quinta-feira, 1 de março de 2012

Camponeses lançam manifesto pela Reforma Agrária após encontro histórico


Da Página do MST

Os movimentos sociais do campo, que fizeram uma reunião no começo desta semana em Brasília, lançaram um manifesto em defesa da Reforma Agrária, do desenvolvimento rural com o fim das desigualdades, da produção e acesso a alimentos saudáveis, da agroecológica e da garantia e ampliação de direitos sociais aos trabalhadores rurais.
As entidades mais representativas do meio rural no Brasil consideraram a reunião "um momento histórico, um espaço qualificado, com dirigentes das principais organizações do campo que esperam a adesão e o compromisso com este processo".
No manifesto, foi criticado também o modelo de produção de commodities agrícolas baseado em latifúndios, na expulsão das famílias do campo e nos agrotóxicos.
"O agronegócio representa um pacto de poder das classes sociais hegemônicas, com forte apoio do Estado Brasileiro, pautado na financeirização e na acumulação de capital, na mercantilização dos bens da natureza, gerando concentração e estrangeirização da terra, contaminação dos alimentos por agrotóxicos, destruição ambiental, exclusão e violência no campo, e a criminalização dos movimentos, lideranças e lutas sociais", afirmam no manifesto.
O documento é assinado pelo MST, Via Campesina, Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (Contag) e a Federação dos Trabalhadores da Agricultura Familiar (Fetraf), entre outras entidades (veja a lista no final).
Os movimentos sociais prometem "um processo de luta unificada em defesa da Reforma Agrária, dos direitos territoriais e da produção de alimentos saudáveis".
Na tarde desta terça-feira (28/2), os movimentos apresentam o manifesto à sociedade em ato político no plenário 15 da Câmara dos Deputados, em Brasília.
Abaixo, leia a versão integral do manifesto.

MANIFESTO DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS DO CAMPO

As entidades APIB, CÁRITAS, CIMI, CPT, CONTAG, FETRAF, MAB, MCP, MMC, MPA e MST, presentes no Seminário Nacional de Organizações Sociais do Campo, realizado em Brasília, nos dias 27 e 28 de fevereiro de 2012, deliberaram pela construção e realização de um processo de luta unificada em defesa da Reforma Agrária, dos direitos territoriais e da produção de alimentos saudáveis.
Considerando:
1)    O aprofundamento do capitalismo dependente no meio rural, baseado na expansão do agronegócio, produz impactos negativos na vida dos povos do campo, das florestas e das águas, impedindo o cumprimento da função socioambiental da terra e a realização da reforma agrária, promovendo a exclusão e a violência, impactando negativamente também nas cidades, agravando a dependência externa e a degradação dos recursos naturais (primarização).
2)    O Brasil vive um processo de reprimarização da economia, baseada na produção e exportação de commodities agrícolas e não agrícolas (mineração), que é incapaz de financiar e promover um desenvolvimento sustentável e solidário e satisfazer as necessidades do povo brasileiro.
3)    O agronegócio representa um pacto de poder das classes sociais hegemônicas, com forte apoio do Estado Brasileiro, pautado na financeirização e na acumulação de capital, na mercantilização dos bens da natureza, gerando concentração e estrangeirização da terra, contaminação dos alimentos por agrotóxicos, destruição ambiental, exclusão e violência no campo, e a criminalização dos movimentos, lideranças e lutas sociais.
4)    A crise atual é sistêmica e planetária e, em situações de crise, o capital busca saídas clássicas que afetam ainda mais os trabalhadores e trabalhadoras com o aumento da exploração da força de trabalho (inclusive com trabalho escravo), super exploração e concentração dos bens e recursos naturais (reprimarização), flexibilização de direitos e investimento em tecnologia excludente e predatória.
5)    Na atual situação de crise, o Brasil, como um país rico em terra, água, bens naturais e biodiversidade, atrai o capital especulativo e agroexportador, acirrando os impactos negativos sobre os territórios e populações indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais e camponesas. Externamente, o Brasil pode se tornar alavanca do projeto neocolonizador, expandindo este modelo para outros países, especialmente na América Latina e África.
6)    O pensamento neodesenvolvimentista centrado na produção e no lucro, defendido pela direita e por setores de esquerda, exclui e trata como empecilho povos indígenas, quilombolas e camponeses. A opção do governo brasileiro por um projeto neodesenvolvimentista, centrado em grandes projetos e na exportação de commodities, agrava a situação de exclusão e de violência. Consequentemente não atende as pautas estruturais e não coloca a reforma agrária no centro da agenda política, gerando forte insatisfação das organizações sociais do campo, apesar de pequenos avanços em questões periféricas.
Estas são as razões centrais que levaram as organizações sociais do campo a se unirem em um processo nacional de luta articulada. Mesmo reconhecendo a diversidade política, estas compreendem a importância da construção da unidade, feita sobre as bases da sabedoria, da maturidade e do respeito às diferenças, buscando conquistas concretas para os povos do campo, das florestas e das águas.
Neste sentido nós, organizações do campo, lutaremos por um desenvolvimento com sustentabilidade e focado na soberania alimentar e territorial, a partir de quatro eixos centrais:
a)    Reforma Agrária ampla e de qualidade, garantia dos direitos territoriais dos povos indígenas e quilombolas e comunidades tradicionais: terra como meio de vida e afirmação da identidade sociocultural dos povos, combate à estrangeirização das terras e estabelecimento do limite de propriedade da terra no Brasil.
b)    Desenvolvimento rural com distribuição de renda e riqueza e o fim das desigualdades;
c)    Produção e acesso a alimentos saudáveis e conservação ambiental, estabelecendo processos que assegurem a transição para agroecológica.
d)    Garantia e ampliação de direitos sociais e culturais que permitam a qualidade de vida, inclusive a sucessão rural e permanência da juventude no campo.
Este é um momento histórico, um espaço qualificado, com dirigentes das principais organizações do campo que esperam a adesão e o compromisso com este processo por outras entidades e movimentos sociais, setores do governo, parlamentares, personalidades e sociedade em geral, uma vez que a agenda que nos une é uma agenda de interesse de todos e todas.

Brasília, 28 de fevereiro de 2012.
APIB – Associação dos Povos Indígenas do Brasil   
CÁRITAS Brasileira
CIMI – Conselho Indigenista Missionário   
CPT – Comissão Pastoral da Terra
CONTAG – Confederação Nacional de Trabalhadores na Agricultura   
FETRAF – Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura Familiar
MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens    
MCP – Movimento Camponês Popular
MMC – Movimento de Mulheres Camponesas   
MPA – Movimento dos Pequenos Agricultores
MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra   
Via Campesina Brasil

Tariq Ali: “A maioria do povo sírio quer que o clã Assad saia”


O escritor e ativista diz que uma intervenção externa na Síria seria desastrosa e conduziria a um enorme banho de sangue. Afirma que China e Rússia estão numa posição forte para conseguir uma mudança sem ações violentas. 
 
Uma intervenção seria desastrosa e conduziria a um enorme banho de sangue, muito pior do que o da Líbia, diz Tariq Ali. Foto de The Stop the War Coalition.

Transcrição da entrevista de Tariq Ali à Russia Today em 15 de fevereiro.
 
O presidente Assad parece estar agarrado ao poder na Síria. Acha que existe alguma hipótese de que ele saia num futuro próximo?

Parece improvável que saia de vontade própria. Precisa ser empurrado. O povo sírio evidentemente está a fazer os possíveis, dentro do país. O que é mais perigoso são as pressões externas, especialmente em Istambul e da NATO para tentar organizar uma intervenção. Isso seria desastroso e conduziria a um enorme banho de sangue. Muito, muito pior do que aconteceu na Líbia.
A melhor forma seria a pressão externa de países que não são vistos como hostis à Síria, como a Rússia e a China, e outros. E é preciso que a pressão se mantenha internamente. É preciso dizer a Assad, em termos claros, que ele tem de ir embora, que o pai dele derramou muito sangue na Síria, ele está a fazer o mesmo, que esta família é inaceitável e que este país precisa de um governo nacional não sectário que prepare uma nova Constituição.
 
Os líderes árabes estão a defender o envio para a Síria de uma força de manutenção de paz da Liga Árabe e da ONU. O presidente Assad já rejeitou esta proposta. O que pensa da ideia?

Não penso que seja uma boa ideia o envio de qualquer chamada “força de manutenção de paz”. Primeiro, temos de ver o que é a Liga Árabe. A Liga Árabe é essencialmente uma organização moribunda que é trazida à vida quando o Ocidente precisa dela. Não teve qualquer papel ativo, nos últimos 25 anos, em qualquer sentido positivo na região. Não impediu a guerra no Iraque, apoiou a guerra na Líbia, e está provavelmente a ser usada como representante para tentar empurrar tropas estrangeiras para uma intervenção na Síria, à qual me oponho totalmente. Se há coisa que acho que a Síria não precisa é de exércitos estrangeiros. Vimos o que isso significou no Iraque, vimos o que aconteceu na Líbia.
 
Mas o envolvimento da Liga Árabe, que é uma espécie de grupo regional, não seria melhor que o envolvimento da ONU ou da NATO, que são organizações externas?

É bom ter observadores, desde que façam o seu trabalho corretamente. Mas tropas estrangeiras? Quem serão as tropas estrangeiras enviadas pela Liga árabe? Sauditas ou qataris? São esses os grandes exemplos de democracia na região? Ridículo, não faz qualquer sentido. Penso que é preciso manter a pressão externa sobre Assad. Uma pressão externa não violenta que lhe diga que tem de se ir embora. Penso que chineses e russos estão agora em posição de força para fazer isto, dizendo: nós efetivamente evitámos uma intervenção na Síria, mas Assad tem de ir embora. E pôr de pé um governo nacional.
Os outros que evidentemente são capazes de pressionar Assad são os iranianos e o Hezbollah. Todas estas forças deveriam agora ver que é impossível a Síria continuar a ser governada por esta família, a clique sectária que governa. Quanto mais cedo saírem, melhor para a Síria.
 
