Caía a tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto me lembrou Carlitos...
A lua, tal qual a dona do bordel, pedia a cada estrela fria um brilho de aluguel
E nuvens! Lá no mata-borrão do céu chupavam manchas torturadas
Que sufoco! Louco!
O bêbado com chapéu-coco fazia irreverências mil prá noite do Brasil
Meu Brasil
Que sonha com a volta do irmão do Henfil com tanta gente que partiu num rabo de foguete
Chora a nossa Pátria mãe gentil, choram Marias e Clarisses no solo do Brasil...
Mas sei que uma dor assim pungente não há de ser inutilmente
A esperança... dança na corda bamba de sombrinha e em cada passo dessa linha pode se machucar...
Azar! A esperança equilibrista sabe que o show de todo artista tem que continuar...
(O bêbado e o equilibrista, de João Bosco e Aldir Blanc)
O operário aposentado Antonio Norival Soave, ex-militante da Ação
Popular (AP), morreu na madrugada de 5 de abril de 2011 no Hospital das
Clínicas de Porto Alegre e foi finalmente jogado para fora da ponte da
vida.
Seu corpo foi cremado. Mas os sonhos desse operário que viveu rebelde,
bêbado e equilibrista não serão queimados pelos antigos companheiros que
continuam acreditando na esperança, vermelha, socialista.
Ele estava com a vida por um fio, lutando e tentando ludibriar a morte.
Nos últimos sete meses, por conta de um tumor cancerígeno em um dos
pulmões, ele emagrecera mais de dez quilos e perdera toda a massa
muscular do lado esquerdo do corpo, pois o tumor inflamou, cresceu e
pressionava algumas vértebras junto à coluna cervical.
A biópsia comprovou que se tratava do tumor maligno carcinoma. E os
médicos que o atenderam disseram não ser recomendável cirurgia e sim
tratamento com rádio e quimioterapia, mas sem possibilidade de cura.
Quando ele ainda estava morando no ABC paulista falava com Soave por
telefone todos os dias e num domingo de setembro do ano passado fui até
Santo André, onde ele residia sozinho numa velha casa na rua Guadalupe
490, no bairro Parque das Nações, e constatei sua magreza esquelética,
sentindo muitas dores e com o braço esquerdo praticamente paralisado. Vi
um homem de 63 anos, mas que aparentava ter mais de 75, fragilizado
pela doença.
Na visita encontrei sua filha Semíramis e a neta Camile, de um ano e
meio de idade, que vieram de Porto Alegre dispostas a levar o pai e o
nono para a capital do Rio Grande do Sul e assim tentar tratá-lo da
terrível moléstia no Hospital das Clínicas gaúcho.
Por conta da sua aparência envelhecida, doente e pelas informações que
obtive com a filha e irmãs de Soave, fiquei com a certeza de que o
operário estava sem força física para prolongar o tempo que lhe foi
concedido nesta terra.
No Hospital das Clínicas de Porto Alegre ele foi tratado com
quimioterapia e radioterapia, até que os médicos identificaram que o
câncer se ramificara para o cérebro, onde surgiram outros dois tumores
malignos.
Um dos muitos personagens do livro que estou terminando de escrever
sobre a organização de esquerda Ação Popular, Antonio Norival Soave
nasceu em família operária, em Santo André, na região metropolitana
paulista, em 24 de agosto de 1947. É o único varão entre quatro irmãs –
Iracema, Aparecida, Tereza e Hilda -, filhos de José Soave e Roma
Carolina Fantanesi, já falecidos e descendentes de migrantes do norte da
Itália que vieram para o Brasil no final do século 19.
Em Santo André, a família Soave construiu os seus sonhos, primeiro
vendendo frutas, verduras e legumes em feiras livres, e depois com
macacões nas fábricas do ABC paulista, onde José Soave e Roma Carolina
tornaram-se operários e trabalharam quase quarenta anos nas caldeiras e
tecelagens de indústrias têxteis.
Da mesma forma que os pais operários, e morando em Santo André, no ABC
paulista, desde que nasceu, Antonio Norival Soave começou a trabalhar
ainda menino. Com apenas 11 anos já levantava às 3 horas da madrugada
para trabalhar na feira. Depois, já com 14 anos tornou-se operário na
linha de montagem da Pirelli, onde fazia moldes de colchões de espuma
látex. A empresa também produzia pneus, cabos, fios, entre outros
produtos.
