segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

A rede Globo e o sionismo mundial...


Globo, os palestinos não se veem por aí


Em 19 de dezembro, foi ao ar na chamada “novela das oito” da TV Globo, intitulada “Amor à vida”, uma cena que não deixa dúvidas a quem serve a emissora: aos interesses hegemônicos e ao império.

Por Soraya Misleh*, no Instituto da Cultura Árabe


  Resistência Palestina
  Resistência Palestina

A  telenovela líder da audiência em âmbito nacional, seguida pelo Jornal Nacional, apresentou na trama um romance entre um palestino, Pérsio (Mouhamed Harfouch), e uma judia, Rebeca (Paula Braun). No capítulo em questão, o primeiro deles declara que pertenceu a uma “célula terrorista” e se diz arrependido: “Eu queria ser um homem bomba. Achava que era um sacrifício justo pela causa do meu povo. Só não fui porque eu sou filho único, a minha mãe me procurou, insistiu demais pra eu desistir. Mas eu ajudei a organizar um atentado. Um amigo meu, um amigo próximo, foi o homem bomba. Ele entrou num ônibus em Jerusalém e explodiu, matando muita gente. Mulheres, crianças... crianças como o seu irmãozinho, Rebeca. Eu me senti culpado, quando vi o seu irmão, quando falei com a sua família. Eu percebi que a guerra, o terrorismo, atinge pessoas indefesas, crianças. Vendo aquele menino sorrindo, eu percebi que um dia eu quis atacar crianças como ele. Como eu posso dizer que aquele menino é meu inimigo?.” Alguns capítulos depois, no dia 30, em uma nova conversa, Rebeca se recusa a falar com Pérsio, a não ser profissionalmente, pelo que ele quis fazer com “seu povo”. E em cena no dia 7 de janeiro último, a personagem busca conselhos junto a um rabino, já que teria se apaixonado por “um árabe, um palestino”, pertencente a um “grupo terrorista”.

O diálogo que inaugura essa farsa é permeado por desinformação, distorção e manipulação da verdade. Rebeca chega a afirmar que há muitos casais judeus e palestinos em Israel, como conviria a qualquer estado democrático. A verdade é que a própria convivência está comprometida. O apartheid imposto aos palestinos impede até que vivam no mesmo bairro.

Alguém poderia afirmar que conhece um caso assim na atualidade. Mas não é essa a regra. Os palestinos que vivem onde hoje é Israel (território palestino até 1948, ano da criação desse estado como exclusivamente judeu) são considerados cidadãos de segunda ou terceira categoria, discriminados cotidianamente – há 30 leis racistas contra essas pessoas, que lhes impedem ter os mesmos direitos. Há dezenas de aldeias em que vivem que sequer são reconhecidas por Israel, o que significa que não lhes são assegurados serviços essenciais, como fornecimento de eletricidade, água, educação e saúde de qualidade.

Quem é o terrorista?
Em 1948, ano que na memória coletiva árabe é conhecido como “nakba”, a catástrofe, foram expulsos de suas terras e propriedades cerca de 800 mil palestinos e aproximadamente 500 aldeias foram destruídas para dar lugar a Israel. Massacres exemplares são hoje comprovados. Os palestinos, desumanizados desde o início desse projeto de limpeza étnica e colonização de suas terras, não foram apagados da história graças a sua resistência – apresentada na telenovela da Globo como terrorismo. Resistência reconhecida pelo direito internacional como legítima diante da ocupação.

Ademais, os chamados atentados com homens bomba, atos desesperados perante o silêncio do mundo e a falta de alternativas, há muito foram abandonados. A contextualização histórica sobre o terror de Estado que fabricou esses “homens bomba”, durante um tempo determinado, ficou fora da telinha. Assim como os contínuos ataques israelenses, que atingem sobretudo crianças e mulheres, com tecnologias de última geração vendidas depois ao mundo. Os laboratórios humanos em que se transformaram os palestinos no shopping center que se converteu Israel à venda de suas parafernálias militares também não encontraram lugar no diálogo que foi ao ar na “novela das oito”.

O autor de “Amor à vida”, Walcyr Carrasco, reforçou, assim, mitos que são denunciados pelo historiador israelense Ilan Pappe em seu artigo “Os dez mitos de Israel”. Entre eles, de que a luta palestina não tem outro objetivo que não o terror e que Israel é “forçado” a responder à violência. Segundo ele, a história distorcida serve à opressão, à colonização e à ocupação. “A ampla aceitação mundial da narrativa sionista é baseada em um conjunto de mitos que, ao final, lançam dúvidas sobre o direito moral palestino, o comportamento ético e as chances de qualquer paz justa no futuro. A razão é que esses mitos são aceitos pela grande mídia no Ocidente e pelas elites políticas como verdade.”

O Brasil não é exceção. Na contramão da campanha global por boicotes ao apartheid israelense, o governo federal se tornou nos últimos anos o segundo maior importador de tecnologias militares da potência que ocupa a Palestina e porta de entrada dessa indústria à América Latina. E sua cumplicidade com a opressão, ocupação e apartheid a que estão submetidos os palestinos é justificada a milhares de espectadores desavisados da novela da Globo, através de um discurso que reproduz a versão falsificada da história e se fortalece perante a representação orientalista – em que os árabes seriam “orientais” bárbaros e atrasados, ante cidadãos pacíficos e civilizados, segundo explicita o intelectual palestino Edward Said em seu livro “Orientalismo, o Oriente como invenção do Ocidente”.

Democratização já!

Num cenário de concentração midiática, preconceitos como esse – não são os únicos – são especialmente graves. Assim como é bastante preocupante que o tradicional show natalino do cantor Roberto Carlos, exibido na mesma emissora ao final de 2013, tenha sido patrocinado pela marca Café Três Corações, que tem como acionista majoritária uma empresa israelense cuja colaboração com a opressão em terras palestinas já foi amplamente denunciada.

Apesar do crescimento acentuado de usuários da internet – que chegaram à marca de 94,2 milhões ao final de 2012, segundo o Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope) –, a maioria da população brasileira ainda se informa sobretudo pela TV, presente em 96,9% dos domicílios, de acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Pnad/IBGE). Enquanto a propaganda nesse meio é o principal impulsionador ao consumo, programas de entretenimento como as telenovelas igualmente moldam comportamentos, conceitos e ideias. E a produção desses encontra-se nas mãos de apenas seis famílias, detentoras das concessões públicas que lhes garantem espaço para difundir livremente preconceitos e falsificações históricas. Outorgas concedidas muitas vezes ao arrepio das leis vigentes, renovadas pelo governo brasileiro sem qualquer critério para garantir a pluralidade e diversidade na produção cultural.

Para transformar a realidade, é fundamental reforçar a luta pela democratização das comunicações e denunciar essas distorções que grassam na TV brasileira. É importante se somar às vozes que, nas manifestações de junho de 2013, protestaram contra o monopólio da mídia e elegeram para tanto o lema: “Globo, a gente não se vê por aqui”.

*Soraya Misleh é jornalista, membro da diretoria do ICArabe, da Ciranda Internacional da Informação Independente e do Mopat (Movimento Palestina para Todos)



domingo, 12 de janeiro de 2014

Gilmar Mendes: perguntas e respostas


Gilmar Mendes: perguntas e respostas

Do blog Diário do Centro do Mundo:


E eis que o ministro Gilmar Mendes está de novo nas primeiras páginas - como de hábito, em situação desfavorável.

Mendes é uma das estrelas do livro Operação Banqueiro, do jornalista Rubens Valente, lançado neste final de semana.

Nele, Valente mostra como Daniel Dantas, um banqueiro de atuação obscura, recebeu a proteção de Mendes no STF.

Meses atrás, Mendes se destacara na mídia digital - sempre negativamente - depois de conceder habeas corpus para uma funcionária da Receita Federal que tentou sumir com a documentação relativa a uma dívida multimilionária da Globo com o fisco.

Sua atuação política foi sublinhada, involuntariamente, num perfil laudatório escrito, alguns anos atrás, pela jornalista Eliane Cantanhede para uma revista da Folha. No texto, Cantanhede informou – provavelmente sem se dar conta do absurdo do que escrevia – que Mendes é “tucano demais”.

Para ajudar os leitores do Diário a se situarem, montamos um grupo de perguntas e respostas sobre Gilmar.

Quem indicou Gilmar Mendes para o STF?
Fernando Henrique Cardoso.

Como a indicação de Gilmar Mendes para o STF foi recebida por juristas ilibados?
No dia 8 de maio de 2002, a Folha de S. Paulo publicou um artigo do professor Dalmo Dallari, a propósito da indicação de Gilmar Mendes para o Supremo Tribunal Federal, sob o título de Degradação do Judiciário.

Qual era o ponto de Dallari?
“Se essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado”, afirmou Dallari, “não há exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional.”

