domingo, 28 de outubro de 2007

Jô Soares passa dos limites em entrevista racista e pedófila


Renato Rovai, editor da revista Fórum, publicou nesta sexta-feira (26) em seu blog um texto no qual critica o apresentador Jô Soares, da Rede Globo, por conduzir de modo inadequado uma entrevista realizada nesta semana.


Confira abaixo a íntegra do texto, no qual Rovai tacha a entrevista realizada pelo humorista de racista e pedófila:


“Acabo de receber um e-mail que originalmente foi postado por Vilma Piedade do Movimento de Mulheres Negras do Rio de Janeiro. Ela envia o link de um recente programa do Jô Soares onde ele entrevista um sujeito que atende pelo nome de Rui Moraes e Castro. O tal foi no Jô sabe para quê? Para explicar a relação do penteado das mulheres negras de Angola com as suas vaginas.


Entre outras coisas o tal mostra um corte de cabelo, que segundo ele foi armado com bosta de boi e fala que aquela mulher quer mostrar que está ‘mais apertada’. E diz, em resumo, o seguinte: ‘como o negro começa sua relação sexual com seis, sete anos e essa mulher já tem 20, 21 anos ela está velha, acabada, larga. Então ela fez uma operação no clitóris a sangue frio, com uma faca de sapateiro, e fica mais fechada. Com esse cabelo ela está dizendo ao homem que voltou a ficar fechada e que vai dar tanto gozo ao homem como uma garota de sete ou oito anos...’.


Sabe o que o Jô fez, divertiu-se a beça com a história. E continuou a entrevista com preconceitos e histórias horrorosas assim por mais uns cinco minutos.


Estou indo lavar o rosto para me acalmar e não escrever o que estou com vontade. Sugiro ao movimento negro e a outras organizações do movimento social que tomem uma medida exemplar contra isso. É preciso ir à Justiça pedir punição ao Jô, ao seu programa e ao entrevistado que atentaram nessa entrevista contra uma série de artigos da Constituição.


Também peço àqueles que vierem a comentar que façam como eu e, mesmo com vontade, evitem os palavrões e os ataques pessoais. Terei de editar comentários desse tipo. Passem esse vídeo para o maior número de pessoas. E daqui a Fórum já se coloca à disposição para qualquer movimento solicitando punição ao Programa Jô Soares pelos preconceitos emitidos e por fazer alusão à pedofilia.


Isso não é censura. É a regra do jogo. Não é permitido ao concessionário de sinal televisivo ou de rádio a divulgação de informação ou programação que incentive o preconceito de cor, raça ou credo. Quanto mais falar em atos sexuais prazerosos com meninas de sete ou oito anos.”


Fonte: Blog do Rovai

Ruralistas ignoram Estado Democrático de Direito



Mateus Alves - CorreioDaCidadania

O conflito em Santa Tereza do Oeste, no estado do Paraná, entre a milícia da empresa NF Segurança e militantes do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra) e da Via Campesina, é a mais recente demonstração da total ignorância da existência de um Estado Democrático de Direito no Brasil por ruralistas, que continuam utilizando a violência rotineiramente.

O assassinato do sem terra Valmir Mota de Oliveira, também conhecido como Keno, ocorreu após a reocupação das terras utilizadas pela transnacional Syngenta Seeds para o plantio de sementes transgênicas experimentais. Na manhã do dia 21 de outubro, cerca de 150 agricultores tomaram a área – cujas funções têm sua legalidade contestada devido à proximidade ao Parque Nacional do Iguaçú - e renderam os seguranças da NF, cujas armas foram retiradas.

A reação da milícia da NF ocorreu às 13h30 do mesmo dia, quando um ônibus estacionou em frente à ocupação e cerca de 40 pessoas armadas desceram do veículo atirando contra os ocupantes. Keno, de 42 anos, foi atingido no peito por dois tiros; outros seis sem terra foram gravemente feridos.

De acordo com as testemunhas, a milícia tinha a intenção de assassinar os líderes dos movimentos sociais presentes no local. Uma denúncia anônima, feita dias antes, avisava de “uma armadilha que estava sendo preparada pela UDR (União Democrática Ruralista)”.

Conseguiram escapar com vida da ação paramilitar Celso Ribeiro Barbosa e Célia Lourenço, que, juntamente com Keno, eram os líderes sem-terra almejados pela milícia.

Paramilitares ilegais

Contratada pela Syngenta Seeds para proteger os campos experimentais, a NF Segurança atuava de forma ilegal na região, sendo inclusive alvo de uma ação da Polícia Federal ocorrida em outubro, quando foram apreendidas armas e munições ilegais na sede da empresa.

Embora a transnacional negue ter dado qualquer ordem para a retomada da área ocupada, a prática de violência por milícias ligadas à empresa de segurança contratada pela Syngenta já havia sido denunciada pelos trabalhadores rurais (clique aqui para ver o documento com as diversas denúncias) em audiência pública com membros da Comissão de Direitos Humanos da Câmara Federal na capital Curitiba, realizada poucos dias antes da tragédia em Santa Tereza.

A Sociedade Rural do Oeste (SRO) e o Movimento dos Produtores Rurais (MPR), associações ruralistas lideradas pelo fazendeiro Alessandro Meneghel, são citadas como fomentadores de milícias armadas na região oeste do Paraná, um dos principais focos de conflito agrário no país.