Em termos de forças externas, a Liga Árabe decidiu suspender todas as relações económicas e políticas com o governo sírio. Acha que isso terá algum efeito prático?

Provavelmente não. Porque outros países não o vão fazer, os iranianos não vão fazer o mesmo e são um importante parceiro comercial, e o Líbano também não creio que se vá envolver a esse nível. Assim, não vai ter grande impacto. Acho que a única língua que entende o clã Assad e os militares em volta dele é uma postura muito firme da China e da Rússia. Creio que eles estão numa posição muito forte para conseguir uma mudança sem ações violentas.
 
Vê a Síria a ficar crescentemente isolada na região, e que efeito terá esse isolamento no Irão?

Acho que estão a ficar isolados. Acho que os iranianos são um estado independente, um dos poucos estados soberanos na região e que sabem cuidar de si próprios. Não creio que a queda de Assad afetasse o Irão, porque seria do interesse do governo sírio, se fosse democrático e representativo, manter boas relações com todos estes países.
Eu tenho de dizer que quando olhamos para o que o Ocidente fez em relação ao levante e à crise no Iémene, onde a matança continua, o que estão a fazer na Síria não se sustenta. O ex-presidente iemenita está a ter tratamento médico nos Estados Unidos. Esta duplicidade de critérios levanta muitas suspeitas sobre os motivos do Ocidente. E os principais países a pressionar por uma intervenção externa na Síria são a Arábia Saudita e o Qatar. Essencialmente, eles gostariam de ter uma versão síria da Irmandade Muçulmana que governasse o país. É esse o novo arranjo para a região árabe, e os Estados Unidos vão segui-lo, como fizeram no passado.
 
Diz que a China e a Rússia estão agora num posição negocial muito forte. Contudo, a visita do ministro Lavrov à Síria parece não ter tido quaisquer efeitos até agora.

Penso que se continuar assim, e o clã e a família Assad se recusarem a sair e a abandonar a sua mão de ferro sobre o país, tarde ou cedo alguma coisa desastrosa vai acontecer. Possivelmente incluirá alguma forma de intervenção externa. E como vai isso acabar? Não creio que queiram acabar como Khadafi ou Saddam Hussein, linchados pela multidão ou por tropas estrangeiras. Esse é o futuro que têm pela frente, não há outro.
 
Vamos falar da complexidade de forças presentes na Síria neste momento. Tivemos relatos de que há forças britânicas e do Qatar a operar clandestinamente na Síria. Pensa que possa ser verdade?

É perfeitamente possível. As forças britânicas e do Qatar atuaram clandestinamente na Líbia, muito antes de isso se ter tornado público, agora sabemos. Isto é o que eles fazem, intervir nestes conflitos para desviarem-nos na direção que pretendem. Não tenho provas disso, mas não me surpreenderia nada que o estivessem a fazer.
 
E quanto aos iranianos? Houve relatos, que foram desmentidos, de que haveria 15 mil soldados iranianos a caminho da Síria.

Isso não sei. Creio que diante das pressões que o Irão está a sofrer, de momento, do Ocidente, com a União Europeia a impor sanções, os americanos a fazer ameaças e os israelitas a querer bombardear, seria muito estranho que estivessem a enviar tropas para fora do país. Mas não temos provas, nem das tropas britânicas e qataris, nem das iranianas. Se eu digo que uma é possível, a outra também pode ser possível, ambas seriam loucura.
 
Vimos a violência a espalhar-se de Homs para uma segunda cidade, Alepo, e os Estados Unidos dizem que a Al Qaida está envolvida nisso. Se a Síria está substancialmente infiltrada por terroristas, que pensa que vai acontecer? Dará ao Ocidente um pretexto para promover algum tipo de operação militar no país? Ou, pelo outro lado, deixarão os terroristas fazer o trabalho sujo de derrubar o presidente Assad?

Podem fazer isso, a Al Qaida é atualmente muito fraca, é usada essencialmente para assustar as crianças em casa. Tem muito pouca força militar. O seu líder, Zawahiri, tornou pública uma declaração dizendo que ele é parte da luta para derrubar Assad. Mas têm muito pouca força e não creio que devamos levar a muito sério a conversa da Al Qaida ou exagerar a ameaça que ela representa. O facto é que a esmagadora maioria do povo sírio quer que a família Assad saia. Essa é a questão-chave que devemos compreender e que ele tem de compreender.
 
Muitos comentadores, referindo-se à Primavera Árabe em geral, têm dito que a violência e a incerteza dos resultados vão permitir que a Irmandade Muçulmana apareça como a única organização que tem capacidade de tirar vantagem dela. Teme que isso aconteça na Síria?

Bem, eu não os apoio politicamente, não creio que seja do interesse da Síria ter um governo islamista, moderado ou extremista. Parece que o padrão agora é dizer que o modelo turco, o do governo turco, é o melhor modelo para o mundo árabe. Discordo fortemente disto. Aliás, nem creio que seja um bom modelo para a Turquia. Mas o facto é que se for o único poder no país e houver eleições, vai chegar ao poder, como aconteceu na Tunísia e no Egito. Temos de lidar com isso. Vejo estes grupos como partidos muçulmanos semelhantes à democracia cristã, organizações conservadoras socialmente, mas perfeitamente satisfeitas por seguir as tendências económicas que dominam o Ocidente e por manter relações com os Estados Unidos. Fizeram-no antes – os turcos são um forte membro da NATO – e estes países provavelmente seguirão o mesmo caminho.
Agora se isto é o que realmente quer o povo árabe, isso é uma questão muito diferente.
 
Isso faz parecer a Irmandade Muçulmana uma alternativa benigna. Acha que as minorias cristãs e outras têm algo a temer deles?

Há sempre no interior dos partidos islâmicos moderados uma corrente que acha que não podendo oferecer ao povo o que ele realmente quer, que é um padrão de vida decente, uma rede de segurança social, desviam as atenções atacando minorias. A Irmandade Muçulmana já o fez em relação aos coptas no Egito e não é impossível que, se aparecerem na Síria, venham a fazer o mesmo. Isso não é de forma alguma uma coisa boa, mas temos de esperar e ver. Se for o que realmente a maioria do povo quer, então vai acabar por acontecer.
 
Transcrição e tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Acampamento de sem-tetos revela desigualdade social nos EUA

Glauber Ataide no PORTAL A VERDADE

Acampamento de sem-tetos revela desigualdade social nos EUA 
“A maioria das pessoas pensa que alguém se torna sem-teto porque é viciado em drogas ou em álcool. Não é verdade. Elas se tornam isso ou pioram depois que se tornam sem-tetos.” (Alanna, 23 anos, norte-americana sem-teto)

Situado em região arborizada, fora da vista da rodovia principal da cidade de Ann Arbor, Michigan, o acampamento Take Notice é sintomático do agravamento das desigualdades sociais nos EUA e do completo colapso do sonho americano. As histórias de seus habitantes é um retrato devastador da insegurança social encontrada por milhões de pessoas nos EUA.
Rick, 50, por exemplo, explicou à equipe de reportagem do World Socialist Web Site que visitou o local que ele era um bombeiro hidráulico até 2008, quando o setor da construção civil quebrou. Depois da devastadora queda de sua renda ele foi preso por não conseguir pagar pensão alimentícia de seus dois filhos em 2010. Em agosto, sem perspectiva de trabalho e não querendo ser um peso para sua família, ele decidiu se mudar para Ann Arbor e viver no acampamento. Ele iniciou sua viagem de 241 km de bicicleta, mas depois que ela quebrou teve que ir pegando caronas até chegar ao seu destino.
Jocelyn, 40, era babá e cuidadora de idosos até ser gravemente ferida em um acidente de carro. Ela tentou voltar ao mercado de trabalho através de um programa chamado WorkFirst, mas diz: “tantos precisam mas tão poucos conseguem. Um único deslize pode ser fatal”. O estigma de ter uma passagem por assalto à mão armada, ela explica, pode impedir alguém de conseguir até aquelas vagas que exigem as mais baixas qualificações técnicas.
Suas dificuldades se multiplicaram quando o apartamento de quatro quartos que ela possuía com seu marido em Romulus, Michigan, foi tomado. Seu relacionamento com seu parceiro, um veterano com múltiplas escleroses, rapidamente se deteriorou. “Tudo foi pelo ralo”, ela diz. “Perdi minha casa. Fui separada por causa de finanças, estresse e contas. Então todos nos separamos e perdi minha família.”
Acampamento de sem-tetos revela desigualdade social nos EUA
Ao mostrar o acampamento à equipe de reportagem, Jocelyn descreveu como é viver sem água encanada e sem banheiros. “Eu não fui ao banheiro por cinco dias quando cheguei aqui e adoeci por causa disso”. Ela disse que tinha medo de dormir porque os tanques de propano usados para manter as barracas aquecidas podem explodir em um incêndio. Os moradores guardam estes tanques dentro das barracas ao invés do lado de fora porque eles podem ser roubados.
Alanna, 23, que está no acampamento há duas semanas, diz que ela e seu noivo vivam em outro acampamento, em uma barraca com muito mofo. “Ficávamos coçando o rosto todas as noites. Estou tossindo desde outubro.”
O acampamento conta também com pouca comida. Segundo Jocelyn, “comida é algo difícil por aqui. As igrejas trazem alguma coisa mas a gente não tem conseguido muito.”
“Isso é ridículo”, diz Alanna. “Quando estava na escola ninguém me ensinou como fazer finanças ou conseguir moradia. Eles dão aulas de educação sexual mas não de como viver. Eu formei no segundo grau e tentei uma faculdade, mas tive um problema em minha coluna e não posso me rematricular porque devo $1.200 dólares e não consigo financiamento. Eu não tenho passagens pela polícia. Poderia estar no topo do mundo se tivesse oportunidade!”
“Se você precisa de experiência para arranjar um emprego, mas não pode arranjar um emprego para ganhar experiência, então o que você pode fazer? Eu gostaria de voltar para a escola. Quero ser uma cosmetologista, uma assistente social ou uma enfermeira, mas estou encurralada e não sei como sair.”
Acampamento de sem-tetos revela desigualdade social nos EUA
Grit é um outro morador do acampamento, de idade avançada. Ele agora trabalha como vendedor ambulante do Groundcover News, um jornal relativamente novo da cidade de Ann Arbor que publica histórias de e sobre os sem-tetos. Ex-funcionário da Ford, Grit diz que sua mãe, seu pai, irmãs e tios trabalharam todos na Ford, e que pode mostrar os contra-cheques de sua família remontando à década de 1930.
Jocelyn disse que ficou surpresa ao chegar ao acampamento porque muitos dos sem-tetos são bem mais jovens e bem aparentados do que o velho estereótipo do “vagabundo”. Alanna concordou e disse: “A maioria das pessoas pensa que alguém se torna sem-teto porque é viciado em drogas ou em álcool. Não é verdade. Elas se tornam isso ou pioram depois que se tornam sem-tetos.”
Uma grande contradição é que a cidade de Ann Arbor, que abriga este acampamento, tem uma renda média de $52.711,00 dólares anuais, ligeiramente acima da média nacional. Na cidade também se encontra a Universidade de Michigan, que está listada entre as 20 melhores do mundo. Neste mês a cidade foi escolhida pela revista Kiplinger’s Personal Finance como “A melhor cidade para solteiros no país”. Além disso, ela é com frequência listada em listas do tipo “melhores de”, e foi recentemente incluída nas seguintes: “Melhores cidades na América para se encontrar emprego”, “10 cidades mais escolarizadas”, “10 lugares mais acessíveis para se viver” e “10 melhores lugares para se ter família”. Ao mesmo tempo, o número de pessoas que caíram abaixo da linha da pobreza no censo de 2010 foi de 20%, que são seis pontos percentuais acima da média nacional.