Por quê?
Gilmar, segundo Dallari, especializou-se em “inventar” soluções jurídicas no interesse do governo. “Ele foi assessor muito próximo do ex-presidente Collor, que nunca se notabilizou pelo respeito ao direito”, escreveu Dallari. ”No governo Fernando Henrique, o mesmo Gilmar Mendes, que pertence ao Ministério Público da União, aparece assessorando o ministro da Justiça Nelson Jobim, na tentativa de anular a demarcação de áreas indígenas. Alegando inconstitucionalidade, duas vezes negada pelo STF, “inventaram” uma tese jurídica, que serviu de base para um decreto do presidente Fernando Henrique revogando o decreto em que se baseavam as demarcações. Mais recentemente, o advogado-geral da União, derrotado no Judiciário em outro caso, recomendou aos órgãos da administração que não cumprissem decisões judiciais.”.

Como Gilmar, no cargo de advogado- geral da União, definiu o judiciário brasileiro depois de suas derrotas judiciais?
Ele fez uma afirmação textual segundo a qual o sistema judiciário brasileiro é um “manicômio judiciário”.

Como os juízes responderam a isso?
Em artigo publicado no “Informe”, veículo de divulgação do Tribunal Regional Federal da 1ª Região, um juiz observou que “não são decisões injustas que causam a irritação, a iracúndia, a irritabilidade do advogado-geral da União, mas as decisões contrárias às medidas do Poder Executivo”.

Havia alguma questão ética contra Gilmar quando FHC o indicou?
Sim. Em abril de 2002, a revista “Época” informou que a chefia da Advocacia Geral da União, isto é, Gilmar, pagara R$ 32.400 ao Instituto Brasiliense de Direito Público – do qual o mesmo Gilmar é um dos proprietários – para que seus subordinados lá fizessem cursos.

O que Dallari disse desse caso?
“Isso é contrário à ética e à probidade administrativa, estando muito longe de se enquadrar na “reputação ilibada”, exigida pelo artigo 101 da Constituição, para que alguém integre o Supremo”, afirmou Dallari.

Em outros países a indicação de juízes para o STF é mais rigorosa?
Sim. Nos Estados Unidos, por exemplo, um grande jurista conservador, Robert Bork, indicado por Reagan, em 1987, foi rejeitado (58 votos a 42), depois de ampla discussão pública.

Como o Senado americano tratou Bork?
Defensor declarado dos trustes, Bork foi arrasado pelo senador Edward Kennedy A América de Bork – disse Kennedy – será aquela em que a polícia arrombará as portas dos cidadãos à meia-noite, os escritores e artistas serão censurados, os negros atendidos em balcões separados e a teoria da evolução proscrita das escolas.

O caso foi tão emblemático que to bork passou a ser verbo. Mais tarde, em outubro de 1991, o juiz Clarence Thomas por pouco não foi rejeitado, por sua conduta pessoal. Aos 43 anos, ele foi acusado de assédio sexual – mas os senadores, embora com pequena margem a favor (52 votos a 48), o aprovaram, sob o argumento de que seu comportamento não o impedia de julgar com equidade.

Na forte campanha contra sua indicação as associações femininas se destacaram. E o verbo “borquear” foi usado por Florynce Kennedy, com a sua palavra de ordem “we’re going to bork him”.

Já no Supremo, Gilmar continuou a agir contra os interesses dos índios, como fizera antes?
Sim. Em 2009, o governo cedeu aos guaranis-caiovás a terra que eles ocupavam então. Em 2010, o STF, então presidido por Gilmar Mendes, suspendeu o ato do governo, em favor de quatro fazendas que reivindicam a terra.

A mídia tem cumprido seu papel de investigar Gilmar?
Não, com exceção da Carta Capital. Na edição de 8 de outubro de 2008, a revista revelou a ligação societária entre o então presidente do Supremo Tribunal Federal e o Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP).

O que é o IDP?
É uma escola de cursinhos de direito cujo prédio foi construído com dinheiro do Banco do Brasil sobre um terreno, localizado em área nobre de Brasília, praticamente doado (80% de desconto) a Mendes pelo ex-governador do Distrito Federal Joaquim Roriz.

O que a Carta Capital revelou sobre o IDP?
O autor da reportagem, Leandro Fortes, revelou que o IDP, à época da matéria, fechara 2,4 milhões em contratos sem licitação com órgãos federais, tribunais e entidades da magistratura, “ volume de dinheiro que havia sido sensivelmente turbinado depois da ida de Mendes para o STF, por indicação do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso”.

Quem dava aulas no IDP, segundo a Carta Capital?
O corpo docente do IDP era formado, basicamente, por ministros de Estado e de tribunais superiores, desembargadores e advogados com interesses diretos em processos no Supremo. “Isso, por si só, já era passível de uma investigação jornalística decente”, escreveu em seu blog o autor da reportagem. “O que, aliás, foi feito pela Carta Capital quando toda a imprensa restante, ou se calava, ou fazia as vontades do ministro em questão.”

O jornalista deu algum exemplo?
Sim. Na época da Operação Satiagraha, dois habeas corpus foram concedidos por Mendes ao banqueiro Daniel Dantas, em menos de 48 horas. Em seguida, conforme Leandro Fortes, “a mídia encampou a farsa do grampo sem áudio, publicado pela revista Veja, que serviu para afastar da Agência Brasileira de Inteligência o delegado Paulo Lacerda, com o auxílio do ministro da Defesa, Nelson Jobim, autor de uma falsa denúncia sobre existência de equipamentos secretos de escuta telefônica que teriam sido adquiridos pela Abin”.

Como Gilmar reagiu às denúncias?
A Carta Capital e o repórter, por revelarem as atividades comerciais paralelas de Gilmar Mendes, acabaram processados pelo ministro.

Mendes acusou a reportagem de lhe “denegrir a imagem” e “macular sua credibilidade”. Alegou, ainda, que a leitura da reportagem atacava não somente a ele, mas serviria, ainda, para “desestimular alunos e entidades que buscam seu ensino”.

Como a justiça se manifestou sobre o processo?
Em 26 de novembro de 2010, a juíza Adriana Sachsida Garcia, do Tribunal de Justiça de São Paulo, julgou improcedente a ação de Gilmar Mendes e extinguiu o processo.

O que ela disse?
“As informações divulgadas são verídicas, de notório interesse público e escritas com estrito animus narrandi. A matéria publicada apenas suscita o debate sob o enfoque da ética, em relação à situação narrada pelo jornalista. (…) A população tem o direito de ser informada de forma completa e correta. (…) A documentação trazida com a defesa revela que a situação exposta é verídica; o que, aliás, não foi negado pelo autor.”

É verdade que Ayres Brito, que prefaciou o livro de Merval Pereira sobre o Mensalão, proferiu aula magna no IDP?
Sim.

Procede a informação de que, em pleno Mensalão, Gilmar foi ao lançamento de um livro de Reinaldo Azevedo em que os réus eram tratados como “petralhas”?
Sim.

E agora, como entender a crise entre o Supremo Tribunal Federal e o Congresso?
Nas palavras do colunista Janio de Freitas, esta crise “não está longe de um espetáculo de circo, daqueles movidos pelos tombos patéticos e tapas barulhentos encenados por Piolim e Carequinha. É nesse reino que está a “crise”, na qual quase nada é verdadeiro, embora tudo produza um efeito enorme na grande arquibancada chamada país”.

É verdade que o Congresso aprovou um projeto que submete decisões do Supremo ao Legislativo?
Não. A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara, como explicou Janio de Freitas, nem sequer discutiu o teor do projeto que propõe a apreciação de determinadas decisões do STF pelo Congresso. “A CCJ apenas examinou, como é de sua função, a chamada admissibilidade do projeto, ou seja, se é admissível que seja discutido em comissões e eventualmente levado a plenário”, explicou Jânio. “A CCJ considerou que sim. E nenhum outro passo o projeto deu.”

E qual foi a atitude de Gilmar neste caso?
Ele afirmou que os parlamentares “rasgaram a Constituição”. Isso só é equiparável, segundo Jânio, à afirmação de Gilmar de que “o Brasil estava sob “estado policial”, quando, no governo Lula, o mesmo ministro denunciou a existência de gravação do seu telefone, jamais exibida ou comprovada pelo próprio ou pela investigação policial”.

É verdade que a mulher de Gilmar Mendes trabalha no escritório de advocacia que defende Daniel Dantas?
Sim. É o escritório de Sérgio Bermudes, no Rio de Janeiro.

Isto configura um conflito de interesses, já que o STF pode julgar causas do escritório de Bermudes?
Sim.

E não acontece nada para coibir esse conflito?
Não.

