Os israelenses anexaram territórios sírios (Colinas de Golã) e sob os controles egípcio (Faixa de Gaza) e jordaniano (Cisjordânia). A Arábia Saudita sairia do conflito, do qual não participou, como o verdadeiro vencedor, ao ter seus inimigos ideológicos derrotados. A derrota mudaria os rumos do Ba’ath em Damasco.

Nos anos 1970, após a morte de Nasser, a rivalidade entre Síria e Iraque se acentuou, apesar de serem governados pelo mesmo partido, o Ba’ath, com a chegada ao poder respectivamente dos presidentes-ditadores Hafez al-Assad e Saddam Hussein (este ainda “eminência parda” do poder em Bagdá).

Hafez al-Assad, no poder, mesmo sendo oficialmente aliado da URSS, se aproximaria dos EUA (e, por tabela, da Arábia Saudita), seguindo os passos do presidente-ditador egípcio Anwar Sadat, sucessor de Nasser, enquanto Saddam Hussein, ditador de facto do Iraque, mantinha-se afastado de Washington. Síria e Egito contra-atacariam Israel em 1973, para recuperar os territórios ocupados. A intransigência israelense e norte-americana foi bem sucedida ao final das contas. Egito assinaria acordos de armistício com Israel que desembocariam nos Acordos de Paz de Camp David, entre 1978 e 1979. Ao mesmo tempo, apoiada pelos EUA, Síria enviaria tropas ao Líbano, em guerra civil, para impedir a vitória da coalizão “progressista muçulmano-palestina”, que ameaçava exterminar os libaneses cristãos. Ao contrário do que era dito na época, Hafez al-Assad não visava anexar o Líbano, mas impedir que a vitória  palestina abrisse o caminho para uma invasão israelense do território libanês, levando os sírios a terem mais uma frente de guerra com Israel, além das Colinas de Golã.

Primeiros confrontos internos, expansão do setor privado e desigualdade social

O envolvimento sírio no Líbano contra os “muçulmanos” acarretou o primeiro confronto interno sírio entre o regime de Assad e a pequena burguesia desfavorecida pelo surgimento de uma nova burguesia, baseada em Alepo e em Damasco, fortalecida com a política de relativa liberalização econômica adotada ao assumir o poder. Esta pequena burguesia era formada por pequenos comerciantes e artesãos, que eram mais inclinados aos apelos religiosos, especialmente do ramo sírio da Irmandade Muçulmana (uma ONG multinacional confessional sunita, fundada no Egito, anti-comunista, anti-xiita e anti-nacionalista). Ela se sentiu marginalizada pelo novo arranjo econômico que Assad desenhou para o país, que era baseado nas estatais subsidiadas pelos capitais das petromonarquias do Golfo Árabe-Pérsico. Estas empresas estatais espalhadas pelo país arrasaram os negócios dos pequenos comerciantes, em sua maioria sunitas. A intervenção “anti-muçulmana” no Líbano e a dizimação dos pequenos negócios tornaram os conservadores mercadores mais suscetíveis aos apelos sectários dosIrmãos Muçulmanos, levando a um confronto armado que desembocou no arrasamento da cidade de Hama, base do grupo islâmico, pelas tropas do governo em fevereiro de 1982. Os mais de 10 mil mortos no ataque revelam a coesão do regime, formado pelo Partido Ba’ath e os novos burgueses, que eram em geral: ex-funcionários públicos (ou parentes ou amigos destes) das empresas estatais criadas nos primeiros anos governo Assad, além de membros do regime.

Com um novo modelo econômico, em detrimento do antigo “socialismo prussiano” do Ba’ath, o setor privado não tardaria a superar o setor estatal, aumentando a concentração de renda e a desigualdade social no país, ao longo dos anos 1990. Com a morte de Hafez al-Assad, em 2000, seu filho Bassar al-Assad o sucedeu, dando início de imediato à chamada “Primavera de Damasco”, uma relativa liberalização política (arrefeceu a censura, libertou presos políticos, legalizou partidos políticos, diminuiu a presença militar no Líbano), com um aprofundamento da liberalização econômica. Assim, bancos privados foram autorizados e uma bolsa de valores foi criada em 2005.