A filosofia da revolução de Che Guevara



Por Eduardo Mancuso no ALDEIA GAULESA
 
Apropriar-nos de forma criativa da herança guevarista, resgatando a atualidade que esta conserva frente às grandes mudanças globais e as metamorfoses sociais, políticas e culturais que marcaram a passagem do século XX ao XXI, é um desafio bastante estimulante. Nas palavras do próprio Che, “se novos fatos determinam novos conceitos, não se tirará nunca sua parte de verdade daqueles que tenham passado.”

Muitos não percebem a atualidade do pensamento guevarista. Porém, quando nos debruçamos sobre ele, descobrimos que muitas das mudanças ocorridas nas últimas décadas, encontram respostas no legado do Che, tanto programáticas quanto estratégicas. A “filosofia da revolução” do Che é, nos dias de hoje, absolutamente contemporânea, tão vívida como a permanência icônica e universal de sua imagem.

“A real capacidade de um revolucionário se mede por saber encontrar táticas revolucionárias adequadas em cada mudança de situação, em ter presente todas as táticas e explorá-las ao máximo..”.

O intelectual cubano Luiz Salazar propõe uma tese muito interessante. Diz ele que voltar à obra do Che nos permite ver no significado de suas utopias as “verdades do futuro” (Vitor Hugo). Defende que podemos encontrar no acervo político do Che, novas “soluções revolucionárias”.

O socialismo para nós continua sendo pré-condição para que a humanidade possa constituir uma nova civilização, alternativa a barbárie moderna. E o Che ensinava: “Para construir o comunismo simultaneamente com a base material há que construir o homem novo.” Não devemos esquecer, também, que para o Che, “o dever de todo o revolucionário é fazer a revolução”, lutar por isso persistentemente. Para o Che, a construção do socialismo exige uma radical revolução democrática, participativa, além de uma grande revolução cultural. 

A práxis revolucionária guevarista buscou sempre recuperar a essência subversiva dos clássicos do marxismo. Por exemplo, o maior marxista latino-americano da primeira metade do século XX, o peruano José Carlos Mariátegui, escrevia em 1928: “Contra uma América do Norte capitalista, plutocrática, imperialista, só é possível opor de maneira eficaz uma América, latina ou ibérica, socialista”. Quatro décadas mais tarde, Che Guevara retoma esta bandeira socialista e antiimperialista, concluindo sua famosa “Mensagem a Tricontinental” afirmando: “ou revolução socialista ou caricatura de revolução”!

Mas qual socialismo o Che defendia? Cada vez mais crítico nos seus últimos anos em relação às experiências socialistas “reais”, européia e chinesa, Guevara buscava um novo caminho para Cuba e para nossa América Latina. Para enfrentar esse desafio ele também coincidia com as idéias de Mariátegui, que havia declarado: “Não queremos, certamente, que o socialismo seja nas Américas calco e cópia. Deve ser criação heróica. Temos que dar vida, com nossa própria realidade, com nossa própria linguagem, ao socialismo indo-americano.”

Boa parte da reflexão do Che e de sua prática política, sobretudo nos anos 60, tinha como meta sair do impasse que a caricatura de socialismo burocrático do modelo soviético impunha aos povos na América Latina e no Terceiro Mundo.

Segundo Michael Lowy, “o motor essencial desta busca de um novo caminho – mais além de questões econômicas específicas – é a convicção de que o socialismo não tem sentido – e não pode triunfar – se não representa um projeto de civilização, uma ética social, um modelo de sociedade totalmente antagônico aos valores do individualismo mesquinho, do egoísmo feroz, da competição, da guerra de todos contra todos da civilização capitalista”.

Como lembra Lowy, o Che tinha perfeitamente claro que a construção do socialismo é inseparável de certos valores éticos. Na famosa entrevista de Guevara a um jornalista francês em julho de 1963, ele insistia: “o socialismo econômico sem a moral comunista não me interessa. Lutamos contra a miséria, mas ao mesmo tempo contra a alienação. (...) Se o comunismo passa por cima dos fatos de consciência, pode ser um modo de distribuição, mas não será mais uma moral revolucionária”. O Che sabia que se o socialismo tentasse competir com o capitalismo no terreno do adversário, o terreno do produtivismo e do consumismo, utilizando suas próprias armas – o mercado e a concorrência – estava condenado ao fracasso.

O socialismo para o Che era o projeto histórico de uma nova sociedade, baseada em valores de igualdade, solidariedade, livre discussão e ampla participação popular. Lowy salienta que tanto suas críticas crescentes ao modelo soviético quanto sua prática como dirigente político e sua reflexão teórica sobre a experiência cubana são inspirados por esta utopia revolucionária. Em seus escritos econômicos a questão da planificação socialista ocupa um lugar central, e nos seus últimos anos a concepção de democracia socialista na planificação começa a aparecer como essencial. 

Quando critica o Manual de Economia Política da Academia de Ciências da URSS, Che Guevara avança um princípio democrático fundamental, capaz de colocar de cabelos em pé os burocratas stalinistas (e de outros tipos também): numa verdadeira planificação socialista é o próprio povo, os trabalhadores, as massas que devem tomar as grandes decisões econômicas.

Contra a monopolização das decisões por tecnocratas ou burocratas “comunistas”, o Che insistia na necessidade de uma verdadeira participação popular: os grandes problemas sociais e econômicos de uma sociedade são políticos e devem ser objeto de debate e decisão democrática pela maioria. Fica claro que a reflexão de Guevara sobre o socialismo não se limita unicamente a Cuba ou América Latina: ela é universal, mundial, internacionalista. Para o Che o verdadeiro socialista é aquele que considera sempre os grandes problemas da humanidade como seus problemas, que não se sente alheio a eles, muito pelo contrário.

Numa bela síntese apresentada por Michael Lowy no Fórum Social Mundial de Porto Alegre encontramos o “espírito” da filosofia da revolução guevarista : “O internacionalismo para Guevara – ao mesmo tempo modo de vida, fé profana, imperativo categórico e pátria espiritual – era inseparável da idéia mesmo de socialismo, enquanto humanismo revolucionário, enquanto emancipação dos explorados e oprimidos do mundo inteiro, numa luta sem tréguas nem fronteiras com o imperialismo e a ditadura do capital.” 

E segundo Lowy, os herdeiros do Che, a esquerda marxista e revolucionária, nas últimas décadas, “aprendemos a enriquecer nossa idéia do socialismo com a contribuição do movimento das mulheres, dos movimentos ecológicos, das lutas de negros e indígenas contra a discriminação. Assim é o processo de construção do projeto socialista: não um edifício pronto e acabado, mas um imenso canteiro de obras, onde se trabalha para o futuro, sem esquecer as lições do passado.” 

Ao fim e ao cabo, como disse o velho Marx, o mais importante é a luta. 

Afinal, como gostavam de lembrar, realisticamente, tanto Lenin como Walter Benjamin: o capitalismo não vai morrer de morte natural.

Militares reafirmam críticas e desafiam autoridade de Dilma



Em mais uma demonstração de desrespeito à democracia, 98 militares da reserva reafirmaram as críticas feitas por clubes das três Forças Armadas à presidente Dilma Rousseff e disseram não reconhecer a autoridade do ministro da Defesa, Celso Amorim, para proibi-los de expressar opiniões.


Em nota, intitulada "Eles que Venham. Por Aqui Não Passarão", os militares desafiam a autoridade de Dilma, comandante suprema das Forças Armadas, e evidenciam a inversão de valores que levaram ao golpe militar de 1964. Mais uma vez, os militares desrespeitam o artigo 84 da Constituição Federal — que afirma que compete privativamente ao Presidente da República exercer o comando supremo das Forças Armadas.

