domingo, 15 de setembro de 2013

USA e a SIRIA...

Uma breve história da guerra dos EUA contra a Síria: 2006-2014
Blog Moon of Alabama, EUA

“O Congresso dos EUA desobedeceu ao AIPAC e ao lobby israelense. Foi a primeira vez que isso aconteceu, em 22 anos.”

“A Síria reconquistou a própria independência. O mais provável é que, em 2014, Bashar al-Assad seja reeleito presidente da República Árabe Síria. A história síria o recordará para sempre, como governante civilizado e herói do seu povo.”

“O povo dos EUA, pela primeira vez em décadas, conseguiu fazer parar uma guerra que o presidente desejava. Essa é vitória imensa e um precedente. Que todos os norte-americanos lembrem bem desses dias, quando aparecer outra guerra inventada, ou esse ou aquele país pequeno ou distante levantar-se. Os norte-americanos, nós, temos os meios para fazer parar qualquer guerra.”
_________________________

Em 2006 os EUA estavam em guerra no Iraque. Muitas das forças inimigas contra as quais os EUA lutavam furiosamente chegavam ao Iraque através da Síria. No mesmo ano o Hizbullah derrotou Israel, que invadira o Líbano. As forças armadas de Israel eram emboscadas cada vez que tentavam penetrar no Líbano, enquanto o Hizbullah usava foguetes contra as posições do exército israelense e nas cidades. O Hizbullah recebia apoio e suporte da Síria e do Irã, que chegavam através da Síria. Os planos de longo prazo dos EUA e Irã, para manter a supremacia no Oriente Médio dependiam de interromper as vias de abastecimento para o Hizbullah.

Os países sunitas sectários do Golpe, viram seus sunitas serem derrotados no Iraque, e um governo xiita, apoiado pelo Irã assumir no Iraque. Todos esses países tinham motivos para tentar atacar a Síria. E também havia razões econômicas, que tornavam necessário derrubar uma Síria independente. Um gasoduto, do Qatar à Turquia, competia com outro, do Irã à Síria. Grandes reservas de gás natural descobertas nas águas de Israel e Líbano, faziam aumentar muito a possibilidade de que também houvesse gás em águas nacionais sírias.

No final de 2006, os EUA começaram a financiar uma oposição externa ao partido Baath, que governava a Síria.[1]Aqueles opositores eram na maioria exilados da Fraternidade Muçulmana expulsos da Síria depois que fracassaram várias tentativas de golpe de Estado, entre 1976 e 1982. Em 2007, EUA, Israel e Arábia Saudita construíram um plano para “mudança de regime” na Síria. O objetivo do plano era destruir a aliança da “resistência”entre o Hizbullah, Síria e Irã:

“Para minar o Irã, predominantemente xiita, o governo Bush decidiu, de fato, reconfigurar suas prioridades no Oriente Médio. No Líbano, o governo cooperara com o governo da Arábia Saudita, que é sunita, em operações clandestinas que visam a minar o Hezbollah, organização de xiitas apoiada pelo Irã. Os EUA também tomaram parte em operações clandestinas contra o Irã e seu aliado, a Síria. Resultado colateral dessas atividades foi provocar a radicalização de grupos sunitas extremistas, que têm uma visão militante do Islã e são hostis aos EUA e simpáticos à Al-Qaeda.”[2]

Em 2011, três anos de seca, provocada pelo aquecimento global e pela Turquia, que construiu barragens e gigantescos projetos de irrigação na região, haviam enfraquecido a economia síria. Grandes populações, das áreas rurais mais pobres, perderam seus meios de sobrevivência e acorreram às cidades. Esses fatores criaram o terreno fértil a partir do qual lançar um golpe contra o estado sírio.

A parte que coube aos EUA naquele plano foi garantir cobertura “midiática” e o necessário “clima de opinião”, na opinião pública global, para viabilizar o golpe. Para isso, os EUA usaram as ferramentas que conhecem bem, de criar “revoluções coloridas”. “Jornalistas cidadãos” foram recrutados, treinados e armados com o necessário equipamento de vídeo e comunicações bem conhecidos da “mídia comercial” de propaganda, em todo o mundo. Outros foram treinados para organizar “manifestações civis pacíficas”.Os sauditas encarregaram-se da parte mais tenebrosa do plano: financiaram e armaram grupos rebeldes, muitos deles associados à exilada Fraternidade Muçulmana, com a tarefa de instigar movimento mais amplo e atacar forças do estado sírio, além de atacarem também manifestantes civis pacíficos.

Uma manifestação local em Deraa, perto da fronteira da Jordânia, foi usada para iniciar o golpe. Manifestações começaram pacíficas, mas logo começaram os ataques à bala contra manifestantes e contra a polícia. Inevitavelmente, os dois lados escalaram. Grupos armados pelos sauditas passaram a atirar consistentemente contra soldados do estado sírio. Com colegas mortos e feridos, as forças do exército sírio retaliaram contra os manifestantes. Grupos de manifestantes armaram-se, eles também, para enfrentar o exército sírio. 

Os “cidadãos jornalistas” entraram em cena, com propaganda de que só haveria vítimas entre os “manifestantes pacíficos” e jamais noticiaram o número de vítimas entre os soldados sírios. As agências “ocidentais” de noticiário integraram-se ao esquema. Ativaram-se células já organizadas em outras cidades da Síria. Mais uma vez, a expressão “manifestantes pacíficos” foi apresentada como cobertura para “uma terceira força”, como disse a comissão de investigação da Liga Árabe, que lutava contra as forças do governo sírio e também instigava os manifestantes a armarem-se.

O governo dos EUA ajudou com sua própria campanha de propaganda; por exemplo, quando mentiu[3]sobre ataques da artilharia síria contra manifestantes – que não haviam acontecido. 

Organizações para-governamentais norte-americanas, como Avaaz, Anistia Internacional e Human Rights Watch, uniram-se à campanha contra o governo sírio. E a ciberguerra, movida contra agências noticiosas sírias, suprimiu completamente o outro lado da história. Até hoje, a Agência Sírio-Árabe de Notícias [orig. Syrian Arab News Agencysana.sy] continua expurgada dos resultados [TALVEZ SÓ NOS EUA. No Brasil, encontra-se o que se vê emhttp://syrianfreepress.wordpress.com/tag/syrian-arab-news-agency/, às 19h04, 14/9/2013] se se procura em Google [TALVEZ SÓ NOS EUA. No Brasil, encontramos facilmente o que se vê em http://sana.sy/index_eng.html, às 19h03, 14/9/2013 (NTs)].

Rapidamente se tornou visível que a estratégia concebida para criar uma “revolução colorida” não funcionara.

O estado sírio mostrou-se capaz de resistir do que parecia. O presidente sírio Bashar al-Assad era mais respeitado e querido pelos sírios do que os instigadores do golpe haviam suposto. E o presidente atendeu rapidamente várias das demandas dos manifestantes autênticos. A Constituição síria for reformada, criaram-se novos partidos, houve eleições e as forças de segurança mais violentas e abusivas foram contidas, postas sob controle estrito. As grandes cidades, mesmo aquelas nas quais a maioria era de sunitas, não apoiaram nem se uniram à violência crescente dos milicianos sectários. As deserções do exército sírio e de quadros políticos foram poucas e sem importância. Durante algum tempo, até a economia conseguiu resultados bastante satisfatórios.