POESIA


Se se morre de amor  

Gonçalo Dias

Se se morre de amor! – Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n’alma,
Que embelezada e solta em tal ambiente
No que ouve e no que vê prazer alcança!
Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso,
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido, acaso podem
Num engano d’amor arrebatar-nos.
Mas isso amor não é; isso é delírio,
Devaneio, ilusão, que se esvaece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro
Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D’amor igual ninguém sucumbe à perda.
Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração – abertos
Ao grande, ao belo; é ser capaz d’extremos,
D’altas virtudes, té capaz de crimes!
Compr’ender o infinito, a imensidade,
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
D’aves, flores, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa;
E à branda festa, ao riso da nossa alma
Fontes de pranto intercalar sem custo;
Conhecer o prazer e a desventura
No mesmo tempo, e ser no mesmo ponto
O ditoso, o misérrimo dos entes;
Isso é amor, e desse amor se morre!
Gonçalo Dias

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

“A ANP está comprometida com Israel”


“A ANP está comprometida com Israel”

Companheira de líder da resistência palestina preso revela que polícia palestina se comporta como guarda do exército israelense

José Coutinho Júnior
enviado especial à Palestina pelo BRASILDEFATO
“Tenho que trabalhar, cuidar da família e lutar pela libertação do meu marido”. Assim Abla Sa’dat define sua luta. Abla é esposa de Ahmad Sa’adat, líder do partido marxista palestino Frente Popular pela Libertação da Palestina, segundo homem mais influente na Organização Para a Libertação da Palestina (OLP), entidade que reúne os diversos partidos palestinos que buscam uma solução para a questão palestina e a principal liderança da esquerda palestina atualmente.
Por sua influência, Ahmad sempre foi perseguido pelo exército de Israel, vivendo como um fugitivo durante anos. Em 2002, já vivendo na clandestinidade, foi convocado pelo então presidente do governo da Autoridade Nacional da Palestina (ANP), Yasser Arafat. Ao chegar no local da reunião, foi emboscado e preso pelo governo. Os salários dos funcionários da Autoridade Palestina vêm da ONU, mas são entregues para Israel, que então repassa para o governo. Arafat alegou que Israel exigia sua prisão, senão reteria os salários. Sa’adat ficou em uma prisão palestina em Jericó até 2006, quando tropas israelenses invadiram o local, o capturaram e o levaram para uma prisão israelense. Desde então, está preso em Israel, sem saber se será solto algum dia. Abla é uma das principais vozes na luta pela liberação dos presos políticos palestinos, realizando campanhas internacionais de solidariedade e denunciando os abusos das autoridades Israelenses. Confira entrevista de Abla Sa’dat:
Brasil de Fato – Abla, onde o Ahmad está hoje, e como está a saúde dele?
Abla Sa’dat – Ele está preso na região do norte de Israel, ocupada em 1948. O Ahmad ficou isolado numa cela individual de 2009 a 2012, sem conexão e contato com as pessoas. Ele só saiu de lá porque os prisioneiros fizeram uma greve de fome para tirar 23 presos da solitária e acabar com a política de isolamento. Ele está bem de saúde. Se cuida fazendo exercícios físicos e parou de fumar. Se ele ficar doente e tiver de ir a uma clínica militar, voltará pior do que foi. Ele sofre com alergias, então mudam ele de celas constantemente de propósito para que ele pegue alergias e fi que doente.
Que motivos Israel alega para ter realizado a prisão e mantê-lo cativo?
Ahmed está preso por ser o líder da Frente Popular, essa é a única queixa, não há uma condenação concreta contra ele. Inclusive, a alegação do juiz para isolá-lo foi a de que “essa pessoa pode fazer os palestinos se voltarem contra Israel só com o olhar”.
As prisões são ilegais, pois os presos políticos lutam pela liberdade de uma terra ocupada. Mesmo as leis israelenses não justificam a prisão de Ahmad. É uma questão puramente política e ideológica. Realizamos de 17 a 24 de outubro deste ano uma campanha internacional de solidariedade, na qual organizações e pessoas solidárias enviaram cartas a ele e às autoridades israelenses, para pressionar por sua libertação.
Depois que Ahamad foi preso, como é sua vida, seu dia a dia?
Nos casamos em 1983 e vivi em paz com ele até 1985 apenas. Nos anos seguintes, ou ele estava na cadeia ou foragido. Temos duas filhas e dois filhos, que eu criei praticamente sozinha. Quando ele foi preso em 1987, fui presa também.
Tínhamos um fi lho de nove meses na época. Em 2003, fui presa novamente, quando ia para o Fórum Social Mundial em Porto Alegre – fiquei na prisão por quatro meses. Nesses períodos, nossa família viveu sem pai e mãe. É uma vida muito difícil. Tenho que trabalhar, cuidar da família e lutar pela libertação do meu marido. Mas como mulher palestina, é minha função com todo o povo.
Qual é a posição da ANP em relação à prisão de Ahmad?
Quem realizou a prisão foi a ANP [Autoridade Nacional Palestina], em Ramallah. Ahmad ficou três anos em Jericó, até o exército israelense invadir a prisão e o levar para Israel. O discurso do governo é de que se deve libertar os presos, mas na verdade eles estão comprometidos com Israel.
No começo de outubro, o exército israelense invadiu o campo de refugiados de Geni e prendeu cinco ativistas da Jihad islâmica. A polícia palestina não faz nada contra o exército, são guardas de Israel, que ajudam a prender os militantes que discordam e se opõem às políticas do governo, como os do Hamas, da Jihad e a esquerda palestina.
Como é o processo de visitas na prisão?
A humilhação começa antes de fazer a visita. De toda a nossa família, só eu e meu filho mais velho podemos visitá-lo, porque nós temos um cartão de identidade de Jerusalém. Os presos que são do norte são levados para cadeias do sul e vice-versa, para dificultar as visitas dos familiares. Temos que ir junto com a Cruz Vermelha, senão não entramos.
Quando chegamos, ficamos do lado de fora da prisão, não tem lugar para sentar. Preenchemos ali uma lista com os nomes de quem vamos visitar. Quando entramos, passamos por um detector de metais e uma revista corporal.
Não podemos levar comida ou mesmo cigarros conosco; existe uma loja na prisão, e se quisermos dar essas coisas aos presos, temos de comprar lá a preços muito altos, e se algum preso quiser assinar um dos três jornais de Jerusalém para se manter informado, deve pagar 800 dólares pela assinatura de um jornal que não custa nem um dólar. E os jornais geralmente chegam atrasados; os assinantes recebem todas as edições no final do mês.
É permitido levar livros, mas todos são lidos para checar se existe material subversivo antes de ser entregues. Como Ahmad gosta dos livros perigosos, eles costumam fi car retidos. Geralmente levo uns seis livros comigo e distribuo entre os outros visitantes. Caso os outros presos consigam receber, eles passam para o Ahmad. Só podemos levar roupas novas para eles duas vezes ao ano, quando as estações mudam.
Na hora da visita, 11 pessoas entram juntas na sala. Lá dentro, existe um vidro que separa o visitante do prisioneiro, a conversa é gravada, e depois de 45 minutos, a janela fecha e o telefone é desligado. Muitas vezes não dá nem para se despedir.
Fotos: Brigada Gassan Kanafani

terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Especial Palestina: “Nós sempre estivemos nessa terra


Especial Palestina: “Nós sempre estivemos nessa terra”

Taha, um dos fundadores da UAWC, revela sua luta e desconstrói argumentos sionistas

