sábado, 7 de dezembro de 2013

O Evangelho segundo Mandela

O Evangelho segundo Mandela
Não podemos nos esquecer que países como Israel, EUA e Inglaterra apoiaram durante décadas o regime do apartheid. Se dependesse deles, Mandela teria morrido na prisão, a África do Sul ficaria afundada no caos e o mundo não teria a oportunidade de fabricar a lenda do novo Messias
por Alain Gresh
Um herói do nosso tempo”, afirmava o Courrier Internacional de junho de 2010. “Ele mudou a história”, valoriza ainda mais a revista Le Nouvel Observateur de maio de 2010. Acompanhadas de fotos de Nelson Mandela sorridente, essas duas capas são o testemunho de uma adoração quase unânime, a qual o filme Invictus, do diretor Clint Eastwood, levou à apoteose. Com a Copa do Mundo de futebol, se intensifica o culto ao profeta visionário que rejeitou a violência e guiou seu povo em direção a uma terra prometida onde vivem, em harmonia, negros, mestiços e brancos. O presídio de Robben Island, onde ele ficou encarcerado por 18 anos, passou a ser lugar de visitação obrigatória para turistas estrangeiros, e lembra um passado um pouco nebuloso, do tempo em que oapartheid desonra e suscita condenação universal, em primeiro lugar, a dos democratas ocidentais.
Cristo foi morto na cruz há aproximadamente dois mil anos. Muitos pesquisadores se perguntam sobre a correspondência entre o Jesus dos Evangelhos e o Jesus histórico. O que conhecemos da vida terrestre do “filho de Deus”? De quais documentos dispomos para definir sua pregação? Os testemunhos resgatados no Novo Testamento são realmente confiáveis?
Diante de tantas questões, podemos presumir que é mais fácil definir o “Mandela histórico”, já que temos um Evangelho escrito por seu próprio punho1, além de várias testemunhas diretas. A lenda Mandela pareceria, então, um tanto quanto distante da realidade, como essa do Jesus dos Evangelhos, uma vez que seria intolerável admitir que o novo messias tivesse sido um “terrorista”, “aliado dos comunistas” e da União Soviética (aquela do “gulag”), um revolucionário determinado.
O Congresso Nacional Africano (CNA), aliado estratégico do partido comunista sul-africano, se lançou na luta armada, em 1960, depois do massacre em Sharpville, que deixou dezenas de mortos entre os negros que protestavam contra o sistema de pass(espécie de passaportes internos do país). Mandela, até então adepto da luta legal, acabou persuadido: jamais a minoria branca renunciaria pacificamente ao seu poder, às suas prerrogativas. Tendo, num primeiro momento, privilegiado as sabotagens, o CNA utilizou também, de maneira limitada, a arma do “terrorismo”, não hesitando em colocar algumas bombas em cafés.
Preso em 1962 e condenado, Mandela rejeitou, a partir de 1985, várias ofertas de libertação em troca da sua renúncia à violência. “Sempre é o opressor, e não o oprimido, quem determina a forma da luta. Se o opressor utiliza a violência, o oprimido não tem outra escolha do que responder com violência”, escreve ele em suas Memórias. E somente a violência, apoiada por mobilizações populares crescentes e sustentada por um sistema internacional de sanções cada vez mais coercitivas, pôde, com o passar do tempo, demonstrar a ineficiência do sistema repressivo e levar o poder branco ao arrependimento moral. Com o princípio “um homem, uma voz”, Mandela e o CNA souberam então mostrar flexibilidade na implementação da “sociedade arco-íris” e nas garantias concedidas à minoria branca.
A estratégia do CNA se beneficiou do apoio material e moral da União Soviética e da “facção socialista”. Vários dos seus dirigentes foram formados e treinados em Moscou e Hanói. O combate se estendeu por toda a África Austral, onde o exército sul-africano tentou estabelecer sua hegemonia. A intervenção das tropas cubanas em Angola, em 1975, e as vitórias que alcançaram, especialmente em Cuito-Cuanavale, em janeiro de 1988, contribuíram para desestabilizar a máquina de guerra do poder branco. A batalha de Cuito-Cuanavale constituiu, segundo Mandela, “um momento decisivo na libertação do nosso continente e do meu povo2”. Anos depois, em 1994, Fidel Castro foi um dos convidados de honra na posse de Mandela na presidência.
No choque entre a maioria da população e o poder branco, os Estados Unidos, o Reino Unido, Israel e a França (esta última até 1981) combateram do “lado errado”, o lado dos defensores do apartheid, em nome da luta contra o perigo comunista. Chester Croker, principal homem da política de “compromisso construtivo” do presidente Ronald Reagan na África Austral, escreveu à época: “Por sua natureza e história, a África do Sul faz parte da experiência ocidental e é parte integrante da economia ocidental”. Washington, que tinha apoiado Pretória em Angola, em 1975, não hesitou em contornar o embargo sobre as armas e colaborar estreitamente com os serviços de informação sul-africanos, rejeitando qualquer medida coercitiva contra o poder branco. Esperando uma evolução gradual, a maioria negra teve que adotar uma postura moderada.
Em 22 de junho de 1988, 18 meses antes da libertação de Mandela e da legalização do CNA, o subsecretário do Departamento de Estado americano, John C. Whitehead, ainda explicou para a comissão do Senado: “Nós devemos reconhecer que a transição para uma democracia não racial na África do Sul tomará inevitavelmente mais tempo do que gostaríamos”. Ele pretendia que as sanções não tivessem nenhum “efeito desmoralizador sobre as elites brancas” e que penalizassem, em primeiro lugar, a população negra.
No último ano do seu mandato, Ronald Reagan tentou uma última vez – e sem sucesso – impedir o Congresso americano de punir o regime do apartheid. Foi na época em que ele celebrava “os combatentes da liberdade” afegãos e nicaraguenses e denunciava o terrorismo do CNA e da Organização para a Libertação da Palestina (OLP).

Terroristas?