Em 1 de abril de 1964 ele tinha 16 anos, quando o então presidente da
República, João Goulart, foi deposto pelo golpe civil-militar e
trabalhava na Cooperativa da Rhodia. Um ano depois foi demitido por
participar de greve por melhores salários, mas em seguida conseguiu
trabalho como preparador de máquinas na metalúrgica Cima (Companhia
Industrial de Materiais Automobilísticos) e se filiou no Sindicato dos
Metalúrgicos de Santo André.
A partir de 1966, além de atuar no movimento sindical, ele começou a
militar na organização política de esquerda Ação Popular, que também
atuava entre os operários no ABC paulista, com origem principalmente na
JUC (Juventude Universitária Católica), e tinha sido fundada em Salvador
(BA), em 1963.
A partir de 1966 é que ele foi entender melhor as coisas da política e a
mecânica da vida, suas leis e contradições. Ele viveu aquele momento do
Brasil da resistência ao golpe militar e em 1968 já estava trabalhando
como inspetor de qualidade na Chrysler do Brasil, em São Bernardo do
Campo, quando explodiram greves, manifestações estudantis e populares
contra a ditadura pelo país. Na Chrysler ele participou da organização
de paredes por melhores salários e melhores condições de trabalho. E
teve atuação destacada no Primeiro de Maio de 1968, na Praça da Sé.
Em Santo André, ele e seus camaradas começaram a organizar o primeiro de
maio de 1968 com uma passeata de 20 mil pessoas pelas ruas da cidade. E
depois alugaram vários ônibus para trazer os trabalhadores de São
Bernardo e de Santo André até a Praça da Sé, onde já estavam operários
de Osasco, de São Paulo e do interior paulista, além de muitos
estudantes.
Soave estava à frente dos operários da Mercedes Benz que romperam o
cerco dos agentes do DEOPS, na Praça da Sé, e ocuparam o palanque onde
estavam os representantes da ditadura, entre os quais o então governador
Abreu Sodré, seu Secretário de Finanças, Delfim Neto, e os pelegos das
diretorias do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo e da Federação dos
Metalúrgicos, que tinham preparado uma comemoração oficial e festiva
para o regime militar.
No momento em que os operários ocuparam o palanque, pelegos e
representantes da ditadura saíram correndo, o microfone foi entregue ao
líder sindical da oposição e militante da AP José Nanci, que discursou e
denunciou o regime militar, conclamando o povo a enfrentá-lo, exigindo
democracia e liberdades democráticas, liberdade de atuação sindical e o
fim do arrocho salarial.
Depois os operários saíram em passeata, com milhares de pessoas, até a
Praça da República, onde o líder metalúrgico de São Bernardo do Campo,
José Barbosa, militante da AP e recentemente falecido, também discursou,
denunciando a ditadura.
A partir de então José Nanci, o operário José Barbosa, além de outros
sindicalistas de oposição e muitos de militantes da AP passaram a ser
perseguidos pela polícia política da ditadura. Ainda assim eles
conseguiram realizar greves na Chrysler, na Mercedes Benz, na
Volkswagen, na Wyllis Overland do Brasil que hoje é Ford, e em algumas
outras indústrias menores do ABC, onde a AP tinha atuação.
A repressão não tardou a chegar. No final daquele ano de 1968, quando a
ditadura baixou o Ato Institucional número 5, centenas de operários
foram sendo demitidos e perseguidos no ABC, a exemplo do que aconteceu
com Antonio Norival Soave, em janeiro de 1969, quando foi dispensado da
Chrysler por causa das lutas que ele e outros operários estavam levando
adiante.
O cerco da ditadura aos movimentos sindical e popular ficou ainda pior
com a nova Lei de Segurança Nacional que entrou em vigor em setembro de
1969, e depois que Emílio Garrastazu Médici foi escolhido para ser o
novo general-presidente da ditadura desde dezembro daquele ano. Além
disso, em maio de 1970, a famigerada Operação Bandeirantes, de São
Paulo, foi legalizada e passou a se chamar DOI-CODI.
Organizados em várias capitais brasileiras, os DOI-CODI se tornaram uma
espécie de campos de concentração, de tortura e assassinatos praticados
pelo regime militar e, junto com o Centro de Informações da Aeronáutica
(CISA), Centro Nacional de Informações da Marinha (CENIMAR) e Serviço de
Informação do Exército (CIEX) e os DEEOPS, estabelecem um regime ainda
mais sanguinário contra os brasileiros, contra as organizações políticas
de esquerda e os movimentos de oposição à ditadura.
Era o tempo do "milagre econômico" dos militares, que precisavam de um
Brasil sem resistência à nova etapa de brutal acumulação capitalista no
país. Um "milagre" baseado no arrocho dos salários dos operários, com o
aviltamento de suas condições de vida, com a retenção ao máximo da
mais-valia do trabalho produzido.