Os inimigos da Síria tiveram de aumentar o ‘envolvimento’. Arábia Saudita e Qatar usaram todas as suas capacidades para recrutar jihadis de outros países dispostos a lutar na Síria. A CIA, alimentada com dinheiro saudita, enviou para lá toneladas de armas e munição, recolhida de seus arsenais pelo mundo. Grupos terroristas foram criados, com treinamento e inteligência de combate. E criou-se um grupo de exilados, para começar a ser apresentado ao mundo como futuro governo possível para a Síria.

O governo sírio foi forçado a recolher-se, para preservar seus soldados. Grandes porções da Síria rural foram tomadas pelos grupos terroristas. A população dessas áreas fugiu pelas fronteiras ou para as cidades maiores. Nas áreas urbanas onde os terroristas se acastelaram, tornou-se difícil desalojá-los sem causar vasto dano aos prédios e à infraestrutura. Mas o governo sírio, dessa vez, já sabia o que fazer. Com a ajuda de aliados, unidades armadas do Irã, unidades armadas do Hizbullah foram retreinadas para guerra contra grupos terroristas insurgentes. E criaram-se unidades paramilitares locais, para reocupar as áreas das quais o exército já desalojara os terroristas. A Rússia cuidou de manter o suprimento de artigos necessários à sobrevivência dos civis e armamento para as forças do exército sírio. 

Do lado dos instigadores do golpe as coisas começaram a dar errado. Os Jihadisprovidenciados pela Arábia Saudita mostraram combatentes eficientes, mas fanáticos religiosos, e não encontraram espaço no contexto social da Síria – de governo laico e sociedade multirreligiosa liberal inclusiva. Começaram os confrontos com a população, e com combatentes locais pró-Assad. Ainda hoje chegaram notícias de luta violenta no nordeste da Síria, entre terroristas jihadistas e bandidos locais.[4]

Questões sobre suprimentos de armas a serem recebidas da Líbia, entre os EUA e grupos da Al-Qaeda, mataram o embaixador dos EUA em Benghazi. 

Apesar de ter sido ‘reformatado’ pelo menos três vezes, o planejado grupo para um governo no exílio mostrou-se inefetivo, dadas as disputas internas entre os vários grupos entre si e entre seus patrocinadores. A campanha de imprensa sobre “manifestantes pacíficos” começou a fazer água, à medida que mais e mais imagens e histórias emergiam, mostrando massacres cometidos pelos grupos golpistas, contra soldados sírios. A população nos países que inicialmente apoiara o que supunha ser um levante democrático mudou de opinião, e passou a opor-se a qualquer envolvimento naquele conflito. 

Quando se tornou mais evidente que os golpistas não conseguiriam derrotar o exército sírio, o presidente Barack Obama dos EUA apareceu com sua “linha vermelha” sobre o uso de armas químicas. Foi como um convite aos golpistas, para que usassem armas químicas no cenário da guerra, para em seguida culpar o governo sírio. Assim se criaria a necessidade, dado o que dissera o presidente, de os EUA intervirem militarmente, ao lado dos jihadistas terroristas. Tentaram fazer isso algumas vezes, mas Obama não deu sinal de disposição para usar a força. Para tentar impedir que, no caso de os terroristas conseguirem tomar o governo sírio, eles assumissem o poder, os EUA alteraram o plano: agora, haveria terroristas “moderados”, treinados pelos EUA, que assumiriam o controle dos combates, sobretudo em torno da capital Damasco.

Em meados de agosto de 2013, um grupo de 300 combatentes treinados pela CIA entraram na Síria pela Jordânia.[5](Hoje, o governo Obama está tentando alterar essa data.[6])

A tarefa deles era ir até Damasco e assumir, eles mesmos, a luta contra o governo sírio. Foram impedidos. Pararam, sem conseguir avançar mais, a caminho de um subúrbio de Damasco. Sem o apoio aéreo dos EUA, como havia acontecido na Líbia, o uso de forças especiais treinadas pelos EUA revelou-se inútil. Foi ativado então o plano “linha vermelha”.

Dia 21 de agosto, algum produto químico venenoso foi liberado no ar em alguns subúrbios de Damasco. Instantaneamente surgiram pelo canal YouTube enorme quantidade de vídeos em que se viam cadáveres enfileirados de supostas vítimas de ataque “químico”. Mas os vídeos não indicavam nenhum dos sintomas corretos de vítimas de exposição ao gás sarin, nem os atingidos que se via estavam recebendo os cuidados médicos de protocolo para o caso de ataque real com armas químicas. Tudo era falso. A conclusão de que se tratava de falsa operação ‘armada’para inculpar o governo Assad correu o mundo.[7]

Mas Obama ainda tentou convencer o mundo de que o governo sírio usara armas químicas, e insistiu em distribuir fiapos de evidências, mas, de fato, não exibiu qualquer prova. E convocou aliados para que se unissem a ele numa intervenção militar. 

O Parlamento britânico votou e decidiu que não. O povo britânico, como o povo norte-americano já não tem estômago para mais guerras. Obama viu-se preso num “ardil 22”:[8]podia ir à guerra sem consultar o Congresso; nesse caso, corria o risco de ser tirado da presidência por impeachment, de uma Câmara de Representantes muito hostil; ou pedia autorização ao Congresso para ir à guerra. Em pouco tempo Obama desceu da posição de “faço a guerra sozinho”[9]e pediu autorização ao Congresso. O povo dos EUA já era amplamente contrário a mais uma guerra no Oriente Médio, e os militares também.[10]Pressionados pelos eleitores, e ante o fato de que não havia prova alguma do tal “massacre”, o Congresso negou a licença para matar que Obama lhe pedira. 

O Congresso dos EUA desobedeceu ao AIPACe ao lobby israelense. Foi a primeira vez que isso aconteceu, em 22 anos.

Obama tem agenda urgente a cuidar, no plano doméstico. Há o Obama-care, o orçamento, e disputa já iminente pelo teto da dívida. Depois de perder a guerra no Congresso, Obama não poderia, baseado só em pressupostos poderes presidenciais, ir à guerra. Os riscos eram altos demais: ou um impeachment imediato, ou status de pato manco até o final do mandato. O que fazer?

Foi quando o cavaleiro russo, Vladimir Putin, acorreu em socorro de Obama.

Putin ofereceu um negócio: a Síria aceitaria entregar armas não convencionais; e os EUA aceitariam que o governo sírio e o presidente Assad permanecessem no poder. Não é ideia nova: apareceu há um ano, em agosto de 2012, quando o ex-senador Richard Lugar propôs exatamente isso, em Moscou.[11]

As armas químicas sírias são praticamente inúteis, no campo tático. Mas podem ser usadas contra centros de população israelenses – e têm, por isso, importante poder dissuasório e de contenção, contra a violência de Israel. Mas nas atuais circunstâncias converteram-se em risco a evitar. Ao mesmo tempo, os mísseis convencionais do Hizbullah já se comprovaram muito efetivos, como força de contenção; e não implicam os mesmos problemas associados às armas não convencionais. A Síria pode, com segurança, entregar parte de seu armamento de contenção dissuasória. E confia que seus aliados Irã e Rússia providenciarão substitutos efetivos, se necessário.

Obama agarrou-se à boia que Putin lançou para ele. Sabia que entrar abertamente em guerra contra oponente bem preparado[12]e aliados significaria guerra longa e incerta. Metera-se em situação de perde-perde, mas agora voltava a ainda parecer vencedor. Resgatou Israel de uma situação em que estava ameaçada por bombas de gás e ainda arranjou a alguma coisinha para fazer trotar seu cavalinho de batalha premiado – o desarmamento de armas de destruição em massa.