"Os ruralistas cometeram diversas agressões contra agricultores na região, como o fechamento de estradas no ano passado, ameaças por telefone e a invasão do assentamento vizinho às áreas da Syngenta", diz a advogada da ONG Terra de Direitos, Gisele Cassano.

De acordo com a advogada, a criação do MPR teve como principal intuito a arrecadação de fundos para a contratação de seguranças para garantir a reintegração de posse em terras ocupadas na região.

A utilização de milícias em ações contra a população constitui grave afronta à Constituição Federal, que, por meio de seu artigo 5º, inciso XVII, proíbe a formação de grupos paramilitares. No entanto, durante a audiência com a CDH da Câmara, os ruralistas já afirmavam que iriam contratar empresas de segurança para remover ocupações em áreas improdutivas no Paraná.

Ataque a princípios democráticos

A formação de milícias não tem sido o único instrumento antidemocrático utilizado por ruralistas no embate que travam contra instituições e organizações progressistas no Brasil.

No mês de agosto, ativistas do Greenpeace, da OPAN (Operação Amazônia Nativa) e dois jornalistas franceses foram impedidos de chegar às áreas indígenas em Juína, no Mato Grosso, pelo prefeito da cidade, Hilton Campos (PP), levado ao cargo devido ao apoio que possui entre os fazendeiros da região.

Assim como no Paraná, a expansão do agronegócio sobre terras ilegais ocorre freqüentemente em Juína. Os alvos dos fazendeiros, no entanto, são os indígenas Enawenê-Nawê, que reivindicam seus direitos sobre terras ainda não demarcadas.

A truculência dos fazendeiros com os ativistas e jornalistas, cercados no hotel onde estavam e levados a uma audiência na Câmara Municipal da cidade, está registrada em um documentário intitulado "Amazônia, uma região de poucos" (clique aqui para assistir).

Nos depoimentos dos fazendeiros e políticos de Juiná, são amplas as provas de que a democracia ainda dista de certas regiões do país, onde se minam, facilmente, o direito de ir e vir e o direito à liberdade de imprensa, garantidos na Carta de 1988. Algo ainda mais estarrecedor – e inconcebível em qualquer democracia - se dá em certo momento durante a audiência com o prefeito da cidade mato-grossense, quando um discursante declara que "os índios são nossos".

Reações

As reações da sociedade frente à escalada da violência e da destruição dos princípios democráticos nas regiões de conflito agrário parecem ter, hoje, uma celeridade maior do que em anos anteriores e lideranças proeminentes no campo político não tardaram a demonstrar preocupações com os ocorridos.

Logo após os acontecimentos no Paraná, uma frente parlamentar – composta principalmente por políticos pró-reforma agrária - se reuniu com Tarso Genro, ministro da Justiça, para pedir providências em relação aos crimes cometidos pelas milícias ruralistas.

De acordo com o deputado federal Adão Pretto (PT/RS), um dos participantes do encontro com o ministro, o resultado da reunião foi positivo e um relatório das ações paramilitares no oeste do Paraná deverá ser preparado em breve, assim como uma denúncia oficial para que o ministério tome as providências cabíveis.

"Genro ainda prometeu disponibilizar a Polícia Federal para o caso", relatou Pretto. No Paraná, também já se iniciam as investigações, cujas conclusões deverão apontar os reais motivos e os devidos culpados por tamanhas agressões às instituições democráticas do Brasil.

Como Washington atiça o Irã

Um analista destacado da política norte-americana em relação à Ásia descreve a série de iniciativas em curso contra Teerã – de apoio a grupos terroristas a boicote econômico. Conclusão: a ação dos EUA ajuda a sustentar a linha-dura iraniana, ao permitir que atribua seus próprios erros ao "inimigo externo"

Selig S. Harrison - LeMondeDiplomatique

Na luta que se trava no seio do governo Bush, em relação à política face ao Irã, dois campos se definem com clareza. De um lado, o vice-presidente Richard Cheney e seus aliados no Pentágono e no Congresso, com o incentivo do Comitê Israelense-Americano de Assuntos Públicos, não só desejam que os EUA bombardeiem a unidade de enriquecimento de urânio em Natanz mas também apóiam ataques aéreos a bases militares iranianas próximas da fronteira com o Iraque. De outro lado, a secretária de Estado Condoleezza Rice deseja continuar na via diplomática, reforçando e alargando as negociações com Teerã, iniciadas no final de maio, em Bagdá. Porém, o preço que Condoleezza teve que pagar por adiar a ação militar foi participar de um compromisso perigoso: a intensificação de operações clandestinas destinadas a desestabilizar a República Islâmica, formalizadas por meio de decreto presidencial no final de abril.

Ações clandestinas para derrubar o regime de Teerã foram colocadas em prática de forma intermitente ao longo da última década. No entanto, até este momento, a CIA operara sem decretos, utilizando-se de subterfúgios. Por exemplo, o Paquistão e Israel forneciam armas e fundos a grupos insurgentes no sudeste e noroeste do Irã, onde as minorias étnicas baluque e curda, muçulmanas sunitas, há tempos combatem o poder central, persa e xiita. A autorização presidencial de abril permite a intensificação das operações “não-letais” conduzidas diretamente por agências norte-americanas. Além da transmissão de propaganda, de uma campanha midiática de desinformação e do uso de exilados iranianos, baseados nos EUA e na Europa, em protestos políticos, o novo programa privilegia a guerra econômica — principalmente a manipulação das taxas cambiais e outras medidas destinadas a perturbar as atividades bancárias e comerciais do Irã.