O Reino Unido não ficou de fora; o governo de Margaret Thatcher recusou qualquer encontro com o CNA até a libertação de Mandela, em fevereiro de 1990. Na reunião internacional do Commonwealth em Vancouver, Canadá, em outubro de 1987, ela se opôs à adoção de sanções. Interrogada sobre as ameaças do CNA em prejudicar os interesses britânicos na África do Sul, respondeu: “Isso mostra o quão banal é esse grupo terrorista [CNA]”. Nesse período, a associação de estudantes conservadores filiados ao seu partido, distribuiu panfletos proclamando: “Enforquem Nelson Mandela e todos os terroristas do CNA! São carniceiros”.
Agora, em 2010, o novo primeiro-ministro conservador, David Cameron, decidiu enfim se desculpar por esse comportamento. Mas, rapidamente, a imprensa britânica refrescou sua memória, lembrando que ele mesmo foi à África do Sul, em 1989, a convite de um lobbyantissanções.
Já Israel permaneceu até ao fim como aliado indefectível do regime racista de Pretória, fornecendo-lhe armas e ajudando em seu programa militar nuclear e de mísseis. Em abril de 1975, o atual presidente israelense, Shimon Peres, então ministro da Defesa, assinou um acordo de segurança entre os dois países. Um ano mais tarde, o primeiro-ministro sul-africano, Balthazar J. Vorster, antigo simpatizante nazista, foi recebido com todas as honras em Israel. Os responsáveis pelos dois serviços de informação se reuniam anualmente e coordenavam a luta contra “o terrorismo” do CNA e da OLP.
E a França? Bem, aquela do general De Gaulle e de seus sucessores de direito teceu relações tranquilas com Pretória. Numa entrevista publicada no Nouvel Observateur, Jacques Chirac se glorificava do seu antigo apoio a Mandela. Ele tem, assim como muitos políticos da direita, memória curta. Primeiro-ministro em 1974 e 1976, Chirac sancionou, em junho de 1976, o contrato com a Framatome para a construção da primeira central nuclear na África do Sul. Nessa ocasião, o editorial do Le Monde observou: “A França está em curiosa companhia entre o pequeno pelotão de parceiros julgados ‘de confiança’ por Pretória”. “Viva a França. A África do Sul se torna uma potência atômica”, dizia na ocasião o jornal sul-africano Sunday Times. Se, claramente sob pressão dos países africanos, Paris decidiu, em 1975, não vender mais armas diretamente à África do Sul, a França honrou por muitos anos ainda os contratos em andamento, enquanto seus blindados Panhard e helicópteros Alouette e Puma eram construídos localmente com a devida autorização.
Apesar do discurso oficial de condenação ao apartheid, Paris manteve, até 1981, várias formas de cooperação com o regime racista. Alexandre Marenches, o homem que dirigiu o serviço de documentação exterior e de contraespionagem (SDECE) entre 1970 e 1981, resume a filosofia da direita francesa: “O apartheid é, certamente, um sistema que devemos lastimar, mas é preciso fazê-lo evoluir calmamente”3. Se o CNA tivesse escutado seus conselhos de “moderação” (ou aqueles do presidente Reagan), Mandela teria sido morto na prisão, a África do Sul teria se afundado no caos e o mundo não teria a oportunidade de fabricar a lenda do novo messias.
Alain Gresh é jornalista, do coletivo de redação de Le Monde Diplomatique (edição francesa).

Ilustração: Daniel Kondo


“1Long walk to freedom, Little Brown, Estados Unidos, 1995.
2 Ronnie Kasrils, “Turning point at Cuito Cuanavale”, 23 de março de 2008, www.iol.co.za/.
3 Christine Ockrent, Alexandre de Marenches, Dans le secret des princes (Dentro do segredo dos príncipes), Stock, Paris, 1986.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Chora por Mandela, mas acha um absurdo pobre querer os mesmos direitos



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Precisamos de mais pessoas como Mandela.
Pessoas que são capazes de usar a força quando necessário e adotar uma atitude conciliadora quando preciso. Mas que não descartam qualquer uma das duas acões políticas.
Por conta da morte de Mandela, estamos sendo soterrados por reportagens que louvam apenas um desses lados e esquece o outro, como se as folhas de uma árvore existissem sem o seu tronco e os galhos. O apartheid não morreu apenas por conta do sorriso bonito e das falas carismáticas do líder sul-africano, mas por décadas de luta firme contra a segregação coordenada por uma resistência que ele ajudou a estruturar.
É fascinante como regimes execrados pelo Ocidente foram, muitas vezes, os únicos que estenderam a mão a Mandela e à luta contra o apartheid. E como, décadas depois, muitos países prestam suas homenagens a ele, sem um mísero mea culpa por seu papel covarde durante sua prisão. Ou, pior: como veículos de comunicação desse mesmo Ocidente ignoram a complexidade da luta de Mandela, defendendo que o pacifismo foi o seu caminho.
Desculpem, mas a necessária conciliação para curar feridas ou a tolerância são diferentes de injustiça. E ser pacifista não significa morrer em silêncio, em paz, de fome ou baioneta. A desobediência civil professada por Gandhi é uma saída, mas não a única e nem cabe em todas as situações em que um grupo de pessoas é aviltado por outro.
“Eu celebrei a ideia de uma sociedade livre e democrática, na qual todas as pessoas vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal pelo qual espero viver e o qual espero alcançar. Mas, se for necessário, é um ideal pelo qual estou pronto para morrer'', disse ele, ao ser condenado a 27 anos de prisão.
As histórias das lutas sociais ao redor do mundo são porcamente ensinadas. Ao ler o que os jovens aprendem nas carteiras escolares ou no conteúdo trazido por nós jornalistas, fico com a impressão que a descolonização da Índia, o fim do apartheid na África do Sul ou a independência de Timor Leste foram obtidas apenas através de longas discussões regadas a chá e um pouco de desobediência. Dessa forma, a interpretação dos fatos, passada adiante, segue satisfatória aos grupos no poder.
Muitos que hoje lamentam por Mandela detestam manifestações públicas e mudanças no status quo.
Adoram um revolucionário quando este é reconhecido internacionalmente e aparece em estampas de camisetas, mas repudiam quem ocupa propriedades, por exemplo, “impedindo o progresso''.
Leio reclamações da violência de protestos quando estes vêm dos mais pobres entre os mais pobres – “um estupro à legalidade” – feitas por uma legião de pés-descalços empunhando armas de destruição em massa, como enxadas, foices e facões. Ou contra povos indígenas, cansados de passar fome e frio, reivindicando territórios que historicamente foram deles, na maioria das vezes com flechas, enxadas e paciência. Ou ainda professores que exigem melhores salários e resolvem ir às ruas para mostrar sua indignação e pressionar para que o poder público mude o comportamento. Todos eles são uns vândalos.
Daí, essa pessoa que ama Mandela, mas não sabe quem ele é, pensa: poxa, por que essa gente maltrapilha simplesmente não sofre em silêncio, né?
Muitas das leis criticadas em protestos e ocupações de terra ou mesmo no apartheid não foram criadas pelos que sofrem em decorrência de injustiça social, mas sim por aqueles que estavam ou estão na raiz do problema e defendem regras para que tudo fique como está. Nem sempre a legalidade é justa. E essa frase assusta muita gente.
Mandela é a inspiração. Com ele, é possível acreditar que manifestações populares e ocupações resultem nos pequenos vencendo os grandes. E, com o tempo, os rotos e rasgados sendo capazes de sobrepujar ricos e poderosos.
Por isso, o desespero inconsciente presente em muitas reclamações sobre a violência inerente ou involuntária desses atos. Ou na tentativa de reescrever a história editando aquilo que não interessa.
Enquanto isso, mais um indígena foi morto no Mato Grosso do Sul. Mas tudo bem. Devia ser apenas mais um vândalo, não um homem de bem como Mandela.
Enfim, precisamos de mais pessoas como Mandela. Pois os bons do século 20 estão morrendo antes que realmente entendamos suas mensagens.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Eric Hobsbawm