José Coutinho Júnior
enviado especial à Palestina  do brasildefato
“Por que todas as cidades da Palestina são dividas entre velhas e novas?”, um visitante pergunta a Taha Jaber Rifaie, um dos fundadores da UAWC (sigla em inglês de União dos Comitês de Trabalho Agrícola). Receptivo, o veterinário de formação fala ao grupo de latino- americanos que havia chegado ao seu escritório, logo ao lado da entrada de sua casa, com calma: “antes vamos jantar. Responderei a todas as perguntas depois de comer”.
Ele abre uma sacola, cujo interior traz uma típica refeição palestina: falafels – um bolinho de grão de bico frito –, homus e pão sírio. Durante um breve momento, o assunto é a comida. Após todos terminarem de comer, Taha entra na casa para voltar, pouco depois, com dois narguilés: um para ele e outro para os visitantes. Calmamente, prepara o aparelho e após dar a primeira tragada, sorri e diz: “o gosto desse é de maçã”.
“Por que as cidades da Palestina são divididas entre velhas e novas, você perguntou? Bem, porque as nossas cidades são antigas e belas. Quando as cidades começaram a se expandir e se tornar mais modernas, quisemos preservar a beleza das cidades velhas, por isso a divisão. Se você percebeu, as cidades novas são construídas em volta das velhas”, responde.
Taha estudou veterinária na Síria, fez um mestrado nos Estados Unidos e outra especialização na Palestina. É casado com uma nicaraguense, e já visitou o Brasil – Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, à época do Fórum Social Mundial.
Sempre esteve envolvido na luta contra a ocupação e auxiliando os camponeses palestinos. Por causa de seu ofício era impedido pelo exército israelense de entrar nas vilas para tratar dos animais, então se infiltrava à noite nas vilas para realizar o tratamento de forma clandestina. Uma vez foi pego pelo exército, mas o soltaram sob uma alegação interessante: “sabemos que você é alguém grande, vamos te pegar por algo grande”.
ONGs
Grande parceiro do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Taha foi um dos articuladores para tornar a UAWC parte da Via Campesina. Para ele, a Palestina precisa de um movimento social forte, para se contrapor à presença e atuação massiva de ONGs. “ONGs e o movimento social são similares. Ambos podem lutar pela mesma coisa. Mas o movimento social constrói e atinge seus objetivos com o povo, enquanto a ONG pensa e executa essas ações pelo povo, sem se importar se elas de fato são o que o povo quer, e sim com a sua agenda, que muitas vezes é a de prestar contas a empresas poderosas”, justifica.
Um exemplo, conta, ocorreu em uma vila na qual as mulheres precisavam sair de suas casas todos os dias para pegar água em um local longe, pela falta de saneamento básico. A ONG realizou um projeto que levou água à vila, e as mulheres imediatamente reclamaram do projeto, pois o momento de pegar a água era a única chance que tinham de sair de casa e socializar com outras mulheres. “O movimento social, pelo contrário, tem a tarefa de conhecer a realidade das pessoas, ver quais são suas necessidades e realizar um trabalho de base para conscientizar e organizar aquela população a lutar pelo que quer. A construção da Via Campesina aqui é fundamental para isso”, afirma.
Primeiros judeus
“A gente devia te convidar para falar em uma universidade na Argentina. Lá a comunidade sionista é muito forte, eles não iam reagir nada bem”, provoca um visitante argentino. “Pode convidar. Não tenho problema em falar com os sionistas. Pelo contrário, adoro desconstruir os argumentos deles”, brinca Taha, antes de contar uma história.
“Um dia a polícia israelense me convocou. Cheguei lá e o soldado disse para eu relaxar. Me sentei e ele começou a falar: ‘eu sei que você é um homem inteligente, só quero conversar gentilmente’. Se fosse para ‘conversarmos gentilmente’, não teria que ser convocado e vir aqui forçado, disse. Ele respondeu: ‘vamos esquecer essa parte. Você precisa entender que essa terra é nossa de direito. ‘Você é da onde?’ – perguntei, e ele falou que era israelense, surpreso. Insisti: ‘não, onde você nasceu?’. Ele afirmou ‘em Israel’, para depois contar que os pais eram da Polônia”.
“Pois bem. Se eu sou palestino e eu, meu pai, meu avô, meu bisavô, meu tataravô e assim por diante nunca saímos dessa terra, então nós fomos os primeiros judeus, que se converteram em islâmicos depois, não concorda? Vocês saíram daqui e agora voltam para cá, mas nós sempre estivemos nessa terra”. Os argumentos utilizados pelos sionistas de que retornaram à sua terra de direito também não fazem sentido, segundo Taha. “Nablus era parte das terras originais, e hoje não está incorporado em Israel. As áreas próximas do mar, por sua vez, eram árabes, e hoje Israel as incorpora. Isso não é religião, é capitalismo”.
Ele garante que a aparente paz que se presencia hoje na Palestina não passa de uma ilusão. “As coisas parecem pacíficas agora, mas não estão. O exército israelense esteve em Albire (território próximo a Ramallah) há alguns dias atrás, onde entrou com força nas casas para prender militantes palestinos”, conta.
Entre um trago e outro, acariciando um de seus gatos, o veterinário faz uma previsão. “Acredito que até 2025 vamos nos livrar da ocupação israelense. A situação está difícil, mas não tão difícil que não podemos superá-la”. 
Foto: Brigada Gassan Kanafani

Magnoli, a Kátia Abreu de cuecas


Magnoli, a Kátia Abreu de cuecas


Por José Ribamar Bessa Freire
05/01/2014 – Diário do Amazonas
Demétrio Magnoli, doutor em Geografia, nunca pisou o chão da aldeia Tenharim em Humaitá, sul do Amazonas, invadida neste natal por madeireiros e outros bichos ferozes. Nunca cheirou carne moqueada de anta cozida no leite de castanha, nem saboreou essa iguaria refinada da culinária Kagwahiva. Jamais ouviu narrativas, poesia ou o som melodioso da flauta Yrerua tocada na Casa Ritual – a Ôga Tymãnu Torywa Ropira. Nem assistiu a festa tradicional – o Mboatava. Para falar a verdade, ele nunca viu um índio Tenharim em toda sua vida, nem nu, nem de tanga ou em traje a rigor. Nunca.
Não sabe o que perdeu. Não importa. O papa também nunca esteve no inferno, nem viu o diabo chupando manga, mas discorre sobre o tema. Desta forma, Magnoli se sentiu à vontade para escrever, na quinta feira, A Guerra do Gentio, no Globo (02/01), no qual comenta o recente conflito, numa área que desconhece e dá palpites sobre a identidade de índios, que nunca viu. Quando a gente carece de experiência e de vivência pessoal, procura as fontes ou quem estudou o assunto. O papa, por exemplo, lê a Bíblia e os teólogos. O que leu Magnoli sobre os Tenharim?
Nada de consistente. Muita gente boa escreveu sobre eles, com uma reconhecida produção etnográfica. Nimuendaju descreveu os Parintintin, com quem conviveu nos anos 1920, no rio Madeira. O gringo Waud Kracke redigiu a tese na Universidade de Chicago, nos anos 1970, depois de gravar os cantos e narrativas na língua Kagwahiva, que aprendeu a falar. Miguel Angel Menéndez viajou pelo Tapajós para a tese de doutorado na USP, no final dos anos 1980. Edmundo Peggion fez uma etnografia dos Tenharim e defendeu sua tese sobre a organização Kagwahiva, na USP, publicada em 2011.
Cacique motoqueiro
O geógrafo Magnoli, formado também pela USP, nem seu souza. Ignora-os, assim como desconhece a documentação dos arquivos. Menciona os jesuítas e o ciclo da borracha, sem apoio de qualquer fonte histórica. Não consultou na Biblioteca de Évora o manuscrito de Manoel Ferreyra, que percorreu a região em meados do séc. XVIII. Para isso, nem precisa viajar a Portugal. Basta ir ao Museu do Índio, no Rio, onde estão também microfilmes de relatórios do Serviço de Proteção aos Índios (SPI) dos anos 1920-30 redigidos pelo inspetor Bento Lemos, que fornece dados históricos sobre os Tenharim e outros povos Kagwahiva, conhecidos até 1920 pelo nome genérico de Parintintin.
Ou seja, o cara não pesquisou nos arquivos, não leu os antropólogos, nunca ouviu um Tenharim, mas usa a página nobre de um jornal de circulação nacional para cagar regras – essa é a expressão – sobre os Kagwahiva. Pontifica sobre eles num texto que pretende ser infalível como uma encíclica. Insinua que a morte de Ivan Tenharim, na estrada, foi acidente de trânsito como quer a polícia, e não assassinado em uma emboscada como afirmam os índios. Aliás, segundo ele, o “cacique motoqueiro” nem índio é. Rouba-lhe a identidade depois de morto, falando urbi et orbe como o papa:
“O cacique motoqueiro dos Tenharim, as aldeias indígenas que vivem de rendas de pedágios clandestinos, os índios terena e guarani que cultivam melancias em “terras sagradas”para vendê-las no mercado não são “povos da floresta”, mas brasileiros pobres de origem indígena”.
Demétrio dixit. Qual o critério que ele usa para do alto das suas tamancas trombetear quem é índio e quem não é? O mercado. Eis aí: o mercado opera o milagre da transfiguração de índios em ‘brasileiros pobres’. Vendeu uma melancia? Então deixou de ser índio – afirma o contundente Magnoli. Sem o respaldo das ciências sociais, seu discurso deriva para o senso comum. E o senso comum, no caso, se chama Kátia Abreu, senadora, pecuarista e articulista do caderno Mercado da Folha de São Paulo, porta-voz do agronegócio.
Cartilha de Kátia
Magnoli reza pela cartilha de Katia Abreu, a quem segue como um cachorrinho a seu amo. Copia dela ipsis litteris, sem aspas, até a negação da identidade indígena. Só troca ‘silvícola’ por ‘gentio’, mas a ‘matriz epistemológica’ é a mesma: o interesse do agronegócio nas terras indígenas. Se a venda de uma melancia transforma o ‘gentio’ em ‘brasileiro pobre’, então a terra onde a plantou deixa de ser indígena e fica assim liberada para os donos da soja, da cana e do gado. Magnoli não questiona a terra concentrada em mãos de um único fazendeiro, mas o faz quando se trata de comunidades indígenas, manifestando maliciosamente fingida dúvida:
“Muita terra para pouco índio”, diz uma sabedoria popular cada vez mais difundida, mesmo se equivocada” – escreve Magnoli. Que ‘sabedoria’ é essa? Que ‘popular’ é esse? Quem difunde? Se é equivocada, porque ele e outros formadores de opinião espalham tal equívoco? Magnoli repete a mesma lenga-lenga da Katia Abreu – a terra é secundária, o que os índios, “necessitam é, sobretudo, de postos de saúde e escolas públicas”. Critica o termo oficial “desintrusão” para descrever a remoção de todos os não índios das terras indígenas, porque não aceita chamá-los de “intrusos”.
Uma vez mais reproduz o discurso de Kátia Abreu que igualmente não conhece os índios nem de vivência, nem de leitura ou pesquisa, mas também caga regras, que Magnoli copia e o leitor lê, comprando gato por lebre. Copia até o método – a “abreugrafia” – que consiste em dispensar o trabalho de campo e o contato direto com os índios, que nunca são ouvidos contrariando uma regra básica do jornalismo. Reforça preconceitos boçais e chega a ofender os índios quando reproduz acriticamente o discurso do “senso comum”:
“Edvan Fritz, almoxarife, deu um passo conceitual adiante: “Eles [os índios] vêm à cidade, enchem a cara, fazem baderna e fica por isso. Índio é protegido pelo governo que nem bicho, então tem de ficar no mato, não tem que viver em dois mundos, no nosso e no deles” – escreve Magnoli.
O outro lado
É isso que Magnoli transcreve. No entanto, o bom jornalismo manda ouvir o outro lado. Por que quando no “outro lado” estão os índios, quase nunca eles são ouvidos, mesmo quando são bilíngues e falam português? Duas excelentes jornalistas – Elaíze Farias e Kátia Brasil – publicaram no portal Amazônia Real, a entrevista do índio Ivanildo Tenharim, refugiado no quartel do Exército em Humaitá, depois da invasão à aldeia, onde ele dá a sua versão sobre os recentes ataques:
“Existem muitos madeireiros que têm raiva da gente porque eles não podem invadir a reserva para tirar madeira. Tempos atrás, com as operações da Funai e de outros órgãos, eles tiveram carros e tratores apreendidos e ficaram com mais raiva. O que eles fizeram foi aproveitar o momento para se unirem contra nós, se articulando com a população. Foram eles que bancaram o protesto de sexta-feira, quando invadiram as aldeias”.
A Polícia confirma as informações do índio: “Identificamos fazendeiros, madeireiros e funcionários tentando invadir a Terra Indígena Tenharim – declarou o tenente coronel Everton Cruz. A expedição punitiva que saiu de Apuí no dia 26 de dezembro contou com 29 caminhonetes “para fazer buscas aos três homens desaparecidos” – informou o delegado Robson Janes, que apontou também a presença de madeireiros e fazendeiros. Para a líder indígena Margarida Tenharim as acusações de que os três homens foram mortos por índios não tem provas: “É um absurdo. Não fazemos isso”.
Mas a voz dos índios não encontra eco no espaço do jornal gerenciado por Demétrio Magnoli, que aproveita para atacar Lula e o que chama de lulismo, responsáveis – segundo ele – pelos conflitos. Desrespeita, além disso, Dilma Rousseff, a quem denomina depreciativamente de “presidente de direito”, em oposição a Lula que seria o “presidente de facto”. Seu ataque é tão rasteiro e primário que, lendo-o, dá vontade de votar na Dilma, mesmo sabendo de que Kátia Abreu faz parte de sua base aliada. Desconfio que se trata de propaganda subliminar.
Demétrio Magnoli, militante de esquerda do grupo trotskista Liberdade e Luta (LIBELU) nos anos 1980, não ouve o outro lado porque trocou de lado. Agora quem dá as cartas para ele é o agronegócio. Madalena arrependida, Demétrio Magnoli podia ser a Kátia Abreu de paletó e gravata, mas é a Kátia de cueca, que ficaria limpa se lavada nas águas ainda claras do igarapé Preto da aldeia Tenharim.