Considerada confidencial, a nova estratégia não se manteve secreta por muito tempo, depois de informada aos comitês de inteligência das duas câmaras do Congresso, como determina a lei. Em minha recente estada em Teerã, esse era o assunto de todas as rodas. Para minha surpresa, tanto os conservadores quanto os reformistas concordavam que o decreto surgiu em um momento bastante impróprio, diante de uma real oportunidade de cooperação com os Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão. Membros graduados do Ministério das Relações Exteriores, do Conselho de Segurança Nacional e do gabinete do presidente Mahmud Ahmadinejad, bem como instituições de pesquisas simpáticas ao governo, estimam que a estabilidade no Iraque e no Afeganistão é de interesse do Irã e que a cooperação com os Estados Unidos é possível. Mas somente se, em contrapartida, houver um acordo gradual entre Washington e Teerã, com o fim das políticas norte-americanas direcionadas à “mudança do regime” iraniano.

No Iraque, “os EUA são como uma raposa presa em uma armadilha”, observou Amir Mohiebian, editor do diário conservador Reselaat. “Por que libertarmos a raposa, se ela pode acabar nos comendo? Claro que, se os EUA alterarem sua política, existe espaço para cooperação”. No outro lado do espectro jornalístico, Mohammed Adrianfar, editor do Hammihan, que apóia o ex-presidente Akbar Hashemi Rafsanjani [1], disse que “a atmosfera está propícia para dar início a negociações e relações”. E prosseguiu: “O povo quer estabilidade. O slogan ‘Morte aos EUA’ não funciona, e nossos líderes sabem disso. É irônico que dois governos inimigos tenham tantos interesses em comum no Iraque e no Afeganistão.”

Embora não se discuta se o Irã ajuda as milícias xiitas no Iraque — e, caso ajude, quais delas — Alaeddin Borujerdi, chefe do Comitê de Relações Exteriores do Majlis (Parlamento), criticou a indulgência dos EUA para com os afiliados do partido Baath e outros sunitas. Deixou claro que Teerã espera uma predominância xiita, como pré-requisito para estabilidade em Bagdá e para um eventual acordo com Washington.

Entre as provocações, apoio a grupos classificados como "terroristas"

Segundo os dois editores citados e várias autoridades, a melhor forma de os norte-americanos começarem a retroceder de sua política de “mudança de regime” seria o fim da milícia persa de exilados, conhecida como Mujahidin-e-Khalq (MEK), baseada no Iraque e apoiada pelos EUA. A MEK apoiou Saddam Hussein na guerra entre o Iraque e o Irã, de 1980 a 1988, e seus 3.600 combatentes, muitos deles mulheres, permaneceram em território iraquiano. Conforme fontes dos EUA, desde a invasão do Iraque, as agências de inteligência norte-americanas desarmaram os combatentes, mas mantiveram intactas as bases da MEK próximas à fronteira iraniana, usando espiões da organização para missões de sabotagem e espionagem no Irã e para interrogar iranianos acusados de ajudar as milícias xiitas do Iraque. A MEK também é responsável pela transmissão de propaganda política por rádio e TV. Até pouco tempo, suas estações transmitiam para o Irã, a partir do Iraque. Porém a pressão iraniana sobre o governo de Bagdá forçou a mudança para Londres. Ironicamente, quando o moderado Mohammed Khatami foi eleito presidente do Irã, em 1997, o Departamento de Estado norte-americano protagonizou um gesto conciliador, listando a MEK como organização terrorista e imputando-lhe violações em massa dos direitos humanos – imputação que ainda permanece.

A desmobilização das forças paramilitares da MEK seria uma maneira eficaz de mostrar que Washington está pronto para dar início a um acordo com Teerã, sugere Abbas Maleki, consultor do Conselho de Segurança Nacional. Pois a organização é o único grupo exilado militarizado que tenta derrubar a República Islâmica, e também o preferido do lobby para “mudanças de regime no Irã” ativo em Washington. Alireza Jaffarzadeh, líder do Conselho Nacional de Resistência do Irã, a fachada política da MEK, aparece regularmente no canal conservador Fox News, como especialista em Irã, com um papel similar ao de Ahmad Chalabi durante os preparativos para a invasão do Iraque: o de mobilizar o apoio do Congresso e da mídia para uma ação militar contra o Irã.

Como ficou demonstrado pela classificação da MEK entre as organizações terroristas, o governo Clinton esperava uma abertura diplomática em direção ao Irã. Assim, quando Newt Gingrich, então presidente republicano da Câmara dos Representantes, conseguiu a aprovação de um crédito de US$18 milhões para ações clandestinas “não-letais” destinadas a “forçar a substituição do regime no Irã”, a Casa Branca chamou a CIA à prudência. Porém, o governo Bush rapidamente mudou o curso dos acontecimentos. Cheney concordava com a meta de “mudança de regime” de Gingrich, e convenceu aqueles que duvidavam dessa meta de que a pressão sobre Teerã fortaleceria os EUA nas negociações para pôr fim ao programa iraniano de enriquecimento do urânio. Primeiro, o governo reacendeu e expandiu os planos dormentes para ações clandestinas “não-letais”, contidas no plano de Gingrich. Em seguida, em fevereiro de 2006, conseguiu a aprovação do Congresso para a liberação de uma verba de US$75 milhões a ser usada em um programa aberto do Departamento de Estado destinado a “promover a abertura e a liberdade” no Irã. Por fim, determinou meios secretos de atacar o regime militarmente, sem a necessidade de um decreto presidencial formal.

