sexta-feira, 12 de dezembro de 2008

“Antes eco-chato que eco-burro”


“Tudo o que acontece à Terra – acontece aos filhos da Terra. O homem não teceu a teia da vida – ele é meramente um fio dela. O que quer que ele faça à teia, ele faz a si mesmo”.
Chefe Seatlle

Por todo o estado o clima é de desolação. No vale do Itajaí as famílias contabilizam mortos e estragos. Nunca se viu tanta destruição. Mas, ao contrário do que a televisão tem dito, toda a tragédia não se deve exclusivamente às chuvas que caíram muito mais do que o normal nesta época do ano. Há que buscar as causas humanas, as omissões e ações indevidas. Nos espaços do saber as vozes se levantam indignadas: tudo isso já havia sido anunciado no início da década de 80, quando Blumenau ficou sob as águas. Muitos estudos foram feitos, precauções forma anunciadas e nada se cumpriu. Além disso, a destruição sistemática da floresta amazônica acaba tendo implicações viscerais com o que aconteceu em Santa Catarina e o que ainda pode ocorrer em outros lugares do país.
Segundo estudos divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia, a floresta que toma conta do norte do Brasil é a responsável pela precipitação de chuvas no país e em toda América Latina, assim, o que acontece com ela afeta a todos, indiscriminadamente. Por isso é que os gritos de movimentos ambientalistas contra a destruição - que segue a passos largos via madeireiros, plantadores de soja, criadores de gado, etc... - não devem ser considerados como “histerias” de eco-chatos. As chuvas em Santa Catarina e a seca no Rio Grande e Argentina são exemplos do que a devastação da floresta pode causar. Documento divulgado por professores de várias universidades do Estado de Santa Catarina alerta para esta questão e insiste: não foi apenas o fenômeno atmosférico de precipitações que acontece nos meses do final do ano. É certo que este foi atípico. Em todo o mês de novembro caiu 1.001,7 milímetros, o equivalente a seis meses de precipitação e no final de semana fatídico teve-se a metade disso. Mas há mais coisas a se dizer.

Uma fala de Blumenau

Passado o pior momento, começam agora as tentativas de explicação. Em Blumenau, entre os estudiosos do meio ambiente, ferve uma grande indignação. É que já se fala na contratação de técnicos de São Paulo e até da Alemanha para realizar levantamentos sobre as áreas atingidas. É como isso já não existisse há 30 anos e como se ali, na boa e velha FURB, não houvesse gente capacitada para dar respostas. Tanto tem que os professores ligados ao Centro de Operações do Sistema de Alerta da Bacia Hidrográfica do Rio Itajaí Açu, o CEOPS, já haviam alertado as autoridades sobre a enchente. “Receberam como resposta que não estava chovendo em Rio do Sul, daí não haver perigo. Talvez porque ninguém esperasse que fosse chover tanto”, diz Rudi Ricardo Laps, professor da FURB na área da ecologia e também integrante da Acaprena – Associação Catarinense de Preservação da Natureza, uma das mais antigas do país.
É Rudi quem lembra o trabalho realizado por um professor da FURB e outro do Paraná há 30 anos, bem antes da última grande enchente. No levantamento feito estão muito bem demarcadas as áreas que deviam ser reservadas para a preservação e que jamais poderiam ser parceladas. Dentre estas áreas, muitas são as que ficaram sob as águas e tiveram deslizamentos, como a rua José Reuter, por exemplo, na qual morreram sete pessoas. O trabalho também mapeia o sul da cidade como uma região de córregos, importante manancial de água, que deveria ter sido protegido. Também orienta a prefeitura sobre a instabilidade geológica da região, apontando como inadequado o crescimento da cidade para aquela direção. O estudo feito acabou gerando um decreto municipal, o 1567, de 05 de julho de 1980, que normatizava a ocupação.
Mas, apesar de ser lei, este decreto acabou sendo reiteradas vezes maculado. Rudi conta de um loteamento feito numa região de morro, com declividade acima de 30 graus, portanto fora das normas de segurança, de propriedade de Adelino Batista. Na época, a Acaprena se manifestou contra o parcelamento da terra, entrou com ação, mas não conseguiu vencer. Adelino vendeu o morro a um vereador da cidade, Arlindo de Franceschi (PSDB) e ele deu seguimento ao loteamento. “Essa região foi agora devastada, assim como também o jardim Marabá, que igualmente deveria continuar sendo uma Área de Preservação Permanente. Na época todos foram coniventes, juízes, vereadores, autoridades e todos tinham ciência de que a região sul tinha que ter sido preservada. E não se trata de só salvar os bichos e plantas, como dizem os que nos criticam, mas de salvar as pessoas, como ficou provado agora.”