No último dia 16 de fevereiro o clube de militares publicou um texto em desagravo às declarações das ministras dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, e das Mulheres, Eleonora Menicucci sobre a busca pela verdade dos crimes ocorridos durante a ditadura militar (1964-1985).

A presidente convocou o ministro da Defesa, Celso Amorim, para pedir explicações e este se reuniu com os comandantes das três Forças, que negociaram com os presidentes dos clubes da Marinha, Exército e Aeronáutica, a "desautorização" da publicação do documento, que foi colocado no site do Clube Militar.

Na quinta-feira (23), o “comunicado interclubes", que tecia críticas à presidente e às ministras, foi retirado do ar. Um novo documento afirmando que os presidentes dos clubes desautorizavam o texto foi publicado no lugar da nota.

A insatisfação dos militares tem como ponto central a criação da lei da Comissão da Verdade — sancionada pela presidente Dilma em 18 de novembro do ano passado. Mesmo sem o poder de punir os responsáveis por mortes, torturas e desaparecimentos na ditadura, a comissão causa repúdio em alguns militares — que temem um dia serem obrigados, mesmo que moralmente, a se responsabilizar publicamente por seus crimes.

O texto publicado nesta terça (28) afirma que “[A comissão é um] ato inconsequente de revanchismo explícito e de afronta à Lei da Anistia com o beneplácito, inaceitável, do atual governo".

Diz ainda que “Em uníssono, reafirmamos a validade do conteúdo do Manifesto publicado no site do Clube Militar, a partir do dia 16 de fevereiro próximo passado, e dele retirado, segundo o publicado em jornais de circulação nacional, por ordem do Ministro da Defesa, a quem não reconhecemos qualquer tipo de autoridade ou legitimidade para fazê-lo”.

Apesar de fora da ativa, todos ainda devem, por lei, seguir a hierarquia das Forças, das quais Dilma e Amorim são os chefes máximos.

O novo texto foi divulgado em um site mantido pela mulher de Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel reformado do Exército e um dos que assinam o documento.

Ustra, ex-chefe do DOI-Codi (aparelho da repressão do Exército) em São Paulo, é acusado de torturar presos políticos na ditadura, motivo pelo qual é processado na Justiça.

A atual nota reafirma o teor de outra, do último dia 16, na qual os clubes Militar, Naval e de Aeronáutica fizeram críticas a Dilma, dizendo que ela se afastava de seu papel de estadista ao não "expressar desacordo" sobre declarações recentes de auxiliares e do PT contra a ditadura.


Da redação do PORTAL VERMELHO
com informações da Folha de S.Paulo

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Governo Tarso joga com a miséria da categoria

Isso é prova de que a educação só é vista como prioridade nas campanhas eleitorais. Passadas as eleições, o discurso é sempre o mesmo: dificuldades financeiras, folha de pagamento muito pesada, etc. Por isso, vale sempre lembrar que o que realmente falta é coragem para dizer como e para quem se governa. Tarso já fez suas escolhas: optou por governar exigindo sacrifícios dos servidores públicos, claro que daqueles que recebem os salários mais baixos, para continuar concedendo benefícios fiscais para os grandes empresários e pagando religiosamente a dívida com a União.
Também é preciso denunciar o método usado pelo governo para aprovar seus projetos na Assembleia Legislativa. Valendo-se de uma base ampla, construída a partir do loteamento de cargos na máquina estatal, envia para o Parlamento a maioria dos seus projetos com regime de urgência, evitando assim o debate com a sociedade.
Não está sendo diferente agora com o reajuste dos educadores, mesmo que a primeira parcela só passe a vigorar em maio.
Não temos dúvida que uma das tarefas da nossa categoria, a partir deste momento, será exigir que os deputados não compactuem com essa prática, votando um projeto sem que o governo estabeleça um processo de negociação com o sindicato.
Urge, porém, reafirmar que somente através de atos públicos, acampamentos em praças, plenárias, paralisações e até mesmo greves, será possível impedir que o governo Tarso encabece, a partir do Rio Grande do Sul, um movimento voltado a acabar com a lei do piso, uma conquista dos educadores deste País.
Fonte: jornal Sineta

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

Uma breve análise marxista da Classe C

 Fernando Marcelino no CORREIO DA CIDADANIA  


Provavelmente, a principal marca do governo federal do PT no Brasil foi o fortalecimento da chamada “classe C”, mal entendido por alguns como uma nova classe média, composta nas estatísticas oficiais por famílias que tem uma renda mensal domiciliar entre R$1.064,00 e R$ 4.561,00. Se em 1992 a classe C representava 34% da população, em 2011 passou a 54% e, segundo estimativas, alcançará 58% da população em 2014. Isso significa que o perfil sócio-econômico do país e suas classes estão mudando.

Durante a última década, a chamada classe C – composta, sobretudo, por jovens negros com emprego formal, alto potencial de consumo e características altamente heterogêneas ligadas ao campo político e religioso – teve um aumento superior a 40% em sua renda familiar, o que permitiu maior poder de compra, acesso à tecnologia e ingresso em faculdades. Na última década, 31 milhões de pessoas entraram na classe C – ela já responde por cerca de 47% do consumo do país, metade dos cartões de crédito emitidos, 60% dos acessos à internet, 42% das despesas com educação. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são os jovens da classe C que alimentam a expansão de quase 77% no número de pessoas que declaram “freqüentar” ou “ter freqüentado” cursos de educação profissional entre 2004 e 2010. O Nordeste é a região onde a classe C mais cresceu recentemente e a região Sul soma a maior proporção de pessoas neste grupo. Espera-se que esta classe C será a principal fornecedora da força de trabalho mais qualificada para o desenvolvimento industrial nos próximos anos.

É claro que uma classe não pode ser definida em termos de renda ou pelo padrão de consumo. É sua experiência prática que diz como ela é. Como assinala Jessé de Souza, esta “nova classe trabalhadora” em formação convive com o antigo proletariado fordista – ou o que restou dele – e possui uma trajetória de ascensão por meio do trabalho duro, com fé em Deus para suportar a dor de viver, ter força de vontade e conseguir vencer os obstáculos que aprecem pela frente. Seus integrantes possuem uma narrativa sem tempo linear, previsível ou estável. Sua reprodução se constitui como um desafio permanente. Seu risco não é de proletarização, pois sua condição já é proletarizada, produto de trabalho duro todos os dias. Não é uma condição que se alcançou e se tem medo de decadência, mas uma condição que deve ser buscada em todo momento da vida.

Como podemos fazer uma interpretação marxista da classe C? Ela demonstraria que o aparato marxista é anacrônico diante destas transformações da composição de classe no Brasil? Naturalmente ela é parte do proletariado, mas qual parte? Para André Singer, poderíamos denominá-la de “subproletariado”, aqueles “que oferecem a sua força de trabalho no mercado sem encontrar quem esteja disposto a adquiri-la por um preço que assegure sua reprodução em condições normais”. A nosso ver, seria mais correto caracterizar a classe C como integrante do exército industrial de reserva – que Marx sempre frisou ser parte do proletariado. Marx identifica três formas deste exército nas quais “todo trabalhador dela faz parte durante o tempo em que está desempregado ou parcialmente desempregado”:

1)                A parte flutuante representa aqueles trabalhadores que, acompanhando o ciclo da economia capitalista, oscilam no emprego tendendo a serem despedidos numa crise e esperar por uma época de prosperidade para serem incorporados ao exército ativo de trabalhadores. Eles flutuam no circuito empregatício de acordo com o estágio do ciclo econômico. Nas palavras de Marx, esses que são despedidos tornam-se elementos da superpopulação flutuante que aumenta ao crescer a indústria. Parte deles emigra e, na realidade, apenas segue o capital em sua emigração. Em suma, essa parte flutuante do exército industrial de reserva é constituída pelos trabalhadores que, por certo tempo, perdem seus empregos em conseqüência da queda na produção, no avanço de produtividade, no emprego de novas máquinas ou fechamento de empresas. Uma parte desses desempregados volta a se empregar numa potencial prosperidade industrial.

2)                A parte latente surge “quando a produção capitalista se apodera da agricultura, ou nela vai penetrando, diminui, à medida que se acumula o capital que nela funciona, a procura absoluta da população trabalhadora rural” (2009, p. 746). Geralmente, os operários agrícolas estão fadados a enxertar as fileiras das indústrias nos grandes centros urbanos, pois “dá-se uma repulsão de trabalhadores, que não é contrabalançada por maior atração, como ocorre na indústria não-agrícola. Por isso, parte da população rural encontra-se sempre na iminência de transferir-se para as fileiras do proletariado urbano ou da manufatura e na espreita de circunstâncias favoráveis a essa transferência. Está fluindo sempre esse manancial da superpopulação relativa. Mas, seu fluxo constante para as cidades pressupõe no próprio campo uma população supérflua sempre latente, cuja dimensão só se torna visível quando, em situações excepcionais, se abrem todas as comportas dos canais de drenagem. Por isso, o trabalhador rural é rebaixado ao nível mínimo de salário e está sempre com um pé no pântano do pauperismo” (idem, p. 746).

3)                Diante do aumento da acumulação de capital, duas porções do proletariado tendem a ter uma participação menor diante do aumento da dimensão estagnada do exército industrial de reserva. Como diz Marx, “a superpopulação estagnada se amplia à medida que o incremento e a energia da acumulação aumentam o número dos trabalhadores supérfluos. Ela se reproduz e se perpetua, e é o componente da classe trabalhadora que tem, em seu crescimento global, uma participação relativamente maior que a dos demais componentes” (idem, p. 747). A superpopulação relativa estagnada “constitui parte do exército de trabalhadores em ação, mas com ocupação totalmente irregular. Ela proporciona ao capital reservatório inesgotável de força de trabalho disponível. Sua condição de vida se situa abaixo do nível médio normal da classe trabalhadora, e justamente por isso torna-se base ampla de ramos especiais de exploração do capital. Duração máxima de trabalho e mínimo de salário caracterizam sua existência.