Depois de demitido da Chrysler, Antonio Norival Soave fez testes de
inspetor de qualidade na Volkswagen, passou com as notas mais altas,
passou nos testes da Wyllis Overland do Brasil, mas não foi admitido em
nenhuma delas porque havia uma lista negra entre as indústrias, que
perseguiam os operários que ousavam lutar. Muitas vezes ele chegou a
entrar na fila de emprego da Mercedes Benz, mas o chefe do departamento
de pessoal já o tinha identificado e sempre o mandava sair.
Apesar de toda a repressão, o operário e seus companheiros continuaram a
lutar e o preço disso foi a perseguição e prisão de centenas e centenas
de pessoas pela polícia política da ditadura.
Antonio Norival Soave estava entre elas e a sua prisão ocorreu em 20 de
outubro de 1973, quando foi seqüestrado por agentes do DOI-CODI, sob
armas, por volta das 19 horas, na rua Oratório, no bairro Parque das
Nações, em Santo André, próximo à casa dos seus pais. Naquele dia tinha
passado na casa da família, que estava sendo vigiada e não sabia.
Depois de imobilizado pelos agentes do Exército, foi colocado num carro e
levado para a rua Tutóia, onde funcionava uma delegacia de polícia do
estado de São Paulo e utilizado pelo DOI-CODI, também chamado de OBAN -
Operação Bandeirantes -, que aplicava os meios mais hediondos de tortura
para obter informações e liquidar a oposição ao regime militar.
Lá chegando, ele foi colocado em um compartimento debaixo de uma escada
que servia de depósito dos cavaletes usados na tortura do pau-de-arara.
Pouco tempo depois, foi retirado desse compartimento por dois
torturadores com tapas e socos e levado até a sala de torturas.
Sob o comando do "Capitão Ubirajara", chefe da equipe B da OBAN, e com a
permissão do então major do Exército, Carlos Alberto Brilhante Ustra,
comandante do DOI-CODI e conhecido como "o carniceiro da rua Tutóia",
ele foi colocado na "cadeira do dragão", onde ficou levando choques
elétricos nos dedos e braços. Em seguida, foi despido e colocado no
pau-de-arara onde por toda a noite os torturadores intercalavam socos e
pontapés, batiam com palmatória nas nádegas e aplicavam choques
elétricos nos testículos, pênis, anus, dedos das mãos e dos pés, na
garganta, língua, orelhas e no interior dos ouvidos, quando perfuraram
seus tímpanos.
No início da manhã, após dois desmaios, ele foi medicado por um médico
do Exército e levado para uma sala totalmente vedada e com iluminação
por 24 horas, lá ficando completamente isolado durante uns 40 dias, e
saindo somente para a sala de torturas.
Depois desse período, foi levado para a cela X 1, onde estavam outros
presos, e os interrogatórios e tortura psicológica continuaram. Em 29 de
novembro de 1973, conduziram-no para prestar o depoimento formal no
DEOPS e no mesmo dia trazido de volta para o DOI CODI, onde continuou
incomunicável até os dez primeiros dias do mês de dezembro daquele ano,
quando a sua prisão foi finalmente admitida e os torturadores permitiram
que sua família o visitasse.
Na segunda quinzena de dezembro de 1973, foi transferido com outros
companheiros para o presídio do Hipódromo, onde continuou preso sem
assistência médica, o que agravou o problema nos ouvidos perfurados
durante as torturas.
Somente em março de 1974 é que a ditadura encaminhou para a 1ª Auditoria
da 2ª Circunscrição Judiciária Militar a denúncia contra ele e outros
presos, acusados e processados por militância na organização política de
esquerda Ação Popular Marxista Leninista do Brasil.
Em 9 de abril daquele ano foi qualificado e interrogado na Auditoria
Militar, quando denunciou as torturas a que foi submetido, denunciou o
desaparecimento e assassinatos dos seus companheiros Paulo Stuart
Wright, José Carlos da Mata Machado e Gildo Macedo Lacerda, militantes
da Ação Popular, mortos pela ditadura de Emílio Garrastazu Médici.
Em agosto de 1974, no julgamento do tribunal militar, ele foi condenado a
dois anos de prisão e, portanto, reconduzido ao presídio do Hipódromo
para cumprir a pena, de onde foi transferido depois para a Casa de
Detenção de São Paulo (Carandiru), e mais adiante para o Presídio da
Justiça Militar Federal (Romão Gomes), que funcionava no interior do
Quartel da Polícia Militar do Estado de São Paulo, no bairro Barro
Branco.