Eric Hobsbawm

Reconhecendo a relevância e a fecundidade da produção historiográfica de Eric Hobsbawm – cujos trabalhos sempre estiveram comprometidos com as lutas dos trabalhadores e com a defesa do socialismo –,  marxismo21 manifesta seu pesar pelo recente desaparecimento desse autor. O pensamento crítico e socialista de todo o mundo perde, hoje, uma de suas figuras mais expressivas e emblemáticas. Nesta breve homenagem, publicamos dele o instigante “Manifesto para a Renovação da História”; por sua vez, Diorge Konrad – na qualidade de historiador, militante socialista e membro de nosso conselho consultivo -,  dá um depoimento pessoal sobre sua aproximação com a obra de Hobsbawm; ao mesmo tempo mostra a importância dela para a historiografia marxista, em particular, para  a pesquisa sobre a história social e o mundo do trabalho.  A seguir são informados os links que permitem acesso a uma dissertação acadêmica, artigos, resenhas e entrevistas de renomados especialistas em torno da obra do autor. Por último, marxismo21 publica três manifestações de partidos políticos da esquerda brasileira sobre a morte de Eric Hobsbawm.

Editores

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Eric Hobsbawm autografa A era dos extremos, em Paraty, RJ. (Detalhe significativo: um jornal da classe operária brasileira, até final da sessão, permaneceu à esquerda do historiador marxista.)

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Manifesto para a renovação da história