domingo, 5 de janeiro de 2014

István Mészáros: "O capitalismo hoje promove uma produção destrutiva"


050114 mszResistir - [Eleonora de Lucena] A atual crise do capitalismo, que faz eclodir protestos por toda a parte, é estrutural e exige uma mudança radical. Essa é a visão do filósofo István Mészáros, 82. Professor emérito da Universidade de Sussex (Reino Unido), o marxista Mészáros defende que as ideias socialistas são hoje mais relevantes do que jamais foram.

Nesta entrevista, feita por e-mail, ele afirma que o avanço da pobreza em países ricos demonstra que "há algo de profundamente errado no capitalismo", que hoje promove uma "produção destrutiva".
Maior discípulo e conhecedor da obra do também filósofo húngaro marxista György Lukács (1885-1971), Mészáros lançará aqui o seu livro O Conceito de Dialética em Lukács [trad. Rogério Bettoni, Boitempo, R$ 39, 176 págs.], dos anos 60.
A mesma editora lança, de Lukács, Para uma Ontologia do Ser Social 2 [trad. Ivo Tonet, Nélio Schneider e Ronaldo Vielmi Fortes, R$ 98, 856 págs.] e o volume György Lukács e a Emancipação Humana [org. Marcos Del Roio, R$ 39, 272 págs.].
Folha - O sr. vem ao Brasil para falar sobre György Lukács. Como profundo conhecedor do legado do filósofo, como avalia a importância das suas ideias hoje?
István Mészáros - Lukács foi meu grande professor e amigo por 22 anos, até sua morte, em 1971. Ele começou como crítico literário politicamente consciente quase 70 anos antes. Com o passar do tempo, foi se movendo na direção dos temas filosóficos fundamentais. Seus três trabalhos principais nesse campo – "História e Consciência de Classe (1923), "O Jovem Hegel" (1948) e "A Destruição da Razão (1954) – sempre resistirão ao teste do tempo.
Seus estudos históricos e estéticos sobre granes figuras da literatura alemã, russa e húngara seguem sendo as mais influentes em muitas universidades. Além disso, ele é autor de uma monumental síntese estética, que, tenho certeza, virá à luz um dia também no Brasil. Felizmente, seus também monumentais volumes sobre problemas da ontologia do ser social estão sendo publicados agora no Brasil pela Boitempo. Eles tratam de algumas questões vitais da filosofia, que têm implicações de longo alcance também para a nossa vida cotidiana e para as lutas em curso.
O que é menos conhecido sobre a vida de Lukács é que ele esteve diretamente envolvido em altos níveis de organização política entre 1919 e 1929. Ele foi ministro de Educação e Cultura no breve governo revolucionário da Hungria em 1919, que surgiu a partir da grande crise da Primeira Guerra Mundial. No Partido ele pertencia ao "grupo Landler"; era o segundo no comando. Esse grupo recebeu o nome em homenagem a Jenö Landler (1875-1928), que foi um líder sindical antes de se tornar uma figura do alto escalão partidário. Ela buscava seguir uma linha estratégica mais ampla, com maior envolvimento das massas populares.
Lukács foi derrotado politicamente em 1929. No entanto, voltando a 1919, em um dos seus artigos (está no meu livro editado agora pela Boitempo), ele alertava que o movimento comunista poderia enfrentar um grande perigo quando "o proletariado transforma sua ditadura contra ele mesmo". Ele provou ser tragicamente profético nesse alerta.
De qualquer forma, em todos os seus desempenhos públicos, políticos e teóricos, se pode encontrar sempre evidências de sua grande estatura moral. Hoje em dia lemos muito sobre corrupção em política. Podemos ver a importância de Lukács também como um exemplo positivo, mostrando que moralidade e política não só devem (como advogava Kant) como podem andar juntas.
O sr. e Lukács têm vidas que unem teoria e prática. Qual é a diferença entre ser um militante marxista no século 20 e hoje?
A dolorosa e óbvia grande diferença é que os principais partidos da Terceira Internacional, que tiveram uma força organizacional significativa e até influência eleitoral durante algum tempo (como no caso dos partidos comunistas da França e da Itália), implodiu não só no Leste, mas também no Ocidente. Apenas alguns partidos comunistas bem pequenos permanecem fiéis aos princípios de outrora. Essa implosão ocorreu muito tempo após a morte de Lukács.
Naturalmente, como um militante intelectual por mais de 50 anos ele estaria hoje desolado com esses desdobramentos. Mas partidos são criações históricas que respondem, de maneira boa ou ruim, a necessidades de mudança. Marx foi bem ativo antes da constituição de um partido importante que pudesse, depois, se juntar à Terceira Internacional. Quanto ao futuro, alguns partidos radicalmente eficazes podem ser reconstituídos se as condições mudarem significativamente.
Mas o tema em si é muito mais amplo. A necessidade de combinar teoria e prática não está ligada a uma forma específica de organização. De fato, uma das tarefas mais cruciais para a combinação de teoria e prática é o exame da difícil questão sobre porque houve a implosão desses partidos, tanto no Ocidente quanto no Leste, e como seria possível remediar esse fracasso histórico no atual desenvolvimento da história.
O que significa ser um marxista hoje?
Praticamente o mesmo que Marx enxergou nos seus dias. Mas, é claro, é preciso ter em mente as mudanças históricas e as novas circunstâncias. Marx enfatizou corretamente desde o princípio que, ao contrário do passado, uma característica crucial da análise socialista dos problemas é a confrontação com a autocrítica. Ser crítico ao que nos opomos é relativamente fácil. Isso porque é sempre mais fácil dizer "não" do que encontrar uma forma positiva que possa ser utilizada para que as mudanças necessárias possam ser realizadas.
É preciso um verdadeiro senso de proporção: compreender tanto fatores negativos – incluindo a sua parte mais difícil da autocrítica –, como as potencialidades positivas sobre as quais o progresso pode ser feito. Ambos aspectos são relevantes. É essencial reexaminar com uma intransigente autocrítica até os acontecimentos históricos mais problemáticos do século passado, em conjunto com suas então expectativas. Isso se quisermos superar as contradições do nosso lado no futuro.
A pressão do tempo e os atuais conflitos das situações históricas de hoje tendem a nos desviar desse caminho de ação. Mas o princípio orientador de combinar crítica com genuína autocrítica será sempre um requisito essencial.
Quando a União Soviética acabou, muitos previram o fracasso do marxismo. Depois, com a crise de 2008, muitos previram o fim do neoliberalismo e a volta das ideias de Marx. Do seu ponto de vista, o marxismo está em expansão ou não?
Você está certa. É preciso ser cuidadoso sobre conclusões apressadas e definitivas em qualquer direção. Geralmente elas são geradas mais por desejos do que por evidências históricas. O colapso do governo Gorbachev não resolveu nenhum dos problemas em questão na URSS. A fantasiosa tese sem sentido do "fim da história" de Fukuyama não faz a menor diferença.
Também não é possível descartar o neoliberalismo simplesmente pelo fato de que suas ideias e políticas, promovidas com agressivo triunfalismo, não são apenas perigosamente irracionais (haja visto sua atitude sobre a guerra), mas são absurdas as suas defesas do devaneio do imperialismo liberal. Sob certas condições, mesmo absurdos perigosos podem obter apoio massivo, como sabemos pela história.
A verdadeira questão principal é quais são as forças subjacentes e determinações que conduzem o povo a becos sem saída em diferentes direções. A mudança de humor que colocou "O Capital", de Marx, nas mesas de café da moda (não para estudo, mas para mostrar tema de conversa) não significa que as ideias marxistas estão agora avançando por todo o mundo. É inegável que o aprofundamento da crise que vivenciamos hoje está gerando protestos por todo o mundo.
Mas encontrar soluções sustentáveis para as causas que tendem a surgir em todos os lugares requer a elaboração de estratégias apropriadas e também correspondentes formas de organização que possam coincidir com a magnitude dos problemas em jogo.
E o que dizer sobre as ideias conservadoras? Elas estão ganhando mais adeptos?
Em certo sentido, elas estão inegavelmente ganhando mais adeptos, mesmo que não seja no terreno das ideias conservadoras sustentáveis. "Não mudar" é quase sempre muito mais fácil do que "mudar" uma forma estabelecida de comportamento. É a situação histórica real que induz as pessoas a irem numa direção em vez de outra. Mas a questão permanece: o curso adotado é sustentável? Há uma conhecida lei da física, no terreno da eletricidade, que diz que a corrente elétrica segue a linha da menor resistência.