Hoje, os ministros de Relações Exteriores da Federação Russa e dos EUA assinaram umas “Linhas Gerais para a Eliminação das Armas Químicas Sírias”[orig. Framework for Elimination of Syrian Chemical Weapons].[13]Exige-se que, sendo possível, todas as armas químicas sírias estejam eliminadas até meados de 2014. 

O documento nada diz sobre o futuro do governo Assad. Mas a Rússia com certeza já providenciou para dar e obter as necessárias garantias. Nem a Síria teria entregado suas armas sem negociação precisa e suficiente. 

A Rússia, tanto quanto a Síria, sabe que Obama tem de manter a imagem, e ninguém falará sobre o real acordo firmado horas antes em Genebra. Agiram, aliás, como Nikita Khrushchev, que manteve silêncio sobre seu acordo com Kennedy, sobre a remoção dos mísseis nucleares norte-americanos da Turquia, depois da crise dos mísseis em Cuba. À parte as garantias anunciadas, o cumprimento das garantias de desarmamento, que pode demorar um pouco mais do que foi acordado hoje, depende da sobrevivência do governo de Assad. Derrubar Assad é assunto que, por hora, os russos proibiram. 

Daqui em diante, Obama começará, aos poucos, a reduzir o apoio aos terroristas na Síria. Pressionará Israel, Arábia Saudita e Turquia para que façam o mesmo. Quanto mais rapidamente a Síria promover a eliminação das armas químicas, mais rapidamente Obama se recolherá. A imprensa-empresa nos EUA rapidamente descobrirá a disputa pelo orçamento e o negócio da espionagem pela Agência de Segurança Nacional dos EUA, que voltarão às manchetes. E, aos poucos, a opinião pública dos EUA esquecerá que existe Síria.

A oposição síria não está gostando do acordo e não deseja que dê certo.[14]O Conselho Militar Sírio fará o possível para que dê errado. Mas logo perceberá que ficou sem apoio político e sem dinheiro. Enquanto isso, as forças locais do CMS combatem contra grupos aliados da al-Qaeda. É bem possível que alguns grupos locais anti-Assad rapidamente se aliem ao exército sírio, contra os terroristas jihadistas. O general Selim Idris talvez consiga algum emprego burocrático de baixo escalão em Dubai ou no Qatar.

O rei saudita odeia os ideólogos da al-Qaeda tanto quanto odeia a Fraternidade Muçulmana e todos os persas. Concordará em pôr fim à guerra e atacará o bolso dos que insistam em continuar a financiá-la. 

O príncipe Bandar, responsável por recrutar terroristas jihadistas, deu-se muito mal (outra vez) e não fez o que foi pago para fazer, porque disse que controlava mas não controlava seus jihadistas alugados. Pode ser mandado de volta para o deserto bravio. Os estados do Golfo seguirão (terão de seguir) o exemplo dos sauditas.

Em Israel, Netanyahoo já viu que, essa, ele perdeu. A derrota do AIPAC no Congresso já o informou disso. Embora esse round contra a Resistência não tenha sido decisivo, é verdade que grande parte da Síria foi destruída e que o arsenal estratégico sírio está, por hora, reduzido. Netanyahoo também concordará com o plano dos EUA de reduzir os latidos pró-guerra, mas exigirá alguma “compensação” imerecida. É o que ele sempre faz, e Obama sempre cede.

O premiê turco Erdogan tentará continuar a apoiar os jihadistas na Síria. É o único estadista do planeta que o faz por razões ideológicas: Erdogan é crente fiel. Mas tem também muitos problemas com outros vizinhos e a economia turca movida a empréstimos externos está à beira de precipício profundo. Há sinais vindos da Rússia e do Irã, de que pode haver algumas dificuldades técnicas, motivadas pelo inverno, com os suprimentos de gás para a Turquia. Provavelmente bastarão para induzir Erdogan a jogar a toalha. Há também gente dentro de seu próprio partido, sobretudo empresários da Anatólia, que já não o aceitam como líder. Podem usar a fraqueza política de Erdogan para trazer outro ator para o palco.

Sem apoio e sem qualquer possibilidade de vencer a luta, a parte síria da oposição que se armou provavelmente deporá armas e tentará algum acordo de anistia com o governo. Os quadros estrangeiros da al-Qaeda continuarão a lutar. Mas têm mínima base ideológica de apoio entre a população síria; e não têm qualquer chance contra exército experiente e plenamente mecanizado. Haverá bloqueio contra seus financiadores. Mas o terrorismo é duro de matar. É possível que, em breve, os EUA ajudem a Síria, com inteligência ou drones, a combatê-los.

Claramente, a Rússia é a grande vitoriosa estratégica na guerra à Síria. Está de volta ao cenário do Oriente Médio, em condições de aí permanecer por algum tempo. Ganhou por larga margem de pontos, a batalha pela opinião pública global. A Gazprom ficará feliz se puder ajudar a Síria na prospecção e na extração de gás de suas reservas oceânicas. Daí virão os fundos para reconstruir e rearmar a Síria. A Gazprom pode também comprar gás do gasoduto Irã-Síria, vendê-lo à Europa e reforçar seu monopólio por ali.

O Irã reforçou seu papel estratégico e está hoje bem posicionado para negociar um bom entendimento com os EUA, que pode pôr fim a 30 anos de hostilidades quentes e frias. Investiu muito na Síria e mais gastará para ajudar a reconstruir o país, mas o resultado estratégico – vitória do “eixo da Resistência” – vale bem o que custou.

A Síria e o povo sírio venceram a guerra e perderam muito. Serão precisos muitos anos para reintegrar os refugiados, para reconstruir o país e esperar que cicatrizem feridas profundas. Mas a Síria também reconquistou a própria independência. O mais provável é que, em 2014, Bashar al-Assad seja reeleito presidente da República Árabe Síria. A história síria o recordará para sempre, como governante civilizado e herói do seu povo.

O povo dos EUA, pela primeira vez em décadas, conseguiu fazer parar uma guerra que o presidente desejava. Essa é vitória imensa e um precedente. Que todos os norte-americanos lembrem bem desses dias, quando aparecer outra guerra inventada, ou esse ou aquele país pequeno ou distante levantar-se. Os norte-americanos, nós, temos os meios para fazer parar qualquer guerra.

********************************************** 

 


[8] Ardil 22 é título de um famoso romance-sátira da 2ª Guerra Mundial, lançado em 1961, depois, filme [http://www.cineclick.com.br/ardil-22]. O “ardil 22” é uma lei-armadilha pela qual os pilotos-personagens sempre acabavam obrigados a voar em missões de guerra: “Você pode se declarar louco, para não ser mandado voar a missão que eles inventam. Mas se eles perceberem que você não quer voar a missão, prova-se que você não está louco, e eles mandam você voar a missão” (mais sobre o livro, emhttp://www.livrariasaraiva.com.br/produto/347842/ardil-22-(catch-22)[NTs].
[9] De http://www.moonofalabama.org/2013/08/syria-obamas-climb-down.html:“Naquele momento, Obama só poderia ter uma de duas ideias na cabeça: ou (a) ele não quer guerra e espera que o Congresso o salve daquela estúpida “linha vermelha”, armadilha que ele mesmo inventou para si próprio e que foi a causa real da operação clandestina, falsa, no subúrbio de Damasco; ou (b) ele quer guerra e espera que o AIPAC, com seu descomunal lobby, ponha ordem no Congresso e lhe dê sua guerra, para benefício do sionismo universal.”