A configuração econômica adotada pelo pai de Bassar, Hafez, ajuda a entender, parcialmente, o alinhamento quase incondicional com a Arábia Saudita, a ponto de não confrontar diretamente a invasão israelense do Líbano de 1982 (que favorecia os xecados do Golfo, ao arrasar irreversivelmente a praça financeira libanesa), de combater os interesses do Irã no Líbano (apoiando o Amal contra o Hizbollah) e de apoiar o ataque da coalizão liderada pelos EUA ao Iraque, em 1991. Certamente, a invasão israelense tornaria o Líbano um satélite do Ocidente e do invasor; por este motivo, a Síria se voltaria para a URSS para se armar e montar uma sangrenta e brutal contraofensiva, que resultou na expulsão dos EUA do Líbano e o recuo de Israel para o sul do pequeno país árabe, impedindo, por tabela, a rendição dos palestinos frente aos israelenses.

Ramez Philippe Maalouf, historiador, é doutorando em Geografia Humana na USP.

Protestos: Por que esses vândalos não sofrem em silêncio?



Alguém acha que a realidade vai mudar apenas com protestos on line ou cartas enviadas ao administrador público de plantão? Ou que a natureza de uma ocupação de terra, de uma retomada de um território indígena ou de uma manifestação urbana não pressupõe um incômodo a uma parcela da sociedade?
Fiquei bege ao ler propostas de que manifestações populares em São Paulo passem a ser realizadas no Parque do Ibirapuera ou no Sambódromo. Pelo amor das divindades da mitologia cristã, o pessoal só pode estar de brincadeira! Desculpe quem tem nojo de gente, mas protesto tem que mexer mesmo com a sociedade, senão não é protesto. Vira desfile de blocos de descontentes, que nunca serão atendidos em suas reivindicações porque deixam de existir simbolicamente. “Quesito: Importância social. Sindicato dos Bancários, nota 10. Movimento Passe Livre, nota 10. Movimento Cansei, nota 6,5.”
Parar a cidade, inverter o campo, subverter a realidade. Ninguém faz isso para causar sofrimento aos outros (“ah, mas tem as ambulâncias que ficam presas no trânsito” – faça-me um favor e encontre um argumento decente, plis), mas para se fazer notado, criar um incômodo que será resolvido a partir do momento em que o poder público resolver levar a sério a questão.
Ser pacifista não significa morrer em silêncio, em paz, de fome ou baioneta. A desobediência civil professada por Gandhi é uma saída, mas não a única e nem cabe em todas as situações.
Rascunhei em outro texto essas ideias, mas decidi dar prosseguimento a elas depois de ler os comentários de um post que fiz, na semana passada, sobre os protestos contra o aumento das passagens em São Paulo. É trágico como milhares de pessoas não entendem o que está acontecendo e, tomando uma pequena parte pelo todo, resumem tudo a “vandalismo”. Não defendo destruição de equipamentos públicos, por considerar contraproducente ao próprio movimento, pela escassez de recursos públicos, por outras razões que já listei aqui antes. Mas é impossível para os organizadores de uma manifestação controlarem tudo o que acontece, ainda mais quando – não raro – é a polícia que ataca primeiro.
E, acima de tudo, não compactuo com uma vida bovina, de apanhar por anos do Estado, em todos os sentidos e, ainda por cima, dar a outra face, engolindo as insatisfações junto com cerveja e amendoim no sofá da sala.
Muitos detestam sem-terra, sem-teto e povos indígenas. Abominam a ideia de que o direito à propriedade privada e ao desenvolvimento econômico não são absolutos. Mas os direitos humanos são interdependentes, indivisíveis e complementares. O que é mais importante? Direito à propriedade ou à moradia? Não passar fome, locomover-se livremente ou desfrutar da liberdade de expressão? Todos são iguais, nenhum é mais importante que o outro. Intelectuais que pregam o contrário precisam voltar para o banco da escola.
E direitos servem para garantir a dignidade das pessoas, caso contrário, não são nada além de palavras bonitas em um documento quarentão.
Leio reclamações da violência das ocupações de terras – “um estupro à legalidade” – feitas por uma legião de pés-descalços empunhando armas de destruição em massa, como enxadas, foices e facões. Ou contra povos indígenas, cansados de passar fome e frio, reivindicando territórios que historicamente foram deles, na maioria das vezes com flexas, enxadas e paciência.  Ou ainda manifestantes que exigem o direito de ir e vir, tolhido pelo preço alto do transporte coletivo, e que resolvem ir às ruas para mostrar sua indignação e pressionar para que o poder público recue de decisões que desconsideram a dignidade da população. Todos eles são uns vândalos.
Por que essa gente simplesmente não sofre em silêncio, né?
Caro amigo e cara amiga jornalistas, falo com todas as letras: não existe observador independente. Você vai influenciar a realidade e ser influenciado por ela. E vai tomar partido e, se for honesto, deixará isso claro ao leitor. Sei que há colegas de profissão que discordam, que dizem ser necessário buscar uma pretensa imparcialidade, mas isso é só metade da história. Deve se buscar ouvir com decência todos os lados de um fato para reconstruí-lo da melhor maneira possível. Afirmar que existe isenção em uma cobertura jornalística de um conflito, contudo, só seria possível se nos despíssemos de toda a humanidade.
Isso sem contar que tentar manter-se alheio a reivindicações justas é, não raro, apoiar a manutenção de um status quo de desigualdade e injustiça. Coisa que, por medo, preguiça, vontade de agradar alguém ou pseudo-reconhecimento de classe, a gente faz muito bem.
Manifestações populares e ocupações de terra e de imóveis vazios significam que os pequenos podem, sim, vencer os grandes. E os rotos e rasgados são capazes de sobrepujar ricos e poderosos. Por isso, o desespero inconsciente presente em muitas reclamações sobre a violência inerente ou involuntária desses atos.
Muitas das leis desrespeitadas em protestos e ocupações de terra não foram criadas pelos que sofrem em decorrência de injustiça social, mas sim por aqueles que estão na raiz do problema e defendem regras para que tudo fique como está. Você pode fazer o omelete que quiser, mas se quebrar os ovos vai preso.
Enquanto isso, mais um indígena foi emboscado e morto a tiros no Mato Grosso do Sul. Mas tudo bem. Devia ser apenas mais um vândalo, não um homem de bem.