Conhecemos já sua configuração principal, sob o nome de trabalho a domicílio. São continuamente recrutados para suas fileiras os que se tornam supérfluos na grande indústria e na agricultura, e notadamente nos ramos de atividade em decadência (idem, p. 746, 747). Esses trabalhadores não deixam de fazer parte do exército industrial de reserva, tampouco deixam de ter lugar na divisão social do trabalho no modo de produção capitalista. É parte cada vez mais importante do proletariado. Longe de ser inútil, a porção estagnada do exército industrial de reserva se reproduz com os trabalhos mais degradantes, com mais riscos à integridade física e moral, remuneração mais baixa sob vínculos empregatícios precários, ou seja, enfrentam um contato com o que Marx se refere como “ramos especiais de exploração do capital” baseados na “duração máxima de trabalho e mínimo de salário”.

Na classe C brasileira encontramos elementos das três formas de exército industrial de reserva. Em termos quantitativos, a classe C é uma conseqüência da neoliberalização da década de 1990, marcada pelas privatizações, precarização do trabalho e o aumento do desemprego. O resultado foi uma reorganização do proletariado baseada na redução do proletariado fabril e no progressivo crescimento da classe C, um fenômeno que decorre desde 1992, por mais que sua expansão aconteça de maneira mais acentuada desde 2003. Ela não é assim tão nova. Hoje, são 105,4 milhões de pessoas, ou 55,05% da população nesta faixa. Segundo um estudo da FGV, esse processo ocorre junto com o encolhimento das classes D e E. Em 1992 elas representavam juntas 62,13% da população. Em 2003 eram 54,85% dos brasileiros. Hoje, somadas, as classes D e E representam 33,19% dos 191,4 milhões de habitantes do país. É um fenômeno inédito na história do país. Ainda assim, são 16,2 milhões de pessoas vivendo com até R$ 70 mensais.

Para a classe C a estabilidade econômica é algo extremamente valorizado, pois é o caminho da ascensão social, por mais que ela seja composta por uma camada social altamente heterogênea em termos de valores, crenças políticas e comportamentos. É uma fração da classe trabalhadora emergente no Brasil, diferente daquela do ABC no final dos anos 1970, vivendo um processo de recomposição, ainda com pouca experiência de luta, mas que ainda não mostrou sua potencialidade. Os empregos da classe C são muito variados: telemarketing, feirantes, pequenos empreendedores, autônomos, trabalhadores da construção civil, caixas de supermercado, motoboys, secretariado, serviços de reparo em geral, parte do funcionalismo público, pequenos comerciantes, trabalhadores em domicílio etc. Em suma, são empregos altamente flexíveis e irregulares, por mais que alguns tenham uma formalidade oficial. Fazem parte dessa porção do proletariado os “desempregados ativos” que estão numa lacuna entre o trabalho atípico, parcial, desregulamentado, informal ou temporário e as agruras do não-trabalho. Alguns têm dupla jornada de trabalho e outros tantos são trabalhadores completamente informais. Todos lutam para pagar suas contas e costumam morar nas periferias das grandes cidades. Muitas vezes seu acesso a formas de mínimas de auto-organização e ao espaço público se dá por meio de igrejas evangélicas e neopentecostais.

Esta transformação da composição social do proletariado resulta, agora, em novas lutas de classe – só que, até agora, sem muita organização, representação e visibilidade política. O que fazer? Qual é o futuro político da classe C? Ser cooptada pelos ideais do livre-mercado, típicos da classe média? Ou pelas milícias e empresas religiosas privadas? Ou poderia ser tomada pelo ideal de uma sociedade calcada no trabalho duro e uma sociedade justa e socialista?

A necessidade de ascensão política de massas da “classe C” será provavelmente o mais importante norteador da nova dinâmica da luta de classes no Brasil no próximo período. Aquela parte da população que passou a ter mais acesso aos bens de consumo, mas ainda é muito conservadora, impede que projetos “socialistas” sejam aceitos facilmente, por mais que se coloque em movimento num novo ciclo de lutas das classes populares. Mostra-se que a inclusão no mercado por si só não garante o aumento da organização popular da classe C nem um desenho claro de uma consciência de classe.

Longe disso, ela parece estar atualmente mais próxima das diversas formas de individualismo possessivo do tempo presente e das grandes empresas de evangelização do que de qualquer “ideologia socialista”, muitas vezes demonizada, sendo vista como uma desculpa apenas para “instabilidade social” ou “politicagem”.

Para adentrarmos na consciência da classe C, devemos evocar a fórmula do lulismo feita por André Singer. O lulismo seria “a execução de um projeto político de redistribuição de renda focado no setor mais pobre da população, mas sem ameaça de ruptura da ordem, sem confrontação política, sem radicalização, sem os componentes clássicos das propostas de mudanças mais à esquerda”. O lulismo "expressa um fenômeno de representação de uma fração de classe que, embora majoritária, não consegue construir desde baixo as próprias formas de organização". Essa fração de classe é caracterizada por uma expectativa de Estado forte, que reduz a desigualdade, mas sem ameaçar a ordem estabelecida.

Portanto, ao contrário do que pensa o próprio Singer, essa fração de classe não apresenta afinidades partidárias de qualquer tipo ou intensas rejeições a partidos, e tampouco identificações personalistas fortes. Segundo Singer, as constantes declarações de Lula a favor da manutenção da estabilidade satisfizeram não só os banqueiros e investidores, nacionais e estrangeiros, como também o eleitor pobre e conservador, que teme a ruptura da ordem, embora deseje a redução da desigualdade e pobreza. O lulismo representa uma nova orientação ideológica, marcada pela preferência por redução da desigualdade, mas com manutenção da estabilidade, algo que não é “nem de direita, nem de esquerda e nem de centro”.

Nosso desafio é desenvolver uma verdadeira alternativa política para a classe C, trabalhar na base dessa classe e de outras classes populares da sociedade brasileira, vivenciando e contribuindo para sistematizar suas pequenas experiências de luta, elevando sua consciência de classe. Esse processo não é imediato. É uma missão estratégica, de longo prazo, orientando essas classes no momento que decidirem lutar. Devemos urgentemente reorganizar a esquerda sob este marco, pois ela se encontra muitas vezes alheia a tal processo, sem saber como tratar adequadamente as transformações. Nossa disputa começa ao colocar a classe C em movimento como um setor da classe trabalhadora, fazê-la agir e pensar como parte substancial da classe trabalhadora e seu destino na luta política.

Um primeiro passo neste sentido seria entender que diante da enorme dificuldade do movimento sindical em organizar no espaço de trabalho este segmento crescente de trabalhadores, principalmente da classe C, o espaço em que milhões de trabalhadores no Brasil tem se organizado e lutado é o território, em especial na periferia e nas favelas das grandes cidades. A politização destes territórios é parte integrante do processo de politização da classe C. Nosso dever é saber transformar suas reivindicações em ações massivas, independentes do governo e seus correligionários. Isso só surgirá, entretanto, se retomarmos a velha lição de organização junto à base popular, em seu dia a dia, em lutas diárias e miúdas, em especial da classe C. Somente as grandes mobilizações, o estímulo a todas as formas de luta de massa por necessidades imediatas e o trabalho de base podem alterar nossa situação diante da nova dinâmica da luta de classes.

Fernando Marcelino é economista.

Os três brasileiros que refutaram as bases do neoliberalismo




O livro “O Universo NeoLiberal do Desencanto”, do economista José Carlos de Assis e do matemático Francisco Antonio Doria, traz uma história extraordinária, de como três brasileiros – no campo da lógica – ajudaram a desmontar o principal princípio do neoliberalismo: aquele que dizia que em um mercado com livre competição os preços tendem ao equilíbrio.

Por Luís Nassif no
VERMELHO


As teses do trio – lógico Newton da Costa, matemático Antonio Doria e economista Marcelo Tsuji é um clássico da ciência brasileira, uma história complexa, porém fascinante, que merece ser detalhada.

O primeiro passo é – a partir do livro – reconstituir as etapas da matemática no século 20, sua luta para se tornar uma ciência formal, isto é, com princípios de aplicação geral. E os diversos obstáculos nesse caminho.

O método axiomático na matemática

A matemática sempre se baseou no método axiomático de Euclides.
1 Escolhem-se noções e conceitos primitivos.
2 Utiliza-se uma argumentação lógica.
3 Manipulando os conceitos com a lógica, chega-se aos resultados derivados, os teoremas da geometria.

Foi só a partir do final do século 19 que Giuseppe Peano incorporou o método axiomático à matemática tornando-se, desde então, a técnica mais segura para a geração de conhecimento matemático.

Em 1908, Ernest Zermelo axiomatizou a teoria dos conjuntos e, a partir daí, todos os resultados conhecidos da matemática. Formou-se a chamada matemática “feijão-com-arroz” usada por engenheiros, economistas, ecólogos e biólogos matemáticos.

E, desde então, no âmbito da alta matemática instaurou-se uma discussão secular: tudo o que enxergamos como verdade matemática pode ser demonstrado?

A formalização da matemática

Com esses avanços do método axiomático, pensava-se que tinha se alcançado na formalização da matemática, tratada como ciência exata capaz de calcular e demonstrar todos os pontos de uma realidade.

Mas aí começaram a surgir os paradoxos, dos quais o mais famoso foi o de Russel:

Em uma cidade, existem dois grupos de homens: os que se barbeiam a si mesmos e os que se barbeiam com o barbeiro. A que grupo pertencem os barbeiros?

Ora, um axioma não pode comportar uma afirmação contraditória em si. De acordo com as deduções da lógica clássica, de uma contradição pode-se deduzir qualquer coisa, acaba o sonho do rigor matemático e o sistema colapsa.