Eric HOBSBAWM
(texto apresentado no Colóquio da Academia Britânica sobre Historiografia Marxista, 13/11/2004)
“Até agora, os filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo; trata-se de transformá-lo.”  Os dois enunciados da célebre “Teses sobre Feuerbach”, de Karl Marx, inspiraram os historiadores marxistas. A maioria dos intelectuais que aderiram ao marxismo a partir da década de 1880 – entre eles os historiadores marxistas  – fizeram isso porque queriam mudar o mundo, junto com os movimentos operários e socialistas; movimentos que se transformariam, em grande medida devido à influência do marxismo, em forças políticas de massas.
Essa cooperação orientou de maneira natural os historiadores que queriam transformar o mundo na direção de certos campos de estudo —fundamentalmente, a história do povo ou da população operária— os quais, se bem atraíam naturalmente as pessoas de esquerda, não tinham em sua origem nenhuma relação particular com uma interpretação marxista. Por outro lado, quando esses intelectuais deixaram de ser revolucionários sociais, a partir da década de 1890, com frequência também deixaram de ser marxistas.
A revolução soviética de outubro de 1917 reavivou esse compromisso. Lembremos que os principais partidos social-democratas da Europa continental abandonaram completamente o marxismo apenas na década de 1950, e às vezes ainda depois disso. Essa revolução gerou, também, o que poderíamos chamar de uma historiografia marxista obrigatória na URSS e nos Estados, que depois foi adotada por regimes comunistas. A motivação militante foi reforçada durante o período do antifascismo.
A partir da década de 1950 essa tendência começou a decair nos países desenvolvidos —mas não no Terceiro Mundo— apesar de que o considerável desenvolvimento do ensino universitário e a agitação estudantil geraram, dentro da universidade, na década de 1960, um novo e importante contingente de pessoas decididas a mudar o mundo. Contudo, apesar de desejar uma mudança radical, muitas delas já não eram abertamente marxistas, e algumas já não eram marxistas em absoluto.
Esse ressurgimento culminou na década de 1970, pouco antes do início de uma reação massiva contra o marxismo, mais uma vez por razões essencialmente políticas. Essa reação teve como principal efeito — exceto para os liberais, que ainda acreditam nisso— o aniquilamento da ideia de que é possível predizer, apoiados na análise histórica, o sucesso de uma forma particular de organizar a sociedade humana. A história havia se dissociado da teleologia.
Considerando as incertas perspectivas que se apresentam aos movimentos socialdemocratas e social-revolucionários, não é provável que assistamos a uma nova onda politicamente motivada de adesão ao marxismo. Mas devemos evitar cair em um centrismo ocidental excessivo. A julgar pela demanda de que são objeto meus próprios livros de história, comprovo que ela se desenvolve na Coréia do Sul e em Taiwan, desde a década de 1980, na Turquia, desde a década de 1990, e que há sinais de que atualmente avança no mundo árabe.
A virada social 
O que aconteceu com a dimensão “interpretação do mundo” do marxismo? A história é um pouco diferente, ainda que paralela. Concerne ao crescimento do que se pode chamar de reação anti-Ranke, da qual o marxismo constituiu um elemento importante, apesar de que isso nem sempre foi totalmente reconhecido. Tratou-se de um movimento duplo.
Por um lado, esse movimento questionava a idéia positivista segundo a qual a estrutura objetiva da realidade era, por assim dizer, evidente: bastava com aplicar a metodologia da ciência, explicar por que as coisas tinham ocorrido de tal ou qual maneira e descobrir wie es eigentlich gewessen (como ocorreu realmente). Para todos os historiadores, a historiografia se manteve e se mantém enraizada em uma realidade objetiva, ou seja, a realidade do que ocorreu no passado; contudo, não está baseada em fatos e, sim, em problemas, e exige investigação para compreender como e por que esses problemas —paradigmas e conceitos— são formulados da maneira em que são o em tradições históricas e em meios socioculturais diferentes.
Por outro lado, esse movimento tentava aproximar as ciências sociais da história e, em conseqüência, englobá-las em uma disciplina geral, capaz de explicar as transformações da sociedade humana. Segundo a expressão de Lawrence Stone, o objeto da história deveria ser “propor as grandes perguntas do por quê”. Essa “virada social” não veio da historiografia, senão das ciências sociais —algumas delas incipientes como tais— que naquele momento firmavam-se como disciplinas evolucionistas, ou seja, históricas.
Na medida em que é possível considerar Marx como o pai da sociologia do conhecimento, o marxismo — apesar de ter sido denunciado erradamente em nome de um suposto objetivismo cego— contribuiu para dar o primeiro aspecto desse movimento. Além disso, o impacto mais conhecido das ideias marxistas — a importância outorgada aos fatores econômicos e sociais— não era especificamente marxista, ainda que a análise marxista pesou nessa orientação, que estava inscrita em um movimento historiográfico geral, visível a partir da década de 1890, e que culminou nas décadas de 1950 e 1960, para benefício da geração de historiadores à qual pertenço, que teve a possibilidade de transformar a disciplina.
Essa corrente socioeconômica superava o marxismo. A criação de revistas e instituições de história econômico-social às vezes foi obra —como na Alemanha— de socialdemocratas marxistas, como ocorreu com a revista Vierteljahrschrift em 1893. Não aconteceu da mesma maneira na Grã Bretanha, nem na França, nem nos Estados Unidos. E inclusive na Alemanha, a escola de economia, marcadamente histórica, não tinha nada de marxismo. Somente no Terceiro Mundo do século XIX (Rússia e os Balcãs) e no do século XX, a história econômica adotou uma orientação principalmente social-revolucionária, como toda “ciência social”. Em consequência disto, foi muito atraída por Marx.
Em todos os casos, o interesse histórico dos historiadores marxistas não se centrou tanto na “base” (a infra-estrutura econômica) como nas relações entre a base e a superestrutura. Os historiadores explicitamente marxistas sempre foram relativamente escassos.
Marx influenciou a história principalmente através dos historiadores e dos pesquisadores em ciências sociais que retomaram as questões que ele colocava, tenham eles trazido, ou não, outras respostas. Por sua vez, a historiografia marxista avançou muito em relação ao que era na época de Karl Kautsky e de Georg Plekhanov, em boa parte graças à sua fertilização por outras disciplinas (fundamentalmente a antropologia social) e por pensadores influenciados por Marx e que completavam seu pensamento, como Max Weber. (ler mais: acesso )
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ERIC JOHN ERNST HOBSBAWM !*
Diorge Konrad**
Em primeiro lugar, estou preocupado com os usos e abusos da História, tanto na sociedade como na política, e com a compreensão, e espero, transformação do mundo(Eric Hobsbawm, em Sobre História)
Primeiro de outubro de 2012, cerca de oito horas da manhã, recebo a notícia da morte de Eric Hobsbawm.
A sensação é como se algo muito importante fosse arrancado do cérebro, uma espécie de vazio intelectual. Ainda impactado, menos de uma hora depois escrevi a seguinte mensagem repassada às minhas listas de correio eletrônico:

Quem de nós? Quem de nós não leu afoitamente alguma outra obra deste grande historiador do século XX? A Era dos Extremos? A Era dos Impérios? A Era do Capital? A Era das Revoluções? Mundos do Trabalho? Os Trabalhadores? Sobre História? Como Mudar o Mundo – Marx e o Marxismo! Quem de nós não se encantou com a sua forma de narrar a História? Quem de nós não discordou ou concordou com alguma “sacada” teórica deste alexandrino, historiador do mundo? Para nós da História Social do Trabalho, aprendemos mais sobre os trabalhadores e o mundo do trabalho com Eric Hobsbawm! Para nós de Teoria da História, aprendemos muito com o “que a História tem a nos dizer sobre o mundo contemporâneo”, como ele escreveu no título de um dos seus artigos! Hobsbawm se foi, breve como o seu século XX.