O modo mais simples de se conseguir isso era fazer com que o Paquistão e Israel armassem e financiassem grupos insurgentes já existentes nas áreas balúchis e curdas, por meio de relações bem enraizadas entre os EUA, o Serviço Secreto Paquistanês (ISI – Interservices Intelligence Directorate) e o serviço secreto israelense (Mossad).

Movimento mais recente: Washington arma grupos dissidentes e separatistas

O ISI canalizou o envio de armas e capital a um grupo dissidente balúchi já estabelecido, o Jundullah, que causou alto número de baixas em uma série de ataques contra unidades da Guarda Revolucionária Iraniana, ocorridos em Zahedan e áreas do sudeste iraniano em 2006 e 2007. Os EUA não tentaram esconder seu apoio ao Jundullah. Em 2 de abril de 2007, o programa Voz da América entrevistou o líder da milícia, Abdulmalek Rigi, apresentando-o como “líder do movimento de resistência popular no Irã”.

Como autor de um livro sobre os balúchis [2], tenho muitos contatos com esse povo, e, em recente encontro em Dubai, alguns dos meus conhecidos apresentaram diversos fatos que comprovam a ligação de Rigi com o ISI. Correspondentes da rede de televisão norte-americana ABC, em reportagem no território paquistanês, informaram que “fontes da inteligência dos EUA e do Paquistão reconheceram o apoio do ISI ao Jundullah” [3].

De sua parte, o Mossad possui contatos há cinco décadas nas áreas curdas do Irã e do Iraque. E, durante o reinado do xá Reza Pahlevi, utilizou seus agentes no Irã para desestabilizar os territórios curdos iraquianos. Considerando-se tal cenário, é possível acreditar nas informações de Seymour Hersh, de que o Mossad oferece “equipamento e treinamento” ao grupo curdo do Irã Pejak [4] – mesmo que o Pejak esteja ligado ao grupo curdo da Turquia PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), rotulado por Washington e Ancara como organização terrorista. Jon Lee Anderson entrevistou uma antiga autoridade curda do Iraque, que disse que o Pejak opera a partir de bases no Curdistão iraquiano, e realiza ataques no Irã com o “apoio secreto dos EUA” [5].

Em termos econômicos, a mais importante ameaça latente contra Teerã é a província sudoeste do Khuzestão, responsável por 80% da produção petrolífera do país. Os xiitas árabes do Khuzestão têm a mesma identidade étnica e religiosa dos xiitas árabes da bacia de Shatt-al-Arab no Iraque, e sua capital, Ahwaz, está a apenas 120 quilômetros a leste de Basra, onde as forças britânicas no Iraque estão aquarteladas. Considerando-se a história, não é surpreendente que Teerã acuse a Grã-Bretanha de usar Basra como base de inteligência para disseminar o descontentamento no Khuzestão. Com o apoio das forças e dos interesses britânicos em relação ao petróleo, os príncipes árabes do Khuzestão separaram-se da Pérsia, em 1897, e estabeleceram um protetorado controlado pela Grã-Britânica (o Arabistão), que a Pérsia reconquistou somente em 1925. Segundo acusações de grupos separatistas, embora a maior parte da receita petrolífera do Irã seja produzida no Khuzestão, Teerã rejeita oferecer uma participação em recursos para o desenvolvimento econômico à província. Até o momento, as facções separatistas não criaram uma força militar unificada, como o Jundullah do Baluchistão, e não há evidências de ajudas estrangeiras. No entanto, essas mesmas facções ensaiam, periodicamente, ataques a instalações de segurança do governo e bombardeiam unidades de produção de petróleo. Muitas, ainda, transmitem propaganda política em árabe a partir de pontos no exterior que não são claramente identificados.

Como a ação dos EUA favorece... a linha-dura iraniana

O Movimento Nacional pela Liberação de Ahwaz, que defende a independência, opera a Ahwaz TV, canal por satélite cuja tela exibe um número de fax que tem o código de área da Califórnia [6]. Outro canal por satélite, a Al-Ahwaz TV, igualmente transmitida por exilados iranianos na Califórnia, está ligada à Sociedade de Amizade entre Grã-Bretanha e Ahwaz, que defende a autonomia regional para a província, em um Irã federativo [7].

Aproximadamente metade (US$36 milhões) da verba de US$75 milhões liberada em 2006, nos EUA, é usada nos programas operados pelos EUA Voz da América e Radio Farda e nas instalações de transmissões anti-regime, como a Ahwaz TV, administradas por exilados iranianos nos EUA, Canadá e Grã-Bretanha. Outros US$20 milhões são gastos com entidades não-governamentais de defesa de direitos humanos no Irã e nos EUA. O subsecretário de Estado dos EUA, Nicholas Burns, afirmou que, devido à “dificuldade de entrada de recursos dos EUA no Irã”, resultado do “rígido tratamento do governo iraniano ao povo iraniano”, os Estados Unidos estão “atuando junto a organizações árabes e européias para apoiar os grupos democráticos no interior do país” [8]. Conforme relatou um iraniano, que no ano passado participou de seminário com apoio dos EUA, em Dubai, o evento “parecia um acampamento de treinamento para revolucionários, no estilo James Bond” [9]. Quatro participantes iranianos foram presos posteriormente.