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

NÃO À GUERRA NA SIRIA!

“Nós dizemos não à guerra”: intervenção na Síria leva milhares às ruas ao redor do mundo

"Somos contra o lucro da iniciativa privada com a guerra", bradaram os manifestantes; John Kerry continua cruzada em defesa ao ataque à Síria




Cerca de 200 pessoas se reuniram na frente da Casa Branca, em Washington, nesse sábado (07). Ali começou uma cruzada que, em efeito viral, foi seguida ao redor do mundo. "Nós somos contra à guerra", bradaram os manifestantes em referência à possível intervenção militar na Síria.
Além da capital estadunidense, Nova York, Los Angeles, San Francisco e outras metrópoles europeias e asiáticas reuniram milhares de pessoas no sábado. "Eles dizem mais guerra, nós dizemos não" foi o grito oficial da marcha mundial, que acredita que uma novo ataque ao Oriente Médio seria "construído em uma mentira".
"A gente não aceita mais guerras para favorecer os lucros da iniciativa privada. Eles deveriam cortar o Pentágono e não os nossos vales-refeição", afirmou um porta-voz do movimento em Nova York em entrevista ao porta RT.
Mesmo com a sombra dos protestos, o secretário de Estado estadunidense, John Kerry, disse no sábado que não intervir na Síria em resposta ao ataque com armas químicas, atribuído ao regime de Bashar Al Assad, seria "um risco maior” do que a própria ação militar.
Kerry, que se reuniu com o secretário francês, Laurent Fabius, insistiu que a crise afeta a segurança dos estadunidenses, em particular pelo risco de disseminação de armas químicas entre grupos terroristas e que o ataque que os Estados Unidos pretendem será curto, seletivo, sem tropas no terreno, mas com “mensagem clara”.
O chefe da diplomacia estadunidense lembrou que o presidente Barack Obama ainda não decidiu se vai esperar pela apresentação do relatório dos peritos das Nações Unidas. Eles estiveram no país para recolher provas do ataque com armas químicas, de 21 de agosto, que provocou centenas de mortes.
O presidente francês, François Hollande, já manifestou apoio aos Estados Unidos, mas observou que vai esperar pelo relatório dos peritos. “A ausência de ação supõe um risco mais grave que a própria ação”, disse Kerry, reafirmando que o que pretende não é uma guerra e que “a única forma de acabar com o conflito sírio passa por solução política e não militar”.

No Brasil
Em Brasília (DF), cerca de 400 jovens participaram de uma manifestação em frente à embaixada dos EUA na sexta-feira (6). Eles repudiaram o possível ataque ao país árabe. O ato foi marcado pela encenação dramática dos presentes, que representaram uma cena de guerra, em que jovens eram carregados por outros como se tivessem sido feridos e mortos por bombas. Também foi queimado um boneco do presidente estadunidense.
Houve ainda manifestação em São Paulo (SP), convocada pelo Comitê de Solidariedade com o Povo Sírio. Confira fotos de Rafael Stedile:
(com informações da Agência Brasil e do Vermelho)
Foto: Rafael Stedile

segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Luciana Genro: “PSOL não pode cair na lógica de ganhar eleições a qualquer custo”


 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Ex-deputada estadual e federal, Luciana Genro é pré-candidata do PSOL à Presidência da República | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Samir Oliveira e Iuri Müller *no SUL21
Depois de sucessivos mandatos como deputada estadual e federal, e impedida pela lei eleitoral de concorrer a cargo legislativo no ano que vem, Luciana Genro prepara-se para tentar a Presidência da República pelo PSOL. O congresso nacional do partido, marcado para dezembro, pode referendar o nome de Luciana como candidata da sigla ao Planalto – ainda que outros nomes, como o senador Randolfe Rodrigues (AP) e o deputado federal Chico Alencar (RJ), possam também disputar essa indicação.
Em conversa com o Sul21, Luciana Genro defendeu sua pré-candidatura como uma reafirmação da disposição do PSOL em fazer política sem comprometer-se com métodos que descaracterizem o ideário da sigla. “Vou até o final nessa disputa”, acentuou, citando também pontos que considera fundamentais na eventualidade do PSOL chegar ao poder – o principal deles, a convocação de uma assembleia popular constituinte. “A partir dessa assembleia constituinte, rediscutiríamos as formas de representação e as formas como as instituições do país se organizam”, explica a pré-candidata.
Na entrevista, Luciana Genro tratou também dos protestos que tomaram conta do Brasil no mês de junho – manifestações que, segundo ela, demonstraram que o PT não mais dialoga com movimentos sociais – e da necessidade de incorporar as indignações expressas nas ruas dentro da construção de uma nova concepção de atividade política. Além disso, falou sobre a saída de Heloísa Helena do PSOL e de sua própria situação política – como seu pai, Tarso Genro, é governador do RS, ela foi impedida de concorrer a vereadora de Porto Alegre nas eleições do ano passado. O que, mesmo impedindo seu retorno às atividades parlamentares enquanto o pai for governador, ela garante não lamentar de todo. “Ficar sem mandato me permitiu participar dos movimentos e das atividades partidárias em uma outra posição”, diz ela.
Sul21 – Como foi a indicação da tua pré-candidatura à presidência pelo PSOL?
Luciana –
 O PSOL vive um processo de debate político muito rico. Em dezembro teremos o nosso quarto congresso, que acontece em um momento muito positivo da conjuntura política do país, principalmente depois das jornadas de junho. A nosso ver – e essa é uma avaliação bastante homogênea no PSOL –, as manifestações de junho mudaram de forma bastante consistente a conjuntura política e as perspectivas da política no Brasil. O levante de junho, como temos chamado, acabou fortalecendo dentro do PSOL a ideia de que precisamos ser um partido que se diferencie do conjunto de partidos colocados na política nacional. Isso já era uma definição desde a fundação. Quando decidimos fundar o PSOL, foi porque não aceitávamos a lógica da política tradicional, de fazer promessas na campanha e depois as enterrar em nome do pragmatismo e da governabilidade. Por isso eu, o Babá, a Heloísa Helena e o João Fontes fomos expulsos do PT há dez anos. O mote foi a reforma da previdência, que foi comprada com o mensalão.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Randolfe defende política desconectada da necessidade do PSOL ser um partido sem resquício de pragmatismo e alianças”, aponta Luciana Genro | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Teu nome ainda precisa passar por votação no congresso do partido?
Luciana -
 O congresso acontece nesse caldeirão político, em dezembro, e o meu nome foi apresentado. São três correntes dentro do PSOL que estão defendendo meu nome. Dentro do partido, existe um grupo chamado Bloco de Esquerda, que se contrapõe à ala que é dirigida pelo presidente Ivan Valente – e que tem nas suas fileiras, como possível candidato à presidência, o senador Randolfe Rodrigues. Primeiro, haviam lançado o Randolfe como candidato a presidente pelo PSOL. Então o Bloco de Esquerda, inconformado, se organizou e algumas correntes dentro do Bloco apresentaram o meu nome. É este o debate político que estamos construindo. Mas o Randolfe mudou de ideia, não se sabe bem se vai ser ele o candidato a presidente do outro grupo.
Sul21 – Qual a diferença política entre esses dois grupos?
Luciana -
 O Randolfe e o grupo que ele representa defendem uma linha política que, na nossa opinião, está desconectada da necessidade de o PSOL ser um partido fora da ordem, de abandonar qualquer resquício de pragmatismo e de alianças, particularmente – mas não só isso -, para ganhar eleições. No Amapá, onde o Randolfe tem sua base, o PSOL ganhou a eleição para prefeitura da capital, Macapá, o que foi uma vitória importante. Mas ganhou em um esquema político que não ajuda no processo de construção do partido enquanto alternativa de esquerda que realmente renega as formas tradicionais de fazer política. Lá, o PSOL chegou a ter o apoio do DEM no segundo turno e fez alianças com partidos da base do governo Dilma. Tudo isso está gerando um debate político que é muito bom para o partido, porque ajuda a desenvolver as caracterizações, avaliações e o próprio pensamento da militância.
“A principal preocupação é que o PSOL não reproduza a lógica de ganhar eleições a qualquer custo. Política vai muito além de postos institucionais”