Queria que meus alunos de “Teoria da História”, que estudam comigo os trabalhos de Hobsbawm, desde 1995, compartilhassem mais uma vez algo que tenho a dizer sobre ele   e essa dialética entre o “tempo longo” e o “tempo breve”.
Eu o vi pela primeira vez em Porto Alegre, no início da década de 1990, no lotado “Auditório Dante Barone” da Assembléia Legislativa – palestrando em um português fluente – num Seminário sobre a Polis. No final, como autênticos tietes, eu e a historiadora Glaucia Konrad fomos pedir um autógrafo em A Era das Revoluções e A Era dos Impérios. Ao nos aproximarmos, ao final da conferência, parecia que o século XX estava à nossa frente. Ao ver os livros, o coordenador da mesa, Tarso Genro, disse que Hobsbawm estava muito cansado. Dissemos, porém, que só aceitaríamos ouvir isto dele. O historiador marxista, no entanto, foi extremamente gentil. Os livros continuam bem guardados … e com as honrosas dedicatórias.
Nesta passagem pela capital do Rio Grande do Sul, Hobsbawm teria ido ao Beira-Rio, acompanhado de um conselheiro do Internacional, Olívio Dutra. Falando da história de nosso time, o ex-prefeito e futuro governador teria reforçado a lenda sobre a origem do nome do Colorado, “fundado” por militantes anarquistas e homenageado em relação à organização mundial dos trabalhadores, formada por Karl Marx e outros em 1864.  Hobsbawm teria dito: “Então, aqui em Porto Alegre, torço para o Internacional”.
Seria bom que esta invenção repetida por muitos torcedores colorados fosse verdade! Ao menos, em relação a Hobsbawm, seria uma referência da história do presente a um dos movimentos que ele tanto pesquisou, a relação dos trabalhadores com o futebol. Infelizmente, trata-se de uma “lenda urbana” para muitos dos rio-grandenses colorados como eu. Na introdução de um livro clássico, organizado com Terence Ranger, Hobsbawm afirmou que “não há lugar nem tempo investigado pelos historiadores onde não haja ocorrido a ‘invenção’ de tradições”. Ao menos me consola que Hobsbawm tenha dito também que o “estudo das invenções das tradições é INTERdisciplinar”.[1]
Como historiador em formação na década de 1980 deveria ter começado como muitos, lendo Hobsbawm pela sua trilogia das Eras, que se tornaria tetra após a Queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética. Não! Como pretenso marxista, comecei pelos volumes deHistória do Marxismo, gentilmente cedidos por meus mestres da graduação em História, Anamaria e Luiz Carlos Rodrigues. Quando fui presenteado por eles com um dos volumes, iniciei a saga para ter todos os outros organizados por Hobsbawm e lançados no Brasil pela Paz e Terra. Era como um adolescente dos dias de hoje à procura de Harry Potter ou O senhor dos anéis , e como estes, um leitor voraz do que ia chegando às minhas mãos, no tempo em que comprávamos com sacrifício qualquer livro por mais de mil e poucos cruzeiros.
Em História do Marxismo, aprendi com Hobsbawm, que o marxismo foi a “escola teórica que teve a maior influência prática (e as mais profundas raízes práticas) na história do mundo moderno”, além de ser um “método para, ao mesmo tempo, interpretar e mudar o mundo”[2], na mais profunda concepção já dita antes por Marx na décima primeira tese contra Feuerbach. ler mais
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Textos e entrevistas

Eric Hobsbawm e François Furet: história, política e revolução, Priscila Corrêaacesso
História social, história militante, Pablo Pozziacesso
Resistências camponesas ao capitalismo na obra de EH, Michael Löwyacesso
O milenarismo camponês na obra de EH, Michael Löwy acesso
Marx, Weber e Hobsbawm, Jorge Novoaacesso
Notas sobre Eric Hobasbawm, João Alberto Costa acesso
Uma obra insuperável, Francisco Carlos Teixeira acesso
A era de Hobsbawm, Seminário Unicamp/INCAacesso
Tempos interessantes, Perry Andersonacesso
Como mudar o mundo, Terry Eagletonacesso
A atualidade de Marx, Marcello Musto acesso
Entrevista ao MST, 2009acesso
Um espelho do mundo em mutação, entrevista a P. Sérgio Pinheiroacesso
Marxismo hoje, Beppe Grilloacesso
A propósito de A era dos extremos, Roy Hora acesso
Para onde vai o império, E. Hobsbawm
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Manifestações de partidos políticos de esquerda no Brasil
* Partido Comunista Brasileiro
Olhar Comunista lamenta com pesar a morte, ontem em Londres, aos 95 anos de idade, do historiador marxista Eric Hobsbawm. Um dos maiores intelectuais do século XX, Hobsbawm deixa uma herança de obras fundamentais para o entendimento dos tempos atuais, como “A Era das Revoluções”, “A Era do Capital”, “A Era dos Impérios”, “A Era dos Extremos”, “História Social do Jazz”, entre outras.
Militou entre 1936 e 1989 no Partido Comunista da Inglaterra e, defendendo os ideais socialistas e comunistas, manteve uma postura crítica em relação à tudo à sua volta, inclusive quanto à experiência de construção do Socialismo na União Soviética. Em 2011, aos 94 anos, lançou o livro “Como Mudar o Mundo”, texto no qual que defende o uso do método e das ideias marxistas para a compreensão da crise atual do sistema capitalista. Hobsbawm manteve a coerência entre sua postura militante e as idéias que defendia. Deixa o legado da importância de estudar-se criticamente o passado sob a ótica da luta de classes, do trabalho contra o capital, sem deixar de levar em conta nenhum aspecto da vida humana, das formações sociais, para transformá-las no rumo da construção coletiva da emancipação humana, do fim da exploração do homem pelo homem, da construção de uma nova sociedade justa e igualitária, a sociedade comunista.
* Partido Socialismo e Liberdade.
Partido Socialismo e Liberdade vem a público lamentar a morte do renomado historiador marxista Eric Hobsbawm, ocorrida nesta segunda-feira dia 1 de outubro de 2012, aos 95 anos de idade, em decorrência de uma pneumonia.
A perda deste grande intelectual marxista, considerado um dos maiores historiadores do século XX e autor da consagrada trilogia “A era das revoluções”, “A era do capital” e “A era dos impérios”, entristece não apenas o PSOL, mas toda uma geração de intelectuais e militantes sociais que se inspiraram em sua brilhante obra.
Uma obra forjada pela análise crítica dos acontecimentos históricos que marcaram o século XX e por seu compromisso com a transformação social, sempre manifesta em sua opção por uma militância de esquerda desde quando aos 14 anos de idade ingressou no partido comunista.
Perdemos assim mais um grande pensador e intelectual de esquerda, num momento em que a humanidade precisa mais do que nunca refletir criticamente sobre seus dilemas civilizatórios e suas opções de futuro.
Cabe aos que continuam acreditando neste sonho, sobre os ombros deste gigante, buscarmos enxergar mais longe e nos colocarmos a altura dos novos desafios que se apresentam para a luta pelo socialismo neste novo século XXI.
Nossos pesares aos familiares, amigos e admiradores.
 * Partido Comunista do Brasil
Texto em Vermelho de um dirigente partidário, José Carlos Ruy: acesso

domingo, 1 de dezembro de 2013

De deusas à escória da humanidade...


