Pequena Fábula (*)“‘Ah’,
disse o rato, ‘o mundo torna-se cada dia mais estreito. A princípio era
tão vasto que me dava medo, eu continuava correndo e me sentia feliz
com o fato de que finalmente via à distância, à direita e à esquerda, as
paredes, mas essas longas paredes convergem tão depressa uma para a
outra, que já estou no último quarto e lá no canto fica a ratoeira para a
qual eu corro’. – ‘Você só precisa mudar de direção’, disse o gato e
devorou-o”. Muitas teses e antíteses já entraram em
entrechoque para tentar determinar o sentido cabal que daria conta da
labiríntica fábula em questão. Assim, ora a vastidão inicial do mundo
estaria relacionada ao Jardim do Éden, a utopia mítica, ora ela diria
respeito aos primórdios das revoluções, em que a euforia coletiva pela
nova miríade de oportunidades daria vazão a um perigoso caos político
que logo precisaria de restrições para não se transformar em completa
balbúrdia. As paredes que acabam por despontar à direita e à esquerda
seriam, então, o sinal da Queda dos homens – a perda da liberdade
original pela expulsão do Éden idílico – e/ou a chegada de um ditador
que, com pulso firme, colocaria ordem na desordem, uma vez que não
poderia haver vácuo no poder. Religiosos e políticos fariam um breve
armistício, no entanto, diante da fraqueza original do homem – o rato
trêmulo – que demandaria a tutela infalível de Deus e/ou do Guia Genial
dos Povos – eis a onisciência e a onipresença do gato. (Iconoclastas
tanto da tradição quanto do poder, os anarquistas de plantão
discordariam de ambos os lados e diriam ser necessário pôr abaixo o
labirinto; se tal fato acontecesse – dizem os religiosos e políticos que
apenas por ora voltam a concordar –, o bebê seria jogado fora junto com
a água do banho, já não haveria motivo para discordâncias, já não
haveria nem mesmo a fábula de Kafka, “nós não teríamos o que fazer,
ficaríamos todos desempregados, e vocês, anarquistas, já não teriam o
que destruir”.)
Diante do labirinto polissêmico de Kafka, que
arremessa as interpretações contrárias e contrariadas em um turbilhão
infindável de contradições, uma máxima de Oscar Wilde parece dar o tom
para a contenda fabular entre Tom e Jerry. “Quando os críticos discordam
entre si, o artista concorda consigo mesmo” (**).
E se ao invés de perguntarmos
o que a pequena fábula quis dizer, passarmos a interrogar
como ela o fez? Se voltarmos nossas atenções para a
forma
kafkiana de estruturação e movimentação dos conflitos, talvez cheguemos
à conclusão de que a dinâmica da História está inconclusa; de que a
desigualdade entre gato e rato permanece, de modo a conferir atualidade à
dialética entre liberdade e autoritarismo; de que o sentido está não no
conteúdo unívoco que a fábula possa conter, mas na
forma
polissêmica que norteia e desnorteia as mais diversas interpretações e
cuja dinâmica prolonga as contradições sem reconciliar os conflitos que a
História ainda não resolveu. A meu ver, a atualidade de Kafka reside na
plasticidade da moldura de seu labirinto, cujas galerias comportam os
entrechoques das mais diversas teses e antíteses. Analisemos, então, o
modo pelo qual a forma distópica, em estreito diálogo com as
contradições históricas, transforma os discursos utópicos em antecâmaras
do labirinto, ao fim do qual a saída não passa de uma nova entrada.
Senão, vejamos.
Em primeiro lugar, é preciso salientar o caráter
fabular
da breve estória kafkiana. Animais com características humanas
vivenciam experiências e procuram torná-las inteligíveis para si
próprios – e para os leitores. Animais sociais que somos, nós não
vivemos em meio à natureza sem a mediação das transformações históricas.