Sul21 – Como tu avalias as mudanças pelas quais o partido passou agora com a conquista das prefeituras de Macapá e de Itaocara (Rio de Janeiro)? Quais as diferenças nesses dois processos?
Luciana –
 É difícil fazer uma comparação justa, porque são prefeituras bem diferentes. Uma é capital e a outra é uma cidade bastante pequena. Mas algumas questões de método são interessantes de se comparar. Por exemplo, a forma como foram escolhidos os secretários. Em Itaocara, cujo prefeito integra uma das correntes da esquerda do PSOL – a corrente do Babá, a CST – o secretariado foi escolhido com a participação da comunidade e do funcionalismo público. Houve um debate muito mais sobre as qualificações técnicas e políticas das pessoas do que indicações partidárias. Há um processo de mobilização muito positivo na cidade, que, inclusive já havia conquistado o passe livre para estudantes antes mesmo do levante de junho. Já em Macapá, temos indícios de participações de pessoas indicadas por filiados de partidos da direita.
Sul21 – A eleição de 2012 intensificou o debate sobre alianças e pragmatismo eleitoral no PSOL?
Luciana –
 A principal preocupação é que o PSOL não reproduza a lógica de ganhar eleições a qualquer custo. É óbvio que ter parlamentares é uma coisa muito importante para o partido, assim como ganhar prefeituras. Mas a política vai muito além de postos institucionais. As ruas mostraram, em junho, que amplas parcelas da população não se sentem representadas nas instituições tradicionais da política. O PSOL tem que revolucionar a política. Isso significa que temos que disputar, sim, processos eleitorais. No Rio de Janeiro, chegamos a quase 30% dos votos para prefeitura da capital. Lá, fazemos uma política que é institucional e, ao mesmo tempo, anti-regime. Uma política que enfrenta as formas tradicionais de fazer política, que tem uma figura pública que é o Marcelo Freixo. O PSOL tem o desafio de andar no fio da navalha, de conseguir ao mesmo tempo ter uma participação na política institucional, mas não se render aos métodos tradicionais da política.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Candidato a governo do RS pelo PSOL ainda está em aberto: “é possível que seja o Roberto Robaina”, diz Luciana | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Falava-se que o Chico Alencar poderia ser um nome de consenso para representar o PSOL na disputa presidencial.
Luciana – 
Ele poderia ter sido, mas não é mais. Quando foi lançado o Randolfe e lançado o meu nome, em consequência, houve uma movimentação de um setor do próprio Bloco de Esquerda para que o Chico fosse candidato. O grupo que tinha me lançado disse que se o Chico topasse, dentro de uma linha política acordada por todos, seria consenso. Só que, a partir dali, o Chico fez uma movimentação política totalmente de alinhamento com a corrente do Ivan. Então já não há mais a possibilidade de consenso. Vou na disputa até o final. Eu só abriria mão da disputa para o Marcelo Freixo. Antes de lançar meu nome, procuramos ele, conversamos. Mas ele não pode ser candidato a presidente porque não pode ficar sem mandato, já que é uma pessoa perseguida pelas milícias, justamente porque mexeu no coração da corrupção política do Rio de Janeiro.
Sul21 – Como o partido está se preparando para as eleições do ano que vem em nível estadual?
Luciana –
 Teremos candidato a governador, ainda não sabemos quem será. É possível que seja o Roberto Robaina, mas isso ainda está em debate. Nossa meta mínima é a eleição de um deputado estadual, mas temos expectativa de poder ir além. Ainda não se sabe como exatamente essa insatisfação com a política tradicional vai refletir no processo eleitoral e em que medida o PSOL vai conseguir se credenciar enquanto um partido que está fora da ordem tradicional da política. Acredito que temos chances de crescer. Uma parte significativa dessa juventude já tem relações com o PSOL ou se organiza no Juntos, que é um movimento de juventude independente, mas onde muitos militantes do PSOL atuam. Temos a expectativa de atrair um setor importante dessa juventude que se mobilizou e está em busca de uma alternativa política.
“O modelo uruguaio é limitado, ataca somente um dos pontos das drogas, que é a maconha. Mas deixa de fora a cocaína. Esse debate tem que se abrir”

Sul21 – E qual é a tua plataforma política na disputa interna pela indicação à presidência pelo PSOL?
Luciana –
 A primeira questão é que o Brasil necessitaria de uma assembleia popular constituinte para reorganizar o conjunto das instituições do país. A eleição para essa assembleia já teria que ser feita sob novas regras, sem a interferência do capital privado; com a possibilidade de candidaturas avulsas, para que as pessoas que não se sentem representadas por partidos possam concorrer; com tempos de televisão minimamente igualitários para todos. Teria que ser um processo eleitoral que não fosse marcado pela venda de candidatos como produtos, mas sim pelo debate político real. A partir dessa assembleia constituinte, rediscutiríamos as formas de representação e as formas como as instituições do país se organizam, além de medidas de democracia direta, onde o povo pudesse interferir nas decisões que são fundamentais do país, como a questão da dívida pública.
Sul21 – De que forma o tema da dívida pública pode ser tratado?
Luciana –
 Hoje, mais de 30% do orçamento do país é destinado a pagar a dívida pública, sendo que a maior parte desse dinheiro vai para aumentar os lucros dos bancos, que estão lucrando muito nos últimos anos. Os bancos lucraram mais no governo Lula e Dilma do que no governo do Fernando Henrique. É uma questão que deveria ser discutida em um plebiscito: é justo que falte dinheiro para se investir em moradia, transporte, passe livre, por exemplo?
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
“Hoje, mais de 30% do orçamento do país é destinado a pagar a dívida pública, sendo que a maior parte desse dinheiro vai para aumentar os lucros dos bancos” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Que outros temas poderiam ser abordados na candidatura?
Luciana – 
Um tema que me sensibiliza muito, até porque sou advogada e estou me especializando na área penal, é a questão da descriminalização das drogas. O modelo uruguaio é limitado, ataca somente um dos pontos das drogas, que é a maconha. Mas deixa de fora a cocaína, que também é importante. Esse debate tem que se abrir. Também poderia ser objeto de um plebiscito com um debate político muito bem feito, para que se trate o problema da droga como uma questão de saúde pública, principalmente em drogas como a cocaína, que são de periculosidade elevada. Acho uma grande hipocrisia que a maconha seja tratada como uma droga proibida, já que tem nível de periculosidade igual ou inferior ao álcool e ao cigarro. Deveria ser uma droga lícita e deveriam ser alertados os perigos, da mesma forma que se alega do cigarro e do álcool.
Sul21 – No Uruguai, o controle estatal sobre a maconha veio com a justificativa de que acabaria com o tráfico.
Luciana – 
Grande parte da tragédia que a gente vive no sistema prisional está relacionadas com a ilegalidade das drogas. A maioria do dinheiro público gasto com segurança é dirigido ao combate ao tráfico. Isso já se demonstrou uma política falida. No mundo inteiro essas políticas estão sendo rediscutidas e o Brasil está atrasado nesse aspecto. É preciso que os problemas de saúde pública e de segurança sejam tratados de outra maneira, a partir da descriminalização. Mas essa é uma posição minha, que vai ter que ser discutida com o partido. A partir de eu ser escolhida como candidata, quero pautar esse debate com o partido e ver de que forma se pode fazer essa abordagem.
“Os problemas que foram colocados pelos movimentos de junho não foram resolvidos em absoluto. A tendência é que se retome essa pauta”