blog acortesamoderna

Por Patrícia Pereira em UOL-Leituras da História
Que a prostituição é popularmente conhecida como a profissão “mais antiga do mundo”, todos sabem. E, desde que o mundo é dito civilizado, sempre houve prostitutas pobres e prostitutas de elite. O lado desconhecido dessa história é que a imagem a respeito delas nem sempre foi a que temos atualmente. As meretrizes já foram admiradas pela inteligência e cultura, e também já foram associadas a deusas – manter relações sexuais com elas era necessário para conseguir poder e respeito. As “mulheres da vida” sempre tiveram um lugar na História, mas, ao longo dos anos, seu status passou de respeitável à condenável.
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Maria Regina Cândido, professora de graduação e de pós-graduação em História, e coordenadora do Núcleo de Estudos da Antiguidade (NEA), da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), explica que a conotação de ser ou não bem-vista pela sociedade é um olhar de nosso tempo sobre as prostitutas. “Na antiguidade, elas tinham seu lugar social bem definido. Era uma sociedade que determinava a posição de cada um, que precisava cumprir bem o seu papel em seu espaço e não migrar de função”, diz Maria Regina.
Lá atrás, no período da pré-história, a mulher era associada à Grande Deusa, criadora da força da vida, e estava no centro das atividades sociais, explica Nickie Roberts, no livro As Prostitutas na História. Com tal poder, ela controlava sua sexualidade. Nessas sociedades pré-históricas, cultura, religião e sexualidade estavam interligadas, tendo como fonte a Grande Deusa, conhecida inicialmente como Inanna e mais tarde como Ishtar. Os homens, ignorantes de seu papel na procriação, não eram obsessivos pela paternidade. Foi essa preocupação com a prole que, mais tarde, levou ao surgimento das sociedades patriarcais, com a submissão da mulher.