Houve uma penosa luta dos matemáticos para recuperar a matemática da trombada dos paradoxos até definir o que são as verdades matemáticas, o que coube ao matemático David Hilbert (1862-1943).

Nos anos 20, Hilbert formulou um programa de investigação dos fundamentos da matemática, definindo o que deveriam ser os valores centrais:

Consistência: a matemática não poderia conter contradições.
Completude: a matemática deve provar todas suas verdades.
Procedimento de decisão: a matemática precisa ter um procedimento, digamos, mecânico permitindo distinguir sentenças matemáticas verdadeiras das falsas.

A partir desses princípios, a ideia era transformar a matemática em uma ciência absoluta com regras definitivas. No Segundo Congresso de Matemática, em Paris, Hilbert propôs os famosos 23 problemas cuja solução desafiaria as gerações seguintes de matemáticos. (http://www.rude2d.kit.net/hilbert.html).

Seus estudos foram fundamentais para o desenvolvimento da ciência da computação.

Mas havia uma pedra em seu caminho quando 1931, o matemático alemão Kurt Gödel (1906-1978), radicado nos Estados Unidos, formula seu teorema da incompletude para a aritmética, inaugurando a era moderna na matemática. Muitos estudiosos sustentam que seu “teorema da incompletude” é a maior realização do gênio humano na lógica, desde Aristóteles.No começo, os achados de Gödel se tornaram secundários no desenvolvimento da matemática do século.

A partir dos estudos de dois dos nossos heróis – Doria e Da Costa – os matemáticos descobriram porque a matemática não conseguia explicar uma série enorme de problemas matemáticos.

E aí se entra em uma selva de conceitos de difícil compreensão.

Mas, em síntese, é assim:

Suponha um sistema de axiomas, com vários axiomas. Por definição, esse axioma não demonstra fatos falsos, só verdadeiros.

Dentre os axiomas, no entanto, há uma sentença formal que, por definição, não pode ser demonstrada.

Se não pode ser demonstrada que é verdadeira, também não pode ser demonstrada que é falsa (acho que o matemático se baseou no axioma da Folha com a ficha falsa da Dilma). Logo é uma sentença “indecidível” – isto é, não pode nem ser provada nem reprovada.

Se o sistema é consistente – isto é, se consegue provar o que é provável e não consegue o que não é – então, para ser consistente, ele será incompleto.

Pronto, bagunçou totalmente a lógica dos que supunham a matemática uma ciência exata.

Anos depois, o lógico norte-americano Alonzo Church (1903-1995) e o matemático inglês Alan Turing (1912-1954) desenvolveram outro conceito, a indecibilidade.

Ambos demonstraram que há programas de computador insolúveis.

Turing, aliás, tem uma biografia extraordinária http://www.turing.org.uk/turing/. Durante a Segunda Guerra foi criptógrafo do Exército inglês. Conseguiu quebrar a criptografia da máquina alemã Enigma, até então considerada impossível de ser desvendada. Tornou-se herói de guerra. E lançou as bases para a teoria da programação em computador, quando conseguiu reduzir todas as informações a uma sucessão de 0000 e 1111.

Em 1952 confessou-se homossexual a um policial que havia batido na porta de sua casa. Preso, com base em uma lei antissodomia (revogada apenas em 1975), foi condenado a ingerir hormônios femininos para inibir o libido. Os hormônios deformaram seu corpo. Acabou se matando com uma maçã envenenada em 1954.

A teoria da programação nasce em 1936 em um artigo onde Turing analisa em detalhes os procedimentos de cálculos matemáticos e lança o esboço da “máquina de Tuning”, base da computação moderna.

Nesse modelo o procedimento é determinístico – isto é, nos cálculos não há lugar para o acaso.

Muitas vezes ocorrem os “loops infinitos”, situações em que o computador não consegue encontrar a solução e fica calculando sem parar. Turing já havia provado ser impossível um programa que prevenisse os “crashes” de computador. Explicar a “parada” no programa de computador se tornou um dos bons enigmas para os matemáticos.

Durante bom tempo, até início dos anos 50, os matemáticos procuravam a chave da felicidade: o programa que permitisse antecipar os crashes dos demais programas. Mas em 1936 Turing já havia provado ser impossível.

Mais um revés para os que imaginavam a matemática capaz de explicar (ou computar) todos os fenômenos matemáticos.

O teorema de Rice

Em 1951, outro matemático, Henry Gordon Rice avançou em um teorema considerado “arrasa quarteirão”.

Denominou-se de funções parciais àquelas em que não existe um método geral e eficaz de decisão. Se uma propriedade se aplica a todas as funções parciais, ela é chamada de propriedade trivial. E se a propriedade traz a solução correta para cada algoritmo, ela é chamada de método de decisão eficaz.

Uma propriedade só é eficaz se for aplicada a todas as funções. E essa função não existe.

Levando essas conclusões para outras áreas, é possível constatar que não existe uma vacina universal para vírus de computador, ou para vírus biológico, Todo desenvolvimento de uma vacina biológica será sempre na base de tentativa e erro.

Para desespero dos que acreditavam que a matemática poderia explicar tudo, o teorema de Rice começou a se estender para a maior parte das áreas da matemática.

O equilíbrio de Nash

O inventor oficial da computação, Von Neuman, não conseguia resolver um caso geral em que se analisava uma solução para a soma de um conjunto de decisões.

Quem resolveu foi um dos gênios matemáticos do século, John Nash, personagem principal do filme “Uma mente brilhante”, nascido em 1928 e vivo ainda.

Em uma tese de apenas 29 páginas – que lhe rendeu o PhD e o Nobel – ele mostrou que casos de jogos não-colaborativos (como em um mercado) a solução aceitável de cada jogador correspondia ao equilíbrio dos mercados competitivos.

Como explica Dória, em linguagem popular: a situação de equilíbrio é aquela que se melhorar piora.

O “equilíbrio de Nash” mostra uma situação em que há diversos jogadores, cada qual definindo a sua estratégia ótima. Chega-se a uma situação em que cada jogador não tem como melhorar sua estratégia, em função das estratégias adotadas pelos demais jogadores. Cria-se, então, essa situação do “equilíbrio de Nash”.

O princípio de Nash é: todo jogo não-cooperativo possui um equilíbrio de Nash.

O “equilíbrio de Nash” tornou-se um dos pilares da matemática moderna.

A matemática na economia

O primeiro economista a tentar encontrar o preço de equilíbrio na economia foi Léon Walras (1834-1910). Montou equações que identificam as intersecções da curva da oferta e da demanda, para chegar ao preço ótimo. Depois, montou equações para diversos mercados, concluindo que, dadas as condições ideais para a oferta e para a procura, sempre seria possível encontrar soluções matemáticas.

Mas não apresentou uma solução para o conjunto de operações da economia.

O que abriu espaço para o “equilíbrio dos mercados” foram dois matemáticos – Kenneth Arrow (1921) e Gérard Debreu (1921-2004) que beberam no “equilíbrio de Nash” para formalizar de maneira mais rigorosa os princípios de Walras.

Walras tivera o pioneirismo de formular o estado de um sistema econômico como a solução de um sistema de equações simultâneas, que representavam a demanda de bens pelos consumidores, a oferta pelos produtores e a condição de equilíbrio tal que a oferta igualasse a demanda em cada mercado. Mas, argumentavam eles, Walras não dera nenhuma prova de que a equação proposta (o somatório de todas as equações da economia) tivesse solução.

Só décadas depois, esse dilema – de como juntar em uma mesma solução todas as equações de um universo econômico – passou a ser tratado, com o desenvolvimento da teoria dos jogos, graças à aplicação do “equilíbrio de Nash” à economia. Mostraram que a solução de Nash para o jogo corresponde aos preços de equilíbrio.

Essa acabou sendo a base teórica que legitimou praticamente três décadas de liberalismo exacerbado.

Entra em cena o “outro Nash”

Aí surge em cena o “outro Nash”, Alain Lewis, um gênio matemático, negro, mistura de Harry Belafonte e Denzel Washington, criado nos guetos de Washington, depois estudante em Princenton, onde conquistou o respeito até de referências como Paul Samuelson.

Partiu dele o primeiro grande questionamento à econometria como "teoria eficaz" (isto é, capaz de matematizar todos os fenômenos econômicos).

Em um conjunto de obras, a partir de 1985, Lewis tentou demonstrar que as noções fundamentais da teoria econômica não são "eficazes" - isto é, não explicam todos os fenômenos econômicos - e, portanto, devem ser descartadas. Comprovou sua tese para um número específico de casos.

Em 1991, em Princenton, Lewis ligava de madrugada para trocar ideias com um colega brasileiro, justamente Francisco Antônio Doria. Excepcionalmente brilhante, trato difícil, o primeiro surto de Lewis foi em 1994. Há dez anos nenhum amigo sabe mais dele. Provavelmente internado em alguma clínica.

Sua principal contribuição foi comprovar que em jogos não associativos (aqueles em que há disputas entre os participantes) embora exista o "equilíbrio de Nash" descrevendo cada ação, ganhos e perdas dos competidores, o resultado geral é "não computável" . Ou seja, podem existir soluções particulares mas sem que possam ser reunidas num algoritmo geral.

Aparecem os brasileiros

O objetivo da teoria econômica é identificar as decisões individuais que valem para o coletivo. De nada vale matematizar o resultado de dois agentes individuais se a solução não se aplicar ao conjunto de agentes econômicos.

Havia razões de sobra para Lewis ligar toda noite, impreterivelmente às duas da manhã, para Dória.

Desde os anos 80, Doria e Newton da Costa estudavam soluções para o problema da teoria do caos. Queriam identificar, através de fórmulas, quando um sistema vai desenvolver ou não um comportamento caótico. Esse desafio havia sido proposto em 1983 por Maurice Hirsch, professor de Harvard.

Eram estudos relevantes, especialmente para a área de engenharia. Como saber se a vibração na asa de um avião em voo poderá ficar incontrolável ou não?