Sul21 – Em relação às manifestações, como tu avalias a resposta do poder público?
Luciana –
 A reação do poder público demonstrou que o conceito marxista e leninista sobre o Estado é mais atual do que nunca: de que o Estado é, em última instância o braço armado da burguesia para garantir seus interesses. O tratamento do Estado, em primeiro lugar, foi policialesco. Isso vale para todo o Brasil. Alguns governos reagiram com mais violência, outros com menos, mas a violência foi generalizada. As medidas concretas para responder aos problemas que foram colocados foram totalmente insuficientes. E as medidas mais “radicais” propostas pela presidente acabaram sendo engavetadas por ela própria, como seria a proposta de uma constituinte exclusiva para discutir a reforma política – que era insuficiente, mas era uma medida positiva. Os problemas que foram colocados pelos movimentos de junho não foram resolvidos em absoluto. A tendência é que se retome essa pauta. Talvez não com a mesma força e magnitude que aconteceu em junho, que foi um fenômeno político muito especial, que não se repete com tanta facilidade. Mas, com certeza – e isso já estamos vendo agora – se abriram as comportas para que as exigências sejam pautadas de forma mais constante. As lutas que vêm surgindo desde aquele momento não pararam mais. E acho que não vão parar.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
É necessário, segundo pré-candidata, organizar indignação de protestos de junho de forma a constituir novas lideranças e movimentos | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – É possível intensificar os movimentos que desaguaram em junho?
Luciana -
 A tendência é que se possa avançar, tanto em termos de conquistas como também em termos de organização. A grande necessidade que se tem a partir do que aconteceu em junho é organizar a indignação. O PSOL é parte desse processo de tentar ajudar a organizar essa indignação, mas é claro que não é algo que passa só pelo PSOL. Desde que o PT ganhou a presidência da República, houve uma cooptação das lideranças dos movimentos sociais, e, portanto, um refluxo das lutas. Junho foi uma “revolução” porque mostrou que o PT já não controla mais os movimentos como conseguiu nos últimos dez anos. Isso possibilita que surjam novas lideranças e novos movimentos, ou que os movimentos que já existem ganhem novos contornos e deixem de se enjaular pelo governo.
Sul21 – O mês de junho foi de contestações ao governo quase diárias. Também exigiu respostas dos partidos em vários setores. Na tua opinião é uma oportunidade para que o PT tente se reinventar?
Luciana 
– O PT não consegue mais se reinventar, porque já não tem mais oxigênio interno para se renovar. O ponto de corte foi a nossa expulsão. Foi a mensagem clara de que não havia espaço dentro do PT para quem não se alinhasse com as necessidades do governo. Quem ficou no PT – e eu não digo os eleitores, mas os dirigentes – aceitou essa lógica de submissão dos interesses do povo às necessidades do governo. O PT tem oxigênio eleitoral, e é possível que a Dilma ganhe novamente as eleições. Mas, enquanto um partido de transformação, o PT está morto. Pode ser um partido de eleições, de governos que são instrumentos para aplicação das medidas necessárias para a reprodução do capitalismo. Não vai além disso.
Sul21 – Tu falaste que as manifestações demonstram que exige uma base social que contesta o sistema e a política tradicional. Mas algumas análises dizem que, em alguns momentos, as manifestações tiveram grande presença da direita e de uma classe média que acaba reproduzindo anseios apolíticos. Tu tens essa avaliação ou acreditas que as manifestações são a expressão de uma massa que reflete mais o pensamento da esquerda?
Luciana –
 Não acho que seja uma massa que reflete o pensamento da esquerda. Mas acho que essa história do “golpe” foi uma invenção do PT para tentar desacreditar o movimento e tentar explicar sua própria impotência diante de um movimento que o transbordou completamente. As pessoas que acreditavam no PT ou as que ainda viam na política uma forma de transformação se desiludiram. Viram o PT – que era um partido que se construiu contestando a corrupção e a submissão do país aos interesses do capital – chegar ao poder e fazer exatamente aquilo que contestou a sua existência inteira. Então essas pessoas chegam à conclusão de que política é tudo igual, partido é tudo igual e nenhum serve para nada. O apoliticismo foi alimentado pelo próprio PT.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Luciana Genro não identificou discursos de direita em protestos: “o que houve foi uma repulsa aos partidos, inclusive os do campo de esquerda que tentavam se impor” | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Outro aspecto, gente de direita existe no Brasil, sempre existiu e sempre vai existir. Isso faz parte do espectro político de qualquer sociedade. Acho até que nas manifestações isso apareceu de forma muito tímida, porque se a gente for analisar todas as reivindicações que surgiram nos cartazes feitos pela população, não tinha nenhuma consigna de direita, tipo “militares voltem”, ou contra o aborto, no campo dos “costumes”, digamos assim, ou “fora os homossexuais”. O que teve de fato foi uma repulsa aos partidos, que atingiu inclusive os partidos de esquerda que tentavam se impor. O PSOL muito pouco, porque a nossa linha foi não aparecer enquanto partido. Nós fomos, e eu participei, inclusive tomei bomba de gás lacrimogêneo da Brigada Militar aqui em Porto Alegre, e participei em São Paulo também. E fui como indivíduo, fui muito bem recebida pelas pessoas que me reconheceram. O PSTU tentou se impor como partido, com bandeiras, e teve até confronto físico.
Claro, teve setores da direita que se aproveitaram desse sentimento anti-partido. Mas a maioria das pessoas (com esse sentimento) não eram necessariamente da direita, mas pessoas que não queriam que os partidos políticos se apropriassem de um movimento que não era organizado pelos partidos.
“Heloísa Helena foi fundamental no processo de construção do PSOL. Mas ela faz política muito mais com o fígado do que com o cérebro. Então ela acabou numa rota de colisão com Ivan Valente”