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Por volta de 3.000 a.C., tribos nômades passaram a criar gado e tornaram-se conscientes do papel masculino na reprodução. As sociedades matriarcais da deusa começaram a ser subjugadas. As primeiras civilizações da era histórica desenvolveram-se na Mesopotâmia e no Egito, e nasceram desse levante. Novas formas de casamento foram introduzidas, especificamente destinadas a controlar a sexualidade das mulheres, afirma a escritora. “Foi nesse momento da história humana, em torno do segundo milênio a.C.,
que a instituição da prostituição sagrada tornou-se visível e foi registrada pela primeira vez na escrita”, explica Nickie.
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AS PRIMEIRAS PROSTITUTAS DA HISTÓRIA
As grandes cidades da Mesopotâmia e do Egito continuaram centralizadas nos templos da Grande Deusa. As sacerdotisas dos templos, que participavam de rituais sexuais religiosos, ao mesmo tempo mulheres sagradas e meretrizes, foram as primeiras prostitutas da História, conta Nickie Roberts. O status dessas mulheres era elevado. Os reis precisavam buscar a benção da deusa, por meio do sexo ritual com as sacerdotisas, para legitimar seu poder. “Nessa época, as prostitutas do mais alto escalão do templo eram, por direito nato, agentes poderosas e prestigiadas; não eram as meras vítimas oprimidas dos homens, tão protegidas pelas feministas modernas”, escreve Nickie Roberts.
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A Suméria criou a segregação feminina ao colocar em lados opostos a esposa obediente e a prostituta má.
Julio Gralha, professor do NEA/UERJ, lembra que a visão sobre as prostitutas da época é pouco documentada de forma escrita, mas pode ser inferida pelas imagens das iconografias. “Pela análise da iconografia, a prostituta existia no Egito e atuava de forma remunerada.
Há contos iconográficos, cômicos, em que a prostituta é vista como poderosa, o homem não agüenta. Como aparecem o colar e outros símbolos ligados à deusa, elas são vistas como protegidas. A prostituição não era algo repulsivo ou condenado pela religião”, diz Gralha.
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UM NEGÓCIO ORGANIZADO NA GRÉCIA
Com o passar do tempo, a independência sexual e econômica da prostituta tornou-se uma ameaça à autoridade patriarcal. Por isso, a religião da deusa foi combatida pelos sacerdotes hebreus e, aos poucos, suprimida. Os rituais sexuais viraram pecados graves e as sacerdotisas, pecadoras.
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“As principais religiões patriarcais que se seguiram – o cristianismo e o islamismo – reconheceram o impacto devastador do estigma da prostituta na divisão e regulamentação das mulheres”, explica Nickie Roberts.
A Grécia antiga foi uma típica sociedade patriarcal. As mulheres não podiam participar da vida política e social. No entanto, como aconteceu a todas as sociedades antigas, os primeiros habitantes da Grécia foram povos adoradores da deusa, afirma Nickie. Os deuses masculinos só vieram mais tarde, por volta de 2.000 a.C., com os invasores indo-europeus. As duas culturas fundiram-se e produziram o híbrido que chegou até nós. Basta lembrar que Zeus, divindade suprema indo-européia, casou-se com Hera, poderosa deusa sobrevivente do culto anterior.
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A negação total do poder da mulher na sociedade grega é decorrente do governo de uma série de ditadores homens. Sólon, que governou Atenas na virada do século VI a. C., foi o principal deles, tendo institucionalizado os papéis das mulheres na sociedade grega. Passaram a existir as “boas mulheres”, submissas – e as outras. Foi também Sólon quem, percebendo os lucros obtidos pelas prostitutas – tanto as comerciais quanto as sagradas -, organizou o negócio, criando bordéis oficiais, administrados pelo Estado. Neles, havia grande exploração das mulheres, que eram praticamente escravas. Junto com os bordéis oficiais, muitas meretrizes independentes exerciam o seu comércio, apesar da legislação de Sólon. “Pela primeira vez na História, as mulheres estavam sendo cafetinadas – oficialmente. (…) Assim, de mãos dadas, nasceram a cafetinagem estatal e privada”, afirma Nickie.
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Maria Regina Cândido, historiadora da UERJ, lembra que foi a pressão sobre a terra, com o grande aumento da população grega, que levou Sólon a criar os primeiros bordéis. Isso porque ele trouxe para a região estrangeiros ceramistas, com o intuito de ensinar à população excedente uma nova atividade, já que a agricultura não absorvia mais a todos.
“Para que os estrangeiros não molestassem as esposas e filhas de cidadãos gregos, ele criou um espaço de prostituição oficial na periferia da cidade, os bordéis”, explica a coordenadora do NEA.
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Segundo Maria Regina, as prostitutas ficavam em frente ao cemitério, na região do cerâmico, onde estavam instaladas as oficinas dos ceramistas, e também na região do Porto do Pireu, onde eram chamadas de pornes, daí vem a palavra pornografia.
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As prostitutas dos bordéis eram estrangeiras, trazidas para a Grécia exclusivamente para cumprir esse papel. Mas muitas mulheres gregas, depois de casamentos desfeitos por suspeita de traição ou outros desvios de comportamento, não viam outro caminho a não ser prostituir-se. Essas, estigmatizadas, juntavam-se às estrangeiras nos bordéis oficiais.
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SÍMBOLO ÀS AVESSAS
Maria Madalena, famosa prostituta arrependida da Galiléia, representa que, para ser salva, a mulher precisa abandonar a profissão. Conhecida como a ex-prostituta da Galiléia, Maria Madalena foi uma das mais fiéis seguidoras de Jesus Cristo. De acordo com a Bíblia, ela estava presente em sua crucificação e em seu funeral. Foi ela quem encontrou vazio o túmulo de Jesus, ouviu de um anjo que ele havia ressuscitado e foi dar a notícia aos apóstolos.
Prostituta com papel de destaque na história de Cristo – foi, inclusive, canonizada pela igreja católica -, Maria Madalena poderia ter se tornado um símbolo na luta pela aceitação da atividade. Mas o que ocorreu foi o contrário: como personificou o estereótipo de “prostituta arrependida”, acabou por disseminar uma imagem negativa sobre a prostituição, ao reforçar a idéia de que é preciso abandonar a atividade para redimir-se dos pecados e ser perdoada por Deus.
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Durante a Idade Média, as prostitutas atuantes eram excomungadas da igreja católica. Mas as que se arrependiam eram perdoadas e aceitas pela sociedade. Houve até um movimento de conversão, em que a igreja estimulou fiéis a “recuperar” prostitutas e casar-se com elas. Também surgiram comunidades monásticas de ex-prostitutas convertidas, que receberam o nome de “Lares de Madalena”. Elas proliferaram pela Europa, tendo sido financiadas, em sua maioria, pelo clero. Além de Maria Madalena, a igreja enalteceu diversas outras prostitutas que salvaram suas almas pelo arrependimento, como Santa Pelágia, Santa Maria Egipcíaca, Santa Afra e outras.
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O curioso é que nenhuma passagem na Bíblia afirma que Maria Madalena foi prostituta. Os textos sagrados a mencionam como pecadora, de quem Jesus expulsou sete demônios, mas não especificam qual seria seu passado. Provavelmente, o que a levou a ser vista como prostituta foi a identificação com um relato de Lucas (7:36-50) sobre uma pecadora anônima, descrita de forma a sugerir ser uma prostituta, que em certa passagem unge os pés de Cristo. O relato de Lucas, a respeito de tal mulher arrependida, antecede a citação nominal de Maria Madalena. No Ocidente cristão, a versão de que Maria Madalena seria essa mulher foi a mais difundida. No Oriente, a mulher anônima e Maria Madalena são vistas como pessoas diferentes.
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As prostitutas do templo de Afrodite deixaram de ser vistas como sacerdotisas e viraram escravas. Muitas prostitutas eram cultas e instruídas, e cumpriam o papel de entreter os líderes daquela sociedade. Cobravam alto preço por sua companhia e podiam ou não ceder aos desejos sexuais do cliente. São as hetairae, amantes e musas dos maiores poetas, artistas e estadistas gregos, explica Maria Regina. “As hetairae conduziam seus negócios abertamente em Atenas, trabalhando independentemente tanto dos bordéis do Estado quanto dos templos”, diz Nickie.