Finalmente, na segunda quinzena de maio de 1975, após julgamento no
Superior Tribunal Militar (STM), que em sessão realizada em 16 de maio
de 1975 decidiu reduzir sua pena para 16 meses de reclusão, Soave foi
libertado depois de passar 19 meses na prisão, incluindo o período em
que esteve encarcerado e torturado no DOI-CODI.
Quando saiu da cadeia Antonio Norival Soave estava com uma perda
acentuada de audição, problema que foi relatado por mim na época em
carta dirigida ao advogado Hélio Navarro, em 13 de maio de 1975, que
denunciou o fato no STM e entregou a carta ao Congresso Nacional.
Posteriormente, em 1978, trecho da carta foi publicado pela revista
IstoÉ.
Depois de sair da prisão, Soave se apaixonou e casou com Nilce Azevedo
Cardoso, também ex-militante da AP, e mudou para Porto Alegre (RS), onde
tiveram dois filhos, Semíramis e Paulo.
Nesse período, Soave combateu com o povo brasileiro na luta da anistia,
pela volta do irmão do Henfil com tanta gente que saiu... Ainda atuou na
organização e fundação do Partido dos Trabalhadores e trabalhou no
jornal O Companheiro.
Mas o seu casamento com Nilce fracassou e, embora continuassem amigos e
solidários, eles se separaram. Morando sozinho em Porto Alegre, com
problemas de saúde, incluindo a perda de muitos dentes, deprimido e
praticamente sem amigos, Soave voltou para Santo André em 1997, foi
morar com seu pai José, que estava muito doente e com o mal de
Alzheimer.
Em junho de 1998, o operário sofreu um acidente quando pintava a casa,
teve o globo ocular esquerdo perfurado por uma faca e desde então estava
completamente cego de um olho e enxergando apenas 40% com o olho
direito, assim mesmo com ajuda de óculos e lente de contato.
De lá para cá o pai José terminou morrendo, velhinho, mas sempre
amparado e bem cuidado pelo filho e filhas até o instante final.
Mais uma vez morando sozinho, embora sempre visitado por suas irmãs,
pelos filhos Semíramis, Paulo e a ex-mulher Nilce, Antonio Norival Soave
ou Ernesto e Bento (nomes pelos quais seus amigos da AP o conheceram)
teve pneumonia e outros graves problemas de saúde.
Ernesto Soave sobrevivia materialmente com muitas dificuldades e contava
apenas com aposentadoria de pouco mais de um salário mínimo. Seu plano
de saúde era o SUS, a exemplo do que acontece com os brasileiros pobres,
a imensa maioria da população do Brasil privatizado.
Na verdade, Ernesto Soave vivia igual ao Bêbado e o Equilibrista, da
canção de João Bosco, Aldir Blanc e eternizada na voz de Elis Regina.
Mas o homem não desistia da caminhada, solitária, embora aos tropeços,
desequilibrando-se e lutando para não ser jogado fora da ponte da vida.
Retraído e solitário, política, pessoal e socialmente, ele sentia falta
dos velhos amigos, antigos camaradas e não conseguiu fazer novas
amizades para compartilhar alegrias, tristezas e dores inerentes à vida.
Mas esse bêbado equilibrista permanecia embriagado pelos sonhos
socialistas e teimava com teimosia vermelha no direito de sonhar.
E continuou sonhando até o dia em que tombou, seu sangue coalhou, ele dormiu para sempre e nunca mais vai acordar.
Viverá na eternidade e despertará apenas no derradeiro sonho, quando
estará mais uma vez com o macacão sujo de graxa, caminhando pelas
fábricas do ABC paulista e lutando com a sua gente contra a espoliação
capitalista, pela revolução socialista e libertação da sua classe.
Nesse derradeiro sonho, com certeza, Ernesto Soave lembrará aos seus
antigos camaradas, e aos que virão depois de nós, que os revolucionários
socialistas não podem perder a ternura jamais. Mas ainda assim esse
operário, que lutou e viveu com a mesma brandura e suavidade que
carregava no sobrenome, dizia que os revolucionários de ontem e de hoje
não podem se esquecer de que a vida dos pobres na sociedade capitalista é
dura, pesada.
Por isso mesmo, homens e mulheres precisam sonhar. Mas com a condição de
acreditar nos seus sonhos, de examinar atentamente a vida real e de
confrontar seus sonhos com a realidade. Aí, então, dizia o operário
rebelde, bêbado e equilibrista, mulheres e homens conseguirão finalmente
realizar as suas fantasias.
Otto Filgueiras é jornalista.
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