Sul21 – Em uma década de existência, o quão heterogêneo é o PSOL hoje?
Luciana –
 O PSOL é menos heterogêneo do que era o PT em sua fundação, embora seja heterogêneo. Não acho que isso necessariamente seja ruim. É positivo que se tenha diferenças políticas e debates políticos. Mas o PSOL tem uma maioria – e acredito que isso vá se demonstrar no nosso congresso em dezembro – que aprendeu com o processo da expulsão do PT. Ou, melhor dizendo: aprendeu com o processo da falência do PT. Acho que alguns setores, que hoje identifico nessa coalizão em torno do Randolfe, não tiraram todas as conclusões necessárias. Não é casual que eles tenham ingressado depois no partido. Embora haja grupos que vieram depois e que tiraram as conclusões e hoje estão no Bloco de Esquerda. Mas esse setor do Randolfe e do Ivan Valente não tirou todas as conclusões necessárias do processo do PT. Isso não nos impossibilita uma convivência partidária, mas nos impõe uma disputa política. Disputar os rumos do partido com esse setor é fundamental para que possamos fazer do PSOL uma alternativa que seja viável politicamente e, ao mesmo tempo, não repita os erros cometidos pelo PT.
Sul21 – Como tu avalias a saída da Heloísa Helena do partido? Ao que tudo indica ela estaria indo para a Rede.
Luciana –
 É uma perda para nós, caso se concretize. É uma perda muito triste, para mim, em particular, que tenho uma relação de amizade com ela. Ela foi fundamental no processo de construção do PSOL. Mas a Heloísa Helena tem uma característica de fazer política muito mais com o fígado do que com o cérebro. Então ela acabou numa rota de colisão com esse grupo encabeçado pelo Ivan Valente desde aquele momento da escolha do Plínio como candidato à presidência. E desde então ela não conseguiu mais se reinserir com o partido. Isso acabou se combinando com uma relação de amizade e de identidade que ela tem com a Marina (Silva), então ela decidiu ajudar a Marina na construção da Rede. Se o partido conseguir a legalidade, é bem provável que ela vá mesmo para a Rede.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Eleita pela primeira vez com 23 anos, Luciana acredita que distância dos parlamentos permitiu voltar a fazer política a partir de uma posição de militância | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Como foram esses anos sem mandato político e a questão jurídica? Já se encerrou esse processo?
Luciana –
 Se encerrou no TSE e eu perdi no TSE também. Eu acho que fui vítima de uma injustiça, porque se houvesse alguma equidade no sentido aristotélico da palavra, que é observar o caso concreto e fazer justiça no caso concreto, o meu caso teria tido um tratamento diferente. Eu não acho que essa lei em si seja necessariamente ruim e que devesse ser derrubada, acho que o meu caso concreto tinha que ser visto com outros olhos. Infelizmente a nossa justiça ainda é muito positivista, no sentido de olhar a letra fria da lei e não cotejar a lei com a vida real. Mas para mim foi uma experiência até positiva ficar sem mandato, porque tive a oportunidade de estar mais próxima da cidade de Porto Alegre, e ao mesmo tempo tenho ido bastante para São Paulo, fazer política lá. Tive a oportunidade de terminar meus estudos em Direito, estou terminando uma pós-graduação e pretendo fazer um mestrado. Ficar sem mandato me permitiu participar dos movimentos e das atividades partidárias desde uma posição mais de militante do que de parlamentar.
Sul21 – Te dedicaste também a estruturar o Emancipa, certo?
Luciana –
 Exatamente. Esse foi um processo que me satisfez muito. Agora passei para o Marco Viana a diretoria do Emancipa, é uma OSCIP, conseguiu aprovar neste último vestibular mais de 60 alunos da UFRGS, e isso foi muito gratificante. A gente recebe muito o feedback dos jovens que participaram. Para mim é uma nova experiência, porque eu fiquei 16 anos como parlamentar, eu fui eleita com 23 anos pela primeira vez. Então eu já estava um pouco esgotada nesse papel, foi positivo para mim poder continuar fazendo política desde uma outra posição.
* colaborou Igor Natusch

sábado, 31 de agosto de 2013

Marx, Lênin, Gramsci e a imprensa

Marx, Lênin, Gramsci e a imprensa

Por Altamiro Borges

Diante do poder alcançado pela mídia hegemônica e das ilusões ainda existentes sobre seu papel, revisitar as idéias de intelectuais marxistas sobre o tema é da maior importância e causam surpresa por sua enorme atualidade. Marx, Lênin e Gramsci, entre outros pensadores revolucionários, sempre destacaram o papel dos meios de comunicação. Exatamente por entenderem a importância da luta de idéias, do fator subjetivo na transformação da sociedade, fizeram questão de desmascarar o que chamavam, sem meias palavras, de “imprensa burguesa” e de realçar a necessidade da construção de veículos alternativos dos trabalhadores. 

Estes dois elementos, a denúncia do caráter de classe da imprensa capitalista e a defesa dos instrumentos próprios dos explorados, são as marcas principais destes intelectuais marxistas. Marx, Lênin e Gramsci dedicaram enorme energia ao trabalho jornalístico, escrevendo centenas de artigos e ajudando a construir vários jornais democráticos e proletários. Foram jornalistas de mão-cheia, produzindo textos que entraram para a história. Sempre estiveram sintonizados com o seu tempo, pulsando a evolução da luta de classes; nunca se descuidaram da forma, da linguagem, para melhor difundir os seus conteúdos revolucionários.

Defesa da liberdade de expressão 

Vítimas da violenta perseguição das classes dominantes, os revolucionários nunca toleraram a censura dos opressores e foram os maiores defensores da verdadeira liberdade de expressão. A própria ampliação da democracia foi decorrência das lutas dos trabalhadores, já que nunca interessou à reacionária burguesia. Mas os revolucionários nunca confundiram esta exigência democrática com a proclamada “liberdade de imprensa”, tão alardeada pela burguesia que controla os meios de produção e usa todos os recursos, legais e ilegais, ardilosos e cruéis, para castrar a própria democracia e o avanço das lutas emancipadoras. 

Numa fase ainda embrionária do movimento operário-socialista, Karl Marx logo se envolveu na atividade jornalística. Após concluir seu doutorado em filosofia, em 1841, ele pretendia seguir a carreira acadêmica e ingressar na Universidade de Bonn, mas a brutal repressão do governo prussiano inviabilizou tal projeto e o jovem filósofo alemão manteve seu sustento através do jornalismo. Em 1842, ingressou na equipe do jornal Gazeta Renana e virou o seu redator-chefe. Sob sua direção, este periódico democrático triplicou o número de assinantes e ganhou prestígio, mas durou poucos meses e foi fechado pela ditadura prussiana. 

Sem ilusões na imprensa burguesa 

Na seqüência, entre 1848/49, passou a escrever no jornal Nova Gazeta Renana, que se transformou numa trincheira de resistência ao regime autoritário. Em menos de dois anos, Marx escreveu mais de 500 textos e tornou-se um articulista de sucesso. O combate ao código de censura do governo prussiano resultou na proibição do jornal. Marx ainda escreveu para o Die Press e o New York Tribune sobre política, economia e história. “Era um jornalismo que revelava a minuciosa leitura de Marx, seu alto grau de informação não apenas sobre os fatos e conflitos, como também sobre os atores individuais e a própria imprensa”, relata José Onofre, na apresentação do livro recém-lançado “Karl Marx e a liberdade de imprensa”. 

Em sua defesa da liberdade de expressão, ele nunca vacilou na denúncia da ditadura burguesa. Para ele, o jornal deveria ser uma arma de combate à opressão e à exploração e não um veículo neutro. “A função da imprensa é ser o cão-de-guarda, o denunciador incansável dos opressores, o olho onipresente e a boca onipresente do espírito do povo que guarda com ciúme sua liberdade”. Em outro texto, afirma: “O dever da imprensa é tomar a palavra em favor dos oprimidos a sua volta. O primeiro dever da imprensa é minar todas as bases do sistema político existente”. Por estas idéias libertárias, ele foi processado e perseguido. 

Poder do capital sobre a imprensa 

Outro que nunca se iludiu foi Vladimir Lênin. Atuando num período da ascensão revolucionária, ele foi ainda mais duro no combate aos jornais burgueses. Num texto intitulado “a liberdade de imprensa do capitalismo”, ele desnuda esta falácia. “A ‘liberdade de imprensa’ é também uma das principais palavras de ordem da ‘democracia pura’. Os operários sabem e os socialistas de todos os países reconheceram-no milhares de vezes que esta liberdade é um engano enquanto as melhores impressoras e os estoques de papel forem açambarcados pelos capitalistas, e enquanto subsistir o poder do capital sobre a imprensa”. 