A prostituição sagrada também sobreviveu, embora timidamente, durante o período da Grécia clássica. Havia templos em toda a Grécia, especialmente em Corinto – dedicado à deusa Afrodite. As prostitutas do templo não mais eram vistas como sacerdotisas, eram tecnicamente escravas. Mas, por serem consideradas criadas da deusa, mantinham a aura de sacralidade e eram homenageadas pelos clientes. “Demóstenes pagava caro por essas prostitutas. Ele ia de Atenas até Corinto só para ter relações sexuais com elas”, diz
Maria Regina.
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LIVRES NO IMPÉRIO ROMANO
Roma foi diferente da Grécia. Até o início da República, a prostituição não era tão disseminada no território romano. “Roma ainda era muito provinciana, fechada”, explica Ronald Wilson Marques Rosa, historiador e pesquisador do NEA/UERJ. A prostituição apenas se difundiu com a expansão militar do império romano e a conquista de escravos.
Antes desta expansão, há indícios de que entre os primeiros romanos, que eram povos agrícolas, existia a antiga religião da deusa, diz Nickie Roberts. Ela também afirma que, em tempos posteriores, a prostituição religiosa estava ligada à adoração da deusa Vênus, que era considerada protetora das prostitutas.
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Após a expansão militar e territorial, “os escravos eram os prostitutos, tanto homens quanto mulheres. E não havia estigmatização, não era algo mal-visto. Era normal o uso comercial do escravo para a prostituição. E, muitas vezes, eles usavam esse dinheiro para conseguir a liberdade”, diz Ronald Rosa.
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De acordo com Nickie, Roma foi uma sociedade sexualmente muito permissiva. ”Eles escarneciam de qualquer noção de convenção moral ou sexual e desviavam-se de toda norma que houvesse sido inventada até então”, afirma. A grande expansão urbana favoreceu o crescimento da prostituição. A vida era barata, e o sexo, mais barato ainda, diz a autora. Prostituição, adultério e incesto permearam a vida de muitos imperadores romanos. “Falando de modo geral, a prostituição na antiga Roma era uma profissão natural, aceita, sem nenhuma vergonha associada a essas mulheres trabalhadoras”, comenta Nickie.
A vida permissiva levava mulheres a rejeitar o casamento, a ponto de o imperador Augusto estabelecer multas para as moças solteiras da aristocracia em idade casadoira. Muitas se registraram como prostitutas para escapar da obrigação. O sucessor de Augusto, Tibério, proibiu as mulheres da classe dominante de trabalhar como prostitutas.
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Diferente da Grécia, os romanos não possuíam e nem operavam bordéis estatais, mas foram os primeiros a criar um sistema de registro estatal das prostitutas de classe baixa. Isso resultou na divisão das prostitutas em duas classes, explica Nickie: as meretrices, registradas, e as prostibulae (fonte da palavra prostituta), não registradas.
A maior parte não se registrava, preferia correr o risco de ser pega pela fiscalização, que era escassa.
CONDENADAS NA IDADE MÉDIA
Com o declínio do Império Romano, começou a Idade Média. Os invasores, guerreiros bárbaros, organizam a vida não mais em grandes cidades e sim em aldeias agrícolas, que não favoreciam a prostituição como a vida urbana. “As artes civilizadas do amor, do prazer e do conhecimento – o erótico e os demais – desapareceram durante a Idade das Trevas. (…) a antiga tradição de uma sensualidade feminina orgulhosa e exaltadora desapareceu para sempre”, afirma Nickie Roberts. A igreja cristã perpetua-se e reprime a sexualidade feminina, ao censurar a prostituição.
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Apesar de condenada, a prostituição foi tolerada pela igreja, que a considerou “uma espécie de dreno, existindo para eliminar o efluente sexual que impedia os homens de elevar-se ao patamar do seu Deus”, explica Nickie. A igreja condenava todo relacionamento sexual, mas aceitava a existência da prostituição como um mal necessário. De acordo com Jacques Rossiaud, autor de A Prostituição na Idade Média, “pode-se afirmar, sem receio de erro, que não existia cidade de certa importância sem bordel”.
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Havia bordéis públicos, pequenos bordéis privados e também casas de tolerância - os banhos públicos. Além disso, continuavam a existir as prostitutas que trabalhavam nas ruas. Em tese, o acesso aos prostíbulos públicos era proibido para homens casados e padres, mas eles encontravam meios de burlar a legislação. Rossiaud escreve que as prostitutas não eram marginais na cidade, mas desempenhavam uma função.
Nem eram objeto de repulsão social, podendo, inclusive, ser aceitas na sociedade e casar-se depois que deixassem a vida de prostituta.
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A liberdade sexual só era tolerada para os homens. As mulheres casadas e suas filhas, de boa família, deviam temer a desonra. Mas, de acordo com Rossiaud, essa liberdade masculina não sobreviveu à “crise do Renascimento”. Houve uma progressiva rejeição da prostituição, que revelava nas comunidades urbanas a precariedade da condição feminina. “Lentamente, a mulher conquistou uma parte do espaço cívico, adquiriu uma identidade própria, tornou-se menos vulnerável”, explica Rossiaud. E houve uma revalorização do casal.
Prostituição e violência aparecem pela primeira vez associadas, devido a brigas, disputas e assassinatos nos locais públicos. Autoridades municipais, apoiadas pela Igreja, passaram a coibir a prostituição que, a partir de então, “aparecia como um flagelo social gerador de problemas e de punições divinas”, afirma Rossiaud. Um após outro, os bordéis públicos foram desaparecendo. “A prostituição não desapareceu com eles, mas tornou-se mais cara, mais perigosa, urdida de relações vergonhosas”, diz Rossiaud. Para o autor, foi o “duplo espelho deformante do absolutismo monárquico e da Contra-Reforma” que fizeram parecer “decadência escandalosa o que era apenas uma dimensão fundamental da sociedade medieval.”
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UMA PATOLOGIA PARA A MODERNIDADE
Na modernidade, segundo Margareth Rago, professora titular do departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autora de “Os Prazeres da Noite”, a prostituição ganhou feições diferenciadas. Isso porque as mulheres conquistam maior visibilidade e atuação na sociedade. Surgiram novas formas de sociabilidade e de relações de gênero, com a criação de fábricas, escolas e locais de lazer e consumo. “Foram outros modos de vida, nos quais a mulher vai ter maior participação”, diz Margareth. Apesar da modernização dos costumes, a sociedade ainda é conservadora em relação às prostitutas.
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Nesse contexto, nasceu o feminismo e a mulher reivindicou o direito de trabalhar e de estudar. O discurso sobre a prostituição ficou forte nesse período e virou debate médico e jurista. “Há um uso, não consciente, da prostituição para dizer que mulher direita não fuma, não sai de casa sozinha, não assobia na rua, não goza. O médico vai dizer que a mulher não tem muito prazer sexual, ela tem desejo de ser mãe. Já o homem tem e, por isso, precisa da prostituta” , afirma Margareth. De acordo com Margareth, é nessa época que as prostitutas passam a ser condenadas como anormais, patológicas, sem-vergonhas; uma sub-raça incapaz de cidadania. E a justificativa vai vir de teorias médico-científicas. “O que acontece é que a medicina do século XVIII usa os argumentos misógenos de Santo Agostinho e de São Paulo, e fundamenta cientificamente o preconceito contra a prostituta”, explica Margareth. “Diz que a prostituta é um esgoto seminal, uma mulher que não evoluiu suficientemente. São pessoas que têm o cérebro um pouco diferente, o quadril mais largo, os dedos mais curtos. Criam toda uma tipologia” , diz Margareth.
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Para a autora de “Os Prazeres da Noite”, podemos diferenciar a imagem que se construiu da prostituta na modernidade para a visão que temos dela hoje em dia: ”Nos últimos 40 anos, mudou muito. O sexo está deixando de ser patológico, de estigmatizar o que pode e o que não pode. Não sei se acontecem mais coisas na cama de casados ou de uma prostituta. ”
“A revolução sexual transformou os costumes. Mas a sociedade ainda é conservadora e há forte preconceito contra essas mulheres”, diz Margareth.
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REFERÊNCIAS
ROSSIAUD, Jacques. A Prostituição na Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991. 224 pág.
RAGO, Margareth. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo (1890-1930). São Paulo: Paz e Terra, 2008. 360 pág.