Os ricos subiram o morro


Outro problema candente no espaço de Blumenau foi a ocupação desenfreada dos morros pela classe média. Ocorre que a enchente de 1983 deixou uma marca profunda nos moradores do centro da cidade. Naqueles dias a água subiu 16 metros e a cidade ficou praticamente submersa. O medo de que isso fosse se repetir levou as pessoas que tinham condição a comprar terra nos morros. A lógica era simples. Se a água tinha invadido a baixada, nos morros não subiria. Então, esta região da cidade passou a ser ocupada. O solo que já era geologicamente frágil ficou mexido e não resistiu às condições anômalas de chuva do mês de novembro e do fatídico fim de semana de 8/9. “Foi incrível, mas a gente podia ver as piscinas caindo dos morros junto com as casas. Uma cena terrível”, diz Rudi.
O morro do Baú, tremendamente atingido pelos deslizamentos também é um exemplo concreto do que pode fazer uma ação anti-preservacionista. Apesar de ser uma Área de Preservação Permanente, o morro do Baú foi, nos últimos anos, seguidamente violentado sem que nada fosse feito para impedir. Durante esse processo de invasão, de retirada ilegal de madeira, de surrupio do palmito (importante cobertura natural da região), as entidades de luta ambiental fizeram denúncias, gritaram, espernearam. Mas, eram ridicularizados como os “eco-chatos”, os que queriam travar o progresso. Não foram ouvidos. Agora, os mesmos políticos que fizeram vistas grossas a estas denúncias aparecem como “os comovidos”, oferecendo cestas básicas aos desabrigados. No mínimo, fariseus.

O código


Não bastasse todo o descaso com os estudos e denúncias feitas por ambientalistas e pesquisadores agora o governo de Luis Henrique da Silveira pretende aprovar, em caráter emergencial, um novo Código Ambiental, que foi totalmente alterado sem levar em conta as sugestões dadas pelas entidades durante o processo participativo de construção do documento. “Não é à toa que Luis Henrique recebeu o Prêmio Porco da Federação das Entidades Ambientalistas Catarinenses e é chamado de o exterminador do futuro, porque ele está destruindo a educação, a cultura e o ambiente”, dispara Rudi Laps. Segundo ele, o documento que tramita na Assembléia tem problemas seríssimos como a diminuição das Áreas de Preservação Permanentes nas margens de rios e nos topos dos morros. “Existe uma lei federal que estabelece os 30 graus de declive, a metragem das margens dos rios que não podem ser tocadas. O Itajaí Açu, por exemplo, teria que ter intocados até 100 metros das margens. Mas quem fiscaliza? Quem aceita isso? Só que esta é uma lei federal e o Código em debate pretende burlar essa lei”.
Outro problema apontado no código é o fato de ele condicionar a implementação de novas unidades de conservação estaduais à Assembléia Legislativa. Conforme Rudi, sendo assim, novas áreas não deverão criadas, pois todos sabem muito bem os interesses que são defendidos pelos deputados e como tudo isso pode virar uma batalha de barganhas e corrupção. “Eles também poderão revisar a lei de proteção à Serra do Tabuleiro o que pode trazer a tragédia para Florianópolis. Afinal, se aquela área for degradas, a capital pode ficar sem água”.
O professor da FURB conta que um dia antes da chuva torrencial que detonou a tragédia ele estava na estrada em uma viagem de estudos com os alunos e puderam notar, no caminho entre a cidade de Torres e Blumenau qual era a situação dos rios diante da chuva que caia. “Nós fomos observando os rios e todos eles estavam açoriados, lodosos, barrentos. Já o rio Massiambu, que descia do alto da Serra do Tabuleiro estava limpo. Foi impressionante porque a aula prática acabou perfeita. Os alunos puderam ver o que pode significar um lugar preservado”. A mesma relação Rudi faz com o Parque Nacional da Serra do Itajaí, outro espaço de preservação que, diante de toda a tragédia que se abateu sobre a região, permaneceu intacto. A lição está aí, estourando na cara. Só não vê quem não quer ou é mal intencionado.