Isso é verdadeiro também sobre a situação de muitos conflitos sociais que decidem, mesmo que temporariamente, em que direção um problema deve ser equacionado naquele momento dependendo da relação de forças (ou seja: a força de resistência à situação atual) e da capacidade de realização de alternativas adequadas. A viabilidade de longo prazo de um curso adotado em relação a outro não é de forma alguma garantia de melhor sucesso. Muitas vezes o oposto é o caso.
Na nossa situação histórica, as respostas viáveis de longo prazo podem requerer incomparáveis maiores esforços do que tentar seguir o "curso que deu certo no passado", em vez de encarar o desafio e o fardo de uma mudança estrutural radical. Mas os problemas são enormes, e a interação de forças na sociedade é sempre incomparavelmente mais complexa do que a direção da corrente elétrica. Por isso, é muito duvidoso que o que "deu certo" na linha conservadora da menor resistência possa funcionar no médio prazo, muito menos no longo prazo.
Qual seria uma boa definição para o período histórico atual?
Essa é a questão mais importante em nosso período histórico em que crises se manifestam em diferentes planos da nossa vida social. Se estamos preocupados em enfrentar uma solução historicamente sustentável para nossos graves problemas, entender a verdadeira natureza do debate das contradições é essencial. Conflitos e antagonismos históricos são passíveis somente a soluções do tempo histórico. É muito confuso falar de capitalismo como um sistema mundial.
O capitalismo abarca apenas um período do sistema do capital. Só ultimamente é que constitui um sistema mundial de fato, para além da sustentabilidade do próprio capitalismo. O capitalismo como um modo social de reprodução é caracterizado pela extração predominantemente econômica da mais valia do trabalho. Entretanto, há também outras formas de obter a acumulação do capital, como a já conhecida extração política do trabalho excedente, como foi feito na URSS e em outros lugares no passado.
Nesse sentido, é importante notar que a diferença fundamental entre as tradicionais crises cíclicas/conjunturais do passado, pertencendo à normalidade do capitalismo, e a crise estrutural do sistema do capital como um todo - que é o que define o atual período histórico. Por isso tento sempre enfatizar que nossa crise estrutural (que pode ser datada do final dos anos 1960 e se aprofundando desde então) necessita de mudanças estruturais para uma solução duradoura possível. E isso certamente não pode ser atingido com uma "linha de menor resistência".
Quais são as figuras mais importantes deste século 21 até agora?
Como sabemos, o século 21 é ainda muito jovem e muitas surpresas ainda estão por vir. Mas a figura política que teve o maior impacto na evolução histórica do século 21 – um impacto que deve perdurar e ser estendido – foi o presidente da Venezuela Hugo Chávez Frias, que morreu em março deste ano.
Claro, Fidel Castro também está muito ativo na primeira metade desta década, mas as raízes de seu grande impacto histórico estão nos anos 1950. Do lado conservador, se ainda estivesse vivo, eu não hesitaria em nomear o general De Gaulle. Ninguém se alinha à sua estatura histórica no lado conservador até agora neste século.
E qual o evento mais surpreendente do século 21?
É provavelmente a velocidade com que a China conseguiu se aproximar da economia norte-americana, alcançando agora o ponto em que ultrapassar os EUA como "motor do mundo" (como definem de forma complacente) é considerado factível em apenas alguns anos. Era previsível há muito tempo que isso iria acontecer tendo em vista o tamanho da população chinesa e a taxa de crescimento anual de sua economia. Mas muitos especialistas diziam que isso iria ocorrer daqui a muitas décadas no futuro.
No entanto, seria muito ingênuo imaginar que a China pode permanecer imune à crise estrutural do sistema do capital, simplesmente porque seu balanço financeiro é incomparavelmente mais saudável do que o norte-americano. Mesmo o superávit de milhões de milhões de dólares dos chineses pode evaporar-se de um dia para outro no meio de uma turbulência não muito distante no futuro. A crise estrutural, por sua própria natureza, obrigatoriamente afeta a humanidade como um todo. Nenhum país pode invocar imunidade a isso, nem mesmo a China.
As crises fazem parte do capitalismo. Qual sua avaliação sobre a que eclodiu há cinco anos. Quem ganhou e quem perdeu?
Parte do capitalismo? Sim e não! Sim, no sentido limitado de que a crise eclodiu com intensidade dramática nos países capitalistas mais poderosos do mundo, que se autodenominam "capitalistas avançados". Mas muito do seu "avanço" é construído não apenas sobre privilégios de exploração (no passado e no presente) das suas relações de poder (políticas e econômicas) em relação ao chamado "Terceiro Mundo", mas também sobre o catastrófico endividamento de sua realidade econômica.
Escrevi em 1987, num artigo publicado no Brasil em 1987, que o "verdadeiro problema da dívida" não era – como foi apontado na época – a dívida da América Latina, mas a dívida insolúvel dos EUA, que está fadada a acabar com uma colossal quebra, equivalente à magnitude de um terremoto econômico para o mundo todo. Há dois anos, quando dei minha última palestra no Brasil, apontei que a dívida dos EUA somava astronômicos 14,5 milhões de milhões de dólares, antecipando seu inexorável aumento. Hoje nos movemos para os 17 milhões de milhões de dólares, e mais e mais.
Qualquer um que imagine que isso é sustentável no futuro, ou que isso não vai afetar todo o mundo na Terra, quando o processo de crescimento inexorável do endividamento está fadado a levar a uma situação paralisante, deve viver num planeta diferente.
O capitalismo se fortaleceu ou se enfraqueceu com a crise?
As tradicionais crises cíclicas/conjunturais costumavam fortalecer o capitalismo no passado, já que eram eliminadas empresas capitalistas inviáveis. Assim, ocorria o que Schumpeter idealmente chamou de "destruição criativa". Os problemas são muito mais sérios hoje, porque a crise estrutural afeta até dimensão mais fundamental do controle social metabólico da humanidade, incluindo a natureza de forma perigosa. Assim, falar de "destruição criativa" nas condições atuais é totalmente autocomplacente. É muito mais apropriado descrever o que está acontecendo como uma "produção destrutiva".
A crise provocou mudanças políticas em muitos países. É possível discernir um movimento geral, mais para a esquerda, ou mais para a direita?
Até agora, mais para a direita do que para a esquerda. Todos os governos dos países capitalisticamente avançados – e não apenas eles – adotaram políticas que tentam resolver os problemas através da "austeridade", com cortes reais em salários, assim como nos padrões de vida já precários daqueles que são geralmente descritos como os "menos privilegiados".
E a linha de "menor resistência" ajuda na extensão, ou, ao menos, na tolerância das respostas institucionais conservadoras dominantes para a crise. Mas é muito duvidoso que essas políticas, que agora tendem a favorecer a direita, possam produzir soluções duradouras.
Como o sr. previu, a pobreza aumentou nos últimos anos, mesmo em países do coração do capitalismo. Nos EUA, a desigualdade aumentou. No Reino Unido, há um movimento para dar comida aos pobres, coisa que não ocorria desde a Segunda Guerra. O que está errado no capitalismo? É possível que o sistema não possa mais gerar crescimento suficiente para a humanidade?
Dar cesta básica para os muito pobres não é o único sinal visível desse aspecto da crise, nem essa situação está confinada os países capitalisticamente avançados, como o Reino Unido. Escrevi em "Para Além do Capital" (publicado em inglês em 1995) sobre a volta dos sopões. Nos últimos dois ou três anos podemos vê-los nas telas das TVs em escala maior no mais "avançado" (e privilegiado) país: os EUA. Certamente há algo de profundamente errado – e totalmente insustentável – na maneira pela qual o crescimento é perseguido sob o capitalismo.
Algumas formas, pela sua natureza cancerosa de crescimento, são proibitivas mesmo em termos de condições elementares de ecologia sustentável. Porque elas são manifestações flagrantes de "produção destrutiva". Ao mesmo tempo, tanta coisa é desperdiçada como "lixo rentável", enquanto incontáveis milhões, agora mesmo nos mais avançados países capitalisticamente, precisam suportar dificuldades extremas. Há alguns dias o ex-primeiro-ministro britânico John Major estava reclamando que neste Inverno muitas pessoas no Reino Unido terão que escolher entre comer e se aquecer. Em 1992, quando ainda era primeiro-ministro, ele disse com máxima autocomplacência: "O socialismo está morto; o capitalismo funciona". Eu disse, então: "Precisamos perguntar: o capitalismo funciona para quem e por quanto tempo?".