Depois, provaram uma versão do teorema de Rice para matemática usual: que usa em economia.

Depois de muitos estudos, ambos elaboraram uma resposta brilhante sobre a teoria do caos: não existe um critério geral para prever o caos, qualquer que seja a definição que se encontre para caos.

Esse conceito transbordou para outros campos computacionáveis. A partir dele foi possível inferir a impossibilidade de se ter um antivírus universal para computador, ou uma vacina universal para doenças.

Num certo dia, no segundo andar do Departamento de Filosofia da USP, Doria foi abordado por um jovem economista, Marcelo Tsuji, que já trabalhava na consultoria de Delfim Neto. Aliás, anos atrás Paulo Yokota já havia me alertado de que o rapaz era gênio. Na época, Delfim encaminhou-o para se doutorar com Doria e da Costa.

Marcelo disse a Doria ter coisas interessantes para lhe relatar. Disse que tinha encontrado uma prova mais geral para o teorema de Lewis utilizando as técnicas desenvolvidas por Doria e Da Costa.

Doria pediu para Marcelo escrever. Depois, Doria e Nilton revisaram o trabalho, todo baseado nas técnicas de lógica de ambos.

Chegou-se ao resultado em 1994. Mas o trabalho com Tsudi só foi publicado em 1998. Revistas de economia matemática recusaram publicar. Conseguiram espaço em revistas de lógica.

O grande desafio do chamado neoliberalismo seria responder às duas questões:

1. Como os agentes fazem escolhas.

2. Como a ordem geral surge a partir das escolhas individuais.

A conclusão final matava definitivamente a ideia de que em mercados competitivos se chegaria naturalmente ao preço de equilíbrio. O trabalho comprovava que o “equilíbrio de Nash” ocorria, com os mercados chegando aos preços de equilíbrio. Mas que era impossível calcular o momento. Logo, toda a teoria não tinha como ser aplicada.

O reconhecimento mundial

O Brasil não tem tradição científica para reconhecer trabalhos na fronteira do conhecimento. Assim, o reconhecimento do trabalho do trio está se dando a partir do exterior.

O livro “Gödel’s Way”, de Doria, Newton e Gregory Chaitin tornou-se um best-seller no campo da matemática, ajudando a conferir a Gödel o reconhecimento histórico que lhe faltou em vida.

Fonte: Blog do Nassif

“Perdendo o mundo”: o declínio dos EUA em perspectiva


Noam Chomsky*
Noam Chomsky 
O declínio dos Estados Unidos entrou há algum tempo numa nova fase: a do declínio autoinfligido. Desde os anos 70 tem havido mudanças significativas na economia dos EUA, à medida que estrategas, estatais e do sector privado, passaram a conduzi-la para a financeirização e para a exportação de unidades industriais. Essas decisões deram início ao círculo vicioso no qual a riqueza e o poder político se tornaram altamente concentrados, os salários dos trabalhadores ficaram estagnados, a carga de trabalho aumentou e o endividamento das famílias também.