O futuro

Para os ambientalistas e pesquisadores de Blumenau o amanhã segue sendo muito conhecido. Não há necessidade de o prefeito trazer gente de fora da cidade para fazer estudos.. O poder público sabe muito bem quais são as áreas de solo instável e, conforme o professor, nenhum solo instável torna-se estável em 30 anos. Aqueles espaços onde aconteceram os deslizamentos seguem sendo de risco. “O que se pode fazer é, isto sim, um estudo para ver se surgiram novas áreas de instabilidade geológica”.
O fato é que ninguém pode dizer que não foi avisado da tragédia. Na semana anterior às grandes chuvas, o conhecido ambientalista blumenauense Lauro Eduardo Bacca, um dos fundadores da Acaprena, escreveu um artigo no jornal comentando o primeiro deslizamento de terra que havia ocorrido no morro Coripós. “A desgraça está anunciada”, disse ele, profético. E foi o que aconteceu. Na semana seguinte, as regiões já apontadas no plano diretor da cidade como não parceláveis, vieram abaixo. Portanto, avisos não faltaram.
Mas, o fato é que toda esta discussão acaba não chegando ao povo, às gentes simples que compram terras em loteamentos ilegais ou em espaços degradados, passíveis da desgraça. Até porque a mídia, cortesão do poder, raramente dá espaço para as denúncias dos ambientalistas. E, as pessoas, na verdade, não têm muita escolha. Diante da transformação da terra em mercadoria, só podem fincar suas casas onde o bolso alcança. Então, tampouco se pode reputar a culpa aos pobres que se metem em lugares de risco. Para eles não há alternativas. Os que devem ser cobrados e punidos são os que se apropriam das terras e as loteiam, sabendo de todos os riscos. No geral, estes, não são pobres. São os mesmos especuladores de sempre, basta seguir o rastro nos cartórios da cidade. Muitos deles têm sobrenomes chiques, são políticos, autoridades, enfim...
Agora, as cidades iniciam seu processo de reconstrução. Doações chegam de todos os lugares deste Brasil solidário e, no mais das vezes, escapam do controle. Muito do dinheiro doado pode não chegar e o que chegar sabe-se lá para o quê será usado. Além disso, no caso de Blumenau, o poder público terá de tomar medidas drásticas como a retirada gradual de todas as famílias que vivem nestas áreas impróprias - o que significa praticamente todo o sul da cidade - cerca de quatro mil pessoas. Isso requer uma mudança radical e cara. Mas, segundo os estudiosos é absolutamente necessária. “Os solos da parte sul precisam ser preservados, são frágeis. A cidade só pode crescer para o norte onde os solos são um pouco melhores”, insiste Rudi Laps.
Além disso, a cidade precisa investir em fiscalização. Não basta ter leis que regulamentem a ocupação do solo. Há que estar atento, ter controle. A Fatma, que é um órgão ambiental do Estado, está sucateada, faltam trabalhadores. Na cidade de Blumenau o efetivo da Polícia Ambiental é de apenas oito homens. Isso tem de mudar. Ou as pessoas entendem de uma vez por todas que suas vidas têm ligações viscerais com a vida do planeta, ou momentos trágicos como estes que viveu o Estado se repetirão. E esta não é uma receita apenas dos chamados eco-chatos - que de chatos não têm nada – é também preocupação de profissionais como os engenheiros, arquitetos, biólogos, enfim, todos os que, de uma maneira ou de outra, estudam estas questões. “Antes ser um eco-chato do que um eco-burro”, diz o ambientalista Lauro Bacca. Mais do que nunca, ele tem razão.
E, no brutal mundo capitalista, enquanto as famílias que perderam gentes e bens - por conta da vileza dos especuladores de plantão que burlaram todas as leis - tentam encontrar um caminho para seguir vivendo, as municipalidades iniciam a chamada “reconstrução”, muitas vezes se valendo de empresas já especialmente preparadas para os “desastres”. Em casos assim, de tragédias anunciadas e guerras sem razão, também já se tem muito claro que são os que sairão ganhando. Neste sistema do capital tem um tipo de gente que nunca perde.

A midia de esgoto e o poder.....