“Com vista a conquistar a igualdade efetiva e a verdadeira democracia para os trabalhadores, é preciso começar por privar o capital da possibilidade de alugar escritores, de comprar editoriais e de subornar jornais, mas para isso é necessário destruir o jugo do capital... Os capitalistas chamam sempre ‘liberdade’ à liberdade para os ricos de manterem seus lucros e liberdade para os operários de morrerem à fome. Os capitalistas denominam de liberdade de imprensa a liberdade de suborno da imprensa pelos ricos, a liberdade de usar a riqueza para forjar e falsear a chamada opinião pública”. Nada mais atual! 

Numa outra fase histórica, em que o setor da comunicação ainda não era um poderoso ramo da economia, Lênin chegou a se contrapor à participação dos comunistas na imprensa burguesa. “Poder-se-á admitir que colaborem nos jornais burgueses? Não. A semelhante colaboração se opõe tanto as razões teóricas como a linha política e a prática da social-democracia... Dir-nos-ão que não há regra sem exceção. O que é indiscutível. Não se pode condenar o camarada que, vivendo no exílio, escreve num jornal qualquer. É por vezes difícil criticar um social-democrata que, para ganhar a vida, colabora numa seção secundária de um jornal burguês”. Mas, para ele, tais casos deveriam ser encarados como exceção e com princípios. 

“Boicote, boicote, boicote” 

Para encerrar este bloco, que evidencia que os marxistas nunca nutriram ilusões sobre o caráter de classe da imprensa burguesa e nem se embasbacaram com o seu poder de sedução, vale reproduzir uma longa citação de Antonio Gramsci, o revolucionário italiano de padeceu onze anos nos cárceres. No texto “Os jornais e os operários”, escrito em 1916, ele faz uma conclamação aos trabalhadores que bem poderia servir para uma campanha contra a revista Veja e outros veículos da mídia brasileira na atualidade: 

Para ele, a assinatura de jornal burguês “é uma escolha cheia de insídias e de perigos que deveria ser feita com consciência, com critério e depois de amadurecida reflexão. Antes de mais, o operário deve negar decididamente qualquer solidariedade com o jornal burguês. Deveria recordar-se sempre, sempre, sempre, que o jornal burguês (qualquer que seja sua cor) é um instrumento de luta movido por idéias e interesses que estão em contraste com os seus. Tudo o que se publica é constantemente influenciado por uma idéia: servir à classe dominante, o que se traduz sem dúvida num fato: combater a classe trabalhadora. E, de fato, da primeira à última linha, o jornal burguês sente e revela esta preocupação”. 

“Todos os dias, pois, sucede a este mesmo operário a possibilidade de poder constatar pessoalmente que os jornais burgueses apresentam os fatos, mesmo os mais simples, de modo a favorecer a classe burguesa e a política burguesa em prejuízo da política e da classe operária. Rebenta uma greve! Para o jornal burguês os operários nunca têm razão. Há uma manifestação! Os manifestantes, apenas porque são operários, são sempre tumultuosos e malfeitores. E não falemos daqueles casos em que o jornal burguês ou cala, ou deturpa, ou falsifica para enganar, iludir e manter na ignorância o público trabalhador. Apesar disso, a aquiescência culposa do operário em relação ao jornal burguês é sem limites”. 

“É preciso reagir contra ela e despertar o operário para a exata avaliação da realidade. É preciso dizer e repetir que a moeda atirada distraidamente é um projétil oferecido ao jornal burguês que o lançará depois, no momento oportuno, contra a massa operária. Se os operários se persuadirem desta elementar verdade, aprenderiam a boicotar a imprensa burguesa, em bloco e com a mesma disciplina com que a burguesia boicota os jornais operários, isto é, a imprensa socialista. Não contribuam com dinheiro para a imprensa burguesa que vos é adversária: eis qual deve ser o nosso grito de guerra neste momento, caracterizado pela campanha de assinatura de todos os jornais burgueses: Boicotem, boicotem, boicotem!”. 

Construtores da imprensa revolucionária 

Exatamente por não nutrirem ilusões na imprensa burguesa, Marx, Lênin e Gramsci sempre investiram na construção de instrumentos próprios das forças contrárias à lógica do capital. Segundo o biógrafo David Riazanov, “a Nova Gazeta Renana tratava de todas as questões importantes, de sorte que o jornal pode ser considerado um modelo de periódico revolucionário. Nenhum outro periódico russo nem europeu chegou à altura da Nova Gazeta... Seus artigos não perderam nada de sua atualidade, de seu ardor revolucionário, de sua agudeza na análise dos acontecimentos. Ao lê-los, sobretudo os de Marx, acreditamos assistir à história da revolução alemã e da revolução francesa, tão vivo é o estilo, como profundo é o sentido”. 

Já Lênin, que viveu numa fase de efervescência revolucionária, dedicou boa parte das suas energias para construção de jornais socialistas – dos mais diferentes tipos, sempre sintonizados com a evolução da luta de classes. Iskra, Vperiod, Pravda, Proletari, Rabotchaia Pravda, Nievskaia Svesdá, entre outros jornais organizados e dirigidos por ele, servirão para agregar as forças de esquerda, fazer agitação nas fábricas, aprofundar os debates ideológicos e construir o partido. Na sua mais célebre definição, Lênin sintetizou: 

“O jornal não é apenas um propagandista coletivo e um agitador coletivo. Ele é, também, um organizador coletivo. Neste último sentido, ele pode ser comparado com os andaimes que são levantados ao redor de um edifício em construção, que assinala os contornos, facilitam as relações entre os diferentes pedreiros, ajudam-lhes a distribuírem tarefas e a observar os resultados gerais alcançados pelo trabalho organizado”. A reacionária burguesia russa logo entendeu o perigo representado por estes jornais, tanto que os reprimiu ferozmente. No caso do Pravda, de um total de 270 edições, 110 foram objeto de ações judiciais e os seus redatores foram condenados a um total de 472 anos de prisão. Mas isto não abrandou o seu vigor! 

Atualidade das noções marxistas 

No caso de Gramsci, o longo período de cárcere dificultou a sua atividade jornalística e castrou seu desejo de organizar a imprensa operária. Antes da prisão, ele editou vários jornais de fábrica e empenhou-se na difusão do Ordine Nuovo. Na sua rica elaboração sobre o papel dos intelectuais e a luta pela hegemonia, ele chega a afirmar que, em momentos de crise, o jornal pode funcionar como partido político, ajudando a desnudar a ideologia dominante e a construir a ação contra-hegemônica do proletariado. Para ele, o momento da desconstrução do velho é, ao mesmo tempo, o da construção do novo. 

As contribuições de Gramsci servem para desmistificar o papel da mídia hoje, mantendo impressionante atualidade. Para ele, a imprensa burguesa é um “aparelho privado de hegemonia”, capaz de disputar os rumos da sociedade por meio de uma verdadeira guerra de posições em todas as “trincheiras ideológicas”. Através da imprensa privada e mercantil, que objetiva o lucro e que faz da notícia uma mera mercadoria, a burguesia tenta se aparentar como representante da esfera pública. Além disso, em momentos de crise da ideologia dominante e de fratura dos partidos burgueses, a imprensa se apresenta como “o partido do capital”, que organiza e amalgama os interesses das várias frações de classe da burguesia.