Assim, o processo de identificação entre o leitor humano e as
personagens animais apresenta, desde o princípio, um sentido trágico e
cínico para a fábula: como a humanidade ainda não conseguiu superar as
contradições de um capitalismo voraz que arremessa seus súditos em
relações de competição contínua e autofágica, a personificação dos
animais e a animalização das pessoas medem a distância histórica entre a
utopia não realizada e a distopia de nosso cotidiano. Ademais, a cadeia
alimentar que coage os animais – mas que não deveria coagir os animais
racionais – estabelece uma hierarquia inequívoca entre gato e rato:
predador e presa. Quando entreveem essa assimetria, muitos leitores
associam
imediatamente a figura do gato ao poder, enquanto o rato representaria o povo secularmente acossado. Tal leitura não leva em consideração a
lógica impessoal do poder que subjaz à construção kafkiana.
O século XX, século
kafkiano,
demonstrou que a revolução bem pode degringolar em contrarrevolução. O
líder fascista Benito Mussolini certa vez afirmou que, após a revolução,
resta o problema dos revolucionários. Seria possível exercer contínuas
autocríticas sem municiar os opositores que almejam o poder? Mas sem o
exercício contínuo da crítica e da autocrítica, como garantir que o
poder e os poderosos não demandarão a autocracia? Ora, os primórdios da
revolução pareciam ter transformado o mundo em mera imagem e
representação, tudo parecia possível. Trótski certa vez profetizou que,
em meio à sociedade transformada pelo socialismo, o nível médio dos
cidadãos seria comparável a Marx e a Aristóteles. Antes que
conservadores onipresentes riam do revolucionário russo, é preciso levar
em consideração o profundo otimismo histórico que embasava tal
colocação. A revolução prometia romper os aguilhões que impediam o
desenvolvimento humano. Artistas russos chegaram a declinar da autoria
de suas obras. “Não fomos nós que as criamos, a história falou através
de nós, o proletariado é o grande autor”. Mas os interrogatórios
vindouros da polícia política de Stálin acabariam com o otimismo da
autoria coletiva. “Vamos, confesse!” O patíbulo e o degredo na Sibéria
como testemunhas oculares.
A esquerda tende a se
endireitar
quando toma as rédeas do poder. A direita não sabe bem o que fazer com o
bastão da oposição, mas precisa minimamente contestar se quiser
sobreviver em sua mais nova e insólita posição. A História nos ensina
que a
lógica do poder tende a subverter e a inverter as prerrogativas do líder, grupo e partido que ocupam o trono.
Nesse sentido, gato e rato são menos papéis demarcados e unívocos do que
funções
dinâmicas a serem ocupadas ora por um ator, ora por outro. Se os
esquerdistas não estudarmos as lições de Kafka, estaremos fadados a
vestir ainda uma vez a fantasia do gato para colocarmos os trajes de
rato naqueles que a revolução obrigou a ceder as velhas vestes de
felino. Assim, campos de concentração siberianos, os Gulags de Stálin,
revoluções culturais que queimaram livros e paredões não conseguiram
romper a
lógica taliônica do poder que os revolucionários outrora
afirmavam utilizar apenas momentaneamente enquanto o capitalismo não
era superado por completo. (Quando os porões da Estação da Luz ficavam
superlotados, os torturadores do DOPS paulistano não tinham quaisquer
escrúpulos em voltar a dar aulas prática de lógica do poder àqueles que
ousavam não delatar os camaradas que ainda não haviam sido presos.)