Roberto Marinho e a ditadura:

uma contribuição a 'O Globo'


No momento em que O Globo dá início à série de reportagens sobre a contribuição civil à ditadura, aguardo ansiosamente que apareçam os nomes dos donos da Organização e dos editores no período.

Por Gilson Caroni Filho*, na Carta Maior



Como diz a jornalista Marinilda Carvalho, ex-editora do Observatório da Imprensa, "vou esperar para ver a fotografia do Dotô Roberto bem grande na primeira página! Afinal, Roberto Marinho foi um dos maiores colaboradores! Sua TV e seu jornal prestaram inestimáveis serviços aos nossos gorilas, tanto financeiros quanto midiáticos!”.

Assim, como forma de contribuir com a pesquisa do jornal, ofereço minha modesta ajuda republicando, na Carta Maior, artigo que escrevi para o Observatório, em agosto de 2003, em meio às homenagens póstumas prestadas ao empresário . Creio que será de alguma valia para os que se interessam por um empreendimento que objetiva recontar a história, ocultando o papel desempenhado nela. Eis o texto, revisado em alguns pontos, em nome da atualização.

Epifania editorial

Terra revolvida, consciências entorpecidas e biografia reinventada. É próprio do rito agir sobre a realidade intervindo na representação que as pessoas fazem dela. A isso se chama eficácia simbólica. Capacidade de reescrever a história, muitas vezes ao preço de falsificá-la com a anuência de seus, outrora, críticos severos. Esmaecidos os princípios e calados os dissensos, os poderosos nunca morrem sós. Levam com eles o silêncio dos que se diziam inocentes.

Homenagens póstumas tanto mais revelam quanto maior a absolvição pretendida. Os panegíricos pedem mais que um minuto de silêncio. Solicitam, com maior ou menor intensidade, a troca de sinais e a inversão de discursos. A fabricação do consenso precisa que a razão adormeça e as contradições se esfumem. A memória deve se reinventar para dar seu "fiel" testemunho ao novo sentido que as estruturas de poder solicitam.

A morte do presidente das Organizações Globo, o jornalista e empresário Roberto Marinho, produziu manifestações de pesar por demais emblemáticas para serem ignoradas. De antigos aliados a opositores ferrenhos ouvimos e/ou lemos declarações entusiásticas sobre o cidadão, o companheiro e o empreendedor. Não pretendo, ao longo desse pequeno artigo, analisar as intenções que moveram os gestos. Seria tão inútil quanto presunçoso.

Mas se alguma lição há que se extrair desse episódio, ela não poderá ignorar um ponto fulcral: ao morrer, Roberto Marinho mostrou os acertos das apostas que fez em vida. E isso, per si, explicaria sua longevidade como figura central do cenário político brasileiro.

Apostou no poder das estruturas oligárquicas e acertou na mosca. Jogou todas as fichas em forças sociais que perpetuariam o atraso e raspou a mesa. Foi, em nome da expansão de seu império, parceiro de regimes que suprimiram liberdades civis e acentuaram a exclusão social.

Desde jovem soube, como bom jogador de pôquer, que parcela expressiva da intelectualidade que lhe criticava era facilmente cooptável. A retórica cidadã não resistiria a pequenos favores. Não precisou ler Gramsci para ter perfeita noção do que significa transformismo. E, como senhor do cassino, foi avalista de diversas transições pelo alto, de modernizações conservadoras e desconstruções de projetos nacionais. Por tudo isso, foi um vencedor.

Em texto laudatório, o jornal O Globo, na edição de 8 de agosto, registra sua trajetória política:

"Foi o seu modo de exercer o poder. Ficou com Getúlio Vargas em 1930, contra os comunistas em 1935, contra os integralistas logo depois, contra Getúlio quando da redemocratização ao fim da guerra. Em 1964, apoiou o movimento militar, em sua opinião o caminho para preservar as "instituições democráticas ameaçadas pela radicalização ideológica" dos últimos meses do governo Jango. Foi um gesto de fidelidade aos ‘tenentes e bacharéis’, ao lado de quem estava desde 1930".

Ora, esse curto relato anula as intenções dos que pretendem descrevê-lo como "liberal por temperamento", "democrata por natureza" e "empreendedor por vocação".

Deu sustentação simbólica a distintos blocos de poder em troca do atendimento de suas demandas empresariais. A inegável capacidade de se antecipar ao momento histórico é o que explica o parágrafo acima. Reconheceu com sagacidade o caráter conservador do tenentismo e a ele aderiu quando percebeu a revolução passiva que se delineava.