Minha impressão em Teerã foi de que os esforços, secretos ou não, para desestabilizar a República Islâmica e pressioná-la economicamente em prol do abandono do programa nuclear foram contra-producentes por quatro motivos:

1. Deram, aos conservadores da linha-dura, uma desculpa para atacar tanto iranianos que trabalham internamente, buscando liberalizar o regime, quanto indivíduos com dupla cidadania, iraniana e norte-americana, como Haleh Esfandiari, do Centro Internacional de Acadêmicos Woodrow Wilson, que permaneceu preso por três meses, sob vagas acusações de espionagem;

2. Com a ajuda à insurgência de minorias étnicas, os EUA permitiram que o presidente Ahmadinejad se mostrasse defensor da maioria persa (as minorias constituem 44 % da população, sendo que a maior delas, a dos Azeris – 24 % –, passou pelo processo de assimilação, enquanto que os rebeldes – baluques, curdos e árabes do Khuzestão – estão dolorosamente divididos entre separatistas e aqueles que defendem a reestruturação em um Irã federativo);

3. Ahmadinejad pôde culpar as pressões econômicas externas pelos problemas econômicos que são, principalmente, resultado de sua má administração;

4. A negociação de compromissos para a estabilização do Iraque e do Afeganistão é possível, mas com a condição de que se ponha fim aos esforços de subversão e que o presidente Bush não coloque em execução sua ameaça de 28 de agosto, de “responder às atividades mortíferas de Teerã” no Iraque.

"Qual a vantagem de agitar o pano vermelho, como numa tourada"?

Porém, mesmo se a pressão diminuir, um compromisso nuclear definitivo é pouco provável, diante da ausência de mudanças na postura de segurança dos EUA no Golfo Pérsico. Uma suspensão das atividades de enriquecimento de urânio pelos iranianos em Natanz poderá ser obtida, se Israel aceitar a interrupção simultânea de seu reator em Dimona [10].

“Como podemos negociar a desnuclearização, se vocês enviam ao Golfo porta-aviões que, até onde sabemos, estão equipados com armas nucleares táticas?”, perguntou Alireza Akbari, ministro adjunto da Defesa no governo moderado de Khatami. “Como podem esperar que negociemos se vocês não discutem Dimona?”

As pressões, secretas ou não, que até agora foram aplicadas ao Irã servem apenas para enfurecer os iranianos de todas as tendências, fortalecendo os conservadores da linha-dura. É certo que as pressões econômicas são mais eficientes do que a ajuda secreta aos insurgentes. Porém, dos 40 bancos europeus e asiáticos que fazem negócios com o Irã, somente sete cortaram relações com o país, em resposta às sanções dos EUA. De qualquer forma, o Irã vem, cada vez mais, conduzindo seus negócios internacionais por meio de 400 instituições financeiras baseadas em Dubai — em sua maioria árabes. Considerando que as transações entre o Irã e os Emirados Árabes Unidos, incluindo Dubai, chegaram a quase US$11 bilhões neste ano, o subsecretário do Tesouro dos EUA, Stuart Levey, falou em vão quando ameaçou, com represálias, as empresas que faziam negócios com o Irã, em discurso proferido em Dubai, no dia 7 de março. O governo tenta colocar em prática medidas mais contundentes contra as empresas ligadas à Guarda Revolucionária e às bonyads — fundações dirigidas por clérigos. Porém, seu impacto até o momento foi limitado.

Comparando os EUA ao toureiro em uma tourada, um respeitado embaixador europeu que reside há anos em Teerã perguntou tristemente: “Qual é o objetivo disso tudo? Qual é a vantagem de se agitar o pano vermelho? Só enfurece o touro, cada vez mais. Não o mata”.



[1] No início de setembro de 2007, Rafsanjani foi eleito dirigente da assembléia de religiosos encarregada de designar o Guia Supremo (atualmente o ayatollah Ali Khamenei) e supervisionar sua ação.

[2] Afghanistan’s Shadow: Baluch Nationalism and Soviet Temptations, Carnegie Endowment for International Peace, 1980

[3] Brian Ross e Christopher Isham, ABC News, 3 de abril de 2007

[4] Seymour Hersh: “The Next Act,” The New Yorker, 27 de novembro de 2006.

[5] Jon Lee Anderson: “Mr. Big,” The New Yorker, 5 de fevereiro de 2007.

[6] BBC World Media Monitoring, 4 de janeiro de 2006.

[7] Al-Ahwaz News , British-Ahwaz Friendship Society, 11 de fevereiro de 2006

[8] Conselho de Relações Exteriores, Nova York, 11 de outubro de 2006.

[9] Negar Azimi: “The hard realities of soft power”, New York Times Magazine, 24 de junho de 2007.

[10] Para saber mais sobre o compromisso nuclear no Irã, ver Selig Harrison: “The Forgotten Bargain”, World Policy Journal, 2006.

O Império enxerga seu declínio

As divergências no interior do stablishment norte-americano tornam-se agudas, num sinal de que a guerra contra o Iraque pode ter revelado as debilidades do exército e, ainda mais grave, devastado a "legitimidade mundial da América"

Philip S. Golub - LeMondeDilomatique

No centro da elite do poder norte-americano, as conseqüências desastrosas da invasão e ocupação do Iraque provocaram uma crise ainda mais profunda do que a desencadeada pela derrota no Vietnã, há 30 anos. Para cúmulo da ironia, essa crise afeta a coalizão de ultra-nacionalistas e neoconservadores que se formou nos anos 70, exatamente para tentar pôr fim à “síndrome do Vietnã”, restaurar o poder norte-americano e fazer reviver o “anseio de vitória” dos Estados Unidos.