Ao voltarmos ainda uma vez para a
Pequena Fábula,
descobrimos que, a princípio, o rato se lamenta pela crescente
estreiteza do mundo. O rato, animal combalido em face do gato vindouro,
parece demandar maior liberdade. (Se a estória parasse por aqui, os
anarquistas iriam a Praga a fim de convidar Franz Kafka para o congresso
literário de maio de 1968.) Mas a frase seguinte – a antítese em face
da tese que a primeira frase apresenta – narra um ratinho temerário em
relação à vastidão inicial do mundo. Podemos deduzir, então, que havia
uma imensidão anterior à contínua estreiteza do mundo com a qual o rato
se depararia posteriormente. Como decidir qual a posição efetiva do
rato? Ele teme as múltiplas possibilidades de um mundo vasto, mas ao
mesmo tempo se lamenta por conta do contínuo emparedamento a que o mundo
transformado o coage. Enquanto os críticos partidários quiserem
atribuir um conteúdo unívoco à trajetória do rato, não será possível ver
que a
lógica poética de Kafka, ao mimetizar os movimentos
contraditórios da História, arremessa o roedor ora à direita, ora à
esquerda, ora como sujeito de suas demandas, ora como súdito de seu
medo, de modo que a leitura que opte por um único sentido acaba
resolvendo artisticamente um conflito que, no terreno da luta de
classes, ainda não foi superado. Assim, a despeito da boa intenção
inicial que não sabe agir sem tachar
amigos e inimigos, camaradas e inimigos do Estado, companheiros e opositores,
a tentativa de arregimentar Kafka em um partido ou tendência únicos
dilui a enorme atualidade de sua forte crítica social que está presente
na
dinâmica de sua estória, na
lógica poética de sua
fábula. O problema para a crítica partidária é que a crítica social
kafkiana não resolve as contradições que a História só faz prolongar, e
então ela se mostra
impessoal e sem muita utilidade para aqueles
que só cumprirão os desígnios do poder sem romper com a sua lógica
histórica que delineia e define as fronteiras das ações políticas.
O advérbio
finalmente,
na segunda frase da fábula, traz um certo alento ao pobre ratinho que,
enfim, vê as paredes de Deus, do Pai, do pai, do partido, da empresa, do
casamento, do clube etc. do etc. lhe darem novamente um mínimo de
segurança. Para aqueles que não estamos acostumados a viver segundo o
ritmo incerto da liberdade socialmente construída, as contradições
históricas sussurram que tende a haver uma grande contiguidade entre o
medo de caminhar com as próprias pernas e a entrega da própria autonomia
a terceiros para que a incerteza pessoal seja permutada pela tutela
alheia. (Se o labirinto de Kafka tivesse os contornos de uma catedral, o
ratinho comeria a hóstia e se confessaria com o padre “por séculos e
séculos, amém”.) Mas, novamente, Kafka dá dinamismo ao movimento da
contradição, já que o ratinho passa a sentir que, agora, “essas longas
paredes convergem tão depressa uma para a outra”. Vale a pena retomarmos
o fio da meada: primeiro o rato é altivo, pois reclama da estreiteza do
mundo – rato revolucionário; depois o ratinho sente medo pela vastidão
inicial e se alivia com o fato de que, à distância, à direita e à
esquerda, as paredes, isto é, os limites, passam a se delinear – ratinho
reacionário; agora, ele volta a se contrapor ao movimento do labirinto,
uma vez que as paredes que se estreitam cada vez mais passam a
coagi-lo. Além de sugerir que há uma contiguidade entre os extremos,
como se a liberdade total e a coação totalitária trouxessem temores e
tremores parelhos, a pequena fábula de Kafka nos leva ao “último
quarto”, em cujo canto fica a ratoeira para a qual o rato se encaminha.
Abstraiamos o conteúdo da micronarrativa e tentemos desenhar o trajeto patibular de Mickey Mouse. O descampado idílico do
Gênesis
não tem fronteiras. O olhar do roedor não consegue abraçar o horizonte.
(E, se pensarmos bem, será que conseguimos imaginar a noção do infinito
sem que, no limite, coloquemos algum tipo de delimitação – uma cerca –
para nos dar guarida?) De repente, o rato marcha – começa a correr de
medo, a bem dizer – e as paredes convergem, à direita e à esquerda. Ora,
salvo engano – e o poder bem gosta de nos ludibriar –, estamos cada vez
mais diante de um funil, a metade de um losango, em cujo extremo
desponta a ratoeira. Ora, o ratinho revolucionário e reacionário é
provido de razão, só que o cérebro roedor precisa das proteínas do
queijo para continuar a pensar, a questionar – e a temer. Mas – e o
fluido das contradições kafkianas sempre desliza ao sabor de conjunções
adversativas –, se as paredes convergem unidirecionalmente, basta ao
rato dar meia-volta – a História fardada diria: “volver!” – para que as
paredes antes convergentes passem a divergir e a se distanciar. O mundo
voltará a ficar vasto, o Éden será então recuperado, mas e quanto ao
medo, o irmão mais novo do pecado original? A
Pequena Fábula de
Kafka seria uma estória sem fim, já que a retomada da vastidão levaria o
rato novamente à fuga para o extremo oposto em que está a ratoeira, e,
ao se deparar com o beco sem saída, ele sentiria a nostalgia do paraíso
perdido do qual fugiria ainda uma vez para logo em seguida voltar a
buscá-lo – “por séculos e séculos, amém”.