quarta-feira, 12 de junho de 2013

Alarme de incêndio: o fascismo espreita a crise


 POR MILTON PINHEIRO   no CORREIO DA CIDADANIA



No último dia 5 de junho, o jovem estudante Clément Méric, 18 anos, foi espancado até a morte por hordas fascistas na cidade de Paris, França. O triste fato, mais que um acontecimento político, desperta o alarme de incêndio na sociedade em tempos de crise. A sociedade tardo-burguesa, na aurora do século XXI, tem se mostrado incapaz de produzir uma solução estratégica que possibilite a saída da crise e a continuidade da lógica capitalista; no entanto, continua em vigor a manutenção do seu projeto societário através de agressivos ajustes ideológicos. Essa crise cresceu, expandiu-se sobre a sociedade e consolidou-se numa crise sistêmica que está colocando em xeque as instituições da ordem burguesa e o sistema capitalista, expondo a crescente erosão institucional desse sistema predatório.

A particularidade mais visível da crise sistêmica global, que é a crise financeira mundial, já se estende por um período de seis anos e continuará por um tempo ainda mais longo. Não existe uma causalidade única para a crise, mas, examinando esse processo, a partir das descobertas científicas de Marx n´O Capital, pode-se concluir que essa crise tem na superprodução seu elemento determinante. Apesar de o Estado burguês ter injetado uma quantidade substancial de recursos para evitar o aprofundamento da crise, o equilíbrio do sistema está cada vez mais distante. O que se apresenta na cena do capitalismo é a anarquia social da produção. O descompasso entre oferta e demanda tem aprofundado a erosão do sistema, gerando pobreza para o conjunto dos trabalhadores e luxo exorbitante para a burguesia. Apesar do aporte de cifras substanciais por parte do fundo público – algo em torno de alguns trilhões de dólares para evitar o colapso do sistema bancário –, a fome ataca centenas de milhões de pobres em todo o mundo e aprofunda o pauperismo dos trabalhadores.