A escolha entre comer e se aquecer, que ele é agora forçado a reconhecer, não é exatamente a prova de quão bem o "capitalismo funciona". Na realidade, o único crescimento com significado é o que responde à necessidade humana. Crescimento destrutivo, incluindo o vasto complexo industrial militar – chame-o de "destruição criativa" – pode demonstrar apenas fracasso. O único crescimento historicamente sustentável para o futuro é aquele que fornece as mercadorias em resposta à necessidade humana e os recursos para aqueles que delas necessitam.
A crise ampliou o desemprego em muitas regiões e abalou o Estado de bem-estar social na Europa. Multidões foram às ruas protestar na Espanha, em Portugal, na França, na Inglaterra, na Grécia. Nos EUA, o Occupy Wall Street desapareceu. Qual deve ser o resultado desses movimentos? Há conexão entre eles? Os partidos de esquerda estão se beneficiando dessas ações ou não?
Em contraste com a idealização propagandística, o Estado do bem-estar social, na realidade, foi muito limitado a um punhado de países capitalistas. Mesmo lá foi construído sobre fundações frágeis. Não poderia ser nunca expandido ao restante do mundo, apesar da promoção acrítica das teorias do desenvolvimento da modernização, quase sempre estruturadas no quadro contraditório do sistema do capital. A verdadeira tendência de longo prazo apontava no sentido oposto ao do idealizado Estado do bem-estar.
A tendência objetivamente identificável foi caracterizada por mim já nos anos 1970 como a "equalização descendente da taxa de exploração diferencial". Isso inclui as diferenças marcantes nos níveis de ganhos por hora de trabalhadores para exatamente o mesmo trabalho na mesma corporação transnacional (por exemplo, nas linhas de montagem da Ford) na "metrópole" em relação aos países "periféricos".
Essa tendência continua a se aprofundar e ainda está longe da sua necessária amplitude. Os protestos em muitos países capitalistas são compreensíveis e devem se aprofundar no futuro. Eles surgem nesse arcabouço dessa tendência perversa de equalização de longo prazo. Compreensivelmente, os partidos que operam no enquadramento da política parlamentar não podem se beneficiar dos protestos. Isso porque eles tendem a acomodar seus objetivos a limites restritos das consequências negativas decorrentes do Estado do bem-estar.
Lukács dizia que os sindicatos eram a organização social civil mais importante. Isso continua valendo?
A visão de Lukács sobre esse ponto era muito influenciada pelo seu camarada e amigo Jenö Lander, que foi um líder sindical antes de se tornar liderança do mesmo grupo partidário no qual Lukács também desempenhou um papel de liderança.
Lukács está certo sobre a contínua importância dos sindicatos, com um acréscimo importante. Não foi ressaltado suficientemente que a potencialidade dos sindicatos foi – e continua sendo – afetada de forma muito ruim pela divisão do movimento da classe trabalhadora organizada entre o chamado "braço industrial" (sindicatos) e o "braço político" (partidos) do trabalho.
A potencialidade positiva dos sindicatos não acontecerá até que essa divisão prejudicial, que produz danos para ambos, seja corrigida significativamente.
Qual sua avaliação sobre a chamada Primavera Árabe? Ela acabou? Há ligação entre os movimentos no mundo árabe e os da Europa? Alguns enxergam uma nova disputa na região. Isso faz sentido?
O impacto da Primavera Árabe tendeu a ser muito exagerado na época em que testemunhamos os primeiros dramáticos acontecimentos. E, depois, sem razão, foram minimizados quando as manifestações de massa no Norte da África arrefeceram.
Até agora, nenhum dos problemas fundamentais foi resolvido em nenhum país em questão. Assim, os protestos vão continuar no futuro, focando também em algumas das graves contradições econômicas (que resultaram em protestos por comida no passado, relutantemente reconhecidos até por proeminentes publicações do "establishment," como a Economist, de Londres), e não apenas na sua dimensão militar e política.
Os levantes vão continuar, ganhando na mídia o nome da estação ligado a eles. Também não pode ser esquecido que alguns países europeus tiveram importantes interesses coloniais no Norte da África e no Oriente Médio. E há tentativas de reavivá-los, o que é bem visível hoje. Ninguém deve imaginar que o imperialismo está confinado no passado.
O Brasil também está passando por uma fase de muitos protestos. Como o sr. avalia esse processo? Há conexão com o que ocorre no mundo?
É impossível encontrar hoje um lugar no mundo onde não estejam ocorrendo sérios protestos sociais. Eles parecem estar focados em diferentes temas, criando a impressão superficial de não existe correlação entre eles. Mas isso é também um auto-engano. Muitas vezes, no passado, muitos desses protestos costumavam ser desconsiderados, tidos como movimentos de um tema específico, sem implicações na estabilidade geral da ordem social estabelecida. Nada pode ser mais distante da verdade.
É verdade que a grande variedade de protestos que testemunhamos hoje em diferentes partes do mundo não se enquadra nos canais e nos modos de ação da política tradicional. Mas seria tolice ter isso como prova de sua irrelevância. Ao contrário, eles apontam para razões muito mais profundas para os problemas e as contradições que se acumularam.
No momento, não é visível nenhuma estratégia de coalescência. Sua característica geral parece ser a de que estão testando os limites e procurando maneiras mais efetivas de articulação de suas preocupações. Estamos testemunhando um processo que ainda está em desdobramento e cujo significado deve ter grandes consequências no futuro.
Há quem enxergue a ação dos EUA nas manifestações pelo mundo, com o objetivo de desestabilizar governos. Isso faz algum sentido?
Isso é uma enorme e excessiva simplificação. Os EUA indubitavelmente estão na linha de frente de conflitos e conflagrações internacionais, por conta do seu impressionante poder dominante no hegemônico imperialismo global. Mas as causas são muito mais profundas do que o que possa ser resolvido por "desestabilização de governos".
Em alguns casos limitados isso pode acontecer, e, de fato, pode ser buscado com êxito pelas forças mais extremistas de organismos da administração norte-americana. Mas, há limite para tudo, até para o neoliberal mais radical e para o aventureirismo neoconservador.
Como a internet muda a luta política hoje?
Certamente a internet ajuda na comunicação e na coesão dos movimentos de protesto, como ficou evidenciado recentemente. Mas não deve ser esquecido que ela também dá os recursos para as forças do outro lado do confronto – dando assistência direta a vários Estados capitalistas.
De qualquer forma, para os dois lados a internet pode apenas fornecer ajuda subsidiária, não importando quão forte ela seja. Os problemas só podem ser resolvidos no próprio terreno em que surgiram. E isso diz respeito às determinações estruturais fundamentais de nossa ordem social.
Como o sr. analisa a relação entre capitalismo e democracia? São compatíveis?
Capitalismo e democracia não são incompatíveis, salvo em situações de crises extremas que trazem à tona os Hitlers e os Pinochets onde quer que tais crises eclodam – mesmo no Brasil no passado recente. A normalidade da produção capitalista é sustentada de forma melhor na ordem das regras formais democráticas de controle e regulação.
É por isso que regimes ditatoriais são insustentáveis no longo prazo e tendem a ser revertidos (mesmo a "miltonfreedmenização" do Chile de Pinochet) para modos políticos mais maleáveis de regulação formal democrática, dentro da moldura geral das trocas capitalistas.
Nos EUA, a direita radical colocou o país à beira do abismo por conta de uma tímida reforma no sistema de saúde. Isso trouxe riscos para os grandes negócios e as finanças. Como o sr. explica isso?
O sistema de saúde nos EUA é apenas uma parte da crise que testemunhamos. Fundamentalmente é inseparável da dívida astronômica de 17 milhões de milhões de dólares que já mencionei. Por enquanto, foi feita uma acomodação parcial entre democratas e republicanos, de forma que a nova data para o problema trilionário irresolvido ficou para o final de 2013, mas não deve trazer novamente um suspense internacional.