Mas eis que a
criatividade de Kafka acompanha as contradições irresolutas da História e
faz surgir na estória uma nova personagem, o bichano que esta análise
já havia anunciado. Leiamos o conselho que o gato, possível autor de
best-sellers de autoajuda, tem a dar ao roedor – e aos leitores:
– Você só precisa mudar de direção.
Por
um lado, se o rato seguir o conselho do gato, logo encontrará a
diluição de seus temores e tremores no suco gástrico do estômago felino.
Por outro, se o rato degustar o queijo gorgonzola que o magnetiza sobre
a ratoeira, já não haverá mais choro e ranger de dentes. Que fazer?
Neste momento, o leitor me permitirá a heresia de apontar um certo anacronismo na
Pequena Fábula
kafkiana. O escritor tcheco complementou a colocação do gato com o
seguinte arremate: “disse o gato e devorou-o”. Será que, no atual
contexto histórico, seria preciso dizer que o gato devorou o rato? Onde
estão as efetivas contestações? Onde está a revolução? Quando uma rede
de fast food árabe utilizou, há alguns anos, o mote
revolução nos preços para os
preços revolucionários
de suas esfihas abertas, cujos anúncios eram apresentados com a boina
de Che Guevara, entrevi o labirinto histórico em que estamos
encurralados. O discurso potencialmente emancipatório é cooptado como um
lucrativo slogan de mercado. Ao contrário do que diziam os
revolucionários de maio de 68, o capitalismo tardio sentencia que a
revolução será televisionada.
O arremate de Kafka mostrou-se
profético diante do espectro nazista que, nas primeiras décadas do
século XX, já rondava a Europa. Hoje, no entanto, o carrasco parece ter
sido introjetado, não sabemos muito bem onde está o poder –
quem, ou pior,
o que ele é.
Mas
ele nos acorda cotidianamente às 5h – ou às 8h, para o privilégio dos
paulistanos que moram dentro do perímetro central circundado pelas
marginais. Se retirarmos a última parte da frase que conclui a
Pequena Fábula,
levaremos às últimas consequências o labirinto kafkiano. Afinal, após o
conselho do gato, o que é que o rato vai fazer? Fugirá do gato e
correrá para o patíbulo da ratoeira? Tapeará a fome e renegará a
ratoeira apenas para correr em direção ao corredor polonês da garganta
do gato? Ou será que, diante deste novo fim não finalizado, desta nova
resolução irresoluta que propomos, o rato não lançará mão de um dos
últimos redutos que (ainda) não foram totalmente cooptados pelo poder – a
imaginação? Por mais exígua e improvável que a escapatória se
apresente, um final que pressuponha maior abertura daria continuidade à
contradição da estória e da História: a possibilidade de fuga caminharia
lado a lado com o prolongamento sádico da tortura do ratinho.
Ao
contrário do que dizem os apologistas do fim da História, a luta de
classes não se calou. No entanto, diante da assepsia publicitária por
que passam os discursos contestatórios, a lógica poética de Kafka nos
leva a pensar a contrapelo de nós mesmos: se o movimento da contradição
histórica não for estancado e reconfigurado, continuaremos a figurar
como coadjuvantes da cadeia alimentar que nos coage à frieza, à
brutalidade e ao cinismo do entrechoque entre gato e rato, de modo que a
Pequena Fábula possa receber um novo título mais condigno com o prosaísmo (supostamente) despolitizado dos tempos atuais:
Segunda-feira.
(*) In
Narrativas do Espólio, tradução de Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2002, p. 138.
(**)
Aforismos ou mensagens eternas, tradução de Duda Machado. São Paulo: Landy Editora, 2006, p. 69.
Flávio Ricardo Vassoler é mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP e escritor. Seu primeiro livro,
O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos), será publicado em abril. Periodicamente, atualiza o
Subsolo das Memórias,
www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.