Se ainda não houve protestos em massa populares e organizados, como durante a guerra do Vietnã, é, sem dúvida, em razão de o exército ser composto principalmente de voluntários egressos dos meios sociais mais pobres; bem como pelo fato de essa guerra ser financiada "mal-e-mal" pelos capitais estrangeiros (por quanto tempo mais?). Mas, entre a “elite”, a crise rompeu o establishment de segurança nacional que governa o país desde a Segunda Guerra Mundial.

O desacordo expresso publicamente, por meia dúzia de generais da reserva, acerca da condução da guerra [1] — um fato sem precedentes —, veio se juntar à manifestação recorrente de dissenso entre as agências de informação e o Departamento de Estado, desde 2003. Isso denota uma tendência mais profunda, que atinge importantes setores da elite e as principais instituições do Estado. Mas poucos criticos da guerra são tão diretos quanto o general da reserva William Odom. Ele repete incansavelmente que a invasão do Iraque representa o “mais importante desastre estratégico da história dos Estados Unidos” [2]. Ou quanto o coronel Larry Wilkerson, ex-chefe do estado-maior de Colin Powell, que denuncia um “erro de dimensão histórica” e pede a destituição do chefe de Estado [3]. Ou ainda o ex-diretor do Conselho Nacional de Segurança, Zbigniew Brzezinski, que qualificou a Guerra no Iraque e a ocupação do país de “calamidade histórica, estratégica e moral” [4].

"Bando incompetente, arrogante e corrupto" (um oficial de alta patente, sobre o governo Bush)

Em sua maioria, as críticas da elite feitas publicamente não vão tão longe. Em geral, dirigem-se ao modo como a guerra e a ocupação tiveram início, mais do que à questão fundamental da invasão em si. Mas isso não muda o fato de que a discórdia é profunda e generalizada, com diferentes secretários [ministros] do governo rejeitando o erro e se acusando mutuamente de serem os responsáveis pela “perda do Iraque” [5]. Em privado, antigos dirigentes de alto escalão entregam-se a acessos de raiva impotente, denunciam “cabalas” sombrias e vituperam contra a Casa Branca. Sem a menor ironia, um ex-oficial do Conselho de Segurança Nacional compara os atuais ocupantes da instituição com “a família Corleone”, imortalizada no filme O Poderoso Chefão. “Por conta de um bando incompetente, arrogante e corrupto”, diz outro oficial de alta patente, “estamos perdendo nossa posição dominante no Oriente Médio”. Veterano do Vietnã, um senador republicano afirma: “A Casa Branca quebrou o exército e ultrajou sua honra”.

Nenhum desses críticos institucionais poderia ser de algum modo considerado “santo”: sejam quais forem suas afiliações políticas ou opiniões pessoais, eles foram, ou ainda são, guardiães do poder, gestores do Estado de segurança nacional. Foram, por vezes, atores de intervenções imperialistas abertas ou clandestinas, empreendidas no “Terceiro Mundo” durante e depois da guerra Fria. Foram (ou ainda são) “gestores de sistema” do aparelho burocrático de segurança nacional, que o sociólogo C. Wright Mills foi o primeiro a dissecar e cuja função é produzir e reproduzir o poder.

Conseqüentemente, não podemos distinguir tais “realistas”, enquanto grupo social, do objeto de suas críticas, no que diz respeito à disposição em empregar a força ou ao caráter implacável com que, a história está de prova, perseguiram os objetivos do Estado. A causa de seu descontentamento não pode ser atribuída a convicções divergentes em matéria de ética, normas e valores (ainda que tais diferenças possam motivar alguns indivíduos). A discordância é resultado de uma constatação fria, racional, de que a guerra no Iraque deixou “o exército norte-americano quase arruinado” [6] e comprometeu seriamente, até mesmo de maneira irreparável, “a legitimidade mundial da América” [7] — isto é, sua capacidade de moldar as preferências mundiais e de definir a ordem do dia no planeta. Em suas expressões mais sofisticadas, como no caso de Brzezinski, essa divergência traduz a compreensão do fato de que o poderio não se limita ao poder de coerção e que a legitimidade hegemônica, uma vez perdida, é difícil de ser restabelecida.

Américas, Ásia, Europa, Oriente Médio... Em toda parte, sinais de uma hegemonia em crise

Os sinais de queda da hegemonia norte-americana são visíveis em todos os lugares: na América Latina, onde a influência dos Estados Unidos é a mais baixa em décadas; no leste asiático, onde Washington, de má vontade, teve de negociar com a Coréia do Norte e reconhecer na China um ator indispensável à segurança regional; na Europa, onde o projeto de instalar baterias antimísseis é contestado pela Alemanha e outros países da União Européia; no Golfo Pérsico, onde os aliados de longa data, como a Arábia Saudita, perseguem objetivos regionais autônomos que, somente em parte, coincidem com os dos Estados Unidos; no seio das instituições internacionais, seja a ONU, seja o Banco Mundial (cujo presidente, o norte-americano Paul Wolfowitz, envolvido em um esquema de nepotismo, teve de entregar o cargo, em 30 de junho), onde Washington não tem mais condições de determinar a ordem do dia.