Mas podemos estar certos de que essa questão voltará com crescente severidade. 17 milhões de milhões de dólares significa tanto que não é possível encontrar um tapete de tamanho suficiente sob o qual se possa varrer e esconder essa quantia. Como costumeiramente é feito como forma de adiar a solução de problemas.
É possível dizer que o partido democrata foi mais para a direita e falhou em isolar a direita radical do partido republicano?
É difícil dizer qual dos dois partidos é mais à direita do que o outro. Mas ambos estão igualmente errados ao estarem tão à direita para serem capazes de enfrentar os graves problemas da sociedade norte-americana.
Como o sr. analisa a administração Obama e o estado da democracia nos EUA?
Obama prometeu muita coisa que nunca se materializou sob sua Presidência. Basta pensar em Guantánamo. Mas isso não é questão de um presidente em particular. Estruturas de poder não podem ser entendidas em termos personalizados.
Devemos lembrar a entrevista à televisão que o presidente democrata Jimmy Carter deu. Ele chorou, com lágrimas nos olhos, ao dizer que "o presidente não tem poder". De fato, ele conseguiu fazer mais desde que deixou a Presidência do que pode quando estava no comando. Até agora não vimos o presidente Obama chorar na televisão. Mas "há uma primeira vez para tudo", diz o ditado.
Os EUA espionam o mundo inteiro. Recentemente foi revelado um esquema de espionagem norte-americana no Brasil envolvendo interesses em petróleo e mineração. O que o Brasil deveria fazer para defender sua soberania?
Esse tema beira a insanidade. Espionam todos como potenciais inimigos, mesmo chefes de Estado de governos amigos. Há quem possa rir e achar que o problema não é tão sério. Mas precisamos lembrar que a defesa da soberania não pode estar confinada no domínio das leis e da política internacionais.
A legislação internacional é pateticamente fraca a esse respeito, sem mencionar as instituições que tratam globalmente disso. Vale lembrar o título de um livro de um proeminente advogado liberal, Philippe Sands. É "Lawless World: America and the Making and Breaking of Global Rules".
Essas questões são decididas pelas relações reais de poder. E, é claro, as forças preponderantes do capital global ficam com a parte do leão nesse processo de tomada de decisão. A soberania não pode ser protegida sem se atentar para esse lado crítico do problema, inseparável do poder preponderante das corporações gigantes do capital transnacional.
O poder dos EUA está em ascensão ou em queda?
Seria mais apropriado dizer que ele está estacionado, mas ainda é o mais dominante. As condições que explicam essa dominância estão presentes e são bem visíveis: vão do complexo industrial-militar, ao Banco Mundial, ao fato de o dólar ser a moeda de troca mundial. Nenhum outro país poderia sonhar em impor ao mundo uma dívida de 17 milhões de milhões de dólares. Mas uma dominância que repousa sobre esse tipo de fundações só pode ser instável.
Qual é a sua visão da China? Lá a pobreza diminuiu. Há socialismo?
As realizações da China no campo da produção incluindo o declínio da pobreza que você menciona têm sido monumentais. Mas há várias grandes perguntas para o futuro. Acima de tudo: por quanto tempo poderão ser mantidas as realizações na área produtiva sem que elas causem danos irreparáveis nos recursos gigantescos no domínio da ecologia?
Mais ainda: por quanto tempo poderão ser aceitas as impressionantes desigualdades entre os níveis mínimos de ganhos da população trabalhadora e a riqueza dos altamente privilegiados? O socialismo é inconcebível sem uma substantiva igualdade – também na China.
No passado, as disputas no interior do capitalismo provocaram guerras mundiais. Essa hipótese está no horizonte?
A opção pela Guerra foi usada no passado como parte da tentativa de resolver problemas entre partes em conflito sob as regras do capital. Foram duas guerras mundiais no século 20. Com as armas de destruição em massa, ficou impossível prever a compatibilidade dessa solução com as condições elementares da racionalidade. Mas há representantes da direita radical que não hesitariam em jogar com fogo e até abertamente advogam a plena legitimidade de jogar com fogo.
Muitos deles estão presentes em elevados postos da hierarquia política. Assim, o presidente [Bill] Clinton, por exemplo, declarou que "há apenas uma nação necessária, os EUA". Na mesma época, Robert Cooper (guru do primeiro-ministro britânico Tony Blair e conselheiro internacional de Xavier Solana) cantava louvores para o agressivo imperialismo liberal em seus escritos.
Da mesma forma, Richard Haass, diretor de planejamento político no departamento de Estado na gestão George W.Bush, insiste na necessidade de uma estratégia imperialista mais agressiva, escrevendo que a defensiva, não o imperialismo agressivo, é o maior perigo do interesse em reafirmar a hegemonia global dos EUA. Esta precisa ser defendida por quaisquer meios, mesmo com a guerra explícita.
A racionalidade é, obviamente, a grande dificuldade para implantar essas estratégias. Mas ninguém pode dizer que a possibilidade de até mesmo uma conflagração mundial possa agora ser excluída do horizonte histórico.
É possível dizer que a influência dos EUA na América Latina declinou na última década?
Sim. Falarei dos países relevantes nesse aspecto em seguida. E outros poderão se agregar a eles no futuro.
Como o sr. analisa as experiências de países como Venezuela (que fala em socialismo do século 21), Bolívia, Equador, Uruguai, Argentina?
Eles trilham por uma estrada muito difícil, na qual, indubitavelmente, muitos obstáculos serão erguidos no futuro pelo poder imperial dominante. Os EUA declararam abertamente que a América Latina era o seu quintal, reivindicando legitimidade para a sua dominação na região.
Como o sr. avalia os dez anos de PT no governo do Brasil?
Visitei o escritório do futuro presidente Lula em 1983. Tirei então uma foto do escritório onde se podia ler uma palavra iluminada: "Tiradentes". Eu fiquei pensando e continuo pensando hoje quanto tempo mais levará para que seja possível dizer que o escritório nacional de "Tiradentes" teve êxito em extrair os dentes infeccionados que causam tanta dor, mesmo num país com tantos recursos, em todos os sentidos, como o Brasil.
Qual é a sua visão sobre a relevância das ideias socialistas hoje?
Mencionei anteriormente que nossos problemas só podem encontrar soluções sustentáveis na sua época. Outras formas de enfrentá-los podem ser revertidas, como ocorreu no passado.
As ideias socialistas têm sido definidas desde o início como as que requerem uma época histórica para a sua concretização, embora os problemas imediatos de onde elas devem partir sejam muito dolorosos.
Em outras palavras, elas requerem não apenas os serviços urgentes de "Tiradentes", mas também prevenção para as doloridas infecções no longo prazo. As ideias socialistas são, portanto, mais relevantes hoje do que jamais foram.
Que países ou partidos representam o socialismo hoje?
Apenas alguns partidos muito pequenos proclamam sua fidelidade às ideias socialistas. E não há país que possa chamar a si mesmo como socialista.
No passado o sr. usou a expressão socialismo Mickey mouse para tratar de partidos que apenas brincavam com as ideias socialistas. Isso continua a ocorrer?
Não exatamente. O socialismo Mickey Mouse ficou mais fraco. O Partido Comunista Italiano que foi o partido de [Antonio] Gramsci e da Terceira Internacional primeiro se autoconverteu no que se chamam de democratas da esquerda.
Depois achou até a palavra esquerda muito comprometedora. Então se rebatizaram de partido dos democratas. Não há mais Mickey Mouse. É mais como um Popeye que perdeu o seu espinafre.
Quais são suas expectativas sobre o socialismo ou o comunismo no futuro? É um objetivo inatingível? E sobre o risco de barbárie? Existe?
Escrevi num livro também publicado no Brasil [ O século XXI: Socialismo ou barbárie ] que se tivesse que modificar as famosas palavras de Rosa Luxemburgo – "socialismo ou barbárie" – acrescentaria: "Barbárie se tivermos sorte". Porque a exterminação da humanidade é a ameaça que se desenrola. Enquanto falharmos em resolver nossos grandes problemas que se espalham por todas as dimensões da nossa existência e nas relações com a natureza, o perigo vai permanecer no nosso horizonte.
Onde deve estar um militante marxista hoje?
Contribuindo em tudo que ele ou ela possam fazer para buscar solução duradoura para esses grandes problemas.
Qual o seu plano para o futuro?
Continuar trabalhando em projetos de longo prazo que dizem respeito a todos nós.
17/Novembro/2013
[*] Repórter especial da Folha de S. Paulo.