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Escrito por Maria Clara Lucchetti Bingemer | |
O grande filósofo Martin Heidegger afirma que "a memória é o recolhimento do pensar fiel". Com isso, quer dizer que ela protege e guarda consigo tudo aquilo que é importante, que faz sentido, que se antepõe e antecede mesmo aos fatos como seu sentido. Tudo aquilo, enfim, que se propõe ao pensamento como conteúdo digno de ser refletido e recordado. Por isso, a memória é a condição de possibilidade da cultura, da civilização, de tudo que o ser humano constrói sobre a terra.
Em termos teológicos, a memória é o que permite não perder a Palavra revelada e acolhida na fé; a identidade do Deus pessoal que se revela, diz seu nome e mostra seu rosto e deseja ser reconhecido. Pela memória se narra e se conta, sempre de novo, a história dessa experiência, desse diálogo, dessa identidade. E tudo isso para fazer memória, para poder testemunhar para as novas gerações, para não deixar esquecer aquilo que fez e deve continuar fazendo a humanidade: viver, sofrer, rir, pensar, falar e conhecer.
Existe a memória da alegria, do amor vivido e realizado, dos momentos vividos juntos. Memória dos rostos sorridentes, das palavras trocadas, dos gestos de carinho sentidos sobre a pele que, tocada, se sente vibrar de vida e gozo. É recordação que ajuda a viver e concede doçura ao mais duro cotidiano.
Mas existe também a memória da dor, que arrasta para a visibilidade e a frente do proscênio a dor das vítimas diante dos poderes alimentados pelo princípio de domínio. A memória da dor não fala em termos abstratos, do "ser humano" ou da "humanidade".
Fala do outro concreto: do desespero das viúvas que se lançam impotentes sobre o caixão do companheiro; do choro das crianças órfãs que gritam sem entender por que seu pai jaz no chão perfurado por balas e granadas; dos rostos emagrecidos e famintos dos que vivem em continentes que as grandes potências riscaram dos mapas. Fala do holocausto nazista e dos expurgos stalinistas e de seus milhões de vítimas que têm nome, endereço, um número tatuado na pele do braço e uma estrela amarela costurada na roupa.
Quando há olvido dessa dor e desse sofrimento, começa um processo lento de desumanização de um povo ou de uma cultura. Por isso filósofos como Adorno, teólogos como Johann Baptist Metz, enfatizam a importância da dimensão subversiva da memória. É subversiva porque não deixa esquecer e traz as vítimas para o centro da atenção. É subversiva porque não deixa desaparecer na noite dos tempos o mal praticado, a justiça desprezada, e põe em evidência o processo de extinção da tradição que começa a crescer, ameaçando sufocar a dignidade humana e empurrar em direção à desumanidade.
A memória reclama uma razão anamnética, um modo de pensar que não reduza o sujeito a uma abstração conceitual sem referência à história e aos processos sociais. E assim reivindica o direito de ser uma mediação crítica para a prática humana. Seu instrumento é por excelência a narrativa. A narrativa é a morada da memória. Assim nasceu o cristianismo, quando os discípulos do nazareno narravam uma e outra vez a história daquele que passara pela vida fazendo o bem, que fora morto violenta e injustamente, mas que Deus ressuscitara e agora se encontrava vivo em meio a eles.
Assim acontece igualmente com as vítimas da história que, nomeadas e narradas pela memória, permanecem vivas e se mantém acesa a chama de suas vidas que clamam por justiça. Não se trata de um mero amor às tradições, mas o desejo de criar e formar uma comunidade de solidariedade com as vítimas da história, que interrompe as tentativas de calar e amordaçar a verdade que os sistemas totalitários de todos os tipos carregam em seu bojo. A memória resgata a narrativa ardente do passado e o atualiza para transformar o presente. Rememora acontecimentos com urgência de futuro, criando uma solidariedade que olha longe e vê além das aparências.
Um país sem memória vai pouco a pouco vendo desaparecer e esfumar-se sua identidade verdadeira. Abre espaço para retornos indesejados e varre para as sombras de um equivocado esquecimento presenças luminosas cujas vidas deveriam ser narradas uma e mais vezes, a fim de iluminar o caminho das novas gerações. Esperemos que o Brasil não entre nessa lista. Seria desastroso e indigno da grande nação que é.
Maria Clara Lucchetti Bingemer, teóloga, é professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
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