Ao mesmo tempo, as pesquisas de opinião internacionais, realizadas regularmente pelo PEW Research Center de Washington [8], apontam uma atitude sistemática de desafio à política externa norte-americana em nível quase mundial e um desgaste do “soft power”, o fascínio exercido pelos Estados Unidos no mundo. O “sonho norte-americano” afundou, diante da imagem de um leviatã militar que exibe apenas desprezo pela opinião pública internacional e viola as regras que os próprios Estados Unidos instituíram [9]. A opinião mundial pode não pôr fim às guerras, mas pesa de forma mais sutil nas relações internacionais.

Limitar, em parte, esse desgaste seria talvez possível sob a condução de outros dirigentes e em circunstâncias totalmente novas. É, no entanto, difícil imaginar como um novo consenso interno poderia ser restabelecido no curto prazo. Foram necessários muitos anos para reconstruir o exército, após submetê-lo a duras provas na Guerra do Vietnã, bem como repensar as doutrinas e definir um novo consenso das elites, quando não popular, sobre o uso da força. Depois do Iraque, não será fácil mobilizar o sentimento nacionalista para empreender novas aventuras no exterior. Da mesma forma, não se pode esperar um retorno ao status quo anterior da política mundial.

Em xeque, idéias sobre o papel internacional dos EUA que animaram o país desde os anos 1940

A invasão e a ocupação do Iraque não são as únicas causas das tendências mundiais evocadas acima. A guerra somente acentuou um momento em que forças centrífugas maiores já estavam em ação: o desgaste e o posterior desmoronamento do “Consenso de Washington” e o aumento da influência de novos centros gravitacionais econômicos — sobretudo na Ásia —, já bem estabelecidos quando George W. Bush tomou a decisão calamitosa de invadir o Iraque. A história avança, enquanto os Estados Unidos permanecem atolados em um conflito que absorve todas as energias do país.

Aos olhos das elites no poder, essa configuração é profundamente preocupante. Desde a metade do século 20, os dirigentes norte-americanos passaram a achar que tinham a responsabilidade histórica singular de dirigir e governar o sistema internacional. Ocupando o topo do mundo desde a década de 1940, eles partiam do princípio que, a exemplo da Grã-Bretanha no século 19, os Estados Unidos estavam destinados a agir como hegemon — Estado dominante detentor da vontade e dos meios de estabelecer e manter a ordem internacional, bem como de assegurar a paz e uma economia mundial liberal aberta e em expansão. Na interpretação seletiva que fizeram da história, foi a incapacidade da Grã-Bretanha de manter esse papel, e a reticência simultânea dos Estados Unidos em assumir sua responsabilidade (o “isolacionismo”), que propiciaram o ciclo guerra mundial-depressão-guerra mundial, durante a primeira metade do século 20.

Essa hipótese, profundamente arraigada nas mentes, tem por corolário um argumento circular: uma vez que a ordem requer um centro dominante, manter tal ordem (ou evitar o caos) requer perpetuar a hegemonia. Esse sistema de pensamento, que os pesquisadores norte-americanos na década de 70 definiram como “teoria da estabilidade hegemônica”, pauta a política externa dos Estados Unidos desde que o país emergiu da Segunda Guerra Mundial como centro ocidental do sistema mundial.

As elites política e econômica norte-americanas entreviam, desde 1940, uma “grande revolução no equilíbrio do poder”. Washington iria se “tornar o herdeiro universal e administrador do patrimônio econômico e político do Império britânico. O cetro [passaria] para as mãos dos Estados Unidos” [10]. Um ano mais tarde, Henry R. Luce anunciava a chegada do famoso “século norte-americano”. “Esse primeiro século em que a América será uma potência dominante no mundo”, escrevia ele, significava que o povo norte-americano deveria “aceitar sem reserva [seu] dever e [sua] perspectiva de futuro como a nação mais poderosa e vital, e exercer sobre o mundo o pleno impacto de [sua] influência pelos meios que [lhe] parecessem apropriados” [11]. Em meados dos anos 40, os contornos do “século norte-americano” já se desenhavam claramente: predomínio econômico reforçado por uma supremacia estratégica baseada em uma rede planetária de bases militares estendendo-se do Ártico à Cidade do Cabo; do Atlântico ao Pacífico.

Presidindo a construção do Estado de segurança nacional, os dirigentes do pós-guerra estavam tomados — para retomar a expressão do historiador William Appleman Williams — de “visões de onipotência” [12]. Os Estados Unidos beneficiavam-se de enormes vantagens econômicas e de um avanço tecnológico considerável e detiveram por um curto período o monopólio atômico. O impasse coreano (1953) e os programas soviéticos de armas e mísseis nucleares certamente abalaram a confiança dos EUA, mas foram a derrota no Vietnã, e as turbulências sociais que acompanharam a guerra no plano interno, que revelaram os limites do poderio.

Inevitável paralelo com o início do declínio britânico, também marcado por uma guerra desastrosa

O “realismo em uma era de declínio” preconizado por Henry Kissinger e Richard Nixon, era somente uma forma de admitir, a contragosto, que o tipo de hegemonia global exercido havia mais de 20 anos não poderia durar para sempre. Mas o Vietnã e a era Nixon marcaram uma virada mais paradoxal. Eles prepararam a reação dos anos 80: a “revolução conservadora” e os esforços conjuntos para restabelecer e renovar o Estado de segurança nacional e o poderio mundial norte-americano. Quando a União Soviética desmoronou, alguns anos mais tarde, as ilusões de onipotência ressurgiram. Os triunfalistas conservadores voltaram a sonhar com uma “primazia” internacional de longa duração. O Iraque era uma experiência estratégica, destinada a inaugurar o “segundo século norte-americano”. A experiência deu errado, assim como a política externa estadunidense.