Independentemente de algum desentendimento com censores, não negou ao Estado Novo o apoio de seu veículo. Rompeu com Getúlio e apoiou o golpe de 45, quando pressentiu que, ao caudilho, não restava outra opção a não ser ampliar a institucionalidade a setores até então excluídos. Décadas depois, conspirou contra a legalidade e se tornou o esteio simbólico da ditadura militar, implantada em 64.

Exaltando as virtudes de um modelo econômico calcado no excessivo endividamento externo, fez ouvidos moucos aos gritos dos torturados nos porões. Como principal capitão da indústria editorial, legitimou a censura e pouco, ou quase nada, falou sobre o extermínio de opositores de um regime do qual era parte constitutiva.

Se houve uma ou outra escaramuça pouco importa, o certo é que o "democrata por natureza" assistiu impávido à supressão de liberdades civis e ao desfiguramento das instituições republicanas. Deixou claro, ao contrário do que supõem as consciências ingênuas, que não existe simbiose entre democracia e grande imprensa.

O "liberal por temperamento" sempre contou com as benesses estatais para isenções de impostos, favorecimentos fiscais, cambiais e fornecimento de papel. E o "empreendedor por vocação" soube jogar com a conivência dos poderes instituídos, para dar vazão à sua chama de "empresário "schumpeteriano".

A associação, ao arrepio de dispositivos constitucionais, com o Grupo Time-Life já faz parte da história da televisão brasileira. E é apenas uma pequena amostra de como se constrói um monopólio. De como se moderniza a mídia ao custo da concentração da informação. Nesse ponto, qualquer analogia com a estrutura fundiária não só é permitida, como desejável.

Retorno que assusta

Esgotado o ciclo militar, o "democrata por natureza" manteve-se na linha de frente dos interesses das classes dominantes. Censurando as manifestações por eleições diretas, celebrando o Colégio Eleitoral que acabaria por levar Sarney ao poder e, no curso de adesão ao projeto neoliberal, apoiando Collor (defenestrado por um acordo intra-elites) e Fernando Henrique.

Roberto Marinho sabia que os movimentos sociais dependem das representações construídas a seu respeito na mídia. Não poupou esforços para sua demonização. O movimento sindical do fim dos anos 70 e o MST, mais recentemente, eram manifestações indesejáveis. Deveriam ser apresentados como disfunções que precisam ser exterminadas para o desejável funcionamento da ordem. Nesse ponto, o restante da mídia lhe seguiu como modelo.

Como sabemos a cultura política de uma formação social — conjunto de significados e valores que constrói o sentido de comunidade política — também resulta da interpretação midiática sobre fatos e comportamentos. Se é assim, não há como olvidar que a contribuição do agora festejado "companheiro-jornalista-empresário" para a prática política brasileira foi deplorável. Sua conivência, em tempos distintos, com a tortura, a exclusão e o patrimonialismo é, em grande parte, responsável por nosso atraso político-institucional.

Por tudo isso soam estranhas declarações como as que abaixo reproduzo:

Antonio Palocci, na época, ministro da Fazenda: "Foi o doutor Roberto Marinho fundamental na construção da democracia brasileira e no fortalecimento e estabilidade do sistema democrático nacional. O Brasil perde, mas devemos aplaudir o exemplo dado por ele."

Miro Teixeira, ex-ministro das Comunicações: "Do amigo ficará a saudade. Do brasileiro o exemplo e a história".

José Genoino, então presidente nacional do PT: "Doutor Roberto é um homem que faz parte da História do Brasil. Viveu os momentos mais importantes do país. Teve uma vida longa e frutífera. E agora descansa em paz."

Márcio Thomaz Bastos, ex-ministro da Justiça: "Roberto Marinho marca uma época de renovação e consolidação do jornalismo e da grande imprensa brasileira."

Pela estatura moral dos atores, não acho cabível falar em transformismo. Mas, por força da eficácia simbólica citada no início do artigo, julgo não ser improcedente afirmar que, vivo, Roberto Marinho foi corretamente associado ao reacionarismo de nossas elites. Morto, retorna como epifania democrática. E, convenhamos, isso assusta.”

Alguma dúvida que, passados cinco anos, continua assustando?

* Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro e colunista da Carta Maior