Esse ciclo de erosão societária remete a um processo de restauração tardo-burguesa. A degeneração ideológica do pensamento burguês falsifica e naturaliza a crise através da violência do Estado, quando ataca os direitos sociais dos trabalhadores, quando avança sobre o fundo público, quando modifica a legislação colocando em seu lugar regulações reacionárias e que vão, via o aparato jurídico-político, esgarçando o tecido social.

Estamos começando um período histórico em que a crise levará à abertura da cena política, quando o imponderável poderá se tornar realidade numa velocidade extraordinária. Os efeitos desse projeto de barbárie já se manifestam para além do aumento da recessão, do desemprego, do eclipse financeiro. Esses fatores se consolidam na crise de subjetividade dos trabalhadores, na xenofobia crescente que se alastra pela Europa e, até mesmo, na periferia de São Paulo (vide o tratamento dispensado aos bolivianos), no racismo que infesta os estádios na Europa, no rigor com que a “classe média” exige novas leis para punir os pobres (vide a campanha pela mudança na maioridade penal no Brasil), nas legislações fascistas que visam impedir que os comunistas disputem as eleições (Hungria), na ascensão do populismo neofranquista na Espanha, no crescimento dos partidos fascistas na Grécia, Holanda, Itália e Áustria.

Acendeu o alarme de incêndio, precisamos do freio de emergência para conter a barbárie. A crise sistêmica está erodindo as estruturas da institucionalidade burguesa e essa classe começou a construir brechas para a ação do fascismo. A morte do jovem lutador Clément Méric deve iluminar a compreensão sobre os caminhos a trilhar e as lutas a desenvolver, agora, no fogo da conjuntura.

O fascismo, em síntese, é uma possibilidade política de caráter social conservador que se apresenta durante o período do imperialismo capitalista para tentar se consolidar no desenvolvimento do capitalismo monopolista, apresentando-se como um instrumento de modernização social de corte irracionalista, alimentado por uma cultura de consumo dirigida a partir da vigência do capital financeiro. Essa sociedade da lógica tardo-burguesa tem estimulado a guerra imperialista, desenvolvido o misticismo da aparência para fugir da ciência e da filosofia, se aquartelando nos “nacionalismos chauvinistas”, no anticomunismo e nas saídas da contrarrevolução permanente (governos da ordem neoliberais).

Diante desse processo de emergência se faz necessário a “unidade da teoria e da prática”, como pensado por Marx. É importante acabar com o espaço político para a manobra fascista que se utiliza do pragmatismo radical, e suas técnicas de propaganda, para fazer a disputa ideológica, agindo em campo aberto de forma “antiliberal, antidemocrático, antissocialista, antioperário”, aplicando, em muitos momentos, a violência física, estabelecendo o medo e o terror.

Contudo, a abertura da cena política, com sua imprevisibilidade, está forjando um mundo em convulsão que tem movimentado milhões de trabalhadores. Partem da indignação, se comportam de forma espontaneísta, balançam estruturas com greves e manifestações. A história do tempo presente está lançando uma palavra de ordem: urge a auto-organização dos trabalhadores. É tarefa da emergência histórica organizar a vanguarda para, quando os trabalhadores se movimentarem, ter condições políticas de dirigir as batalhas que a luta de classes acena. Numa só palavra, precisamos da construção do operador político enquanto sujeito coletivo que tenha capacidade de formular e agir a partir de um projeto orgânico dos trabalhadores. Esse operador político se constitui de forma diversa para, a partir da unidade do bloco revolucionário do proletariado, fazer o enfrentamento à ordem do capital, impedindo assim que o fascismo em seu novo ciclo vença. Ao mesmo tempo, esse instrumento de vanguarda, orgânico aos trabalhadores, deve construir a possibilidade da revolução.

Milton Pinheiro é professor de Ciência Política da Universidade do Estado da Bahia (UNEB), autor/organizador, entre outros, do livro Teoria e prática dos conselhos operários, juntamente com Luciano Cavini Martorano, no prelo (Expressão Popular, São Paulo, 2013).