As analogias históricas nunca são perfeitas, mas o exemplo da Grã-Bretanha e da prolongada derrocada do império pode lançar uma luz sobre o momento histórico atual. No crepúsculo do século 19, raros eram os dirigentes britânicos que podiam imaginar seu fim. Quando foi celebrado o Diamond Jubilee da rainha Vitória, em 1897, a Grã-Bretanha estava à frente de um império transoceânico formal, que englobava um quarto dos territórios do mundo e 300 milhões de súditos — ou mais do dobro, se incluirmos a China, colônia virtual de 430 milhões de habitantes. A City londrina era o centro de um império comercial e financeiro ainda mais vasto, cuja teia abarcava o mundo inteiro. Portanto, não é nada surpreendente que uma importante parte da elite britânica pensasse, apesar do receio suscitado pela concorrência manufatureira norte-americana e alemã, que a Grã-Bretanha recebera “como presente do todo-poderoso um arrendamento do universo por toda a eternidade”.

O Jubilee devia ser “o último raio de sol de uma confiança total na capacidade britânica de governar” [13]. A segunda Guerra dos Bôeres (1899-1902) [14], empreendida na África do Sul para preservar a rota das Índias e reforçar o “elo mais fraco da corrente imperial”, foi um enorme desperdício humano e financeiro. Além disso, ela revelou as atrocidades da política da terra arrasada, a uma opinião pública inglesa cada vez menos dócil. “A guerra sul-africana foi, para a potência imperial britânica, a provação mais importante desde a Rebelião Indiana, e a guerra mais vasta e mais onerosa empreendida pela Grã-Bretanha entre a derrota de Napoleão e a Primeira Guerra Mundial” [15].

Apenas doze anos depois, teve início a Primeira Guerra Mundial, levando os seus protagonistas europeus à derrocada e ao esgotamento. O longo fim da era britânica havia começado. Mas o Império não somente resistiu à crise imediata como perdurou por décadas, ultrapassando a Segunda Guerra Mundial, antes de ver um fim sem glória, pela mão dos norte-americanos, em Suez, em 1956. No entanto, um século mais tarde, a nostalgia da grandeza persiste, como vemos nas desventuras mesopotâmicas do primeiro-ministro Tony Blair. Os últimos resquícios imperiais ainda não foram extintos.

Para a elite no poder dos Estados Unidos, manter-se no topo do mundo há mais de meio século é considerado um fato natural. A hegemonia, como o ar que respiramos, tornou-se um modo de ser, um estilo de vida, um estado de espírito. Os críticos institucionais “realistas” são, certamente, mais prudentes do que aqueles a quem criticam. Mas eles não dispõem, ainda, de um quadro conceitual onde as relações internacionais sejam baseadas em outra coisa que não a força, o confronto ou a predominância estratégica.

A crise atual e o impacto crescente dos problemas mundiais, sem solução no âmbito nacional, originarão, talvez, novos impulsos em matéria de cooperação e interdependência. Em todo caso, é preciso esperar. Mas é provável que a política norte-americana permaneça imprevisível: como mostram todas as experiências pós-coloniais, desfazer um império pode ser uma processo longo e traumático.



[1] Ver “Retired Generals Speak Out to Oppose Rumsfeld”, The Wall Street Journal, 14 abr. 2006.

[2] Associated Press, 5 out. 2005. O general Odom estava à frente da National Security Agency (NSA) na gestão de Ronald Reagan.

[3] Citado em “Breaking Ranks”, The Washington Post, 19 jan. 2006.

[4] Declaração diante da Comissão de Relações Exteriores do Senado, 1 fev. 2007.

[5] O ex-diretor da CIA George Tenet, em seu livro At the Center of the Storm, responsabiliza a Casa Branca pelos erros estratégicos cometidos no Iraque e afirma que nunca houve um “debate sério” sobre a questão de saber se esse país representava uma ameaça iminente ou se não seria melhor simplesmente reforçar as sanções e descartar a guerra. Trata-se do último desentendimento público opondo a CIA à Casa Branca desde, pelo menos, 2003.

[6] Para citar o ex-secretário de Estado Colin Powell durante o programa televisivo “Face the Nation”, na CBS, em 17 dez. 2006.

[7] Zbigniew Brzezinski, declaração diante da Comissão de Relações Exteriores do Senado, 1º de fevereiro 2007.

[8] Ver: The Pew Research Center for the People and the Press.

[9] Ver: PEW Global Attitudes Project

[10] Discurso do presidente do conselho da National Industrial Conference no congresso anual da Investment Bankers Association, 10 dez. 1940. Citado em James J. Martin, Revisionist Viewpoints, Ralph Myles Publisher, Colorado Springs, 1971.

[11] Henry R. Luce, “The American Century”, Life Magazine, 1941, artigo reeditado no Diplomatic History, primavera 1999, vol. 23, n. 2.

[12] William Appleman Williams, The Tragedy of American Diplomacy. Nova York: Delta Books, 1962.

[13] Citado em Elisabeth Monroe, Britain’s Moment in the Middle East, 1914-1956. Londres: Chatto & Windus, 1963.

[14] Tanto o segundo quanto o primeiro conflito (1880-1881) opunham os britânicos e os colonos de origem neozelandesa (bôeres).

[15] C. Saunders e I. R. Smith, “Southern Africa, 1795-1901”, in The Oxford History of the British Empire, vol. , The Nineteenth Century.