Há aniversários significativos que são comemorados solenemente – o do ataque japonês à base da Marinha norte americana de Pearl Harbor, por exemplo. E há outros que são ignorados, e no entanto poderiam sempre aprender-se importantes lições acerca do seu significado nos tempos que se seguiram. Na verdade, no tempo de agora.
Neste momento, erramos ao não comemorar o 50° aniversário da decisão do presidente John F Kennedy de promover a mais assassina e destrutiva agressão do período pós-Segunda Guerra: a invasão do Vietname do Sul e depois de toda a Indochina, deixando milhões de mortos e quatro países devastados com perdas que ainda neste momento estão a crescer, causadas pela exposição do país aos agentes cancerígenos mais letais de que se tem conhecimento, que comprometeram a cobertura vegetal e a produção de alimentos.
O primeiro alvo foi o Vietname do Sul. A agressão expandiu-se depois para o Norte, e para a sociedade remota do nordeste do Laos, até finalmente chegar ao rural Camboja, cujo bombardeamento atingiu o impressionante nível de ser equivalente ao de todas as operações aéreas aliadas da região do Pacífico durante a Segunda Guerra Mundial, incluindo as duas bombas lançadas em Hiroshima e Nagasaki. Aí, as ordens de Henri Kissinger estavam a ser obedecidas – “bombardear qualquer coisa que voe ou se mova”; uma convocatória para o genocídio rara na história.
Pouco de tudo isto é lembrado. A maior parte desses massacres é escassamente conhecida para além do estreito círculo dos activistas.
Quando a invasão teve início, há cinquenta anos, a preocupação era tão reduzida que havia poucas tentativas de justificação; dificilmente iam além da indiferente afirmação do presidente de que “nos estamos a opor, em toda a parte do mundo, a uma conspiração monolítica e brutal que trata, principalmente sob meios ocultos, de expandir a sua esfera de influência” e, se a “conspiração” conseguir concretizar os seus objectivos no Laos e no Vietname, “os portões ficarão amplamente franqueados”.
Numa outra ocasião, acrescentou também que “as sociedades liberais, tolerantes e autoindulgentes estavam para ser varridas para os escombros da história [e] só a força… pode sobreviver”, reflectindo neste caso a propósito do fracasso da agressão e do terror estadunidenses na tentativa de esmagar a independência cubana.
Quando os protestos começaram a crescer meia dúzia de anos depois, o respeitado historiador militar e especialista em Vietname Bernard Fall - de modo nenhum um pacifista - previu que “o Vietname como entidade histórica e cultural…está ameaçado de extinção…[enquanto]…a sua área rural morre literalmente sob os bombardeamentos da maior máquina militar jamais concentrada numa área desta dimensão”. Estava, uma vez mais, a referir-se ao Vietname do Sul.
Quando a guerra acabou, oito horrendos anos depois, a opinião dominante estava dividida entre aqueles que a descreviam como uma “causa nobre” que poderia ter sido vencida se tivesse havido maior empenho, e o extremo oposto, os críticos, para quem se tratou de “um erro” que se provou ser altamente dispendioso. Por volta de 1977 pouca atenção foi dada ao Presidente Carter quando explicou que “não havia dívida” nossa para com o Vietname porque “a destruição fora mútua”.
Há lições importantes para hoje em tudo isto, para além dos fracos e derrotados que são chamados a responder pelos seus crimes. Uma lição é que para entender o que está a acontecer devemos procurar não apenas criticar os acontecimentos no mundo real, frequentemente ignorados pela história, mas também aquilo em que os líderes e a opinião da elite acreditam, mesmo que pintado com as tintas da fantasia. Uma outra lição é que, ao lado dos produtos da imaginação fabricados para aterrorizar e mobilizar o público (e em que talvez acreditem aqueles que são enganados pela sua própria retórica), há também planeamento geoestratégico baseado em princípios que se mantém racionais e estáveis durante longos períodos, porque estão implantados em instituições estáveis e na agenda destas. Isso também é verdade no caso do Vietname. Voltarei ao tema, destacando aqui apenas que os elementos que persistem na acção estatal são geralmente bastante opacos.
A guerra do Iraque é um caso instrutivo. Foi vendida a um público aterrorizado através da ameaça usual da autodefesa face um formidável perigo para a sobrevivência: a “única questão” que George W. Bush e Tony Blair colocaram foi se Saddam Hussein iria encerrar o seu programa de desenvolvimento de armas de destruição em massa. Quando a “única questão” recebeu a resposta errada, a retórica do governo mudou rapidamente para o nosso “anseio por democracia”, e a opinião pública condicionada seguiu devidamente o curso; o de sempre.
Mais tarde, à medida que a escalada da derrota no Iraque se tornou difícil de esconder, o governo admitiu tranquilamente o que já era claro para todo mundo. Em 2007-2008, a administração anunciou oficialmente que um acordo final deve assegurar a permanência de bases militares dos EUA e o direito destes a operar militarmente no país, e deve privilegiar os investidores estadunidenses na exploração de seu rico sistema energético – reivindicações que passaram depois para segundo plano face à relutância iraquiana. E tudo ficou bastante opaco para a maioria das pessoas.
Padronizando o declínio americano
Com essas lições em mente é útil dar uma vista de olhos sobre o que é destacado na manchete dos maiores jornais de política e de opinião, nos dias de hoje. Peguemos na mais prestigiada das publicações do establishment, Foreign Affairs. A estrondosa manchete da capa de Dezembro de 2011 estampava em negrito: “A América acabou?”.
O artigo da capa pedia “corte de gastos” nas “missões humanitárias” no exterior, que estavam a consumir a riqueza do país, para impedir o declínio americano, que é o maior tema nos discursos do ambiente de negócios, e que frequentemente vem acompanhado do corolário de que o poder está a mudar para o Leste, para a China e (talvez) a Índia.
Depois os principais artigos são a respeito de Israel e da Palestina. O primeiro, da autoria de dois altos oficiais israelenses, é intitulado “O Problema é a Rejeição Palestina”: o conflito não pode ser resolvido porque os palestinos se recusam a reconhecer Israel como Estado Judeu – o que está em conformidade com a prática diplomática normal: os estados são reconhecidos, não os seus sectores privilegiados. Esta reclamação dificilmente será outra coisa senão um novo estratagema para conter o risco de uma solução política para os assentamentos ilegais, que minaria os objectivos expansionistas de Israel.
A posição oposta é defendida por um professor estado-unidense e tem o título “O Problema é a Ocupação”. No subtítulo lê-se: “Como a Ocupação está Destruindo a Nação”. Qual nação? A de Israel, é claro. Ambos os artigos aparecem com o título em destaque: “Israel sitiado”.
A edição de Janeiro de 2012 lança ainda um outro apelo ao bombardeamento do Irão, já, antes que seja tarde demais. Alertando contra “os perigos da dissuasão”, o autor sugere que “os cépticos em relação à acção militar falham na avaliação do perigo real que um Irão com armas nucleares significaria para os interesses dos EUA no Oriente Médio e mais longe ainda. E nas suas sombrias previsões imaginam que a cura pode ser pior do que a doença – quer dizer, que as consequências de um ataque estadunidense ao Irã seriam tão más ou piores do que se o país conseguisse levar a cabo as suas ambições nucleares. Mas essa é uma suposição falsa. A verdade é que um ataque militar visando destruir o programa nuclear iraniano, se for feito com cuidado, poderá significar a eliminação para a região e para o mundo de uma ameaça muito real e melhorar dramaticamente a segurança nacional dos Estados Unidos a longo prazo”.
Outros argumentam que os custos seriam altos demais e, no limite, alguns chegam a dizer que um ataque [ao Irão] violaria o direito internacional – como o fazem os moderados, que lançam regularmente ameaças de violência, em violação à Carta das Nações Unidas.
Vamos rever cada uma dessas preocupações dominantes
O declínio americano é real, embora esta visão apocalíptica reflicta a percepção bastante habitual da classe dominante de que alguma limitação parcial ou geral implica o desastre total. A despeito desses pios lamentos, os EUA persistem como poder dominante mundial por larga margem e não há competidores à vista, não apenas em dimensão do poder militar, a respeito do qual os EUA dominam em absoluto.
A China e a Índia registaram um crescimento rápido (embora altamente desigual), mas permanecem países muito pobres, com problemas internos enormes que o Ocidente não enfrenta. A China é o maior centro industrial do mundo, mas maioritariamente como linha de montagem para as potências industriais avançadas, na sua periferia, e para as multinacionais ocidentais. É provável que isso mude com o tempo. A indústria em regra provê as bases para a inovação e a invenção, e na China isso vem ocorrendo. Um exemplo que impressionou os especialistas ocidentais foi a tomada chinesa da liderança no crescente mercado de painéis solares, não apenas com base na mão-de-obra barata, mas no planeamento coordenado e, crescentemente, na inovação.
Mas os problemas que a China enfrenta são sérios. Alguns são demográficos, relatados na Science, o líder dos semanários estadunidenses de divulgação científica. O estudo mostra que a mortalidade caiu bruscamente na China durante os anos maoístas, “principalmente em resultado do desenvolvimento económico e das melhorias nos serviços educacionais e de saúde, especialmente no movimento de higiene pública que resultou num golpe drástico à mortalidade por doenças infecciosas”. Esse progresso acabou com o início das reformas capitalistas no país, há 30 anos, e a taxa de mortalidade desde então tem aumentado.
Além disso, o crescimento económico chinês recente contou substancialmente com um “bónus demográfico”, uma grande população em idade economicamente ativa. “Mas a janela para o uso desse bónus pode fechar em breve”, com um “impacto profundo no desenvolvimento”: “o excesso de mão-de-obra barata, que é um dos maiores factores de dinamização do milagre económico chinês deixará de estar disponível”. A demografia é apenas um dos muitos problemas sérios para diante. No que concerne a Índia, os problemas são ainda mais graves.
Nem todas as vozes proeminentes anteveem o declínio americano. Nos media internacionais não há nada mais sério e respeitável do que o Financial Times. O jornal dedicou recentemente uma página inteira à expectativa optimista em que a nova tecnologia para extrair combustível fóssil norte-americano pode fazer com que os EUA se tornem energeticamente independentes, mantendo portanto a sua hegemonia por mais um século. Não há menção ao tipo de mundo que os EUA comandarão nesse cenário feliz, mas não por falta de dados.
Quase ao mesmo tempo a Agência Internacional de Energia reportou que com o aumento rápido das emissões de carbono dos combustíveis fósseis o limite de uso seguro será atingido por volta de 2017, se o mundo continuar no actual curso. “A porta está a fechar”, disse o economista-chefe da AIE, e muito em breve “fechará de vez”.
Pouco antes, o Departamento de Energia dos EUA informou que as imagens mais recentes das emissões de dióxido de carbono, com “a subida para o maior índice já registado”, atingiram um nível mais elevado do que os piores cenários previstos pelo Painel Internacional de Mudanças Climáticas (IPCC). Isso não constitui surpresa para muitos cientistas, inclusive os do programa do MIT para as mudanças climáticas, que alertou durante anos que os prognósticos do IPCC eram demasiado conservadores.
Esses críticos das previsões do IPCC não receberam qualquer atenção pública, ao contrário dos grupos negacionistas do aquecimento global, que são apoiados pelo sector corporativo, juntamente com imensas campanhas de propaganda que têm colocado os americanos de fora do espectro internacional dessas ameaças. O apoio das corporações também se reflecte directamente no poder político. O negacionismo é parte do catecismo que deve ser entoado pelos candidatos republicanos na ridícula campanha eleitoral em curso, e no Congresso eles são suficientemente poderosos até para abortar investigações sobre o efeito do aquecimento global, deixando de lado qualquer acção séria a respeito. Numa palavra, o declínio americano pode talvez ser interrompido se abandonarmos a esperança numa sobrevivência decente, prognóstico também bastante real dado o equilíbrio de forças no mundo.
“Perdendo” a China e o Vietname
Deixando de lado estas coisas desagradáveis, um olhar de perto sobre o declínio americano mostra que a China joga na verdade um grande papel nele, tanto como o que jogava há 60 anos. O declínio que agora gera tanta preocupação não é um fenómeno recente. Ele remonta ao fim da Segunda Guerra Mundial, quando os EUA tinham metade da riqueza do mundo e dispunham de níveis globais de segurança incomparáveis. Os estrategas políticos estavam naturalmente bastante conscientes dessa enorme disparidade de poder e pretendiam mantê-la assim.
O ponto de vista básico foi apresentado com admirável franqueza num grande documento de 1948. O autor era um dos arquitectos da Nova Ordem Mundial da época, o representante da equipa de Planeamento Político do Departamento de Estado dos EUA, o respeitado estadista e académico George Kennan, um pacifista moderado entre os estrategas. Ele observou que o objectivo político central era manter a “posição de disparidade” que separava a nossa enorme riqueza da pobreza dos outros. Para alcançar esse objectivo, advertiu, “nós deveríamos parar de falar em objectivos vagos e… irreais, como os direitos humanos, a elevação do padrão de vida e a democratização”, e devemos “lidar com conceitos estritos de poder”, não “limitados por slogans idealistas” a respeito de “altruísmo e do benefício do mundo”.
Kennan estava a referir-se especificamente à Ásia, mas as suas observações generalizam-se, com excepções, aos participantes no actual sistema de dominação global dos EUA. Ficou bastante claro que os “slogans idealistas” deveriam ser apresentados sobretudo quando dirigidos aos outros, inclusive às classes intelectualizadas, das quais era esperada a sua disseminação.
O plano de Kennan ajudou a formular e a implementar a tomada de controlo pelos EUA do Hemisfério Oeste, do Extremo Leste e das regiões do ex-império britânico (incluindo os incomparáveis recursos energéticos do Médio Oriente), e aquilo que foi possível da Eurásia, sobretudo os seus centros comerciais e industriais. Esses não eram objetivos irreais, dada a distribuição do poder. Mas o declínio foi então determinado de vez.
Em 1949, a China declarou a independência, um acontecimento conhecido no discurso do Ocidente como “a perda da China” – nos EUA, com algumas recriminações amarguradas e o conflito interpretativo a respeito de quem tinha sido o responsável por essa perda. A terminologia é reveladora. Só é possível perder o que em algum momento se teve. A assunção tácita era que os EUA tinham a China, por direito, juntamente com a maior parte do resto do mundo, tal como os estrategas do pós-guerra pensavam.
A “perda da China” foi o primeiro grande passo do “declínio americano”. Foi o que teve maiores consequências políticas. Uma delas foi a decisão imediata de apoiar o esforço francês de reconquista da sua ex-colónia da Indochina, para que esta também não fosse “perdida”.
A Indochina em si não era motivo de preocupação maior, a despeito das afirmações acerca das suas riquezas naturais por parte do presidente Eisenhower e outros. A preocupação maior era antes com a “teoria do efeito dominó”, a qual é frequentemente ridicularizada quando os dominós não caem, mas permanece um princípio regulador da política, porque é bastante racional. Para adoptar a versão que Henri Kissinger dele faz, uma localidade que cai fora do controle pode tornar-se um “vírus” que irá “contagiar”, induzindo outros a seguirem o mesmo caminho.
No caso do Vietname, a preocupação era que esse vírus do desenvolvimento independente pudesse infectar a Indonésia, que de facto é rica em recursos. E isso poderia levar o Japão – o “superdominó”, como o proeminente historiador da Ásia John Dower chamava – a “acomodar” uma Ásia independente como seu centro tecnológico e industrial num sistema que escaparia do alcance do poder dos EUA. Isso significaria, com efeito, que os EUA tinham perdido a fase Pacífico da Segunda Guerra, na qual lutaram para tentar impedir que o Japão estabelecesse uma Nova Ordem na Ásia.
O modo de lidar com um problema desses é claro: destruir o vírus e “inocular” aqueles que podem ser infectados. No caso do Vietname, a escolha racional era destruir qualquer esperança de desenvolvimento independente bem-sucedido e impor ditaduras brutais nos arredores. Essas tarefas foram levadas a cabo com sucesso – embora a história tenha a sua própria astúcia, e algo similar ao que foi temido desde então se tenha desenvolvido no Leste da Ásia, na maior parte dos casos para consternação de Washington.
A vitória mais importante das guerras da Indochina deu-se em 1965, quando um golpe de estado militar com o apoio dos EUA, liderado pelo general Suharto, significou crimes massivos comparados pela CIA aos de Hitler, Stalin e Mao. A “assombrosa matança massiva”, como a descreveu o New York Times, foi cuidadosamente reportada nos meios dominantes, e com desenfreada euforia.

*Em Al Jazeera Fevereiro, 2012